ENERGIA 1 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 ENERGIA: O DEBATE DO setembro 2007 | nO 3 | www.oficinainforma.com.br AQUECIMENTO GLOBAL A quem interessa uma apresentação simplória da questão das mudanças climáticas? Nas páginas seguintes DESCONSTRUINDO GORE ENERGIA 3 Reprodução Uma VerdadeInconveniente, Al Gore, 2007 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 O clima e suas contradições Devemos incluir na análise também os desequilíbrios sociais, diz o professor Sauer p.4 Na Amazônia, em busca do CO2 Não é fácil: de madrugada o famigerado gás esconde-se, correndo por baixo, na grande mata p.6 Para entender o IPCC Como funciona a mais famosa entidade do debate das mudanças climáticas. E o que significa o seu “consenso” p.10 O modelo do consenso Um cientista brasileiro acha que o IPCC obteve a grande prova de que o aquecimento global tem causa antropogênica p.16 O gráfico do pânico São duas séries de medidas: uma oscila, bem-comportada, por milênios; outra, recente, dispara para o alto e apontaria a catástrofe p.18 O sol em primeiro lugar O dissidente Molion, com o esquema do IPCC em mãos, propõe um modelo alternativo p.20 Mais do que prever, agir Não se trata apenas de diferentes interpretações do que vai acontecer. Na hora do que fazer é que as posições se distinguem p.22 IMAGEM DA CAPA: Adaptação de charge de Angeli para a Folha de S.Paulo / Folhapress O filme do ambientalista americano que vende a prova do aquecimento global não tem ciência: é uma tese interesseira e simplória Expediente Redação Mino Carta • Sergio Lirio [ supervisão editorial ] Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenador ] Armando Sartori [ editor ] Leandro Saraiva • Lia Imanishi Rodrigues • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht [ redação ] Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ] Áli Onaissi • Genulino Santos • Hassan Ayoub • Marilda Rodella • Rita Leite [ revisão ] Vendas Paulo Barbosa [ representante em São Paulo ] Joaquim Barroncas [ representante em Brasília ] Administração Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho • Gabriel Carneiro Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. e distribuída com CartaCapital Editora Manifesto S.A. Roberto Davis [ presidente ] Escritório de administração Rua do Ouro, 1.725 - conj. 2 • Belo Horizonte MG CEP 30210 000 • Telfax 31 32814431 [email protected] Escritório comercial e redação Rua Fidalga, 146 - conj. 42 • São Paulo SP CEP 05432 000 • Telfax 11 38149030 [email protected] Representação comercial em Brasília SCN Quadra 01 - Bloco F • Edifício American Office Tower - sala 1.408 • Brasília DF • CEP 70711 905 Tel. 61 3328 8046 • [email protected] ponto mais espetacular de Uma Verdade Inconveniente, o filme do ex-vice-presidente americano Al Gore premiadocom o Oscar de Hollywood em 2007, é aquele no qual ele é alçado do chão para extrapolar, até o fim do século, o gráfico com a relação entre a quantidade de gás carbônico na atmosfera e a temperatura da Terra. Gore está num auditório diante de um telão enorme, onde aparece o gráfico. Este tem as oscilações da temperatura do planeta e das emissões de gás carbônico na atmosfera no eixo vertical. No horizontal, mostra o tempo, de 650 mil anos para cá. Gore fala rapidamente de uma correlação entre as oscilações da temperatura e do nível de CO2. Depois mostra que, no último século, o CO2 descola e começa a subir. Em seguida, uma espécie de grua o eleva para além do ponto máximo de CO2 na época atual e o carrega para o fim deste século e para o alto, onde o nível de CO2 então se situaria, para simular o que acontecerá se as emissões deste gás não forem contidas. Essa cena se liga com outra, já referida no número 1 de nossa série sobre energia (CartaCapital no 458, 22/8/2007), na qual, num desenho animado, o gás carbônico malvado cria o efeito O estufa ao impedir que o raiozinho de sol deixe a Terra. O recado do conjunto é claríssimo: a Terra está esquentando porque os gases de efeito estufa, o gás carbônico principalmente, estão retendo a energia que nos chega do Sol. E pode-se prever um futuro apocalíptico se as tendências atuais não forem revertidas. São duas as simplificações maiores que Gore faz e com as quais transforma um debate científico complexo numa “verdade” improvável. A primeira: ele utiliza, basicamente, dois tipos diferentes de medição das temperaturas e do CO2 da atmosfera terrestre. Combina uma série obtida a partir de bolhas de ar primitivas encontradas em amostras de gelo de épocas passadas com outra, recente, de medições diretas na atmosfera, nos anos pós Revolução Industrial. Evidentemente, uma coisa é medir a temperatura e os componentes da biosfera terrestre diretamente, em inúmeros pontos, hora a hora, por exemplo, para construir médias de diversos tipos. Outra coisa é usar esses parâmetros para bolhas de ar de milênios passados, situar no espaço e no tempo essas medições e compará-las, com um mínimo de rigor científico, com 4 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 as atuais. Voltaremos a falar sobre esse tema na sexta parte desta história com considerações mais precisas, em “O gráfico do pânico”. A segunda: para tentar simplificar o entendimento do “efeito estufa”, Gore sugere vários absurdos, o maior dos quais é o de que a Terra retém a energia recebida do Sol. “A longo prazo, a Terra não retém energia do Sol. Ela recebe energia sob uma forma, basicamente de luz visível, transforma essa energia e emite de volta a mesma quantidade para o espaço, na forma de radiação infravermelha”, diz Ildo Sauer, professor titular de Energia na Universidade de São Paulo, cuja prova de erudição Retrato do Brasil-CartaCapital (RBCC) vem utilizando na sua série sobre o tema. “Se armazenasse mesmo que apenas parte da brutal energia que recebe do Sol diariamente há muito tempo a biosfera da Terra já estaria destruída.” Sauer acha que se deve colocar o debate sobre a temperatura da Terra e o aparente aquecimento global numa perspectiva ampla. A seguir, ele desenvolve essa idéia. O CLIMA E SUAS CONTRADIÇÕES Devemos incluir na análise também os desequilíbrios sociais, diz o professor Sauer omos parte de um Universo que evoluiu por fases. A temperatura é um indicador do movimento, da agitação das moléculas e dos átomos, e também um indicador geral dessas fases. Nas frações de segundo após o Big Bang, a gigantesca explosão que deu origem a tudo, as temperaturas eram de trilhões e trilhões de graus. O Universo foi se expandindo e esfriando. Hoje, tem cerca de 15 bilhões de anos. E a sua temperatura média, digamos assim, se a medimos pela radiação de fundo, que é uma espécie de eco do Big Bang, é de 4 graus numa escala a partir do zero absoluto (graus Kelvin). Mas a evolução não é linear. A biosfera, o ambiente agradável e relativamente estável onde vivemos, tem temperaturas entre 220 e 300 graus Kelvin, que correspondem a - 40 e a +40 graus centígrados. E não se formou num processo de esfriamento contínuo, como o do Universo em geral. A evolução é um processo contraditório, envolve forças gigantescas, que não comandamos e nem bem conhecemos. À Terra chegam continuamente os sinais desse fundo geral muito frio do Universo. De fato, é a radiação que se separou da matéria numa das mudanças de fase do Universo, quando ele era um bebê, digamos assim, tinha cerca de 1 milhão de anos. Mas chega, também, em muito maior quantidade e em pouco tempo, cerca de 8 minutos, a radiação luminosa do Sol, que se “S formou muito mais recentemente, quando o Universo era adolescente – tinha cerca de 4,5 bilhões de anos. Ou seja: dentro do processo geral de resfriamento do Universo, a etapa que levou A BIOSFERA E SUAS VIZINHANÇAS Entre as emissões de luz do Sol a 6.000 graus e o quase zero absoluto da radiação de fundo do universo RADIAÇÃO DE FUNDO 4K SOL Núcleo 15.000.000 K Fotosfera 6.000 K Termosfera 150 < T < 1.000 K TERRA Biosfera 220 < T < 300 K Núcleo 5.000 K PLUTÃO Superfície 35 < T < 45 K FONTE: Anotações para prova de erudição, Ildo Sauer, 2005 1 à formação do Sol, da Terra e, posteriormente, da nossa biosfera correspondeu a um gigantesco aquecimento local, que deu origem ao miolo do Sol e ao miolo da Terra, com suas temperaturas muito altas – de 15 milhões e 5 mil graus respectivamente. Outra contradição aparente: a maior parte da matéria conhecida do Universo é formada por átomos leves, como hélio e hidrogênio, que são os elementos básicos do processo de fusão nuclear no miolo do Sol. Mas nós, e a biosfera de onde surgimos e que nos sustenta, somos formados por átomos mais pesados como os de carbono, ferro, cálcio, oxigênio, nitrogênio. Os átomos leves surgiram depois que a radiação se desentranhou da matéria e a temperatura do universo caiu dos trilhões iniciais para a casa dos 300 milhões de graus, apenas 20 vezes mais quente que o atual núcleo do Sol. Já os átomos mais pesados da biosfera não se formaram nela nem no processo de organização do sistema solar. São restos de explosões de estrelas, em cujo miolo hélio e hidrogênio são compactados em estruturas maiores. Essas estrelas, as chamadas supernovas, explodem espalhando esses átomos pesados pelo espaço. A biosfera e o ciclo do carbono E, se tratamos da temperatura da biosfera, e em particular do ciclo do carbono, os aspectos contraditórios multiplicam-se. Na biosfera formaram-se as estruturas orgânicas, à base de carbono. Estas são entidades muito mais sofisticadas que os átomos mais pesados: reúnem centenas e centenas desses átomos, organizados em moléculas, células, organismos – estes, inclusive, como no nosso caso, capazes de ação consciente, coletiva. A biosfera é um fino envoltório terrestre, de pouco mais de 100 quilômetros de altitude. É formada basicamente por dois gases, o nitrogênio e o oxigênio. Entre os outros gases que completam a sua composição deve ser destacado, em primeiro lugar, o ozônio, uma molécula especial de oxigênio, com três átomos (O3). É a camada de ozônio, como se sabe, que impede a entrada na Terra da radiação ultravioleta, muito penetrante e muito danosa para os seres vivos (nos animais, afeta os mecanismos de organização dos tecidos e provoca câncer). O outro destaque é para os gases do chamado efeito estufa. Estes devem ser separados em dois blocos principais: o da água, uma molécula com dois átomos de ENERGIA 5 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Julia Moraes Sauer e, na tela do computador, o Messias Gore: dois tipos de atitude hidrogênio e um de oxigênio, na forma de vapor; e o dos óxidos de nitrogênio e dos gases com carbono – em especial o gás carbônico ou dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH 4). Primeiro, não se pode criminalizar o efeito estufa. Ele é fundamental. Funciona como uma espécie de represa: não impede o fluxo de energia SolTerra-espaço. E criou na Terra um ambiente de temperaturas relativamente uniformes, onde puderam formar-se as estruturas orgânicas maiores. É claro que a temperatura da Terra varia no tempo e no espaço, de acordo com as estações do ano e a posição no globo. Mas essa variação poderia ser muito mais drástica sem o efeito estufa, pois toda a energia recebida pela face do planeta de frente para o Sol durante o dia seria dissipada para o espaço durante a noite, tornando o ambiente terrestre extremamente inóspito, como o que existe num corpo celeste sem atmosfera, como a Lua. O efeito estufa, no entanto, não nasceu com a Terra. É um dos responsáveis pela manutenção da vida no planeta e foi, ao mesmo tempo, produzido pela vida que se desenvolveu aqui. A atmosfera primordial ter- restre era bem diferente da de hoje. Predominavam o hélio e o hidrogênio, que, por serem muito leves, escaparam do campo gravitacional terrestre em direção ao espaço. Erupções provocadas pelo material em ebulição no núcleo da Terra, por sua vez, lançaram na sua superfície vapor d’água, metano, amônia e CO2, dando início à formação da atmosfera. O surgimento da camada de ozônio mostra como é contraditório e complexo o processo de formação da biosfera: foram elementos danosos para as formas de vida mais complexas que criaram as bases para a formação dessa camada de proteção da biosfera. Num primeiro momento, sem a camada de ozônio, os raios solares ultravioleta atuaram sobre os gases primitivos da atmosfera e parecem ter tido papel primordial na criação de complexas moléculas de aminoácidos que se acumularam nos oceanos, onde, por sua vez, a água as protegia da radiação solar. Mutações posteriores, estimuladas possivelmente pela radiação, teriam levado ao desenvolvimento, ainda nos oceanos, de formas primitivas de vida vegetal, como as algas. O MESSIAS DE HOLLYWOOD Se Ele podia perder seu filho, nós podíamos perder o planeta UMA VERDADE INCONVENIENTE, o filme de Al Gore, apesar de seu pretenso apelo científico, está estruturado como uma narrativa mitológica. Inscreve-se num padrão muito disseminado na indústria cultural americana que, a partir de Guerra nas Estrelas, de George Lucas (1977), teve grande influência do estudioso de mitos, Joseph Campbel, convertido em assessor das grandes empresas cinematográficas. O modelo narrativo é pretensamente universal. Está centrado nas fases que um personagem deve enfrentar para que mereça ser chamado de protagonista, o herói no mundo comum. Há o chamado à aventura, a recusa do chamado, o encontro com o Mentor, a provação suprema etc. etc. O jovem Gore leva uma “vida comum”, em meio à natureza. Encontra-se com o Mentor, seu professor na universidade, que seria pioneiro nas medições de emissão de carbono. Recusa o chamado e vai por um “desvio”, a campanha presidencial de 2000. A derrota nessa campanha o ajuda a se focar em sua missão. Tem então uma melodramática “provação suprema”, na convalescença de seu filho. E daí extrai a “mensagem” de que, se podia perder seu filho, nós também podemos perder o Planeta... O diretor do filme é o competentíssimo David Guggenhein, exdiretor do eletrizante megassucesso televisivo 24 horas, série onde Jack Bauer, agente americano antiterrorismo, salva o mundo semanalmente. Ele usa “filminhos”, com a infância, as aulas com o Mentor, o acidente do filho etc., para dar “humanidade à mensagem”. E formata a narrativa dentro do modelo messiânico, mitológico. O desdobramento plástico disso é um enorme telão de plasma que serve de fundo à palestra. Graças à combinação entre o palco-cenário, construído com este fim, para o eficiente posicionamento das câmeras e o telão, Gore aparece recorrentemente contra um fundo cósmico ou planetário, reforçando essa imagem de líder universal, o Moisés que nos guiará neste grave momento. O filme-catástrofe ambiental termina com os simpáticos, batidos e restritíssimos conselhos do tipo “revise seus pneus” e “use menos água quente”. No horizonte universal do messiânico herói não estão visíveis os mecanismos da dinâmica capitalista. 6 ENERGIA O oxigênio que encontramos hoje na atmosfera surgiu da fotossíntese, a partir de 2 bilhões de anos atrás. A fotossíntese é geralmente associada ao mundo mais visível das pastagens, plantações, árvores. Mas esses vegetais mais complexos são apenas a fração menor dos organismos fotossintetizadores. Estima-se que cerca de 90% da fotossíntese é executada nos mares, por diversos tipos de microrganismos, entre os quais bactérias e algas. À medida que as moléculas de oxigênio (O2) se acumulavam nas partes mais altas da atmosfera, a radiação ultravioleta, muito penetrante, cortava a relação entre os dois átomos. E os átomos isolados recombinavam-se em trincas, formando o ozônio (O3). A forte capacidade de absorção da radiação ultravioleta pelo O2 e pelo O3, então, passou a impedir que ela chegue às camadas mais baixas da atmosfera. Fotossíntese & Respiração Na discussão atual sobre o aquecimento global, além de se destacar apenas as florestas e vegetais superiores como organismos do bem, ao se criminalizar os processos que liberam CO2, por exemplo, esconde-se o fato de que a eliminação do gás carbônico para a atmosfera pelos seres vivos, plantas e animais, é o contraponto necessário da fotossíntese: é a outra etapa do ciclo do carbono, indispensável à vida. A fotossíntese pode ser descrita como um processo em três etapas: a absorção de energia solar pela clorofila e outros pigmentos das plantas, a conversão dessa energia de radiação em energia química, e a utilização dessa energia para a reação que, de um lado, transfor ma moléculas de gás carbônico e de água numa molécula estruturada em torno de uma cadeia de átomos de carbono, e, de outro, libera para a atmosfera oxigênio molecular (O2). A respiração é o oposto da fotossíntese. Na respiração, os animais usam o oxigênio da atmosfera para liberar a energia química das cadeias de carbono que ingerem – carboidratos, proteínas, gorduras – e, assim, ter força mecânica para trabalhar, mover-se, bem como reconstruir seu organismo desgastado no dia-a-dia. O fluxo de carbono, com certeza, é mais importante que o estoque de carbono na atmosfera. Pela respiração, as células animais, por exemplo, tomam oxigênio do ar e nutrientes orgânicos de seu entorno e descarregam na atmosfera dióxido de carbono e água. No RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 O VERDE DO MAR A absorção de energia solar pela fotossíntese se dá principalmente nos oceanos REGIÃO ÁREA [milhões de km2] Floresta Terra cultivada Grama Deserto Total de terra Total de oceano 44 27 31 47 149 361 CARBONO TOTAL DE FIXADO CARBONO FIXADO [ton/km2/ano] [ bilhões de ton/ano] 250 160 36 7 340 FONTE: Bioenergetics, de Albert Lehninger, página 11 11 4,3 1,0 0,3 16,6 122,6 3 sentido inverso, as fotossintetizadoras extraem dióxido de carbono e água de suas vizinhanças, produzem novas cadeias de carbono e devolvem o oxigênio para a atmosfera. A quantidade de água na Terra é muito grande, assim como é grande também a quantidade de oxigênio na atmosfera. No entanto, o gás carbônico é muito pouco. A atmosfera contém apenas 0,03% dele. Estima-se que, se o ciclo do carbono cessasse, em dois ou três anos as plantas existentes na Terra consumiriam todo o CO2. Por fim, é preciso destacar mais duas grandes contradições. A primeira, a respeito do Sol. Apesar de relativamente estável, a superfície solar é sujeita a fenômenos violen- tos e periódicos. De 11 em 11 anos, por exemplo, o Sol torna-se mais brilhante e envia mais energia para o espaço. Algo que também deve ser levado em conta na questão do aquecimento global. E, por último, mas não as menores das contradições: as sociais. Se o que pretendemos, de fato, é dizer o que será o mundo daqui a cem anos, não podemos nos deter numa explicação do que pode acontecer, de acordo com tais e quais modelos matemático-computacionais, como fazem os ultraliberais no campo da economia que buscam adequar os interesses dos grandes empresários aos consumidores. Ou ficar, como Gore, dando conselhos cosméticos, tais como: ‘Tome menos banho de água quente e compre o DVD com meu filme, para salvar o planeta’. Devemos ver que o mundo é um conjunto de nações com enormes desequilíbrios, entre elas e internamente. E lutar para criar um mundo mais justo, seja ele mais frio, seja mais quente”. A atitude proposta pelo professor Sauer é tema da parte final desta história. Vamos começá-la acompanhando os pesquisadores envolvidos no LBA, o projeto de estudos climáticos que procura entender como nossa grande floresta tropical funciona no sistema climático do planeta. NA AMAZÔNIA, EM BUSCA DO CO2 Não é fácil: de madrugada, o famigerado gás esconde-se, correndo por baixo, na grande mata hegar ao topo da K-34, a quase 60 metros do chão, subindo degrau a degrau a escada dessa estrutura metálica mais parecida com um descomunal andaime de obras, é um alívio. Do alto da torre, plantada no coração da Floresta Amazônica, a mais de 80 quilômetros de Manaus, vê-se um oceano verde das copas das árvores. O repórter do RBCC está acompanhado dos pesquisadores Fabrício Zanchi e Carlos Alexandre Querino. Eles examinam medidores colocados ao longo da estrutura metálica para estudar o funcionamento do organismo vivo que é a floresta. Medem-se temperaturas, a umidade, os ven- C tos, a radiação solar, a concentração de CO2. É um ecossistema gigantesco e misterioso, eles explicam. Há solos arenosos e argilosos, com maior ou menor riqueza de nutrientes. Há diferentes climas, com regimes de chuva variados em cada região da Amazônia Legal. Chove mais no alto rio Negro, nas proximidades de São Gabriel da Cachoeira (AM) e bem menos no baixo Tapajós, nas proximidades de Santarém (PA), que se pode comparar com a seca Brasília. E há pelo menos 19 tipos de vegetação, desde campinas e campinaranas, cujas árvores são mais baixas, de até 15 metros, com copas de menor densidade, até florestas de platô, com 8 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Rafael Hernandes A K-34: quando o Sol retorna, o CO já 2 se foi para as partes baixas enormes árvores de mais de 30 metros. Zanchi e Querino participam do Experimento em Larga Escala da Biosfera e Atmosfera da Amazônia (LBA), projeto que tem outras 15 torres do mesmo tipo na região. Criado em meados dos anos 1990, o LBA era coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Há mais de três anos é gerido pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). E tem a participação de cerca de 200 instituições, mais ou menos metade nacionais e metade estrangeiras. O LBA atua em diversas áreas. Mas um dos seus mais importantes estudos é o do ciclo do carbono. Zanchi diz que o trabalho não é simples. Há diferentes balanços de captação e emissão de CO2 pela grande mata. Na parte oeste da Amazônia, nas proximidades e também dentro dos territórios do Peru e Equador, os dados mais recentes apresentam saldo positivo de absorção entre 3 a 4 toneladas de carbono por hectare por ano. Na região de Santarém há registros que mostram maior emissão do que captação do gás. As estimativas mais recentes do LBA para toda a Amazônia apontam uma captação de 0,5 a 1 tonelada de gás carbônico por hectare por ano. Philip Fearnside, que há 31 anos estuda a floresta, 29 deles pelo Inpa, diz que os estudos mais recentes “vêm diminuindo a estimativa de quanto é o balanço de captação/ emissão de gás carbônico”. Os resultados atuais também não podem ser considerados definitivos. Não é fácil medir o gás carbônico, diz Fearnside. De dia, ele se desloca impulsionado por correntes de ar, por sua vez causadas pelo aquecimento da atmosfera pelo Sol. À noite, cessa o aquecimento e o CO2, mais denso que outros gases do ar, desce. Segundo Fearnside, no caso da região próxima a Manaus, um “tapete” de gás carbônico desloca-se de madrugada até chegar ao rio Negro. Quando o Sol retorna pela manhã, voltam também os ventos. Mas a massa de CO2 já está muito longe dos instrumentos instalados nas torres. Seria preciso instalar mais torres e postos de medição, em lugares diferentes. “Não apenas em altos platôs como atualmente”, diz Fearnside. A tese da “savanização” As medições do LBA são cruciais para o Brasil. O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), o órgão mais importante no debate do aquecimento global, diz que 75% das emissões de dióxido de carbono do País são causadas por queimadas e derrubadas de árvores e apenas 25% pela queima de combustíveis fósseis. É praticamente o inverso do resto do globo, onde 80% das emissões vêm da queima de combustíveis fósseis e 20% do desmatamento de florestas. Na primeira quinzena de agosto, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, divulgou os dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélites, feito pelo Inpe, para o período de agosto de 2005 a julho de 2006. O País perdeu 14.039 km² das florestas da região, ante uma perda de 18.793 km² nos 12 meses anteriores e 27.379 km² entre meados de 2003 e o fim do primeiro semestre de 2004. A expectativa é que caia mais este ano. Flávio Luizão, coordenador regional do LBA, e Fearnside não se animam com esses números. Acham que boa parte da redução se deve à queda do preço da soja e da carne no mercado internacional, o que ocasionou uma diminuição na procura de novos campos para plantação e criação de animais, atividades responsáveis pela maior parte dos desmatamentos. Segundo eles, o mercado pode se reanimar e há novas obras programadas de grande impacto que farão voltar a devastação ambiental, como as hidrelétricas do rio Madeira e a BR-319, que ligará Manaus e Porto Velho (RO). Os impactos do aquecimento global sobre a Amazônia foram estudados pelo pesquisador Carlos Nobre, do Inpe, e constam do relatório apresentado neste ano pelo IPCC. É de Nobre a teoria da “savanização”: a Floresta Amazônica pode mudar drasticamente ao longo deste século, perdendo densidade e biomassa e tornando-se similar às savanas da Venezuela. Ou seja, com poucas e espaçadas árvores e muitos arbustos e gramíneas. Fearnside diz que, apesar de estudos analisados pelo IPCC apontarem, caso se confirmem as estimativas de aquecimento, um aumento na quantidade de chuvas em todo o planeta, para a Amazônia a maioria dos resultados saídos das simulações climáticas indica que haverá redução das precipitações. Se essas estimativas se confirmarem, diz ele, será desencadeado um processo de retroalimentação: a escassez de água matará a vegetação, ocorrendo assim uma maior liberação de gás carbônico na atmosfera. O que por sua vez aumentará ainda mais a temperatura e as secas, causando as mortes de plantas e novamente mais emissões de CO2, e assim por diante. A vegetação não será capaz de se adaptar a essas mudanças abruptas de clima em poucos anos e os efeitos poderão ser muito danosos. Mas há vozes discordantes. Para o geógrafo Aziz Ab’Saber, é possível que o aumento da temperatura e da umidade possa, em vez de transformar a Floresta Amazônica em uma savana, beneficiá-la, assim 10 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 João Wainer/ Folha Imagem Ab’Saber: ao contrário do que se diz, a floresta pode ganhar como à Mata Atlântica. Para ele, ambas poderiam até crescer. Segundo Ab’Saber, quem fala sobre uma possível redução da umidade na Amazônia esquece de contabilizar variáveis como as correntes marítimas, que trazem umidade para o continente. Se as correntes mais quentes que banham a costa brasileira se mantiverem parecidas com as atuais, tese que ele defende, a umidade necessária às florestas estará garantida. Ab’Saber acredita que o clima na Terra, especialmente no Brasil, pode ficar parecido com o que predominou há entre 5 mil e 6 mil anos, quando a temperatura média da Terra era muito superior à atual e o nível do mar era cerca de 3 metros mais alto que o de hoje. Nessa época, diz o geógrafo, o calor produzia mais evaporação e mais chuvas, o que permitiu uma grande expansão das áreas de florestas, inclusive da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. tidade de material orgânico, que com o passar do tempo se decompõe, liberando o gás. Por ser mais pesada, a água com o metano ficaria nas partes mais fundas dos lagos, mas voltaria à superfície ao passar pelas turbinas, quando liberaria o componente químico. Fearnside opõe-se à definição da hidreletricidade com grandes barragens como energia limpa. Furnas, a maior empresa do sistema Eletrobrás, fez estudos aprofundados com hidrelétricas do Cerrado que teriam provado que elas emitem até cem vezes menos gases do efeito estufa do que uma termoelétrica de mesmo porte. E diz que fará o mesmo com hidrelétricas da Amazônia. O tema passou a constar das preocupações do IPCC, como explica a brasileira Thelma Krugg, secretária Nacional de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente. Ela ocupou um importante posto na estrutura do IPCC, possivelmente devido a seu trabalho na produção do inventário brasileiro de emissão de gases de efeito estufa, iniciado em 1992 e concluído oito anos depois. O trabalho brasileiro tornou-se referência para outros países porque incluiu todos os relatórios elaborados para o levantamento das emissões no País e por ter considerado, pela primeira vez, as emissões originadas dos reservatórios das hidrelétricas como de origem antropogênica. A questão do metano PARA ENTENDER O IPCC Como funciona a mais famosa entidade do debate das mudanças climáticas. E o que significa o seu “consenso” Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática foi criado em 1988 por duas entidades da ONU, uma ambiental e outra de meteorologia. Mais ou menos nessa mes- O Divulgação IISD O debate a respeito da floresta ganhou novos elementos recentemente. Pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas Nucleares (Ipen) e do National Oceanic and Atmospheric Administration (Noaa), dos EUA, ligados ao próprio LBA, publicaram artigo afirmando que cerca de 20% do metano (CH4) emitido no mundo vem da Amazônia. O metano é um dos gases-vilões do efeito estufa. Embora exista na atmosfera em quantidade bem menor que o CO2 por exemplo, é bem mais poderoso. Cada molécula de metano vale por cerca de 20 das de dióxido de carbono na produção do efeito estufa. Flávio Luizão não acredita que se trate de algo alarmante. Ele diz que medições feitas mostram que a quantidade global do metano se manteve estável nos últimos anos. Provavelmente, diz ele, a floresta sempre emitiu essa quantidade de metano. O que ocorreu agora foi que os pesquisadores chegaram a um montante mais preciso das emissões, causadas principalmente pela decomposição do material orgânico. O debate existe também em relação às emissões de metano pelas hidrelétricas da Amazônia. Para Fearnside, as emissões decorrentes da Hidrelétrica de Tucuruí são maiores que as da cidade de São Paulo. O lago formado pela barragem submerge grande quan- ma época, no Reino Unido, a primeira-ministra Margaret Thatcher estava às voltas com uma longa crise política e energética gerada por dramática greve de mineiros e decidiu promover uma mudança de matriz energética, apontando para o uso do gás natural e da energia nuclear, em detrimento do carvão e do petróleo. O Serviço Meteorológico do Reino Unido já era um dos mais avançados do mundo. E, em 1990, por iniciativa de Thatcher, foi criado o Hadley Centre, para realizar pesquisas climáticas, com financiamento do Departamento de Meio Ambiente e do Ministério da Defesa britânicos e onde se hospedou a Unidade de Apoio Técnico de parte dos trabalhos do IPCC. Naquele ano, Thatcher declarou na Krugg: do inventário do efeito estufa do Brasil, para a cúpula do IPCC ENERGIA 11 Segunda Conferência Mundial do Clima: “Nós agora exigimos, por lei, que parte substancial de nossa eletricidade venha de fontes que gerem pouca ou nenhuma emissão de dióxido de carbono, e isso inclui uma importante contribuição da energia nuclear”. No mesmo discurso, disse que uma grande tarefa do Reino Unido seria levar o máximo de países à Convenção das Mudanças Climáticas em 1992 e afirmou que não se devia perder tempo em contestar o relatório do IPCC, mas antes tomar a entidade como “nosso indicador”. A discussão em torno da elevação da temperatura da biosfera e de suas causas era antiga. Em 1935, o engenheiro Guy Callendar, com base em milhares de dados colecionados por anos de observação, concluiu ter havido um aumento de temperatura de quase meio grau centígrado entre 1890 e 1935. Nas três décadas seguintes, a temperatura média global baixou e começou a discussão sobre a possibilidade de o mundo caminhar para uma Idade Glacial. E, nos anos 1980, a polêmica mudou de sentido de novo: voltou ao debate a elevação da temperatura, que ganhou então o nome de aquecimento global. IPCC: eleição e cooptação No ensaio O IPCC Visto por Dentro, John Zillman, cientista australiano participante da entidade, diz que a idéia dos seus relatórios, agora tão famosos, foi a de influir na Segunda Conferência Mundial do Clima, a mesma na qual Thatcher pontificou. Os dirigentes do IPCC concluíram que deveriam produzir três documentos. Eles avaliariam as pesquisas sobre a questão climática sob três ângulos: a ciência física, os impactos e as ações necessárias para evitar ou diminuir os impactos negativos. Essa divisão seria depois consagrada como a estrutura de trabalho do IPCC. Desde o início sabia-se também que o objetivo do IPCC não era desenvolver pesquisas próprias e, sim, fazer o levantamento das pesquisas feitas. E incorporar os pesquisadores citados como co-autores dos relatórios do Painel. O IPCC tem um presidente. A escolha é feita por eleição entre representantes dos países membros do IPCC. O presidente é assessorado por três vices. Abaixo deles vêm os co-presidentes e seus vices, que comandam os três grupos de trabalho. Há ainda dois co-presidentes da Força Tarefa para Inventários Nacionais de Gases de Efeito Es- Tuca Vieira/ Folha Imagem RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 tufa, um dos quais é a brasileira Thelma Krugg, que trabalhou nesse tipo de inventário para o Brasil e tem longa experiência com o monitoramento de queimadas e desmatamento da Amazônia. Thelma explica a RBCC que o IPCC tem um conselho eleito de seis em seis anos. Ao término de seu mandato, esse conselho pede aos governos a indicação de nomes de cientistas para a nova formação. Os governos enviam nomes e currículos de seus cientistas e indicam os cargos que gostariam que eles assumissem. Mas só a presidência é submetida à votação dos países membros. Prevale- Nobre: de 7 mil comentários, nada contra a tese da savanização da Amazônia ce a escolha por cooptação. Os outros cargos são definidos por avaliação e escolha dos membros do próprio conselho que está saindo. Composto o novo conselho, ele pede aos governos novas indicações para a formação dos três grupos de trabalho. Os co-presidentes e seus vices responsáveis pelos grupos de trabalho escolhem os cientistas que escreverão os capítulos de seus volumes. Essas escolhas são então submetidas ao Conselho, que vai finalmente compor o painel buscando o equilíbrio para que haja cientistas do maior número de países possível e de países de diferentes níveis de desenvolvimento. IPCC: o impacto dos relatórios Desde sua criação, em 1988, o IPCC lançou quatro grandes relatórios sobre mudanças climáticas. O de 1990 teve uma repercussão política enorme. Concluiu que “o aumento da concentração dos gases de efeito estufa resultará no aquecimento da superfície da Terra”. Em 1997 foi elaborado o Protocolo de Kyoto, sob a influência do segundo relatório do IPCC, divulgado em 1995. Essencialmente, ficou estabelecido que os países ricos deveriam reduzir suas emis- O CARVÃO ERA O MAL A Enron, com muito dinheiro, e Thatcher uniram-se para o grande projeto do gás natural, então o combustível do bem A CAMPANHA DE Margaret Thatcher contra o carvão teve na Enron, a famosa empresa de gás natural dos Estados Unidos, uma aliada. A história é contada por Bethany McLean e Peter Elkind, os jornalistas que fizeram The Smartest Guys in the Room, the amazing rise and scandalous fall of Enron (Os caras mais espertos da sala, a espantosa ascensão e a escandalosa queda da Enron, Penguin Books, 2003). Nos anos 1980, o gás natural passou a ser visto como o combustível do bem, muito menos poluente que o carvão e o óleo combustível das usinas termoelétricas e muito menos danoso ao meio ambiente do que as grandes hidrelétricas de países como o Brasil. No final de período, a Enron empenhava-se pela construção de uma megausina de quase 2000 MW de capacidade, em Teeside, uma área industrial no Nordeste da Inglaterra, onde a geração a gás era ilegal. Mas em 1989 o governo Thatcher finalmente passou no Parlamento uma lei para a desregulamentação do setor. E Teeside foi construída e tornou-se um caso modelo para mostrar os benefícios da privatização. Os negócios foram facilitados pela posição de John Wakehan, secretário de Energia de Margareth Thatcher que, ao deixar o serviço público, foi trabalhar na Enron. A Enron contribuiu com 1 milhão de dólares para o Prince Trust, organização de caridade do príncipe Charles. E o príncipe esteve na inauguração da usina. 14 ENERGIA sões de gases do efeito estufa a partir do ano que vem. Todos os grupos de trabalho produzem três versões de relatórios: o Sumário para Formuladores de Políticas, o Sumário Técnico e o relatório propriamente dito, como o divulgado neste ano, com três volumes de cerca de 900 páginas, um para cada grupo de trabalho. O mais lido e discutido é o Sumário para Formuladores de Políticas, que precisa ser chancelado por todos os países que fazem parte do IPCC. Em paralelo à publicação desses resumos voltados para a formulação de políticas, cada grupo divulga também seu sumário técnico. E, por fim, sai a íntegra do grande relatório. A do do Grupo 1, deste ano, já está na internet (http://ipcc-wg1.ucar.edu/wg1/wg1report.html). RBCC ouviu pesquisadores brasileiros que nos últimos cinco anos participaram da preparação dos relatórios do IPCC: Paulo Artaxo, da USP, um dos 12 autores de um capítulo do Grupo 1; Carlos Nobre, do Inpe, um dos dez autores de um capítulo do Grupo 2; e Suzana Khan, um dos dois autorescoordenadores de um capítulo do Grupo 3. O trabalho de Artaxo será apresentado mais adiante em nossa história. Dos outros dois, Suzana foi quem mais participou das sessões plenárias do IPCC que reúnem os representantes governamentais e onde se discute o Sumário para Formuladores de Políticas linha por linha. ESQUENTA, ESFRIA, ESQUENTA ... Na imprensa americana, uma amostra do alarmismo provocado pelas mudanças climáticas 1912: A Terra está esfriando Los Angeles Times 7/10/1912 “QUINTA ERA GLACIAL ESTÁ A CAMINHO. RAÇA HUMANA TEM DE LUTAR POR SUA EXISTÊNCIA CONTRA O FRIO” 1952: A Terra está esquentando The New York Times 10/08/1952 “NÓS APRENDEMOS QUE O MUNDO SE TORNOU MAIS QUENTE NO ÚLTIMO MEIO SÉCULO” 1975: A Terra está esfriando New Scientist 1975 “A AMEAÇA DE UMA NOVA ERA GLACIAL PRECISA AGORA SER COLOCADA AO LADO DA GUERRA NUCLEAR COMO UMA PROVÁVEL FONTE DE MORTE E MISÉRIA INDISCRIMINADAS PARA O GÊNERO HUMANO” 2006: A Terra está enquentando The Washington Post 18/01/2006 “ALTA DAS TEMPERATURAS PODE, LITERALMENTE, ALTERAR OS FUNDAMENTOS DA VIDA DO PLANETA” 3 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Suzana contou como respondeu pelas conclusões de seu capítulo, relacionado com o uso de hidrogênio como combustível de veículos, tecnologia desenvolvida pelo Canadá. “A gente não colocou o hidrogênio como uma opção interessante para o setor de transporte a curto e médio prazo”, diz ela. “E houve uma pressão forte da delegação do Canadá, pois o país investe muito nessa pesquisa. Tive de mostrar todos os documentos que usamos no relatório e que indicavam que o impacto do hidrogênio vai ser de 2050 para a frente, e não para agora.” Mas, diz Suzana, os biocombustíveis foram mencionados. Isso porque “a literatura indicava que é uma opção interessante a médio prazo, por causa da infra-estrutura já existente, da frota em circulação, da possibilidade de mistura com outro combustível”. Como se chega ao consenso Segundo Suzana, a forma para chegar ao consenso é tornar as afirmações mais flexíveis. “Nada é dito assim: isso vai acontecer. Fala-se: é provável, é muito provável. Provável quer dizer mais de 66% de probabilidade. Muito provável é mais de 90%. Quando aparece algo que vai contra a maioria, aí se diz, ‘existe um nível baixo de evidência’.” Carlos Nobre é um entusiasta do processo do IPCC. Para ele, a metodologia do Painel sempre leva em consideração a questão da incerteza científica. E a análise feita para se chegar ao consenso é profunda. “Sugerimos no relatório final e no Resumo para Formuladores de Políticas que havia confiança, 66% de probabilidade, de ocorrer uma savanização da Amazônia com um certo aumento da temperatura na Terra. Primeiro houve um consenso entre os autores do relatório. Depois de passar pela revisão de cientistas e de governos, esse item entrou no relatório principal. Finalmente, passou pela plenária final e foi para o Sumário.” Como se viu, a hipótese da savanização da Amazônia não é um consenso fora do âmbito do IPCC. Segundo Nobre, seu capítulo recebeu nas três fases de revisão por cientistas e governos mais de 7 mil comentários e todos foram respondidos. “Em relação à savanização da Amazônia, não houve um só comentário contra”, diz. Segundo ele, a divergência na literatura científica internacional é saber se esse processo se dará de forma mais rápida ou mais lenta. “Ainda não há observação de que a Amazônia está virando CENÁRIOS DA TEMPERATURA No cenário em que se mantém constante a concentração de gás carbônico (em amarelo), um aumento de 0,4º C. No pior cenário (em vermelho), um aumento de 3,4º C 4 Variação da temperatura média da superfície global (em relação ao período 1980-1999), em oC 3 2 1 0 -1 1900 2000 FONTE: Quarto Relatório de Avaliação do GT1 do IPCC, 2007 2100 4 savana, porque o aumento da temperatura ainda foi pequeno”, diz. Um dos aspectos de mais destaque do trabalho do IPCC são as projeções de mudanças climáticas futuras, simulações feitas por modelos. No relatório deste ano essas simulações dividem-se em quatro “famílias de cenários”, as quais procuram incorporar variáveis econômico-sociais aos processos físicos envolvidos no clima do planeta. A família A1, que se divide em três ramos, descreve um mundo futuro de crescimento econômico “muito rápido, com a população global atingindo um pico em meados do século e declinando em seguida”. Estima também que haverá a introdução de novas e mais eficientes tecnologias. “As principais questões subjacentes são a convergência entre as regiões, a capacitação e o aumento das interações culturais e sociais, com uma redução substancial das diferenças regionais na renda per capita.” A família B1 fala de uma mudança “rápida nas estruturas econômicas em direção a uma economia de serviços e informações, com reduções da intensidade material e a introdução de tecnologias limpas e eficientes em relação ao uso de recursos”. A ênfase, diz o IPCC, está em “soluções globais para a sustentabilidade econômica, social e ambiental, inclusive a melhoria da eqüidade, mas sem iniciativas adicionais relacionadas com o clima.” A A2 descreve um mundo muito heterogêneo, com um aumento crescente da população global. Destaca-se a busca da autosuficiência e a preservação das identidades “locais”. Assim, “o desenvolvimento econômico é orientado primeiramente para a região, sendo que o crescimento econômico per capita e a mudança tecnológica são 16 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 milhão de moléculas no ar seco há 350 de dióxido de carbono. Se a concentração se mantiver nesse patamar, por exemplo, a temperatura se elevará até o fim deste século em relação à média do período 1980-1999 em 0,6 grau (a melhor estimativa dentro de uma faixa provável de 0,3 a 0,9 grau). Já no cenário B1, que prevê o menor aumento de emissão de CO2 para 600 ppm, espera-se uma elevação de 1,8 grau (entre 1,1 e 2,9 graus). No pior dos cenários, o A1FI (um dos três ramos da família A1), estimam-se emissões da ordem de 1.550 ppm e uma alta de 4 graus (entre 2,4 e 6,4 graus). O MODELO DO CONSENSO Um cientista brasileiro acha que o IPCC obteve a grande prova de que o aquecimento global tem causa antropogênica ois cartazes na sala de Paulo Artaxo, no Instituto de Física da USP, ilustram o direcionamento que o físico deu à sua carreira. São ilustrações feitas no Earth Observing System da Nasa. Um apresenta os efeitos das nuvens sobre o clima, tema ao qual Artaxo dedicou grande parte de seus estudos. O outro mostra um esquema da ação dos gases do efeito estufa, agentes centrais no debate do chamado aquecimento global. Pode-se dizer que Artaxo faz parte da elite do IPCC, pois pertence ao Grupo de Trabalho 1, que lida com as pesquisas no campo das ciências físicas do clima, no qual é mais difícil uma composição equilibrada de cientistas de países pobres e ricos. Isso porque nesse campo a produção de pesquisas e o número de trabalhos publicados são desproporcionalmente maiores nas nações desenvolvidas. “Meu trabalho específico foi descrever o efeito dos aerossóis e das nuvens no sistema climático. Os aerossóis são as partículas que ficam em suspensão na atmosfera e geralmente têm efeito de esfriamento sobre a Terra. Analisamos uma longa literatura sobre esse tema. A escolha dos trabalhos a serem analisados é da competência de cada autor. Eu li uns 2 mil papers que foram publicados nos últimos 5 anos só D nessa área. Selecionei os mais importantes, uns 150. Fiz um apanhado de suas conclusões e escrevi cerca de quatro páginas para o meu capítulo. Os outros autores do meu capítulo fizeram o mesmo trabalho, cada um na sua área.” Do capítulo do professor Artaxo saiu o gráfico que ele considera um dos mais importantes do IPCC, o que apresenta o balanço das radiative forcing. A tradução, num português meio estropiado, é forçantes radiativas. O que isso quer dizer? Se o leitor quiser, como nós, entender melhor o debate do aquecimento global, uma tarefa é ler trabalhos do grupo de Artaxo que estão na internet. Como as “Perguntas mais freqüentes” sobre o tema. Nesses textos encontra-se uma explicação de outra qualidade que a de Gore. Primeiro, mostra-se o que já dissemos na introdução, que a Terra não retém energia do Sol. A energia que chega é a mesma que sai para o espaço. São apresentados, inclusive, os números: Chega à Terra, do Sol, o equivalente a 342 W/m² (watts por metro quadrado – algo como se a Terra fosse iluminada, em cada metro quadrado de sua superfície, por quase seis lâmpadas de Artaxo: das ciências físicas do clima, onde está a elite do Painel 60 watts). Dessa energia, descontam-se 107 W/m², refletidos de volta para o espaço por nuvens, aerossóis e outros gases da atmosfera. E sobram 235 W/m², que a Terra ainda tem de mandar de volta ao espaço, para se manter em equilíbrio, e que saem na forma de radiação. Como também já dissemos no início, a Terra não devolve a mesma energia que chega. Ela devolve a mesma quantidade, mas na forma de uma energia de outro tipo. Chega energia do Sol na forma de luz visível pelo olho humano, no espectro de cores, entre os limites do ultravioleta e do infravermelho. Ou, dizendo o mesmo na terminologia da física, chega uma energia muito penetrante, de comprimento de onda muito curto e freqüência de oscilação muito alta. E sai energia na forma de radiação infravermelha, fora do espectro visível, depois do infravermelho. Ou ainda, sai energia menos penetrante, de comprimento de onda mais longo e freqüência de oscilação mais baixa. É o fato de a saída de energia da Terra se dar através de uma energia menos penetrante em relação à atmosfera terrestre que explica o efeito estufa. Para conseguir sair da Terra, a radiação infravermelha vai e volta, entre os obstáculos que encontra para sair e a superfície da Terra. Com isso, esquenta a biosfera. A seguir, o leitor pode, então, ir para a explicação do conceito necessário para entender o Fábio Pozzeborn / ABr mais fragmentados e mais lentos do que nos outros contextos”. A família B2 vê um mundo em que “a ênfase está nas soluções locais para a sustentabilidade econômica, social e ambiental. (...) O cenário também está orientado para a proteção ambiental e a eqüidade social, mas seu foco são os níveis local e regional”. Para cada cenário há estimativas diferentes de emissão de CO2 e de elevação da temperatura média global do ar da superfície terrestre. A taxa de concentração de CO2 em 2000 foi de aproximadamente 350 partes por milhão (ppm), o que significa que para cada ENERGIA 17 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 “Confiança muito alta” O gráfico, apresentado de forma mais técnica do que a nossa, é um dos destaques do Sumário para Formuladores de Políticas, do relatório do grupo de Artaxo. Ele apóia a seguinte conclusão: “A compreensão das influências antropogênicas no esquentar e esfriar do clima melhorou desde o terceiro relatório, levando a uma confiança muito alta (90% de chance) de que o efeito médio global das atividades humanas desde 1750 foi de aquecimento, com uma forçante radiativa de 1,6 W/m²”. Para entender a discussão do modelo defendido por Artaxo, que se fará nas duas partes seguintes, é preciso ainda deixar claras as premissas das quais ele parte. Primeira, o IPCC não faz as extrapolações extravagantes de Gore, nem tenta explicar o efeito estufa da mesma forma simplória. Mas todas as suas conclusões sobre o clima da Terra são derivadas, como as de Gore, da comparação entre os dados da série histórica da concentração de gases do efeito estufa obtida pela análise das bolhas de ar primitivas de amostras de gelo, com os dados de concentrações mais recentes obtidos em Mauna Loa, Havaí, desde 1956, e de outros postos de medição. Segunda: o vapor d’água, embora seja o mais abundante e o mais importante dos gases do efeito estufa – aparece na atmosfera em concentrações cerca de 30 vezes maiores que as do CO2, por exemplo –, sofre pouca influência direta da atividade humana. O IPCC sugere que o vapor d’água aumenta porque os outros gases do efeito estufa que ele considera diretamente – gás carbônico, metano, óxido nitroso – esquentam a superfície da Terra. E daí as águas, também aquecidas, passam a produzir mais vapor d’água. Em relação a esse aspecto vale notar que o IPCC admite que o metano pode se transformar em vapor d’água por reações químicas na estratosfera. E que conhece pouco sobre esse fenômeno. ção solar. Todos os outros fatores são resultado de atividades humanas. O argumento do IPCC é o de que mudanças do passado se deram de forma lenta e gradual, movidas por fatores naturais. Entre as eras glaciais e as interglaciais, as temperaturas médias da Terra subiram em 4 a 7 graus centígrados e esse aquecimento ocorreu lentamente, em cerca de 5 mil anos. O IPCC divide, portanto, a história do clima da Terra em dois períodos. O natural, com mudanças lentas e graduais, que pertence ao passado, e o antropogênico, de mudanças rápidas e catastróficas, da atualidade. Deve-se notar, finalmente, que, ao considerar 1750 como a data para medir a inter- A MEDIÇÃO DOS FATORES DE MUDANÇA DO CLIMA DE 1750 A 2005 Fatores que exerceram pressão sobre as emissões de radiação infravermelha da Terra para o espaço 2,5 Forçamento radiativo: valor da pressão de emissão de radiação infravermelha entre 1700 e 2005 (W/m2) que Artaxo considera a grande descoberta do IPCC, o das forçantes radiativas. Forçante radiativa, diz o texto subscrito por ele, “é a medida de como o balanço de energia do sistema Terra-atmosfera é influenciado quando fatores que alteram o clima são alterados. A palavra radiativa aplica-se porque esses fatores mudam o balanço entre a radiação solar que chega e a radiação infravermelha de saída dentro da atmosfera da Terra. Esse balanço radiativo controla a temperatura da superfície. O termo forçante é usado para indicar que o balanço radiativo está sendo pressionado para fora de seu estado normal”. Artaxo parece ser uma pessoa muito ocupada. Enquanto atende à repórter do RBCC, faz outras coisas: despacha algo para a Amazônia, responde a um e-mail, conversa em inglês com alguém que parece muito importante. O que fica da entrevista é a consideração dele de que o mais importante do trabalho do IPCC é a medição da forçante radiativa entre 1750 e 2005. O resultado está no gráfico que pode ser visto nesta parte de nossa história: o balanço radiativo da Terra foi pressionado para cima, por 1,66 W/m². 2,0 2,0 1,5 1,5 1,0 1,0 0,5 0 -0,5 CO2 0,5 0 -0,5 -1,0 -1,0 -1,5 -1,5 Halocarbonos Ozônio N2O Troposférico CH4 Ozônio Estratosférico Carbono negro sobre a neve Efeito do albedo das nuvens Vapor d’água Uso da terra CO 2: Gás cabônico CH 4 : Metano Efeito direto de aerossóis Radiação solar Trilhas de condensação lineares (como as dos jatos na aviação) Total do forçamento antrópico líquido -2,0 -2,0 Informações adicionais dos relatórios do IPCC, de onde foram tirados os elementos do gráfico: 1) a radiação solar é o único fator natural considerado; 2) para cada um dos fatores o Painel define o seu grau de conhecimento do assunto. Nesse item destaca-se o efeito albedo – de reflexão da radiação solar – das nuvens. O conhecimento desse fator é definido como “baixo”. E a sua influência, pelo esfriamento do clima da Terra, é definida como sendo cerca de -0,7 watt por metro quadrado, mas podendo estender-se até -1,8 W/m2. As linhas finas nas barras mostram essa extensão FONTE: Sumário para Formuladores de Políticas, GT1, IPCC, 2007 Terceira: o IPCC assume que seus modelos de análise do clima partem de um conhecimento desigual dos fatores que o influenciam. É um “conhecimento alto” para “os gases do efeito estufa de vida longa” – onde inclui o dióxido de carbono, o metano, o óxido nitroso, por exemplo –, “médio” para a questão do uso da terra e “baixo”, como se disse, para a influência da transformação do metano em vapor d’água na estratosfera. Quarta: o único fator natural que o IPCC considera quando mede o forçamento radiativo é o da variação na radia- 5 venção humana relevante sobre o clima da Terra, o IPCC está dizendo que a devastação das florestas ocorrida antes, principalmente na Europa Ocidental e parte dos atuais Estados Unidos, é natural. O que não é verdade. A corrida pelo carvão começa nessas áreas em meados do século XVIII exatamente porque as florestas ali tinham sido destruídas e transformadas em lenha. Esse é um fato que deve ser lembrado, já que o IPCC serve de base para a definição das responsabilidades nacionais na questão das mudanças climáticas também do ponto de vista histórico. 18 ENERGIA Reprodução RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 O GRÁFICO DO PÂNICO São duas séries de medidas: uma oscila, bem-comportada, por milênios; outra, recente, dispara para o alto e apontaria a catástrofe ividir as teorias sobre o clima em dois tipos, as antigas e as novas, pode decorrer de um erro metodológico. No relatório do IPCC divulgado em 2001 houve em certo escândalo, provocado por conta da introdução, à última hora, do famoso gráfico que ficou conhecido pelo seu apelido em inglês, hockey stick, taco de hóquei. O nome foi dado pela forma, em L deitado, da curva que representa as medições de temperatura do Hemisfério Norte desde mil anos do passado até o presente. Ela segue praticamente na horizontal quando representa a temperatura ao longo de quase todo o passado. E torna-se abruptamente vertical ao representar os últimos cem anos. O hockey stick foi publicado originalmente na revista Nature, considerada uma referência mundial. Foi uma peça da campanha que espalhou um certo alarmismo sobre o “aquecimento global”. Al Gore a utilizou na sua campanha presidencial de 2000. D ses Steven McIntyre e Ross McKitrick analisaram o modelo matemático utilizado e chegaram à conclusão de que, quaisquer que fossem os dados introduzidos, a forma da curva seria a mesma, na versão original. McIntyre e McKitrick afirmaram que “a utilização do hockey stick pelo IPCC não foi incidental” e que o Painel nunca o submeteu “a verificação independente”. RBCC foi ouvir em Alagoas um cientista que pode ser considerado um especialista não apenas em clima como também em possíveis erros metodológicos do IPCC. Luiz Carlos Molion nos falou durante seis horas, em sua casa, em Maceió. Formado em física pela USP e doutorado em climatologia pela Universidade de Wisconsin, EUA, Molion foi diretor de Ciências Espaciais no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) até os anos 1980. Hoje é professor no Instituto de Ciências Atmosféricas da Universidade Federal de Alagoas. Uma das suas críticas ao IPCC refere-se A colagem de dados diferentes TEMPERATURA NO ÚLTIMO MILÊNIO O hockey stick, polêmico gráfico divulgado pelo IPCC em 2001, com medições de temperatura do Hemisfério Norte Desvio de temperatura, em °C, em relação à média entre 1961 e 1990 A questão é que o gráfico produzido por modelos matemáticos e publicado com destaque pelo IPCC não foi capaz, na sua versão inicial, de reproduzir dois eventos climáticos muito importantes e bastante conhecidos. O primeiro foi o intervalo de aquecimento que durou dos anos 1000 a 1400 da era cristã, conhecido como Período Quente Medieval. O segundo, conhecido como Pequena Idade do Gelo, marcado por um agudo esfriamento, que foi de cerca do início do século XVI até perto de meados do século XIX. Quando o erro foi apontado, tornouse embaraçoso para o Painel, pois os períodos haviam sido reconhecidos pelos relatórios do IPCC divulgados em 1995. Além disso, o principal responsável pelo gráfico, Michel Mann, foi um dos autores mais destacados do Grupo 1 de 2001. Mais tarde, Mann publicou uma nova versão em que as inflexões correspondentes aos dois períodos tornaram-se visíveis. Qual o tipo de erro cometido na versão inicial do gráfico? Os pesquisadores canaden- 0,5 0 -0,5 -1 1000 1200 1400 1600 1800 2000 Dados obtidos com termômetros, em vermelho. Dados obtidos de anéis de árvores, corais, amostras de gelo e registros históricos, em azul FONTE: Quarto Relatório de Avaliação do GT1 do IPCC, 2007 4 Mann, o autor do hockey stick: uma peça a favor do alarmismo ao método das medições para os gráficos que dão uma equação inusitada aos atuais níveis de CO2. Molion viu o filme de Al Gore, que manipula esses índices. Mas apresenta os problemas dos próprios gráficos do IPCC. Ele diz que o erro mais gritante é o da construção, por colagem, de gráficos diferentes, cujos dados de origem foram obtidos por métodos distintos. Isso leva a margens de erro que podem ser muito diversas, como se pode ver no caso das medidas feitas em bolhas de ar que conteriam amostras do ar primitivo. Tanto o gráfico de Gore no filme quanto o gráfico do IPCC de 2007 que apresentamos neste trecho (“Gás carbônico e temperaturas nos últimos 650 mil anos”) dão as concentrações de CO2 de até 650 mil anos. Molion diz que essas séries são construídas com a montagem de três outras. Uma, de amostras de gelo de até 420 mil anos. Outra, a mais antiga, é obtida a partir de corais, onde também ficam registros do carbono presente em atmosferas passadas. E uma terceira vem de dados de medições diretas na atmosfera, mais recentes. A de até 420 mil anos é de bolhas de ar presas no gelo retirado da Antártida, num sítio experimental chamado Vostok. A pesquisa, diz Molion, consiste em retirar do gelo, com uma broca oca, um cilindro que, ao longo de seu comprimento, apresenta minúsculas bolhas de ar aprisionadas durante o processo de acomodação de sucessivas camadas de neve ao longo da história. Quanto mais profunda a camada, mais velho é o ar que as bolhas contêm. Tanto o gelo como o ar são datados por métodos químicos e analisados. ENERGIA 19 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 fera superficial não excedeu a marca de 300 ppm entre 650 mil anos atrás e 2005, ano em que disparou para 379 ppm e “excedeu de longe os limites naturais”. Molion argumenta em contrário citando o trabalho do alemão Ernst-Georg Beck, publicado em 2007, no qual foram catalogadas cerca de 90 mil medidas da concentração atmosférica de CO2 feitas por meio de métodos químicos convencionais, desde 1812, por cientistas espalhados pelo planeta – Estados Unidos, Europa e Ásia. Esse grupo de cientistas, que inclui três prêmios Nobel, estava interessado, naque- Gráficos do IPCC com a montagem de dados obtidos de formas diferentes Cada ponto vale mil anos 370ppm Nível de CO 2, em partes por milhão 300 260 220 180 Indicador de temperatura, em deutério 0/00 Molion continua: desde 1999, os cientistas avaliam a chamada resolução temporal, isto é, o intervalo de tempo representado pelos dados obtidos com os cilindros de gelo. A conclusão atualmente é de que há fortes indícios de que a resolução temporal é baixa. “E que cada ponto representa uma média de cerca de mil anos!”, ele conclui. A série com a concentração de CO2 que representa o período recente, diz Molion, foi construída com dados obtidos em Mauna Loa, na Ilha de Havaí. As medições começaram em 1957-1958 e são feitas com um cromatógrafo a gás. Esse instrumento, de resposta rápida, trabalha com radiação eletromagnética. Sob a mesma fonte de radiação, são colocadas duas amostras: uma com uma atmosfera de concentração de CO2 conhecido e outra com a atmosfera local, que se quer conhecer. Compara-se, então, no mesmo comprimento de onda, a taxa de absorção de cada uma delas, inferindo-se a quantidade de CO2 presente na amostra que se pretende conhecer. Fica evidente, portanto, que os conjuntos de dados obtidos por meio desses dois métodos são qualitativamente incomparáveis e representam escalas de tempo muito diversas, diz Molion. Não é correto, nem faz sentido, apresentá-los como um sendo a continuidade do outro. O relatório do IPCC afirma conclusivamente que a concentração do CO2 na atmos- Molion arrisca uma explicação: “Ocorre que a hipótese básica da qual o IPCC parte é de que a bolha de ar não sofre nenhuma mudança em sua composição química, e isso não é verdade”. Ele argumenta que uma bolha aprisionada a 3 mil metros de profundidade sob uma pressão 300 vezes maior que a atmosférica, durante 650 mil anos, não pode deixar de sofrer modificações. “Não há como não haver difusão. O ar escapa pela estrutura cristalina do gelo. Além disso, nessa pressão, ocorrem reações com outras substâncias como o sódio e o cálcio existentes na neve.” GÁS CARBÔNICO E TEMPERATURA NOS ÚLTIMOS 650 MIL ANOS Gás Carbônico, em partes por milhão Os gases da atmosfera são obtidos pela análise do ar das bolhas e a temperatura, da análise do gelo. Os dados finais apresentam ano a ano as concentrações dos gases e a temperatura. Essa metodologia foi apresentada ao mundo como sendo um tesouro de onde se poderiam tirar detalhes preciosos da história do planeta com alta confiabilidade, diz Molion. E assim ela é apresentada pelo IPCC. “A concentração do CO2 é agora conhecida de forma precisa para os 650 mil anos passados através dos cilindros de gelo.” Molion diz que a idéia é bonita. Mas, até por ser uma metodologia relativamente recente, há muita discussão em torno da qualidade e do significado preciso dos seus dados. A suspeita de que algo estava errado com a metodologia surgiu quando a cronologia de eventos climáticos bem conhecidos do passado foi comparada com os dados obtidos pelos cilindros de gelo. Havia uma grande defasagem de tempo entre eles. -360 -380 -400 -420 -440 600 500 400 300 200 100 0 Tempo em milhares de anos antes de 2005 Os dois gráficos acima reproduzem os do IPCC. A legenda publicada diz que a concentração do gás carbônico é obtida a partir de bolhas de ar retidas dentro de amostras de gelo retiradas da Antártida, por diversas pesquisas, e de medidas atmosféricas diretas recentes. As faixas verticais cinza indicam períodos interglaciais quentes de até 420.000 anos. Nota-se, entre 110.000 e 130.000 anos, que a temperatura cai bastante, mas os níveis de CO2 se mantêm. O indicador da temperatura são variações de deutério, diz o IPCC. Fonte: Relatório do IPCC de 2007, GT 1, cap. 6 la época, em entender a relação entre a concentração do gás e o crescimento vegetal. O resultado obtido por eles mostra que a concentração de CO2 no Hemisfério Norte sofreu flutuações desde então e chegou a cifras bem maiores que as atuais. O trabalho publicado em Energy & Environment é posterior ao último relatório do IPCC e revela que a concentração do CO2 na atmosfera apresentou, desde 1812, três picos de nível máximo por volta dos anos de 1825, 1857 e 1942, esse último atingindo cifra bem maior que 400 ppm. Alguns cientistas consideram que a curva obtida com os dados extraídos dos cilindros de gelo, portanto, estaria como que achatada e seus picos, subestimados. 5 Há cinco anos, antes, portanto, da divulgação do trabalho de Beck, a astrofísica Sallie Baliunas, do Centro Smithsonian para a Astrofísica, na Divisão de Ciência Solar, Estelar e Planetária de Harvard, também diretora do Instituto Mount Wilson, já questionava a associação estabelecida entre o aumento da concentração de CO2 e a elevação da temperatura registrada na superfície da Terra. Ao contrário do estabelecido pelos relatórios do IPCC, a doutora Baliunas, em artigo publicado em 2002 no site da Technology, Commerce and Society, afirma que o aumento e a redução das concentrações de CO2 ao longo dos últimos 650 mil anos não são causa, mas conseqüência das flutuações de temperatura que as precederam. 20 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Ela apoiou-se em três trabalhos publicados na revista Science. Um deles mostra que as séries para o CO2 e a temperatura obtidas por meio de cilindros de gelo não são diretamente compatíveis. De acordo com esse trabalho, a representatividade dos dados de temperatura registrados no Pólo Sul pode variar de acordo com uma escala local até regional, mas não global. Já as concentrações de CO2 representam variações globais. A comparação direta das duas curvas não teria, portanto, rigor científico. Sallie Baliunas como que nos convida a examinar com mais cuidado o gráfico do último relatório do IPCC. No geral, parece que a temperatura e a concentração de CO2 tendem a variar de forma praticamente simultânea. Mas um olhar aguçado sobre o trecho de curva compreendido, por exemplo, entre 130 mil e 110 mil anos atrás, mostra uma queda abrupta da temperatura, enquanto a concentração de CO2 permanece em níveis elevados ainda por mais alguns milhares de anos. E só depois a concentração de CO2 começa a cair e novamente parece acompanhar a curva da temperatura. “Pesquisadores do Instituto de Oceanografia Scripps esperam que os oceanos e as plantas absorvam e liberem o dióxido de carbono em resposta à mudança na temperatura do ar”, explica Sallie Baliunas. Isso porque a elevação de temperatura provoca, a longo prazo, uma aceleração na circulação do mar e as águas profundas, ricas em CO2, atingem a superfície. Além disso, as águas superficiais, uma vez aquecidas, retêm menos gás carbônico dissolvido. “A solubilidade do gás carbônico na água fria é um pouco maior”, explica Molion à repórter do RBCC. “Você vê isso nos refrigerantes, na cerveja. Quando ela está fria, tem muitas bolhas de CO2. À medida que esquenta, expulsa o CO2 que estava em solução.” O Ciclo de Gleissberg estava no mínimo no início do século XX. Atingiu seu máximo em setembro de 1957. E começou a se reduzir novamente. Estamos, portanto, vivendo uma fase de redução da energia solar em relação ao Ciclo de Gleissberg, de período mais longo. Mas de aumento de atividade solar em relação ao ciclo de 11 anos que começou em julho de 2006 e deverá atingir seu máximo em 2010. Segundo as previsões, nos 22 anos seguintes, o Sol estará produzindo menos energia. O professor Molion mostra o gráfico das forçantes radiativas do IPCC e propõe um exercício. Calcula, utilizando os mesmos critérios do painel, o impacto de uma redução mínima da atividade solar sobre a temperatura atmosférica. Se a atividade solar diminuir, por exemplo, apenas 1,4 W/m² e os parâmetros utilizados pelo IPCC para esse cálculo estiverem corretos, haverá uma redução de 0,7° Celsius na temperatura da Terra. As nuvens podem anular o efeito CO2 O SOL EM PRIMEIRO LUGAR O dissidente Molion, com o esquema do IPCC em mãos, propõe um modelo alternativo A Molion: as núvens podem ser como chaminés, para jogar calor para o espaço de solar varia também segundo um outro ciclo, sobreposto ao primeiro, chamado Ciclo de Gleissberg, em que a quantidade de manchas dos picos de atividade aumentam lentamente e voltam a se reduzir num período de cerca de 90 anos. Roberto Castro / Agência IstoÉ s observações e medições da atividade solar começaram com Galileu Galilei (1564-1642). Ele foi o primeiro a apontar um telescópio para o Sol. Descobriu que o astro rei tinha manchas, que passaram a ser registradas pelo observatório de Zurique, na Suíça, a partir de 1700. Nesses 300 anos de registros, viu-se que o Sol tem um ciclo de produção de manchas de mais ou menos 11 anos. Ele se inicia com nenhuma mancha e atinge um máximo de 200 a 300 manchas em quatro anos. As manchas são regiões mais frias que, devido ao contraste de temperatura com seu entorno, apresentam em suas bordas labaredas enormes, verdadeiras tempestades, explosões. Quando as manchas se multiplicam, o campo magnético do Sol é mais intenso, domina o sistema solar inteiro. E o Sol produz mais energia. A intensidade da ativida- Molion refere-se a um estudo científico deste ano que mostra que a variação da atividade solar entre um mínimo e um máximo pode chegar a 4 W/m². Caso um aumento desse tipo ocorra, a forçante radiativa solar ficaria entre 1,9 e 2,6 W/m². Uma energia muito superior ao forçamento radiativo de todos os gases antropogênicos liberados pelo homem nos últimos 250 anos, calculado pelo IPCC em 1,6 W/m². O estudo, diz Molion, mostra também que houve uma influência grande da variabilidade solar na primeira metade do século XX, quando a forçante radiativa solar foi amplificada por algum mecanismo ainda desconhecido. Isso explica a elevação de temperatura que ocorreu entre 1925 e 1943 e coloca em xeque o valor da forçante radiativa solar assumida pelo IPCC. Se a forçante radiativa solar desde 1750 foi de fato maior do que a estabelecida pelo IPCC, então a temperatura observada teria de ser maior, o que não foi. Resta a possibilidade de os cálculos das forçantes radiativas dos outros fatores terem sido superestimados, para o lado negativo ou para o lado positivo. No gráfico das forçantes radiativas do IPCC lê-se que o entendimento sobre o efeito albedo – a reflexão da radiação solar – das nuvens é “baixo”, mas seu valor, negativo, pode chegar até a menos 1,8 W/m². “Isso significa que, se o valor das nuvens for realmente menos 1,8 W/m², ele anula ENERGIA 21 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Uma nuvem igual a 1,7 mil Itaipus Uma nuvem pequena, de 5 quilômetros de largura, 5 de comprimento e 5 de profundidade, que produza 30 milímetros de chuva em uma hora, o que é uma quantidade pequena, libera energia equivalente a 1,7 mil Itaipus, a maior hidrelétrica do planeta. “Nós não estamos falando de um furacão com 250 quilômetros de tamanho. Estamos falando de uma nuvenzinha de 10 quilômetros de diâmetro equivalente!” O efeito de “chaminé de calor” das nuvens também tem um papel importante no controle da temperatura dos oceanos, especialmente do Pacífico. Dados de satélite mostram que a umidade e a nebulosidade sobre o Pacífico aumentaram no período de aquecimento mais recente, desde 1977 até hoje. Se não houvesse a transferência de calor pelas nuvens, seria de se esperar um aquecimento muito maior da superfície desse oceano, diz Molion. E outro ponto crucial é, exatamente, o transporte do calor. “É a nossa grande ignorância hoje em termos de sistema climático-terra-oceanos-atmosfera. Quanto do calor é transportado pelos oceanos?”, pergunta-se Molion. A energia não chega à Terra de forma homogênea. A região dos trópicos recebe muito mais energia que as regiões polares. E, não fosse um sistema de transporte de calor de uma região para as outras, promo- vido pelos movimentos da atmosfera e das correntes oceânicas, o clima nessas regiões seria bem diferente do existente. O papel dos oceanos no transporte de calor é evidente, diz Molion. Afinal, 70% da superfície da Terra é constituída de oceanos. E entre os oceanos a extensão do Pacífico ocupa 35%. A Terra tem 510 milhões de quilômetros quadrados e o Pacífico, sozinho, tem 180 milhões. Assim, o Pacífico deve ter um peso relevante no transporte de calor. Molion explica que dois aspectos devem NA PARTE DE CIMA DO EQUADOR A grande maioria das estações que medem a temperatura fica no Hemisfério Norte. E em terra firme GHCN o efeito do CO2 no aquecimento da atmosfera”, diz Molion. O próprio IPCC admite que isso poderia acontecer, quando assume que conhece pouco sobre o assunto. “Ocorre que as nuvens têm um papel crucial no clima do planeta”, diz Molion. Além de controlar a quantidade de radiação solar refletida de volta para o espaço – o albedo planetário –, elas são verdadeiras chaminés que jogam energia para fora do sistema climático da Terra, ele diz. Sua explicação: quando as nuvens se formam pela evaporação da água, absorvem energia. E quando se condensam em gotas de chuva, liberam a energia que haviam absorvido do processo de evaporação. No caso das nuvens do tipo cumulonimbus, esse processo ocorre em torno de 1.000 metros acima da superfície terrestre e em torno de 500-600 metros acima dos oceanos. E o calor é liberado a 3 mil, 4 mil , 5 mil metros, dependendo das circunstâncias, altura em que a temperatura já está próxima de zero e o efeito estufa é fraco. “Nós já vimos, aqui pelo radar, nuvens que atingiram 3 quilômetros de altura. À medida que a nuvem vai crescendo, ela libera esse calor no entorno. Como o efeito estufa é fraco naquela altura, a radiação de infravermelho escapa para o espaço. Em outras palavras, eu digo que esse tipo de nuvem, muito comum na região tropical, literalmente curto-circuita o efeito estufa. Veja, é como se você tivesse chaminés pelas quais o calor da superfície terrestre entrasse e daí fosse jogado no espaço.” RBCC FOI VER A ÚNICA estação meteorológica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) existente na cidade de São Paulo. Ela fica no alto do bairro de Santana. Recentemente, o local recebeu equipamento digital, que realiza medições e as envia, por satélite, para a central de dados, em Brasília. Depois, essas informações vão abastecer os registros da Organização Meteorológica Mundial, um dos órgãos das Nações Unidas que está na origem do IPCC. O Brasil conta com 260 estações meteorológicas automáticas (20 só no estado de São Paulo). Algumas áreas, especialmente na Região Norte, estão mal cobertas, reconhece o órgão. Cobertura precária, entretanto, não é um problema só brasileiro. Cerca de nove em cada dez estações meteorológicas exisitentes no planeta situam-se em terra firme, embora os oceanos representem 70% da superfície da Terra. Além disso, das estações terrestres, a grande maioria fica no Hemisfério Norte, onde dois fatores convergem para produzir essa distorção: a maior parte da área terrestre fica ao Norte do Equador, onde, por coincidência, estão também concentrados os países mais desenvolvidos do planeta, aqueles que têm mais recursos para manter melhores sistemas de medição. O mapa acima, da Global Historical Climatology Network, órgão ligado ao Departamento de Comércio americano, que tem um vasto banco de dados com temperaturas do mundo inteiro desde o século XIX, reflete esse problema. A concentração das estações é um dos aspectos mais destacados pelos críticos da concepção com a qual trabalha o IPCC, de que é possível estabelecer uma temperatura média global. 22 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 MANCHAS SOLARES, PASSADO E FUTURO Nos próximos 22 anos, o Sol pode produzir menos energia Número de manchas solares ser levados em conta: 1. Que as correntes oceânicas são muito lentas, com velocidade de cerca de 3 a 4 quilômetros por hora, quando comparadas às correntes atmosféricas, que chegam a percorrer de 200 a 300 quilômetros por hora. 2. Que a quantidade de energia necessária para aquecer um volume de água é maior do que a energia para aquecer o mesmo volume de um gás. Para ter uma idéia, diz ele, são necessários 1027 watts – ou seja 1 bilhão de bilhões de bilhões de watts – para aquecer um pequeno trecho do oceano localizado entre 10 graus Norte e 10 graus Sul de latitude, o que dá 2 mil quilômetros de largura e 20 mil quilômetros de extensão, com 200 metros de profundidade apenas – uma energia infinitamente superior ao que o homem pode produzir. As trocas de calor entre a atmosfera e os oceanos são, portanto, complexas. No Atlântico, a corrente do Golfo traz calor da região equatorial para a região do Golfo do México, depois cruza o Atlântico e leva calor para a região da Inglaterra, Europa Ocidental e Escandinávia. Se olharmos no mapa, veremos que o sul da Inglaterra está na mesma latitude que a Terra Nova, no Canadá. No entanto, no sul da Inglaterra, a temperatura no inverno chega a apenas 5 graus negativos, enquanto os invernos na Terra Nova são bem mais rigorosos, atingindo 50 graus negativos. 250 200 estimativas 150 100 50 0 1940 1960 FONTE: Luís Carlos Molion 1980 2000 2020 6 Isso porque o clima na Europa Ocidental é controlado pela corrente do Atlântico Norte, nome que a Corrente do Golfo recebe ao cruzar o Atlântico em direção à Europa. E ainda há os ventos que naquela latitude sopram do continente americano em direção à Europa, os quais, aquecidos pela corrente oceânica, transportam calor para o interior do continente europeu, diz Molion. As explicações do professor são fascinantes. Para nós, bem melhores do que as do famoso ambientalista Al Gore. Além disso, nos foram fornecidas de graça. Já as do ex-vice-presidente americano são caras: recentemente, ele falou em São Paulo sob patrocínio de um grande banco, por 250 mil dólares. MAIS DO QUE PREVER, AGIR Não se trata apenas de diferentes interpretações do que vai acontecer. Na hora do que fazer é que as posições se distinguem m março deste ano, o presidente Lula abriu o Palácio da Alvorada para mais uma sessão de cinema. Dessa vez se tratava de uma produção estrangeira e ele tinha a companhia de uma platéia mínima: a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o secretário-executivo do Fórum Nacional de Mudanças Climáticas, Luiz Pinguelli Rosa. O filme era Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore. “A conversa depois do filme foi tão boa, que Lula concordou que propuséssemos um plano para o enfrentamento das mudanças E climáticas”, diz Pinguelli a RBCC, na sala de diretoria do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pinguelli não é novato nesse tema. Expresidente da Eletrobrás, ex-participante do IPCC, ele já fazia parte de um grupo de discussão sobre mudanças climáticas na UFRJ há tempos, antes mesmo da Eco-92. Pinguelli gostou do filme de Gore e concorda em grande parte com as conclusões do IPCC, sobre as causas antropogênicas do aquecimento. No entanto, acredita que, por trás da discussão do tema, há também uma cadeia de interesses “legítimos e ilegítimos”. “São interesses nacionais, empresariais, de confronto entre países ricos e pobres, entre trabalhadores e capitalistas, entre visões de mundo diferentes”, diz Pinguelli, para quem os relatórios do IPCC apontam sempre que a solução para os problemas está no mercado. “Não há nenhuma maneira de isso acontecer. O mercado conduziu a essa situação e não vai resolvê-la. Vai ser a intervenção do Estado e, mais que isso, a intervenção de níveis supraestatais, como a ONU, com tratados mundiais que indicarão as soluções.” A pedido do presidente, Pinguelli coordenou as discussões para a elaboração de um plano pelo Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. É uma instância criada em 2000, composta de 12 ministros de Estado, do diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), de acadêmicos, representantes de fóruns estaduais, de ONGs e de movimentos sociais. Em abril, a proposta estava pronta e foi apresentada ao governo. A atual política, um desastre ecológico Pinguelli destaca do plano a necessidade de redução urgente do desmatamento, por corte ou queimada, na Amazônia. O fórum defende a definição de metas de redução da taxa de desmatamento. “Nisso há uma resistência do governo: ele argumenta que talvez não devamos estabelecer metas, porque estaríamos assumindo compromissos internacionais. Não é isso. A idéia é de um plano interno. Não propusemos uma meta numérica, mas dissemos que, baseados na redução dos últimos três anos, podíamos projetar a redução dos próximos três anos. Acho que perante o mundo era bom o Brasil ter essa iniciativa internamente.” Em relação à produção e uso de energia, a sugestão do fórum é que seja consolidada a política de biocombustíveis, que se estruture um programa de expansão do uso de fontes renováveis de energia e que se consolidem também os programas nacionais de eficiência energética. As sugestões do Plano apontam para a multiplicação de fontes renováveis de energia, mas a atual política do governo nesse particular é, segundo Pinguelli, “um desastre ecológico, ao pé da letra”. “Os recentes leilões de energia têm apontado para o uso de termoelétricas em grande número, termoelétricas a óleo, que são caras ENERGIA 23 RETRATO DO BRASIL | setembro 2007 | nO 3 Pinguelli Rosa: o mercado não resolve o problema do efeito estufa Magaziner: com os grandes bancos e as grandes empresas que as grandes cidades terão um papel central nesse plano. A palestra de Ira não tem grandes novidades até que ele chega ao ponto: a Fundação Clinton está desenvolvendo o Programa dos Prédios Energeticamente Eficientes. Ele reúne quatro das maiores companhias energéticas do mundo – Honeywell, Johnson Controls Inc., Siemens e Trane –, cinco bancos globais – ABN AMRO, Citibank, Deutsche Bank, JPMorgan Chase e UBS – e 16 metrópoles em todo o mundo, inclusive São Paulo. “Os financiamentos dos bancos vão movimentar grandes valores em torno desses projetos, o que fará com que os custos caiam.” Isso, diz Ira, é “bom para as cidades e, o mais importante, é que é bom para o planeta”. “Não se trata de caridade, pois faz sentido para os empresários e para os pagadores de impostos”, diz. Valter Campanato / ABr “Não se trata de caridade” Quando a questão é o que fazer diante do debate ecológico, muitos pensam de forma mais pragmática do que Pinguelli. Ira Magaziner é um deles. Ele é diretor da Iniciativa de Mudanças Climáticas da Fundação Clinton, o ex-presidente americano, do qual Ira foi conselheiro durante seis anos. Em agosto, Ira esteve em São Paulo e fez a palestra de abertura da 6ª Conferência Municipal Produção Mais Limpa da Cidade de São Paulo, no Memorial da América Latina. Anunciou, então, que a Fundação Clinton está levantando 5 bilhões de dólares para financiar projetos de construção e reforma de prédios energeticamente eficientes nas grandes metrópoles, os centros que consomem e desperdiçam enorme quantidade de energia. Ira acredita que o mundo se salvará do aquecimento e das mudanças climáticas apenas se houver um corte de 78% das emissões de gases do efeito estufa e Jim Bourg / Reuters e poluentes, termoelétricas que nem são a gás, mas a carvão. Nesses leilões não se conseguiu vender energia de hidrelétricas nem a dos projetos de produção com o bagaço de cana. Dessa forma, as energias renováveis foram ficando para trás”, diz. Defensor das energias renováveis, Pinguelli está longe de ser um místico das energias alternativas. “É claro que o petróleo tem um lugar cativo, o que é natural em certas áreas, como o transporte. Eu não vejo solução com o uso só de energias alternativas, e esse é um grande equívoco de alguns movimentos ambientalistas. Além de falar em desenvolver energia alternativa, é preciso falar em mudança de padrão de consumo da sociedade. É uma sociedade do desperdício, que usa automóveis pesadíssimos nas cidades porque é um modismo, caminhonetes de tração nas quatro rodas para ir e voltar do trabalho, é uma irracionalidade ambiental. Não há como manter esse padrão de consumo arbitrário e resolver o problema ambiental e do efeito estufa. É preciso pensar que grande parte do problema vem da desigualdade, o exagero do consumo dos ricos em comparação ao dos pobres, isso tanto entre os países como dentro dos países.” Que haverá mudanças no clima, ninguém pode duvidar, diz nosso conselheiro na série sobre energia que ora se encerra, Ildo Sauer. “A lei do universo é a mudança. Persistem ainda dúvidas científicas razoáveis sobre a magnitude e mesmo a direção de fatores naturais e antropogênicos que afetam o clima. Então, o debate científico, profundo, deve continuar. Mas, mais quente ou mais fria, com intensificação ou redução do ciclo hidrológico, das correntes marítimas, da elevação do nível do mar, a questão maior continua sendo política. Como organizar a produção, como reparti-la socialmente, entre as classes sociais, dentro dos países, entre os países, e qual o papel do Estado”, diz. É um conflito de posições “O Brasil apoiou o Protocolo de Kyoto”, lembra Sauer. “Esta foi a posição prudente de muitas nações, de se empenharem para reduzir a emissão de gases do efeito estufa diante da possibilidade de estar em curso um processo de aquecimento global. Mas o Protocolo define também responsabilidades diferenciadas. As de países pobres, de pequena renda per capita, não podem ser as mesmas dos países ricos que já destruíram suas florestas, que praticamente monopolizam o consumo dos recursos energéticos do mundo, há muito tempo”, ele diz. E completa: “No quadro atual, as soluções prováveis apontam para uma concentração maior de capital e de poder, via, por exemplo, a energia nuclear. Países da América do Sul, África e Ásia têm um enorme desafio, viabilizar soluções descentralizadas, baseadas em fontes renováveis, como as hidráulicas, os biocombustíveis. E nos esforços de conservação e uso racional de energia”. Sauer tem razão. As previsões do IPCC baseadas em cenários lembram a análise do cronista de futebol que, após profunda reflexão, conclui que os resultados da partida se resumem em três hipóteses: o time A ganha ou o B ganha, ou há um empate. Não se trata apenas de um debate científico sobre o que vai acontecer com a Terra. É um conflito de posições. Trata-se de saber, dadas as condições concretas e feita a melhor análise científica possível, de que lado se está.