PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Reencenando a cidade: O projeto “Rio eu te amo” e suas reinvenções midiáticas.
Gabriel Chavarry Neiva1
Doutorando (PPGCOM/UERJ)
Resumo
Esse trabalho tem como foco o produto que está sendo desenvolvido pela Conspiração
Filmes, “Rio, eu te amo”. Esse projeto dá continuidade à série “Cities of love”. A película em
si tem sua estreia no circuito comercial marcada para setembro de 2014. Além dessa realização,
também está sendo produzido outros conteúdos ligados às mídias digitais compartilhado por
produtores e usuários dessas plataformas comunicacionais. Assim, "Rio, eu te amo" se insere
historicamente num contexto de realização de megaeventos e das suas repercussões sobre a
reconstrução identitária da cidade. De forma majoritária, apresenta-se um Rio de Janeiro que é,
acima de tudo, harmonioso e apaixonante. Ao mesmo tempo, outras vozes que dialogam no
projeto mediam interpretações alternativas a essa imagem.
Palavras-chave: cidade; midiatização; consumo; cenário; reconstrução
Nesses últimos anos, o Rio de Janeiro parece estar no centro das atenções do
mundo todo. Em 2013, foi sede da Jornada Mundial da Juventude (a JMJ) organizada
pela Igreja Católica. Já em 2014 tornou-se um espaço chave para a realização dos jogos
na Copa do Mundo de futebol, sendo escolhida para a sua tão esperada partida final. E
para coroar essa chamada “era de megaeventos 2”, está escalada para sediar os Jogos
Olímpicos de Verão no ano de 2016.
Tendo em vista este importante momento da cidade, este estudo se debruça sobre
a análise de textos midiáticos que têm o cenário do Rio de Janeiro como personagem
principal. Trata-se do projeto de mídia convergente “Rio eu te amo”, capitaneado pela
1
Gabriel é mestre em Antropologia Cultural pelo PPGSA-IFCS-UFRJ. Atualmente é professor celetista
dos Departamentos de Comunicação Social da FACHA (Faculdades Integradas Hélio Alonso) e PUC
(RIO). Email: [email protected].
2
Sobre a chamada “era dos megaeventos” e suas repercussões, ver FREITAS, Ricardo & LINS, Flávio
& SANTOS, Maria Helena do Carmo. “Megaeventos: motores de transformações sociais”. XXII
Encontro Anual do Compós, 2014.
Acesso realizado em 17 de junho de 2014.
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Conspiração Filmes. Em meio a esses megaeventos, o Rio, eu te amo constrói uma
narrativa imagética que nos leva a pensar a “cidade maravilhosa” como um ambiente
harmônico e apaixonante. Sabemos, porém, que esse processo não tem sido tão
tranquilo.
De qualquer maneira, evitaremos a utilização de velhos automatismos que
concluam que tais textos midiáticos são simples “reproduções” das relações materiais,
ou até sob influência da tradição da Escola de Frankfurt, que insistiu numa abordagem
reificadora e apocalíptica dos produtos da chamada “indústria cultural”3. Adotaremos,
então, a perspectiva elucidada por Muniz Sodré (2002), em que a sociedade (e
consequentemente, o campo comunicacional) é regida por um processo de
midiatização.
Dessa forma, a midiatização pode ser entendida como um “processo
informacional”, implicando à “virtualização das relações humanas”, ambiente nas
quais as imagens se “tornam simulacros tecnicamente auto referentes4”. Aqui, o
construto imagético não é um mero reflexo das bases materiais, como propagado por
alguns teóricos frankfurtianos já citados, mas sim como parte constituinte de um novo
pólo de produção identitária. Sodré, então, denomina esse espaço como um “bios
midiático”, no qual as individualidades são constituídas a partir de um incessante
consumo de imagens, tanto a partir das novas tecnologias digitais quanto das
chamadas mídias tradicionais. Esse consumo implica numa ampla transformação da
vida social, reconfigurando e redescrevendo as múltiplas “produções de realidade”.
Reencenando a cidade.
Existem incontáveis contribuições para a análise das relações sociais a partir
do sítio urbano. Desde das contribuições marxistas aliadas à teoria geográfica como as
de Henri LeFebvre, Milton Santos e David Harvey, passando pelas análises mais
3
É fulcral notar que Theodor Adorno fez uma revisão crítica sobre o seu conceito de indústria cultural
em dois importantes artigos: ADORNO, Theodor. Cultural Industrial Reconsidered in: Telos, a
quartely jornal of radical thought. St. Louis: Washington University, 1974 & ADORNO, Theodor.
Tempo livre in: A indústria cultural e a sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002.
4
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petropólis: Editora Vozes, 2002, p. 24.
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urbanistas de Kevin Lynch, Jane Jacobs e Maurício de Abreu, até a importante
contribuição da antropologia urbana norte americana fundada por Robert Ezra Park na
Universidade de Chicago no começo do século XX. Mas para começar, utilizamos
aqui a análise de “cidades espetáculo” realizada por Nestor Garcia Canclini (2010), no
qual o autor destaca que a metrópole é lócus privilegiado de intercâmbio material e
simbólico. Tal fenômeno é decorrente das múltiplas trajetórias que ali se encontram.
O autor nos lembra que existem muitas formas de experimentar culturamente a
cidade, seja através de “contos, exposições, canções, livros, revistas5”
Acreditamos que, por vezes, Canclini tem uma visão muito otimista sobre o
processo de privatização de certas cidades multiculturais na década de 1990. O autor
tem como exemplo-chave a cidade de Barcelona que intensificou seus fluxos de
trocas materiais e simbólicos nesses últimos vinte anos. Infelizmente é ignorado o
processo de “embelezamento” e “elitização” que ocorreu na cidade. Mike Davis
(2006) nos lembra que a preparação para os Jogos Olímpicos na cidade consolidou
uma renovação urbana mas que foi seguida de uma ampla política de despejos da
população mais pobre.
Por outro lado, Canclini aponta para uma redescrição de metrópole que nos
interessa. As cidades espetáculo são concebidas como formas de inserir a urbe num
processo de fluxos de trocas simbólicas e materiais em escala global. Dessa forma, o
Rio de Janeiro está num galopante processo para se tornar uma cidade espetáculo. Por
outro lado, tal lógica também evidencia uma disputa desigual, agravando a exclusão
social que faz parte do cotidiano de boa parte da população.
Por sua vez, Richard Rorty (1994) se ampara no conceito de “descrição do
mundo” para compreender a consolidação de interpretações e vocabulários que fazem
parte do nosso repertório cotidiano. Apresenta-se, então, um ambicioso projeto que
refuta a escolha entre o privado e o público (ou posta em outros termos, como a
dicotomia indivíduo e sociedade, tão utilizada pelos cânones da sociologia
CANCLINI, Nestor Garcia. “Cidades multiculturales y contradicciones de la modernizácion” in:
Imaginarios Urbanos. Buenos Aires: Eudeba, 2010, p. 95.
5
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tradicional), optando por um ponto de convergência em que mentes criadoras tão
díspares quanto Nietzsche, Marx, Orwell e Nabokov se encontram.
Rorty rejeita também a ideia de uma “natureza intrínseca” que poderá nos
mostrar uma essência reveladora da Verdade, absoluta e irrevogável. Assim, a questão
não é “descobrir uma verdade” mas o reconhecimento de que o nosso universo
sensível é delineado a partir da construção das nossas constantes definições. Essa
formidável elaboração nos é importante, pois consideramos que o projeto “Rio, eu te
amo” opera mais uma redescrição imagética da cidade. Nesse atual contexto histórico
em que se consolida uma interpretação no qual o carioca constantemente reestabelece
sua “autoestima6, a ex capital do país, agora cidade espetáculo, se expõe como um
cenário harmonioso e digno de uma paixão avassaladora pelos seus usuários.
Os principais cenários desse Rio de Janeiro são suas belezas arquitetônicas e
naturais. Henri Pierre Jeudy e Paola Bernstein Jacques (2006) alertam, que esse tipo
de cidade espetáculo diante da globalização do mercado, revela uma reconstrução
espacial, “dando aos turistas a impressão de que se encontram na eternidade de um
cartão postal”7. As ramificações do projeto de mídia convergente “Rio, eu te amo” são
como extensões dessa espetacularização, agindo como uma prótese virtual desse
contínuo processo de transformação urbana. Veremos, então, que o conteúdo
produzido, compartilhado e consumido nas redes sociais ligadas ao “Rio, eu te amo”,
constantemente reiteram a imagem da cidade como fonte eterna de paixões
avassaladoras.
Em contrapartida, Jeudy e Jacques nos lembram que “quem diz cenário, diz
também desacordo8”. Ao mesmo tempo que o Rio, eu te amo realiza uma redefinição
Ver os artigos “Copa 2014 pode deixar uma melhora de autoestima como legado do brasileiro”
http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/14/a-copa-do-povo-brasileiro.htm e “Paes
aposta na autoestima do carioca” http://eleicoes.uol.com.br/2012/noticias/2012/08/22/candidatos-aprefeitura-do-rio-iniciam-propaganda-eleitoral-gratuita-na-tv-e-no-radio.htm. Acesso realizado em 20
de julho de 2014.
7
JEUDY, Henri Pierre & JACQUES, Paola Bernstein. “Introdução” in: Corpos e cenários urbanos.
Salvador: UFBA, 2006, p. 8.
8
JEUDY & JACQUES, p. 7.
6
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da cidade, as interações do seu conteúdo nas suas redes sociais também abrem
brechas para a contestação dessas construções imagéticas. Assim como em outras
cidades ao redor do planeta, essa transformação acarretou um processo de
revitalização urbana, que returbinou a especulação imobiliária e expulsou parte da
população menos favorecida das áreas revitalizadas. É interessante, então, observar
que o largo alcance do projeto aqui estudado acaba por dar espaço a algumas vozes
que têm uma interpretação antagônica a esse Rio de Janeiro apaixonante.
Rio, eu te amo: “um movimento de amor à cidade”.
O Rio, eu te amo é um produto midiático que dá continuidade à série de franquia
de filmes “Cities of love”, que já realizou as películas “Paris, eu te amo” e “Nova York,
eu te amo”. Esse projeto é capitaneado pela Conspiração Filmes, produtora
independente fundada em 1991 e que atua de forma marcante e bem sucedida em
diversos segmentos do mercado: “publicidade, cinema, TV, conteúdo de branding
publicitário e filmes para mídias digitais9”. A Conspiração começou a ganhar força nos
meados dos anos 1990, mesma época em que mercado audiovisual do Rio de Janeiro já
tinha ganhado força a partir da “Retomada” da produção audiovisual em que algumas
produtoras passaram a se beneficiar dos incentivos fiscais e das Leis Audiovisuais,
reaquecendo os mecanismos de distribuição e circulação de filmes, seriados de
televisão e peças publicitárias.
A Conspiração Filmes conjuga mídias tradicionais (Cinema, televisão) com as
novas mídias (celular, aparelhos de áudio digital e principalmente a internet). Seguindo
tal tendência, o “Rio, eu te amo” se constitui como uma plataforma de mídias
convergente, nas quais diversos conteúdos são criados para preparar o público até o
lançamento do produto final, a película. Por sua vez, “Rio, eu te amo” se apresenta
como um “movimento10”, se valendo de múltiplas vozes criativas para construir uma
“declaração de amor à cidade”.
9
Ver www.conspiraçao.com.br, acesso realizado em 21 de junho de 2013.
Ver sobre o “movimento” em: https://www.facebook.com/riodejaneiroeuteamo, acesso realizado
em 01 de julho de 2014.
10
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A película foi dividida em dez curtas metragens e teve a direção dos seguintes
autores (Andrucha Waddington, Carlos Saldanha, José Padilha, Fernando Meireles,
John Turturro, Vicente Amorim, Nadine Labaki, Im Sang Soo, Paolo Sorrentino
Stephan Eliot e Guilhermo Arraiga). Com isso, o filme acabou se tornando um dos
focos da arquitetura do “movimento”. O projeto segue à risca as atividades que a
Conspiração pretende alcançar, produzindo conteúdo também para as redes sociais,
branding publicitário e mídias digitais.
O filme “Rio, eu te amo” está marcado para estrear nos cinemas em setembro de
2014. Dessa forma, ainda não poderemos analisar o texto fílmico. Mas as redes sociais,
por sua vez, acabaram se tornando uma mídia central para o projeto, tendo a página do
Facebook com mais de um milhão e trezentas mil “curtidas”11 como ponta de lança de
criação e distribuição de conteúdo. E é principalmente a partir do Facebook que os
usuários tem contato com essas diversas ramificações de atuação desse “movimento”.
A partir do sucesso de divulgação na página do Facebook, o “movimento” Rio eu
te amo tem conseguido expandir o seu conteúdo para o usuário de outros tipos de redes
sociais. Tomemos primeiramente o exemplo da rede Instagram. Esse primeiro é um
amplo serviço de compartilhamento de fotos e vídeos que também funciona como um
aplicativo de celular. Desde da sua criação em 2010, alcançou cerca de 150 milhões de
usuários no mundo todo12.
Assim como a grande maioria de usuários do Instagram, fotos ligadas ao “Rio eu
te amo” são publicadas quase diariamente. Além desse expediente, observamos que, a
partir dessa rede, foram construídas outras estratégias de divulgação de conteúdo. Uma
delas é realizada a partir dos instatours, que são passeios “fotográficos” percorrendo
sítios turísticos da cidade. Essa empreitada foi organizada pela empresa de cosméticos
O Boticário (um dos principais patrocinadores do “movimento” Rio eu te amo) a partir
11
Acesso realizado em 02 de julho de 2014.
Esse dado estatístico foi coletado no site http://instagram.com/press/. Acesso realizado em 02 de
julho de 2014.
12
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de uma enquete realizada na página do Facebook que perguntava ao usuário “quais
eram as essências (leia-se: lugares essenciais) do Rio de Janeiro?”
Dentre os quatro cenários escolhidos, não houve surpresa na escolha dos
tradicionais pontos turísticos da Praia de Ipanema e da trilha da Pedra Bonita, situada
no Parque Nacional da Tijuca. Mas as eleições dos bairros de Santa Teresa e da Lapa
sinalizam um interesse renovado por essas áreas. Apesar das suas belas paisagens e de
serem palcos privilegiados para diversas manifestações culturais, estes espaços foram,
na década de 1990 e parte dos anos 2000, assolados pela violência e abandono da
segurança pública. Mas observamos agora uma ampla divulgação de um processo de
revitalização urbana que está recuperando o “charme” turístico dessas áreas. Porém,
não podemos esquecer que tal processo é acelerado por uma licenciosa especulação
imobiliária que expulsa as populações menos abastadas da região, “limpa” outros
grupos que são considerados “indesejados” para o turismo13 e não consegue resolver
problemas básicos de mobilidade infra estrutural14.
A rede social Foursquare também foi acionada no movimento “Rio, eu te amo”.
Este serviço permite ao seu usuário que se conecte, a partir do seu celular ou
smartphone, com outros contatos que estão próximos dos lugares em que se encontram.
Esse contato se dá principalmente a partir do check-in, em que o usuário identifica,
através do GPS do seu aparelho móvel, a localização geográfica em que se encontra.
Tal contato pode ser compartilhado por outras redes como o Facebook, o Twitter, o
Linkedin, etc.
A partir da divulgação de sua página de Facebook, o “Rio, eu te amo” realizou o
check-in das localizações que foram cenários para a realização da película. Trata-se de
uma extensa lista de paisagens naturais e arquitetônicas. Dentre elas, encontramos a
Lagoa Rodrigo de Freitas (acompanhada pela descrição de que a “Lagoa vista de cima
Ver o artigo “MP constata higienização de moradores de rua do Rio de Janeiro” em:
http://epocanegocios.globo.com/Essa-E-Nossa/noticia/2014/06/mp-constata-higienizacao-demoradores-de-rua-no-rio-de-janeiro.html. Acesso realizado em 03 de julho de 2014.
14
Ver o artigo “Santa Teresa perde o bonde para a Copa do mundo” em:
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-05-19/santa-teresa-perde-o-bonde-da-copa-domundo.html. Acesso realizado em 03 de julho de 2014.
13
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tem formato de um coração”) e o Teatro Municipal da cidade. Aliás, este
estabelecimento aparece de forma recorrente no “Rio eu te amo”. Tanto como
“personagem principal” de um dos curtas quanto alvo de retratos no já citado “Rolê
Fotográfico”. E também foi anfitrião de um festival de dança15, componente de uma
modalidade de ação publicitária, organizado pelo patrocinador “O Boticário”.
Além disso, chamamos a atenção a inclusão de outros pontos turísticos menos
tradicionais como a Lagoa de Jacarepaguá, a ilha de Paquetá e do bairro do Vidigal. Os
comentários nem sempre são tão amistosos quanto os exemplos anteriores. Nesse
primeiro, um usuário faz referência ao intenso estado de poluição na qual se encontra a
Lagoa. Paquetá, por sua vez, é constantemente mencionada pela sua estonteante “beleza
natural”, mas também é criticada por um usuário pela sua infraestrutura deficitária.
Já o Vidigal recebe uma enxurrada de elogios, tanto por causa da sua proximidade
às praias do Leblon e São Conrado quanto aos grupos artísticos como o “Nós no
Morro”, que fincaram sua marca na história social dessa comunidade. Por outro lado, é
necessário observar que o Vidigal não ficou alheio ao processo de mudança social que
vem assolando a cidade. A partir da instalação de sua UPP em 2012, o turismo
internacional se intensificou e gerou um “efeito cascata” nos preços dos serviços
oferecidos no bairro 16 . Com a “pacificação” e a proximidade da realização dos
megaeventos na cidade, a especulação imobiliária atingiu fortemente a região e
expulsou alguns antigos moradores. Esse intenso processo fez com que outros
residentes se organizassem para debater e tentar combater esses preços abusivos17.
De uma forma geral, tal uso do Foursquare confirma a centralidade dos
chamados cenários do Rio de Janeiro como “personagens principais” do projeto. Estes
15
O festival internacional de dança urbana RioH2K foi realizado no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro entre os dias 4 e 8 de maio de 2013.
16
Ver o artigo “Pacificado, o Vidigal vira cenário de turismo” em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/turismo/71286-pacificado-o-vidigal-vira-cenario-para-oturismo.shtml. Acesso realizado em 03 de julho2014.
17
Ver o artigo “Especulação imobiliária sobe o asfalto para a favela” em:
http://www.jb.com.br/rio/noticias/2014/03/18/especulacao-imobiliaria-sobe-do-asfalto-para-a-favela/.
Acesso realizado em 03 de julho de 2014.
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parecem ser mais mencionados do que os atores, diretores e roteiristas que farão parte
da película final. E principalmente encontramos umas das forças motrizes para o
sucesso do tal “movimento”: o carioca nutre uma intensa relação de amor com as
maravilhas naturais e arquitetônicas da cidade.
As ações publicitárias dentro do “movimento” também se apresentam como uma
estratégia bem sucedida para ajudar a “espalhar” o amor pela cidade. A primeira e mais
utilizada conjuga a intervenção urbana, manifestação artística realizada em algum
espaço da cidade com o branding publicitário, ligado a principais patrocinadoras do
projeto como o já citado O Boticário, a empresa de telecomunicação móvel Nextel e o
grupo bancário Santander S/A. Dentre os exemplos dessa empreitada, temos uma
feitura de escultura de areia com os dizeres Rio, eu te amo na Praia de Copacabana, a
distribuições de balões meteorológicos e de flores pela região da Cinelândia (área
central da cidade). Mas uma ação nos parece ainda mais representativa da redescrição
da cidade que “Rio, eu te amo” opera.
Destacamos, então, a distribuição de mil corações em forma de origami pelo
Parque do Aterro do Flamengo. Dentro de “corações”, os participantes eram
encorajados a escrever mensagens de “amor” e “gentileza” para espalhar o amor pela
cidade. Além dessa bem pensada estratégia que executou num domingo ensolarado (dia
em que o trânsito em torno do Aterro é fechado e que consequentemente recebe um
grande público), as mensagens parecem ter ecoado sentimentos “agradáveis” e
“positivos” aos frequentadores que participaram dessa intervenção.
Ao mesmo tempo, o Parque do Aterro do Flamengo tem sido notícia por seus
constantes relatos de violência e falta de segurança urbana18. Na tentativa de combater
essas recorrências, alguns frequentadores do Aterro realizaram uma manifestação
pedindo maior policiamento na região19. Políticos ligados ao bairro como a vereadora
Ver o artigo “Violência assusta frequentadores do Aterro do Flamengo” em: http://g1.globo.com/riode-janeiro/noticia/2014/01/violencia-assusta-frequentadores-do-aterro-do-flamengo-no-rio.html.
Acesso realizado em 04 de julho de 2014.
19
Ver o artigo “Frequentadores do Aterro do Flamengo fazem ato contra a falta de segurança” em:
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-02/frequentadores-do-aterro-do-flamengo-fazemato-contra-falta-de-seguranca.html. Acesso realizado em 05 de julho de 2014.
18
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em exercício, Leila do Flamengo (PMDB), concatenam um projeto de revitalização do
Parque do Aterro do Flamengo. Caso esse empreendimento realmente se concretize,
fica a indagação quanto ao alinhamento do mesmo à elitização e especulação
imobiliária urbana que afeta a outras áreas citadinas mencionadas anteriormente.
Além das iniciativas associadas aos principais patrocinadores do projeto, a
página do Facebook do Rio, eu te amo divulga outras ações que não são ligadas
diretamente ao mesmo mas, que de alguma forma, possuem um espírito consonante ao
“movimento”. Dentre estas, está o projeto “Rio, eu tatuo”. Motivada pelo momento de
evidência midiática que observa na cidade, a fotógrafa Julia Assis procura financiadores
e editoras para publicar seu registro de pessoas que tatuaram nos seus corpos “símbolos
cariocas”. Segundo a idealizadora, os típicos cartões postais da cidade como Cristo
Redentor, o Pão de Açúcar, o Morro Dois Irmãos, bordões como “sou carioca”, “021 é
Rio de Janeiro”, “Rio 40 Graus” e as frases popularizadas pelo Profeta Gentileza
evidenciam na própria pele a paixão do carioca pela cidade. Para Júlia, que também
tatuou um desses “símbolos cariocas”, o livro demonstraria “como a cidade está
enraizada no corpo e na alma dessas pessoas20”.
Em um importante inventário histórico e sociológico sobre o pensamento
ocidental, Richard Sennett (2006) enfatizou a importância dos espaços urbanos para a
construção da noção de corporalidade. As metrópoles são arenas de disputas onde
inúmeros discursos, imagens e cenários são criadas para representar diferentes visões
de mundos. É interessante observar que o projeto de Júlia evidencia que as tatuagens
cariocas reencenam nos seus corpos o cenário desse Rio de Janeiro, “lugar de uma
beleza eterna”.
A partir do vídeo disponibilizado por sua idealizadora no seu site21, constatamos
que os participantes do projeto prescrevem a uma concepção de que suas inscrições
corporais realçam sua jovialidade e beleza física. Porém, as tatuagens nem sempre
20
Ver o site do projeto: http://www.rioeutatuo.com.br/apresentacao, acesso realizado em 19 de julho de
2014.
21
Ver http://vimeo.com/57737373#, acesso realizado em 19 de julho de 2014.
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comportaram tal conotação. No clássico filme dirigido por Jean Vigo, O Atalante, os
desenhos no corpo do marinheiro idoso Jules são mal feitos e representativos de um
grupo constantemente marginalizado na sociedade francesa22. Já Pierre Clastres (2007),
observa que, tanto num clássico conto de Franz Kafka quanto no cotidiano das tribos
Guaykuru e Mandan, provenientes do Chaco Paraguaio, as tatuagens expressam o
sofrido processo de tortura.
De certa forma, esses diferentes usos das tatuagens confirmam uma sagaz
observação de Clastres: a inscrição das marcas no corpo são “lembranças
inesquecíveis”. As sociedades tribais acreditavam que infringir a dor da marca sobre os
seus jovens constituía um aspecto indispensável dos seus ritos de passagem. Já aqueles
jovens tatuados cariocas encenam e eternizam nos seus corpos imagens de uma urbe
representativa do seu “estilo de vida”: bonita, sem aparentes contratempos e
concentrado nos seus pontos turísticos e mais abastados.
Em estreita conexão com a sua página do Facebook, o site rio.euteamo.net possui
um blog com colunistas que escrevem sobre os “pontos gastronômicos do Rio de
Janeiro”23 como a feira do Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara (CADEG)
no bairro de Benfica, os tradicionais botecos da Zona Sul e Zona Norte da cidade que
servem as melhores cervejas, os petiscos mais saborosos e pratos que são a “cara” do
Rio como o Filé Oswaldo Aranha (Bife com alho) e as Feijoadas. Além disso,
observamos diversas incursões pelos centros de culinária que se espalham do bairro da
Urca, passando pelo Centro da cidade até a Baixada Fluminense. Os comentários
realizados no blog, conectados diretamente ao Facebook, parece mostrar, de forma
quase unânime, um entusiasmo pela variedade de dicas que o Rio, eu te amo apresenta
aos seus participantes.
Tal variedade evidencia uma certa abertura do “movimento” que vai além seja
dos típicos cenários “cartões postais” ou das áreas “pacificadas” pelo processo de
GOMES, Paulo Emílio Salles. “L´ Atalante” in: Jean Vigo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1984, p. 162.
23
Ver http://rioeuteamo.net/blog, acesso realizado em 09 de julho de 2014.
22
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elitização da cidade. Observamos que há também espaços para divulgação tanto no blog
quanto no Facebook de manifestações culturais que se caracterizam por uma forte
crítica às desigualdades sociais urbanas. Duas destas nos chamaram mais a atenção: as
rodas de Samba da Pedra de Sal e o Cineclube Buraco de Getúlio.
Tombado como patrimônio imaterial, o Quilombo da Pedra do Sal, localizada no
Morro da Conceição (zona portuária da cidade) tem um papel histórico importante na
cultura afro brasileira que começa no século XVI e se mantém até os dias atuais24. No
seu próprio site do Facebook25, o Quilombo formado nesse local se apresenta como um
lugar de resistência e de preservação de formas culturais como o samba. Ao mesmo que
as diversas rodas de samba aumentaram o número de frequentadores, observa-se uma
acirrada disputa dos quilombolas pelo reconhecimento da ocupação física do espaço.
Esse embate é marcado principalmente pelo intenso processo de valorização imobiliária
e revitalização da região portuária que já expulsou muitos moradores da área vizinha
do Morro da Providência. A Pedra do Sal resiste e ganha espaço enquanto força contra
hegemônica em relação a lancinante elitização da cidade26.
O Cineclube Buraco do Getúlio é um projeto que transformou um bar no centro
da cidade de Nova Iguaçu (região da Baixada Fluminense) num espaço cultural em que
se realiza exibições gratuitas de curtas e longas metragens e intervenções artísticas de
poetas e músicos. Inspirados pelo chamado “copyleft27”, essa iniciativa se empenha em
24
Ver http://iserj.net/morro-da-conceicao-uma-pagina-da-historia-do-rio-de-janeiro/, acesso realizado
em 09 de julho de 2014.
25
Ver https://www.facebook.com/quilombo.pedradosal.9?fref=ts, acesso realizado em 09 de julho de
2014.
26
Ver o artigo “Aprovado projeto que reconhece valor cultural do Quilombo Pedra do Sal em:
http://extra.globo.com/noticias/extra-extra/aprovado-projeto-que-reconhece-valor-cultural-doquilombo-pedra-do-sal-12612124.html, acesso realizado em 09/07/2014.
27 “O copyleft usa a lei do copyright de forma a garantir que todos que recebam
uma versão da obra possam usar, modificar e também distribuir tanto a obra quanto suas
versões derivadas. Assim, de maneira leiga, pode-se dizer que copyleft é o oposto de
copyright” em: LEMOS, Ronaldo & JÚNIOR, Sérgio Branco . “Copyleft, Software Livre e Creative
Commons: A Nova Feição dos Direitos Autorais e as Obras Colaborativas” in: Revista do Centro de
Tecnologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2796/Copyleft_Software_Livre_e_CC_A
_Nova%20Feicao_dos_Direitos_Autorais_e_as_Obras_Colaborativas.pdf?sequence=1. Acesso
realizado em 09 de julho de 2014.
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divulgar filmes que geralmente passam ao largo do circuito comercial. Numa cidade
em que padece de opções de lazer e tem apenas três salas de cinemas, o Cineclube
também se tornou um ponto de encontro para grupos de cineastas locais como o Grupo
Laranja e o Coletivo Difusão.
Um outro episódio curioso nos sinaliza que, mesmo entre os curtas escolhidos
para o projeto principal, pode haver contestações àquele Rio de Janeiro harmônico e
apaixonante. Na película “Rio eu te amo”, o curta metragem “Inútil paisagem” dirigido
por José Padilha mostra o personagem de Wagner Moura num passeio de Asa Delta.
Ao percorrer o monumento do Cristo Redentor Durante o percurso, ele desabafa com
palavras rígidas sobre sua trajetória pessoal e os problemas que a cidade lhe oferece.
Sendo proprietária dos direitos do Cristo, a Arquidiocese local não autorizou o uso das
imagens do Cristo pois acreditou que o curta continha cenas ofensivas a suas crenças28.
A princípio, em resposta a esse episódio, a Conspiração Filmes decidiu excluir o
curta de José Padilha da sua versão final. Diante da repercussão midiática desfavorável
que esse episódio lhe rendeu, a Arquidiocese voltou atrás na sua decisão e decidiu
autorizar a utilização daquela imagem29. De qualquer forma, independentemente do
desfecho feliz e de não termos ainda acesso ao segmento, é conveniente observar que,
até no mais importante produto do projeto, houve uma importante contraposição à
redescrição da cidade como lócus harmônico. Contudo, o trailer oficial do filme 30
parece enfatizar que os outros curtas incluídos no projeto articularam múltiplas
“declarações de amor” aos cenários do Rio de Janeiro.
Ver o artigo “Arquidiocese proíbe imagem de Cristo em episódio de “Rio, eu te amo” dirigido por
José Padilha em: http://oglobo.globo.com/cultura/arquidiocese-proibe-imagem-do-cristo-em-episodiode-rio-eu-te-amo-dirigido-por-jose-padilha-13170671. Acesso realizado em 10/07/2014.
29
Ver o artigo “Arquidiocese libera imagem do Cristo no episódio de José Padilha em Rio, eu te amo”
em: http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/arquidiocese-libera-imagem-do-cristo-no-episodio-de-josepadilha-em-rio-eu-te-amo-13328611, acesso realizado em 22/07/2014.
28
30
Ver https://www.youtube.com/watch?v=dAXt0VpLsnQ&hd=1. Acesso realizado em 10 de julho de
2014.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Conclusão
Os textos midiáticos presentes no projeto “Rio eu te amo” são aqui interpretados
tanto pelas suas dinâmicas internas quanto pelo contexto histórico que nos
encontramos. Tal análise é balizada por um intenso processo de midiatização, em que
os participantes desse projeto produzem conteúdos que, de forma geral, coincidem com
a espetacularização da cidade, ajudando a transformar as percepções sensíveis do
espaço urbano.
Por fim, acreditamos que o “movimento” liderado pela Conspiração Filmes é
calculado pela redescrição de um Rio de Janeiro harmônico, cenário imagético
aparentemente propícia para a realização dos megaeventos. O recorrente apelo à paixão
pela cidade está presente nos diversos focos do projeto. Ao mesmo tempo tanto a
participação de alguns usuários das redes sociais quanto a divulgação de espaços
comunitários como a Pedra do Sal e o Cineclube Buraco do Getúlio e possivelmente no
curta metragem dirigido por José Padilha, houve espaços para manifestações que não
coincidem com essa “cidade amorosa”. As múltiplas ramificações do “Rio eu te amo”
comportam significações contraditórias sobre as possíveis descrições da cidade.
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gabriel chavarry neiva