ESCOLARIZAÇÃO E ANALFABETISMO ÍNDÍGENA NO BRASIL1
Alceu Ravanello Ferraro – UFRGS; UNILASALLE/RS
[email protected]
Abraão Nilo Givago Schäfer – FACULDADES EST
[email protected]
ResumoA escolarização indígena é conseqüência do contato com a sociedade envolvente e foi sempre
usada para “civilizar” e “adaptar” os indígenas, o que tem causado ruptura nas suas tradições. Ao
terem que incorporar a técnica da escrita, os indígenas tentam dar-lhe outro significado, ou seja, à
medida que a sociedade envolvente quer incorporá-los por meio da escrita, eles buscam apropriar-se
da escrita justamente para não serem incorporados. Está posto aí um desafio para os formuladores e
executores das políticas públicas voltadas à escolarização dos povos indígenas.
Palavras-chave: indígenas; escolarização; analfabetismo.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende estudar a educação escolar nas comunidades indígenas no
Brasil, centrando a atenção na analise da taxa de não-alfabetização nessas populações
indígenas. No primeiro ponto faz-se uma breve retrospectiva histórica da educação escolar e
seus pressupostos na história do país. O segundo ponto trata da alfabetização indígena como
conseqüência do contato. O terceiro ponto analisa a questão da escola nas populações
indígenas em sua relação com a sociedade envolvente. O quarto ponto faz uma análise da taxa
de não-alfabetizados no conjunto da população indígena segundo o Censo 2000, levando em
consideração as variáveis cor/raça, sexo, grupo de idade e regiões. Conclui-se fazendo
algumas considerações sobre o analfabetismo e a educação escolar nas populações indígenas.
A “CONQUISTA”
Logo quando chegaram ao Brasil muitos portugueses diziam que os índios não
pronunciavam as letras f, l e r porque não possuíam fé, lei e rei4. Por isso seria fácil catequizalos, pois não tinham religião nem um código de leis (escritas) que organizasse a sociedade.
Mas com o tempo começariam a mudar de opinião, de um povo sem religião ou deus
passariam a vê-los como “idólatras”5. Os “descobridores” tomam esses “novos” habitantes
como objeto de pesquisa e questionamento. Começaram a perguntar se esses novos seres
descobertos pertenciam à humanidade. O critério da resposta foi, nessa época, essencialmente
religioso: possuem alma? O pecado também recai sobre eles? Foram respostas importantes
para os missionários, pois precisavam saber se era possível comunicar-lhes o Evangelho6. A
intenção de tentar entender a língua e a cultura, e criar gramáticas para esses povos indígenas,
segundo Bartomeu Melià (1979), é a da tradução. Ou seja, a vontade de entender o outro é
antes a vontade de ser entendido e o que deveria ser entendido é na verdade a doutrina cristã.
“Civilizar” era cristianizar e cristianizar e “civilizar”.
Segundo Melià, a educação (para o) indígena se volta logo para alfabetização. No
pensamento corrente não havia outra forma de educar o indígena se não alfabetizando-o. E a
passagem de culturas não-escritas para culturas escritas está marcada pela dominação.
Durante muito tempo e ainda hoje a educação foi/é uma forma de dominar e impor um
determinado tipo de conhecimento; foi/é uma forma de adaptar o indígena a uma determinada
sociedade, de transformá-lo apto a cumprir certos requisitos necessários para sobreviver na
sociedade do “branco”, ou seja, a educação por muito tempo foi uma forma de transformar o
índio em mão-de-obra qualificada e barata (quando não escrava)7.
Inicialmente é necessário esclarecer que no presente trabalho há uma diferença entre
educação indígena e educação escolar indígena. Ambos os modelos têm sua formalidade no
processo: a educação formal indígena, que se estende por toda a vida do ser humano com base
no contexto, e a educação formal nacional, com regimentos, calendários escolares, planos de
aula, salas de aula e num determinado período na vida do ser humano.
Cada povo desenvolveu suas próprias técnicas de educação que visam instruir e
transformar a criança ou a pessoa num ser exemplar do contexto onde nasceu8. Desse modo é
ingênuo afirmar que exista uma forma única de educação nos povos indígenas.
Por educação indígena entendem-se os processos próprios de educação que incluem
pedagogias, formas, regras e métodos específicos de aprendizagem. O processo de educação
indígena é muitas vezes visto, pela sociedade nacional, como um processo informal, tendo em
vista que não possuem escolas ou agentes específicos e especializados em educação. Mas o
processo de educação indígena é também um processo formal, pois tem uma forma
sistemática, com regras e pedagogias, tem local e hora apropriada, tem pessoas específicas,
tem fases específicas que requerem mais esforço e tempo9. A educação tem o papel de tornar
o ser num portador exemplar da cultura onde nasceu, tornando-se, assim, parte integrante de
uma identidade. Esse processo de educação não está voltado somente para suas relações
internas, mas também externas, na interação com outros povos.
Por muito tempo também se pensou que a educação indígena fosse somente utilitária,
com vista à sobrevivência e necessidades. Isso também não é verdade, pois os povos
indígenas desenvolveram religiões, classificaram a natureza, e fizeram outras tantas
especulações existenciais e cosmológicas.
A forma pela qual se deu a educação escolar indígena é das mais diversas. Alguns povos
tiveram esse contato logo cedo, no século XVI; outros o tiveram mais tarde; outros ainda hoje
não tiveram contato com a educação escolar. Esses últimos são chamados povos isolados,
devido ao não-contato sistemático com a sociedade nacional.
Seguem alguns dados históricos sobre a educação escolar indígena no Brasil.
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL COLONIAL
O processo de educação escolar indígena teve seu início por volta da segunda metade do
século XVI, quando passou a existir no centro da ideologia dominante a intenção de adaptar o
indígena à sociedade colonial10. Mas a educação escolar indígena ficou a cargo das missões
religiosas católicas. Por isso Melià (1979) e Fernandes (1975) afirmam que a história da
educação escolar indígena está intimamente ligada com a história da Igreja no Brasil.
Os aldeamentos e as reduções acabavam descaracterizando todo o pluralismo cultural
dos indígenas em um único modelo cultural, econômico, religioso e político11. As casas eram
distribuídas e construídas conforme ideais civilizatórios coloniais. Mudando o sistema
econômico das comunidades, mudam também as relações entre as pessoas e destas com a
natureza. Com isso mudam também as concepções de si mesmos e do mundo12. No início da
educação escolar indígena eram os padres, junto com índios, que iam até às aldeias ensinar os
indígenas. Mas essa forma não era eficiente, segundo os padres. Construíram, então, escolas e
internatos nas missões, onde diversas etnias participavam do processo educacional. A
educação tinha como objetivo a catequização tida como ação civilizatória. Civilizar era
catequizar e catequizar era civilizar13.
EDUCAÇÃO ESCOLAR COMO INCORPORAÇÃO À SOCIEDADE NACIONAL
No Brasil colonial a intenção era civilizar/catequizar o indígena. Já no Brasil
republicano (até a constituição de 1988), a intenção era integrar o indígena à sociedade
nacional. Essa mudança aconteceu devido a denúncias nacionais e internacionais quanto ao
não respeito aos povos indígenas. Frente às pressões sofridas, o governo cria, em 1910, o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Esse órgão ficou responsável por todos os assuntos
concernentes aos povos indígenas e um dos seus principais objetivos era o de,
sistematicamente, integrar os indígenas à sociedade nacional14. O que antes os padres
investiam no processo de catequização, agora o SPI investe no processo de incorporação dos
indígenas no trabalho agrícola e doméstico. São introduzidas nos currículos escolares as
disciplinas “Práticas Agrícolas” e “Práticas Domésticas”: a primeira para meninos, a segunda
para meninas. Em 1932 o SPI é transferido para o Ministério da Guerra e, em 1967, devido a
denúncias de massacres dos povos indígenas, é substituído, para evitar intervenções da ONU,
por um novo órgão, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), vigente até hoje 15.
Esse novo órgão por um lado não mudou muito do antigo SPI e por outro tinha
propostas mais significativas, embora sem recursos, para os indígenas. A FUNAI é vinculada
ao Ministério do Interior e este é voltado ao incentivo do desenvolvimento interno do país.
Segundo Santos (1975), a FUNAI, com esse caráter empresarial, está preocupada em obter
recursos financeiros e passa a implantar, nas terras indígenas, projetos econômicos que visem
tal fim. Assim, segundo o autor, os postos da FUNAI que tinham melhores condições para
executar atividades agrícolas passaram a investir sistematicamente no cultivo de trigo, soja,
feijão ou milho. Foram também implantadas serrarias nas áreas indígenas que tinham recursos
florestais, e quando não havia recursos para isso eram concedido direito, pela FUNAI, de
serrarias privadas explorarem a área. “...verdadeiramente os postos indígenas se
transformaram em fazendas, sendo que seus chefes passaram a uma categoria de gerente ou
capataz. Dessa forma, não há efetivamente renda indígena”16.
Quanto à educação escolar, a FUNAI usou, sem muitas modificações, o currículo
escolar das Secretarias de Educação dos estados e municípios se distinguindo apenas com o
ensino bilíngüe nas escolas, privilegiando a língua materna. Mas não havia, por parte da
FUNAI, um programa bilíngüe e nem pessoas capacitadas para isso. Sendo assim a FUNAI
acabou recorrendo ao Summer Institute of Linguistics (SIL), um organismo de cunho
religioso fundamentalista, presente no Brasil desde 1959, e que tem como objetivo traduzir a
Bíblia nas mais diferentes línguas, e principalmente nas línguas dos povos tribais. O convênio
foi rompido em 1977 e reativado, não sem críticas, em 1983. Em 1999 o Ministério da
Educação e da Cultura (MEC) elaborou um parecer oficial que impediu a continuidade das
atividades do SIL junto aos povos indígenas no Brasil17.
MOVIMENTOS INDÍGENAS
Segundo Cledes Markus (2006), é a partir da década de 1970 que começam a aflorar em
toda América Latina os movimentos indígenas a favor da preservação de suas identidades e
direitos. No Brasil, as articulações, reuniões e assembléias indígenas começam mais
sistematicamente a partir de 1974. A partir daí, diversas organizações foram criadas e existem
até hoje como, por exemplo, a União das Nações Indígenas (UNI)18. O movimento indígena
contou muito com a ajuda e apoio das organizações não-governamentais que tinham um
compromisso político com os povos indígenas – que também passaram a aflorar na década de
1970. A educação escolar sempre esteve presente nas discussões e reivindicações dos
movimentos indígenas.
A Constituição de 1988 reflete os esforços empreendidos pelo movimento indígena e
pelas organizações não-governamentais que lutam pela causa indígena. A Constituição
reconhece o direito à diversidade cultural desses povos e, no que diz respeito à educação, são
garantidos e reconhecidos os processos próprios de uma educação diferenciada que leve em
consideração a realidade de cada povo19. Só muito recentemente, em 1991, é que foi
repassada ao MEC a responsabilidade sobre a educação escolar indígena, que antes era
atribuição da FUNAI. As ações referentes à educação escolar indígena são agora de
responsabilidades das Secretarias de Educação dos Estados e Municípios, em sintonia com o
MEC.
ALFABETIZAÇÃO INDÍGENA
A alfabetização indígena é uma conseqüência do contato, mas essa se processa em duas
perspectivas, segundo Melià. A primeira é a perspectiva da sociedade envolvente e a outra, a
da própria sociedade indígena.
A tentativa da sociedade envolvente em educar os indígenas vem desde os tempos
coloniais, como visto, mas sem muitos resultados. Segundo Melià, a argumentação que
justifica a alfabetização do indígena é mais ou menos essa: o indígena deve conseguir se
intercomunicar, deve saber lidar com/resolver os problemas criados pela sociedade
envolvente. O indígena deve saber defender-se do branco, para isso é necessária a
alfabetização. Como se a alfabetização por si mesma fosse capaz de resolver os problemas
trazidos pelo contato.
Segundo Melià, a alfabetização que a sociedade envolvente tem em vista teria as
seguintes vantagens:
a)
elevar o nível do índio
b)
possibilitar a leitura da Bíblia e outros livros
c)
reclamar seus direitos, pela escrita, frente ao Estado.
d)
perpetuar na escrita a memória oral do povo, que se pensa que pode ser
esquecida20
Talvez isso seja o que Graff (1995) chamou de “o mito da alfabetização”. Segundo o
autor, existe um censo comum, popular e acadêmico, que diz que a alfabetização traria
consigo “poderosos” efeitos. Os efeitos atribuídos à alfabetização são dos mais diversos:
empatia pessoal, espírito crítico e inovador, aceitação tecnológica, participação democrática e
identificação nacional, linearidade de pensamento e comportamento. Além disso, também é
atribuído à alfabetização o desenvolvimento econômico, tecnológico e político, a
modernização, estabilidade política, controle de natalidade entre outros.
Para Pattanayak (1995) os teorizadores sobre cultura escrita e cultura oral estão
preocupados em demonstrar as vantagens e dar maior ênfase à cultura escrita. Costumam
dizer que a cultura escrita proporcionou decisivamente o desenvolvimento da “modernidade”.
Os autores estão mais preocupados em proclamar a superioridade da cultura escrita sobre a
oralidade, do que as diferenças entre elas. Assim, segundo ele, os milhões de analfabetos no
mundo todo “são vistos como cidadãos de segunda classe”21. E ainda, não há estudos
significativos que comprovem o real desenvolvimento das culturas escritas em relação às
culturas orais. Graff (1995, p. 27-28) também chama a atenção para isso dizendo que a
alfabetização “é fundamentalmente mal compreendida”, porque os estudos feitos “evitam
qualquer esforço para formular definições consistentes e realistas da alfabetização, não
avaliam as implicações conceituais que a questão da alfabetização apresenta, e ignoram
‘muitas vezes de forma grosseira’ o papel vital do contexto sócio-histórico”. Na realidade,
muito do que se atribui à alfabetização é antes fruto da escolarização e não da alfabetização
em si.
Para Pattanayak a ênfase na cultura escrita é uma estratégia de opressão por excelência,
e estudos que exageram nessa ênfase acabam se tornando instrumentos de dominação.
A ideologia da sociedade nacional, de alfabetizar o indígena, encontrou ecos nas
sociedades indígenas. A maioria dos povos reivindica esse direito, mas, segundo Melià, a
perspectiva da sociedade indígena muitas vezes não tem a ver com a alfabetização mesma. O
que está por trás dessa intenção é conseguir certos recursos (do governo ou ong’s) que só
conseguiriam vendendo sua mão de obra ou seu trabalho ou ainda dominar uma técnica do
branco (a escrita) que resolveria seus problemas por completo.
Na perspectiva indígena, segundo Melià, podem-se destacar as seguintes razões para a
alfabetização:
a)
dominar uma técnica mais do “civilizado”, que parece ter também um valor
quase mágico
b)
defender-se da exploração
c)
defender a terra por meios jurídicos, que exigem o domínio da escrita
d)
progredir, pós-alfabetizado, nos estudos e no domínio de técnicas do branco
e)
transmitir para a própria comunidade as técnicas adquiridas
f)
conseguir emprego e melhores condições de vida e um status dentro da
sociedade do branco
g)
poder escrever a própria tradição, e poder ler textos escritos por pesquisadores
sobre o próprio povo22
Melià diz que o papel da educação indígena na criança é tornar esse novo ser portador
exemplar da cultura onde nasceu, integrá-la às normas da cultura onde nasceu. Assim esse
novo ser será capaz de se integrar e de ser um protagonista da sua cultura, podendo propor
mudanças, mas mudanças coerentes com sua tradição23. Já a alfabetização e a educação
escolar trazidas pelas missões e pela sociedade nacional causaram uma ruptura com a tradição
desses povos, ruptura, segundo Melià não sem ideologia. Ou seja, a intenção desse processo,
de alfabetização e educação escolar, era de assimilar os indígenas e torná-los “cristãos
civilizados” capazes de venderem sua força de trabalho. Os indígenas, por sua vez, nem
sempre viam esse processo dessa forma. Ou seja, enquanto que a sociedade envolvente queria
(ou ainda quer) dominar os indígenas através da escrita, os indígenas queriam dominar a
escrita justamente para não serem dominados. Segundo Melià, a escrita deveria ser usada
pelos indígenas simplesmente como técnica suplementar na sua cultura, para, com isso, tentar
resolver os problemas trazidos pela própria alfabetização e educação escolar, pelo contato.
O problema da alfabetização indígena é a interferência que ela causa, e essa
interferência, segundo Melià, pode proceder de duas formas: por primeiro, substituindo o
processo milenar de educação indígena, e por segundo, sendo um complemento (paralelo) da
educação indígena24. A primeira causaria uma ruptura com a tradição, já a segunda estaria
causando uma inovação coerente com a tradição e educação indígena.
Segundo Maria Helena Rodrigues Paes (2003) ao citar Iara Tatiana Bonin25 diz que o
conhecimento “de fora”, da sociedade envolvente dominante, ao entrar em contato com os
indígenas assume uma nova característica para esses, ou seja, é algo que deve ser
compreendido e dominado. E é assim, conforme diz Paes, que esse conhecimento “de fora”
passou a se efetivar como único modo de sobrevivência e manutenção para os povos
indígenas. A escola deveria ser, conforme Bonin, o meio pelo qual os indígenas captariam
esse conhecimento “de fora”. Segundo a autora, “apropriar-se a novos saberes não significa
sobrepô-los ao saber tradicional, mas transformá-los em caixas de ferramentas”26. Assim a
escola, segundo Paes, se apresenta como essencial no contexto das comunidades indígenas, já
que estão inseridos num contexto maior, o da sociedade nacional. Segundo a autora, a escola
deveria dar possibilidades aos indígenas de participarem da sociedade envolvente de forma
consciente. “Não há como estar inserido em um contexto sem conhecê-lo, assim como não há
como participar de uma dinâmica social sem conhecer os códigos que a regem. [...] Não
conhecendo e compreendendo os códigos normativos e legislativos [da sociedade envolvente],
estarão sempre na dependência de ‘outros’ para a garantia de seus direitos”27.
A ESCOLA INDÍGENA
A escola foi o instrumento pelo qual a sociedade envolvente tentou, durante muito
tempo (e quando deturpada, ainda hoje), integrar os indígenas ao modo de vida ocidental
“civilizado”. Pelo menos essa foi a visão nacional. Os indígenas tentam dar outro sentido a
educação escolar, de perpetuar seu modo de vida, ainda que tendo que incorporar novos
elementos, como a escrita e a escola. Não são vítimas passivas desse empreendimento, mas
agentes ativos28. Muitos agentes indigenistas e pesquisadores defendem a idéia de que as
escolas são ou deveriam ser “espaços de afirmação e revitalização da cultura”29. Nesse sentido
a escola indígena deveria diferenciar e em muitos lugares se diferencia das escolas da
sociedade envolvente. Essa necessidade de uma escola com um modo próprio já está presente
na Assembléia realizada em 1981 (quando os movimentos indígenas organizados começam a
surgir no cenário nacional) no Alto Purus-AM, onde dizem que não querem uma escola
“como funciona para os brancos, mas sim uma escola que faça com que o índio queira
continuar ser índio e não ficar desejando abandonar a aldeia; essa escola deve ter professores
indígenas e ficar dentro das malocas”30. Neste mesmo sentido o Conselho de Professores
Indígenas da Amazônia (COPIAM) diz, na Assembléia Geral de 2000, que a escola indígena
deve estar a serviço do povo, como instrumento de resistência e sobrevivência do povo. “As
escolas não podem ‘servir como ‘portas de saída’ dos jovens’ indígenas das aldeias e
comunidades”, mas “devem contribuir para a busca de soluções mais amplas para o presente e
o futuro de nossos povos”31.
A escola começa a se tornar um problema para os indígenas quando não corresponde à
comunidade e à auto-afirmação cultural e política do seu povo. Segundo Paes, quando a
escola indígena se propõe a trabalhar conteúdos da própria cultura do povo dentro da sala de
aula, esta está “dizendo” que a comunidade é incapaz de cumprir o seu papel, o de transmitir a
cultura ou de educar o novo ser na sociedade. Segundo os próprios indígenas, a escola tem
que ensinar às crianças “as coisas do branco, pois as coisas de índio elas aprendem com a
família e a comunidade”32.
A escola é um problema trazido pelo contato com a sociedade envolvente. Os indígenas
para não serem massacrados são obrigados a incorporarem certas técnicas a sua cultura,
técnicas essas que não deveriam causar uma ruptura com a tradição, mas servir de aparato
crítico para não serem dominados por uma cultura e um certo tipo de conhecimento alheio.
Segundo a maioria dos autores e autoras, a escola nas sociedades indígenas deveria ser o
instrumento pelo qual os povos indígenas, captariam, entenderiam e dominariam esse
conhecimento alheio, justamente para não serem dominados por eles. A escola seria
promotora da auto-afirmação cultural da comunidade.
Sendo a escola um local de preservação e auto-afirmação cultural para os povos
indígenas, a alfabetização seria um grande passo nessa direção. Veremos a seguir o que dizem
os dados do último Censo Demográfico do IBGE sobre a alfabetização das populações
indígenas no contexto brasileiro.
A ALFABETIZAÇÃO INDÍGENA SEGUNDO O CENSO 2000
1) Começa-se aqui comparando a taxa de não-alfabetização (analfabetismo) do conjunto
dos povos indígenas frente aos outros grupos étnico-raciais que compõem a população
brasileira, considerando sempre as pessoas de 10 anos ou mais. A taxa de não-alfabetização
entre as pessoas de etnia indígena (25,2%) está bastante próxima da mesma taxa para as
pessoas declaradas de cor preta (20,3%) e parda (16,8%), o que representa uma taxa 1,24
vezes mais elevada em relação as pessoas de cor preta e 1,5 vezes em relação as pessoas de
cor parda. Muito mais elevada é a diferença entre a taxa de não-alfabetização da população
indígena (25,2%) em relação às populações branca (7,7%) e amarela (4,8%), chegando a ser,
respectivamente, 3,3 e 5,25 vezes mais elevada (Gráfico 1).
Em resumo, o grande corte em termos de taxas de não-alfabetização está entre, de um
lado, pessoas brancas e amarelas, e de outro, pessoas indígenas, pretas e pardas. Feita essa
comparação, pode-se passar, agora, à analise do analfabetismo nas populações indígenas,
introduzindo as variáveis sexo, região e grupos de idade.
2) A Gráfico 2 permite duas observações. De um lado, as taxas de não-alfabetização são
acentuadamente mais elevadas nos grupos a partir dos 50 anos de idade, em comparação com
os grupos etários abaixo de 50 anos. Isto deve estar sinalizando uma intensificação da
alfabetização indígena na segunda metade do século XX. De outro lado, em todos os grupos
de idade a partir dos 20 anos, as mulheres apresentam taxas de não alfabetização mais
elevadas que os homens, invertendo-se, porem, a situação a favor das mulheres no grupo mais
jovem, isto é, no grupo de 10 a 19 anos. Os estudos vêm mostrando que, no Brasil, as
mulheres apresentam, em todos os grupos de idade abaixo de 50 anos, taxas de analfabetismo
inferiores às dos homens (Ferraro, 2007). Isso faz prever que nas próximas décadas a
vantagem das mulheres, no que se refere à alfabetização, irá estender-se também para os
grupos seguintes de idade (20-29, 30-39 anos etc.) entre os povos indígenas.
3) No passo seguinte comparam-se as taxas de não-alfabetização entre os indígenas por
região. O exame do Gráfico 3 permite ver a enorme desigualdade regional existente nas
populações indígenas quanto ao analfabetismo. Com efeito, a taxa de não-alfabetização na
Região Norte (41,8%) representa 1,6 e 1,7 vezes, respectivamente, as taxas da Região CentroOeste (25,4%) e da Região Nordeste (24,5%). No outro extremo situam-se as regiões Sul
(18,4%) e Sudeste (12,1%), representando esta última uma taxa 3,5 vezes menos que a da
Região Norte. Tais resultados acompanham, de modo geral, as desigualdades regionais
apuradas para o conjunto da população brasileira (Ferraro, 2004).
4) O Gráfico 4 permite relacionar as taxas de não-alfabetização com sexo nas diferentes
regiões. Exceção feita da Região Nordeste, onde as taxas são praticamente idênticas (em torno
de 24,5%), em todas as demais regiões as taxas de não-alfabetização são acentuadamente mais
elevadas entre as mulheres. Esses resultados indicam que entre os indígenas a “corrida” das
mulheres à escola está retardada em relação ao que se verifica para o conjunto da população
brasileira, onde elas já superam os homens na maioria dos indicadores educacionais.
5) O Gráfico 5 considera apenas o grupo etário de 10 a 19 anos. Neste grupo, o mais
jovem na população de 10 anos e mais, as mulheres já levam vantagem (taxas de nãoalfabetização mais baixas) em duas regiões (Sudeste e Nordeste), com diferenças mínimas em
outras duas (Sul e Norte). Apenas na Região Centro-Oeste a diferença continua acentuada em
desfavor das mulheres. Isso significa que, com algumas décadas de defasagem, as populações
indígenas estão manifestando, hoje, a mesma tendência à inversão na relação entre sexo e
educação no conjunto da população brasileira: antes, fortemente favorável aos homens; de
algumas décadas para cá, tornando-se favorável às mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo os e as autoras, a escola é, na maioria das vezes, re-significada quando
incorporada no contexto das comunidades indígenas. Re-significada de um modo e interesse
próprios de forma a contribuir para a sobrevivência dessas comunidades indígenas.
O papel da escola não se limita à alfabetização. No entanto, a alfabetização é um grande
passo para uma escola que seja capaz de melhor compreender as dinâmicas da sociedade
envolvente e de participar na luta pela emancipação das comunidades indígenas. Nessa
perspectiva, a taxa de analfabetismo nas populações indígenas no seu conjunto ainda é muito
elevada. Se examinada a questão na perspectiva regional, então as populações das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as mais atingidas pelo analfabetismo.
Pode-se dizer que a escola e a alfabetização são assimiladas pelas populações indígenas
conforme a intensidade do contato com a sociedade envolvente e a oferta de oportunidades de
parte da União e dos estados e municípios. Nas regiões onde o contato é mais intenso (Sul e
Sudeste) as taxas de não-alfabetização são menores, ao passo que nas regiões onde o contato é
menos intenso (Norte, Nordeste e Centro-Oeste) as taxas de não-alfabetização são mais
elevadas.
Tendo em vista esse quadro, ainda restam algumas perguntas quanto ao processo de
educação escolar nas comunidades indígenas:
•
Como proceder com a escola sabendo-se que, conforme Freire, não existe educação
neutra; sabendo-se que a escola serviu e ainda hoje serve como instrumento de
dominação e alienação?
•
Como a educação pode ser um instrumento de libertação quando, muitas vezes, os
próprios professores indígenas estão “viciados” por uma ideologia capitalista, não se
lembrando mais do motivo pelo qual reivindicaram uma escola em sua aldeia?
•
Não são já pensadas as escolas indígenas numa perspectiva de continuidade escolar,
visando a introduzir os indígenas no ensino médio e superior nas escolas da
sociedade envolvente?
•
Estarão os indígenas que se formam nas escolas da sociedade envolvente,
especializando-se em profissões dessa sociedade e morando longe de suas aldeias,
dispostos a voltar para a sua comunidade, a sua aldeia?
•
É possível uma escola indígena realmente autônoma, não submissa aos agentes do
Estado? Ou ainda, é possível a não-escola para os povos indígenas, como uma forma
de não sucumbirem frente à sociedade envolvente?
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GRÁFICOS
Gráfico 1. Taxa de não-alfabetizados/as entre as pessoas
de 10 anos ou mais, segundo a cor ou raça. Brasil 2000.
% não-alfabetizados/as
30,0
25,0
25,2
20,3
20,0
16,8
15,0
10,0
7,7
4,8
5,0
0,0
Indígena
Preta
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Microdados.
Parda
Cor ou raça
Branca
Amarela
70,0
Gráfico 2. Taxa de não-alfabetizados/as na população indígena de 10
anos ou mais, por sexo, segundo grupos de idade. Brasil 2000.
59,4
% não-alfabetizados/as
60,0
Homem
50,0
50,1
Mulher
41,7
40,0
32,0
30,0
20,0
17,816,3
19,6
17,4
10-19
20-29
23,7
21,0
27,3
22,3
30-39
40-49
10,0
0,0
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Microdados.
50-59
60 ou +
Grupos de idade
Gráfico 3. Taxa de não-alfabetizados/as na população indígena
de 10 anos ou mais, segundo as regiões. Brasil 2000.
% não-alfabetizados/as
45,0
41,8
40,0
35,0
30,0
25,4
24,5
25,0
20,0
18,4
12,1
15,0
10,0
5,0
0,0
Norte
Nordeste
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Microdados.
Sudeste
Regiões do Brasil
Sul
Centro-Oeste
% não-alfabetizados/as
Gráfico 4. Taxa de não-alfabetizados/as na população indígena
de 10 anos ou mais, por sexo, segundo as regiões. Brasil 2000.
50,0
45,0
40,0
35,0
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
0,0
45,1
Homem
38,8
Mulher
28,6
24,9 24,2
21,7
14,4
22,1
15,1
9,7
Norte
Nordeste
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Microdados.
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Regiões do Brasil
Gráfico 5. Taxa de não-alfabetizados/as na população
indígena entre 10 a 19 anos, por sexo, segundo as regiões.
Brasil 2000.
% não-alfabetizados/as
35,0
31,6 32,2
30,0
Homem
25,0
Mulher
20,0
17,1
15,0
15,1
11,4
10,0
10,5
5,4
5,0
6,1 6,8
3,3
0,0
Norte
Nordeste
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Microdados.
Sudeste
Regiões do Brasil
Sul
Centro-Oeste
NOTAS
1
Trabalho desenvolvido dentro do Projeto Gênero, raça e escolarização no Brasil: traçando a trajetória da
relação, desenvolvido com apoio do CNPq.
2
Professor do Centro Universitário La Salle e bolsista PQ do CNPq.
3
Aluno do Bacharelado em Teologia das Faculdades EST, bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq.
4
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 13.
5
VAINFAS, Ronaldo. 1995, p. 25.
6
Também havia outros critérios para os indígenas chegarem ao estatuto de humanos: aparência física,
comportamentos alimentares se sua inteligência pode ser aprendida por meio da escrita, mas o principal era o
religioso, “sem religião nenhuma, são mais diabos”. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São
Paulo: Brasiliense, 2005, p. 37-41.
7
BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões: Política Indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola,
1983. p. 9.
8
Cf. SANTOS, Silvio Coelho dos. Educação e sociedade tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975, p. 53-54.
MELIÀ, Bartomeu. Educação Indígena e Alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979, p. 10. FERNANDES,
Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 38-39.
9
MELIÀ, Bartomeu. 1979, p. 10.
10
FERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 25.
11
SUESS, Paulo. Culturas Indígenas e Evangelização. [S.l.] Vozes [S. d.]. p. 215.
12
MARKUS, Cledes. Identidade étnica e educação escolar indígena. Blumenau: FURB, Dissertação. Centro
de Ciências da Educação, Universidade Regional de Blumenau, 2006, p. 59.
13
MELIÀ, Bartomeu. 1979, p. 46.
14
SANTOS, Silvio Coelho dos. Educação e sociedade tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975, p. 38.
15
MARKUS, Cledes. 2006, p. 63
16
SANTOS, Silvio Coelho dos. 1975, p. 48.
17
MARKUS, Cledes. 2006, p. 64.
18
MARKUS, Cledes. 2006, p. 66.
19
MARKUS, Cledes. 2006, p. 68.
20
MELIÀ, Bartomeu. 1979, p. 58-59.
21
PATTANAYAK, D. P. A cultura escrita: um instrumento de opressão. In: OLSON, D. R. e TORRENCE, N.
(Orgs.). Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995, p. 117.
22
MELIÀ, Bartomeu. 1979, p. 59-60.
23
Cf. FERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975, p.
36.
24
MELIÀ, Bartomeu. 1979, p. 60-61.
25
PAES, Maria Helena Rodrigues. "Cara ou coroa": uma provocação sobre educação para índios. Rev.
Bras. Educ., maio/ago. 2003, no.23, p.94.
26
Bonin apud Paes. p. 94.
27
PAES, Maria Helena Rodrigues. 2003, no.23, p.94.
28
Cf. WEIGEL, Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros. Os Baniwa e a escola: sentidos e repercussões. Rev.
Bras. Educ., jan./abr. 2003, no.22, p.5-13. ISSN 1413-2478.
29
Cf WEIGEL
30
Apud D’ANGELIS; VEIGA. 1997, p. 173.
31
Apud SILVA. 2000, p. 41.
32
Apud PAES. 2003, p. 93.
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escolarização e analfabetismo índígena no brasil