Paulo Futre EL PORTUGUÉS PARTE II por Luís Aguilar Aproveitem a vida | António Feio ÍNDICE 13 25 45 59 73 91 105 125 143 161 171 183 205 1. Faroeste mexicano 2. O escândalo que mudou tudo 3. O primeiro dia 4. «Não voltas à Seleção!» 5. França’84: equipa dividida 6. México’86: equipa unida 7. Burlas, subornos e charros 8. As mexicanas 9. «Não treinamos, nem jogamos!» 10. «Adios Mexico! Olá Portugal!» 11. Os condenados de Saltillo 12. A maldição do «quase»! 13. Um dia destes… 7 8 Aproveitem a vida | António Feio •1• Faroeste mexicano Que grande caldeirada! Um tipo acaba de chegar ao México para jogar o Mundial e vê logo uma cena de pancada daquelas à filme. Polícias de um lado. Cobóis do outro. Todos ao soco e ao pontapé. Os primeiros caem ao chão. Tentam levantar-se em desespero e reagir aos golpes. Sem sucesso. Os segundos estão endiabrados. Fazem um cerco à volta dos homens de farda e não os deixam sair. Um dos polícias tenta escapar-se. É, imediatamente, puxado por um chicote. Até consigo ouvir o barulho das costas dele a bater no chão. Desgraçado do homem. Está novamente no meio e volta a ser sovado. Ele e os colegas. Só de ver dói. Nós, os portugueses, somos os únicos espantados. O resto do povo está em delírio. Incentiva os cobóis e assobia os polícias. Parece o ambiente de um estádio de futebol. Eu ainda estou a tentar perceber o que se passa ali. Tenho 20 anos, sou jogador do FC Porto, fiz a formação no Sporting e venho do Montijo. Quando era mais puto andava sempre na rua com os meus amigos e fiz as minhas loucuras. Mesmo nos tempos em que jogava nas camadas jovens de Alvalade. Mas isto é outra coisa. Nunca 16 El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar bati em nenhum polícia. Nem sequer vi alguém bater num polícia. No meu país – pelo menos naquele que eu conheço nesse momento – um gajo que faça isto está lixado. Dou por mim a pensar: «Em Portugal, os bandidos fogem da polícia; aqui a polícia quer fugir, mas não consegue. Isto é mesmo um faroeste.» Como sou o mais novo de toda a comitiva portuguesa ainda olho para os meus colegas, alguns dirigentes e equipa técnica: – O que é que se passa aqui? O que é isto? Eles não respondem. Abanam a cabeça como quem diz: – Também não sabemos. E estão todos de boca aberta. Tal como eu. Mas não conseguimos parar de olhar para aquela confusão. De um lado e do outro, usa-se apenas o corpo. Ambos têm pistolas, mas nenhum tiro é disparado. Ainda penso nisso: «Se um gajo destes saca da arma, morremos aqui todos.» Os mexicanos riem-se, batem palmas e cantam. Às tantas, lá me explicam que ninguém vai disparar: «Hombre, fuego es desonra.» Parece que o simples ato de tocar no coldre é considerado cobardia. Se tivesse no lugar dos polícias, com uma pistola na cintura, a apanhar daquela maneira, queria lá saber da desonra. Tinha era de me safar. Mas ainda bem que isto é outra cultura. Assim ninguém corre o risco de ser atingido por uma bala perdida. Aquela conversa da desonra lembra-me um combate de boxe que vi na televisão. Um dos pugilistas foi ao chão, ainda tinha força para lutar, El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar mas preferiu ficar caído até o árbitro acabar a contagem. Assim não levava mais. Deu para compreender. Aqui, nesta cidade de malucos, não há árbitros, nem regras. Os homens têm de aguentar apenas com a arte do confronto físico que cada um domina. E os cobóis são mais artistas. Mestres na luta corpo a corpo. Desviam-se das tentativas frustradas dos pequenos homens fardados e aplicam poderosos golpes. Tudo isto segue sem interferências. Ninguém diz: «Já chega!» Começo a ficar com medo que alguém morra. Repito: nunca vi nada assim. Repito: os meus colegas tão-pouco. Repito: os mexicanos querem mais. Sou um fanático de filmes de cobóis e até parece que estou a assistir às gravações de um western. A certa altura ainda olho à volta a tentar ver alguma coisa de cinema. À procura de um gajo qualquer que diga: «Luzes, câmara, ação.» Uma aldrabice dessas. Não vejo nada. Não há realizador, produtor, equipa de maquilhagem, técnicos de som ou de efeitos especiais. Não há atores. Nem atrizes. Isto não é um filme. Está a acontecer diante dos meus olhos. Estou mesmo a ver um grupo de cobóis dar uma valente carga de pancada a um conjunto de polícias desorientados. Eu e os outros jogadores da seleção movemos os olhos a uma rapidez alucinante para captarmos tudo. Um deles começa a falar comigo. – Paulinho, já viste esta merda? É a puta da loucura. – Achas que isto é sempre assim? – pergunto. – Sei lá, espero bem que não. Mas olha que estão aqui umas gajas boas. Já viste aquela ali? 17 18 El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar – Epá, que espetáculo de mulher. Um homem é assim. Pode estar a assistir à coisa mais estranha do mundo, mas basta aparecer ali uma senhora quente e já não consegue tirar os olhos. E aquela é bem quente. Faz-me lembrar uma rapariga bissexual que uma vez me mandou uma fotografia. Um ano antes disto. A 28 de fevereiro de 1985. Fiz 19 anos e fui até à secretaria do FC Porto. O funcionário disse-me que tinha batido o recorde de cartas recebidas. «547 num só dia. Que loucura. É a primeira vez que isto acontece.» Saí dali, fui para casa e comecei a abrir a correspondência. Muitas fotografias, postais de parabéns, vários pedidos, elogios, coisas que nem sei explicar, outras que não interessam. E estava nisto até que fico vidrado numa dessas imagens. Duas mulheres de corpos escaldantes a beijarem-se. No verso estava a seguinte frase: «Somos duas amigas bissexuais e queremos ser a tua prenda de anos.» Fiquei maluco. Até essa altura nunca tinha estado com duas mulheres ao mesmo tempo. Essa era a minha grande fantasia. Dizem que é a de muitos homens e até pode ser que sim, mas que era a minha, isso posso garantir! Mas sem pagar. Porque, com dinheiro envolvido, é tudo fácil. Assim é batota, como se costuma dizer. Queria conquistar a minha fantasia por mérito e não pela conta bancária. E estava ali a oportunidade. Eram as duas estonteantes. Uma loura e outra morena. Mesma altura, mesmo peso e tudo no sítio. Deitei-me a pensar como seria estar com elas e o que podia fazer. Só havia mesmo uma forma de saber… El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar Passa pouco mais de um ano, estou longe de Portugal, e recordo-me novamente dessa bonita imagem enquanto olho para esta mulher mexicana. É muito parecida com a morena da fotografia, embora tenha a pele ainda mais bronzeada. Fico ali a fitá-la na esperança de que ela olhe para mim, no entanto é mais uma que está completamente obcecada com a cena da pancada. Bate palmas e participa nos cânticos de incentivo aos cobóis. Não liga a mais nada. Volto a concentrar-me na luta e reparo que, naqueles poucos segundos em que desviei o olhar, a coisa ficou ainda mais agressiva. Só se veem polícias de gatas e vaqueiros em cima deles, como se estivessem a montar os seus cavalos. Aquilo é tão inacreditável que até gostava de ter olhos na nuca, nos braços e nas palmas das mãos. Os meus colegas também. Alguns tiram fotografias. E só não filmam porque, nesta altura, eram poucas as pessoas que tinham câmaras. Foi antes do Youtube e dos telemóveis 4g, 3g ou 2g. Aliás: foi antes dos telemóveis. Que pena. Teria dado um bom vídeo caseiro para pôr no Facebook. O pessoal ficava louco. Tudo a carregar no «gosto»! Mas também não preciso desses auxiliares de memória. A violência da cena nunca mais me saiu da cabeça. Tenho presente cada momento. Basta recordar e parece que estou a ver tudo agora. A acontecer neste preciso instante. E já foi há tanto tempo… Tudo isto teve lugar na pequena cidade de Saltillo, no México, em 1986, aquando da organização do Mundial de futebol desse ano. Dois ou três dias depois de chegarmos. Ainda estávamos a habituar-nos ao ar quente da América Central. Alguns nem tinham recuperado da diferença 19 20 El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar horária e do cansaço, motivados por uma louca viagem entre Lisboa e Monterrey, com uma das mais famosas e incompreensíveis escalas do futebol mundial (e da qual falarei mais à frente). Depois de aterrarmos na capital mexicana, seguimos para Saltillo de autocarro. As cidades estavam apenas separadas por cem quilómetros, mas demorámos uma eternidade para percorrer um trajeto tão curto. Olhávamos pela janela e parecia que entráramos num western. Cenário seco, salpicado por catos, com terra batida a perder de vista. Na verdade, Saltillo faz paredes-meias com o Texas americano e exibe todas as influências dessa proximidade. A maioria dos habitantes, naquela época, vivia da criação de gado nos inúmeros ranchos espalhados pela cidade. Em vez dos carros e elétricos, que estávamos habituados a ver nas ruas de Lisboa e Porto, os engarrafamentos só poderiam ser provocados por vaqueiros em cima dos seus cavalos ou por excesso de carroças. Também havia carros, claro, mas em menor número. Pelo menos foi essa a nossa primeira impressão. Mais tarde concluímos que Saltillo tinha muitos automóveis e alguns deles eram bem mais confortáveis do que aqueles que conduzíamos em Portugal. Equipados com amortecedores bastante resistentes. Pudemos comprová-lo enquanto brincávamos com as nossas amigas mexicanas. As primeiras impressões, porém, não apontavam neste sentido. Tudo aquilo que acontecia à nossa volta era digno de um filme de ação. O dispositivo de segurança destacado para acompanhar a seleção nacional dava ideia de que, em vez de uma equipa de futebol, estava ali o líder político de uma grande potência mundial. Como o presidente dos EUA ou da China. El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar O meu amigo Vítor Serpa, jornalista e diretor do jornal A Bola, também estava por lá e, anos mais tarde, relembrou toda a situação no livro História de 50 Anos do Desporto Português. «O hotel da seleção, nos primeiros dias, parecia uma fortaleza, vigiada por guardas intratáveis. Tinha os portões fechados e toda a zona estava encerrada entre muros altos. Nas imediações, dezenas de soldados com armas automáticas olhando para todos os lados como se estivesse para acontecer um assalto.» David Borges, outro jornalista meu amigo que assistiu a todas estas aventuras connosco, dava, igualmente, conta do sucedido numa das edições do jornal Record, que relatava o espetáculo montado à nossa chegada. Até o falecido José Torres, então nosso selecionador, brincou com o excessivo aparato que protegia a seleção. «O autocarro colocado às ordens da seleção, de linhas antigas, prateado e aparentemente blindado, chegou procedido de carros de polícia, com outros colocando-se atrás, num espetáculo quase à americana […], com polícias armados correndo atrás do autocarro, colocando-se costas com costas à sua saída, ou subindo para o tejadilho, tudo isto obrigando José Torres, entre o espantado e o divertido, a dizer qualquer coisa como… “Parecemos os reis do petróleo.”» Não há qualquer exagero nestes relatos, não pensem! Se a ideia era deixar-nos tranquilos com aquela proteção, todas as armas à nossa volta provocavam o efeito contrá- 21 22 El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar rio. Assustavam. E não era para menos. O cerco estendia-se ao Hotel La Torre: o espaço onde ficámos hospedados e que ficaria para sempre imortalizado como a Fortaleza. Nenhum elemento da comitiva poderia sair sozinho do hotel. Só podíamos circular em grupo e com a necessária autorização dos agentes policiais e do exército, para que tivessem tempo de pôr em prática todas as medidas de segurança antes de colocarmos um pé fora da Fortaleza. No resto do tempo parecíamos prisioneiros. Este ainda era o cenário existente quando vimos os cobóis espancarem os polícias em plena luz do dia e perante o êxtase da população local. E nenhum dos elementos da segurança que estava com a seleção interveio em favor dos homens fardados. Limitaram-se a assistir, mantendo um ar imperturbável, como se aquilo que estava ali a passar-se fosse uma situação corriqueira. Éramos os únicos a achar aquilo uma coisa de doidos. Alguns mexicanos, quando perceberam o nosso espanto, apressaram-se em explicar que aquelas sessões de tareia já eram uma espécie de tradição de Saltillo. Quase como uma performance encenada, embora os murros e os pontapés nada tivessem de brincadeira. Era violência em estado puro. O confronto marcou o nosso primeiro fim de semana, em Saltillo, nos instantes que antecederam a realização de um rodeo para o qual a comitiva portuguesa foi a convidada de honra. Os rodeos, segundo nos disseram, eram a grande animação da cidade aos sábados e domingos. Talvez fosse assim para os mexicanos. Nós, por outro lado, não demorámos muito tempo a perceber que aquele local, aquecido por temperaturas de 40 graus, tinha outros El Portugués – Parte II | Paulo Futre | Luís Aguilar encantos. E ficámos à vontade para poder descobrir todas as maravilhas de Saltillo. Os tais «guardas intratáveis» e «os soldados com armas automáticas» desaparecerem tão depressa quanto chegaram. Aquela grande escolta verificada nos primeiros dias, afinal, servira apenas para a fotografia. Uma operação de aparências. Onde antes havia excesso, passou a haver vazio. Já não desfilavam armas, carros blindados e outro material de guerra. Ficámos sós com as «relíquias» da cidade. As lindas mulheres locais. No restante tempo que passámos em Saltillo, nunca mais ouvimos falar de lutas entre cobóis e polícias. Mas a presença da seleção nacional no Mundial do México foi um verdadeiro faroeste. Só que, desta vez, os cobóis éramos nós. 23