FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006
O século XIX está entre nós:
hipóteses sobre a associação entre ciências
aplicadas e as humanidades.
por Fernando Amed
RESUMO
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Essa reflexão pretende examinar as tensões entre
um pensamento que se configura a partir das
descobertas tecnológicas e outro, mais afeito ao
percurso do conceito, ou seja, às humanidades.
Pretendemos evidenciar as dificuldades de se
acreditar que vivemos no melhor dos mundos por
conta das evidências propiciadas pelas invenções
e aprimoramentos tecnológicos.
PALAVRAS-CHAVE
Humanidades, ciências aplicadas, narrativa
histórica, mito.
ABSTRACT
This reflection intends to exanimate the
tensions between a thought supported by
technological inventions and the typical
procedures of the humanities. We also
desire to demark some difficulties to accept
that we live in the better world because we
have guaranties offered by inventions and
technological devices.
KEYWORDS
Humanities, applies
narrative, myth.
sciences,
historical
As sociedades contemporâneas são pautadas pela tecnologia. Mas que novidade
há nessa afirmação? Num mundo que valoriza a inventividade, as inovações nesse
campo operam um verdadeiro espetáculo que tem sua manifestação na verdadeira
avidez com que se aguardam os novos lançamentos da indústria automobilística, da
informática e, num outro registro, mais tenso, da medicina. Países mais periféricos,
como é o nosso caso, se unem a essas expectativas não sem agregar uma certa dose
de provincianismo e bovarismo. Lembremos que Ema Bovary, a célebre personagem
criada por Gustave Flaubert, não se satisfazia com sua realidade e, bastante
conduzida por sua subjetividade desimpedida, almejava mais e exatamente o que
não possuía. Bovary poderia então ser caracterizada por ser aquilo que ambicionava
de um ponto de vista ideal. Bovarismo ou provincianismo são aspectos há muito
observados quando se pensa na aspiração por parecermos com aquilo que se mostre
mais avançado, situação aspirada pela expressão inglesa, up-to-date.
Nessa reflexão, nosso objetivo não é exatamente questionar a importância
da tecnologia nem sequer checar a pertinência de algumas descobertas. O que
nos interessa aqui é propor um exame da equiparação desses dois campos, um
notadamente afeito à técnica, outro às práticas ou hábitos de comportamento, o que
vem sendo tratado pelo hoje vago nome de cultura. Salientamos a dificuldade de vir
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a definir esse conceito, ao menos o suficiente para que venha
a produzir o contraste necessário para o tratamento reflexivo.
E, correndo o risco de nos rendermos às necessidades mais
pragmáticas – e que os peirceanos me permitam servir-se
desse termo, aqui mas próximo da ambiência do Príncipe, de
Maquiavel – circunscritas pelos impulsos de elaboração de
um artigo, apontamos que somos atraídos à crítica a um juízo
que se estabelece e que pensa ser possível se deparar com um
critério que dá conta da percepção de avanços culturais.
Grosso modo, nos indispomos frente ao entendimento
de que haja desenvolvimento cultural pautado em índices
evidentes de averiguação. Ou seja, questionamos a evidência
do pensamento que aspira ver simetria entre soluções
tecnológicas e alterações de comportamento, atitudes ou
hábitos sócio-culturais, notadamente quando se entende que
as inovações venham ou devessem ocorrer numa escala que vai
do pior para o melhor.
E esse equívoco pode ser observado através de alguns
indícios. Um deles se situa bem próximo ao sucesso espetacular
das ciências aplicadas. Parte palpável e concreta da atuação
do homem histórico, os resultados do domínio técnico
costumeiramente “enchem os olhos”. Ou seja, a sobrevivência
humana, ao menos desde o domínio da agricultura, se
caracteriza pelo engenho metódico e calculado. Em alguns
espaços ainda se utiliza a expressão “benefício”, definida pelas
“bem-feitorias” realizadas numa região antes dominada pela
natureza. Entenda-se, construção de açudes, de moinhos, de
área cultivável – a “roça” – de edifícios de alvenaria, etc. Essas
obras evidentemente, terminavam por desconfigurar o que
antes existia e operavam a transformação rumo àquilo que
propiciava a melhoria das condições humanas de sobrevivência.
Diga-se que em tempos mais remotos, essas construções,
mesmo que relacionadas às necessidades palpáveis do homem,
eram intermediadas, quando não diretamente remetidas, à
religião. E para tanto pensamos nas obras hidráulicas, nos
templos e nas pirâmides que grassavam na antiguidade
européia e americana.
Esse fator deve ter contribuído para que a inventividade
do homem não prosseguisse livremente, uma vez que
a abordagem embasada na fé em Algo superior devia
constranger o ser, lembrando-o de sua inferioridade. Nessa
direção, tais expressões do domínio técnico poderiam ser
saudadas como agradecimento pela dádiva da vida ou um dos
resultados mais expressivos do temor frente ao desconhecido.
Diga-se que nesses tempos, a técnica não possuía autonomia
e se encontrava atada à interpretação – sempre relativa – dos
desígnios das ordens místicas e alegóricas. Períodos onde
ocorriam guerras, violências sociais, notava-se a existência de
privilégios especialmente relacionados às castas dirigentes ou
religiosas, onde pestes proliferavam, etc. Enfim, tudo o que
ainda hoje continua a ocorrer, evidentemente. Mas, e essa
uma diferença que pretendemos demarcar, não se apostava
no poder inventivo do homem como meio de se alcançar
sua redenção frente aos infortúnios que caracterizam sua
vida. Obras técnicas e artísticas – guardadas suas distâncias
– salientavam a fragilidade humana frente ao mistério da
existência do corpo e da alma. Não era exatamente essa
tensão que vinha sendo refletida nos mitos de Gilgamesh
ou Prometeu? E se hoje nos rendemos à tecnologia e
saudamos seus últimos sucessos por tempo suficiente até
que apareça o próximo, o fazemos noutra ambiência. Assim,
vivemos a expectativa da solução de nossas angústias, da
diminuição de nossos temores, enfim, migramos a técnica
à metafísica e acreditamos que, inclusive, nossas atitudes ou
comportamentos possam favorecer semelhantes diagnósticos.
O engenho e a habilidade dos primeiros heróis trágicos
foram suficientes para que conseguissem alcançar o lugar
dos deuses? Lembremos que Gilgamesh descobriu a morte
como a única rival que lhe provocava medo.
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Os efeitos produzidos por
expressões como “somos homens
do novo milênio” ou “sociedade do
futuro”, parecem minimamente se
valer da crença numa visão histórica
evidente e certeira que se abastece dos
fatos passados – acabados e concluídos,
como no positivismo de Augusto
Comte – como propiciadores de uma
lógica narrativa. Assim, opera-se com
a história como se ela fosse uma cuba,
pronta a continuar a ser abastecida
e robustecida com dados que vão
do menos para os mais complexos.
E ainda se pensa que estamos no
“melhor dos mundos”, onde a crítica,
quando se entende que é operável, age
no sentido de solapar o que se percebe
como antigo ou tradicional, diga-se, de
um certo traço da tradição.
O contato com o passado, incerto e
duvidoso, costuma nos apresentar um
nível alarmante de aleatoriedade. De
fato, tantas forças e fatores interagem
numa determinada época – que nos
acostumamos a distinguir por anos,
séculos ou milênios, enfim a cronologia
– que, no mínimo é incauto aquele
que suspeita ter elaborado um juízo
preciso. Por sua vez, uma sociedade
que se pauta pela ênfase no poder
do engenho humano, na perspectiva
da previsão propiciada pelo cálculo,
pensa poder limitar esses fatores
mais aleatórios. O bom senso nos
sinaliza que o pensamento estratégico
pode operar na direção de uma certa
restrição dos efeitos da Fortuna. Mas
mesmo o príncipe de Maquiavel
atinha-se à sua insignificância perante
a auto-consciência de sua mortalidade.
O que hoje pressentimos é uma fé
desvairada na perspectiva de se liberar
desse dado inexorável.
Foi o século XIX que primeiramente
apresentou saldos espetaculares da
técnica consubstanciados nas invenções
que fizeram a festa para os sentidos e
percepções do homem de então. Como
imaginar que fosse diferente, num
contexto onde as pessoas passaram a ser
transportadas em massa – o transporte
do corpo humano é um problema ainda
não resolvido; veja-se o que acontece
nos congestionamentos das ruas das
grandes cidades ou nos aeroportos –,
vieram a se comunicar com parentes que
viviam em locais distantes por conta da
telefonia, enfim, deixaram de ter dores
com novo sedativos que inclusive, pela
possibilidade de serem portados pelas
pessoas, retiravam um pouco da aura do
médico e a transferiam paras as pessoas,
libertando aquele curandeiro atávico
que existe em muitos de nós.1 E da
forma que essas descobertas mexeram
com as sensações humanas, foram se
apresentando como verdades e foram
valoradas positivamente, na medida em
que trouxeram benefícios captados pela
sensibilidade.
Esquece-se de pensar, mesmo que
Freud tenha salientado esse aspecto
anos mais tarde em seu Mal-estar
na civilização, que essas invenções se
inseriam num contexto específico
onde se procuravam soluções frente
aos problemas que a humanidade tinha
criado.2 Ou seja, na Idade Média, ou
nas tribos indígenas americanas não
houve a necessidade do transporte de
massa, pois todos viviam por perto. De
forma semelhante, não precisavam de
um instrumento para a comunicação
para grandes distâncias. E, muito
provavelmente, se adoecessem, deviam
esperar, se fosse o caso, que melhorassem,
pois não tinham a urgência – também
uma concepção moderna – de se
dirigirem para um local de trabalho,
ou de possuírem um tipo de eficiência
consubstanciada pela própria saúde.
Invariavelmente, contudo, todas essas
sociedades buscavam se valer de seus
aprimoramentos técnicos para melhor
sobreviverem num meio agressivo. Mas,
por conta da consciência da mortalidade,
a ambição por prorrogá-la não seria um
evidente estímulo para a inventividade?
Mas, se é assim, o que nos autoriza a
procurar uma espécie de transcendência
nessas investidas? Ela se situa num
momento anterior, e o horror frente ao
fim pode ser um importante elemento
propiciador de todo incômodo presente
nos instantes onde a habilidade humana
encontra-se desimpedida e formaliza
suas tentativas de salvação, o que pode
ser bem configurado nas invenções.
Qualquer orientação que busca a
realização da narrativa dos grandes
inventos, quando abandona esse traço
mais tenso, termina por almejar a
elaboração de um tipo de metafísica.
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Talvez por isso se pareçam tão pueris. Mas o que se esperar
de uma reflexão que pensa encontrar motivo de júbilo e de
felicidade transcendente numa lâmpada, num automóvel ou
num foguete? O contato com os produtos do passado, frutos da
experiência humana, não apontam grandes saltos ontológicos
a partir da chegada às velas romanas, ao arado atrelado aos
animais ou à utilização do petróleo como combustível. Todos
esses eventos diminuem o sofrimento, aplacam alguns
incômodos, mas invariavelmente não se apresentam como
tábuas de salvação frente à condição humana.
De fato,se invertermos os elementos dessa equação,podemos
minimamente perceber que muitas invenções e descobertas
espetaculares, o foram por minimizar os problemas criados
pela mesma sociedade que os concebeu. Enfim, uma cultura
que deve se pautar pelo controle como meio de perpetuação
de uma conjuntura, desimpediu-se e estimulou a invenção
do computador. Tomada como sofisticado instrumento de
domínio – e não de forma pós-adolescente, como espaço de
games, músicas, filmes e diversão – a informática tem tornado
mais precisas as tentativas totalizantes encontradas no século
XX, nas ações stalinistas e nazistas; as caravelas se mostraram
mais viáveis para o transporte de escravos – talvez a principal
fonte de acumulação de capital dos séculos XVI e XVII; a
internet trouxe a ampliação das possibilidades de domínio
das informações privadas, numa época onde a explosão de
um arranha céu pode ser tramada entre habitantes de três
continentes; a indústria automobilística cria cada vez mais
facilidades para que continuemos a sofrer nos engarrafamentos,
para que pioremos a qualidade do ar, para que nos acidentemos
no trânsito e isso por conta das cidades terem crescido de
uma forma aleatória e pelo fato de termos que buscar nossa
sobrevivência em lugares cada vez mais distantes; as novas
drogas anti-depressivas vêm diminuir um problema que
de forma exponencial aumentou a partir do final do século
XIX; os aparelhos portáteis de música – do radinho de pilha,
que possuía um fone de ouvido mono-auricular, conhecido
pelo nome de “egoísta” aos I pods – vêm satisfazer um desejo
obsessivo pela individualidade numa sociedade massificante
e que se fez assim, também a partir do início do século XX;3
os medicamentos aparentados ao Viagra vêm resolver um
problema – raras exceções confirmam a regra – que se criou
a partir das exigências de eficácia e competência no momento
da ação sexual. Enfim, a lista é longa. Mas só de forma pueril
podemos elogiar essas descobertas somente pelo aspecto lúdico
que apresentam. Acredito que deveríamos ser minimamente
discretos frente às novas ofertas tecnológicas. Expressões de
felicitação para com os últimos programas de computador,
juízos que distinguem as crianças – essa outra invenção
moderna – como senhoras de um domínio mais pleno da
informática, poderiam ser tratados como constrangedores.
Poderíamos ficar calados quando percebemos a mínima
possibilidade de não termos nada de muito significativo a
dizer...
Em muito se assemelham à história dos tacapes, das lanças,
das cavernas e peles de animais, quando invariavelmente
serviam para a diminuição dos efeitos do acaso que agiam
– e agem – no homem exatamente por conta da vida ser
finita. Grosso modo, as descobertas tecnológicas podem
ser vistas como índices da sintomática tensão havida entre
o fato de se perceber a vida como passageira e a ambição
trágico-heróica de sua permanência. Ou seja, as invenções
podem mensurar a nossa angústia frente às necessidades
imperiosas da sobrevivência, e no limite, nossa agonia para
com o fato de sermos definidos pela morte e não pela vida. O
que nos preocupa é o fato de, adultos, nos portarmos como
pós-lactantes frente ao mais novo lançamento da indústria
de brinquedos. Enfim, isso pode ser um dos resultados de
uma sociedade que se pauta na engenharia, na economia e na
medicina, como fornecedores de referências de ensinamento
e conhecimento. Talvez Aristóteles pudesse trazer alguma
contribuição.
O fato é que, no contexto europeu do século XIX, às
invenções e benefícios que estimulavam o corpo, apegaramse também um conjunto de justificativas, afeitas à teoria e
muito próximas daquilo que há bem pouco tempo atrás era
visto como metafísica. Assim os pensamentos conhecidos
como positivismo, as conclusões teóricas de Darwin, o agito
provocado pelo primeiro Freud – aquele relacionado à
perspectiva do tratamento da histeria –, as teorias de Cesare
Lombroso, enfim toda uma espécie de desdobramentos
científicos, floresceu nessa época numa escala que ia do
menos ao mais sofisticado.4 Essas abordagens, terminaram
por fornecer munição teórica para aqueles que se detinham no
campo das ciências aplicadas. E de uma forma muito diferente
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do que se processou na Idade Média,
parecia a muitos – e era importante
que isso acontecesse – que esses
cientistas começaram a pensar, ou
seja, constituíram a reflexão a partir da
técnica e, além disso, migraram para o
campo mais nobre do pensamento, a
metafísica, e passaram a erigir valores
– “isso é bom ou mal”, como diria
Nietzsche – através da prática e dos
resultados espetaculares, que do ponto
de vista sensível, iam obtendo. Como
apontar que estivessem errados àqueles
que se propunham a aumentar o
conforto humano, que melhoravam a
expectativa de vida ou que construíam
obras de engenharia que facilitavam o
percurso dos seres humanos?
Guardando distância para com
as
manifestações
materialistas
– relacionadas ao corpo ou às sensações
– havia igualmente aqueles que se
estranhavam com tamanhas alterações.
Esses vinham de outras tradições, mais
afeitas à transcendência,à recuperação de
um traço que dispunha o homem como
fadado ao fracasso. Outros se apegavam
a uma vivência mais disciplinada, como
meio de diminuição dos efeitos do acaso,
ou seja, evitavam a alteração de práticas
ou ritos cotidianos, buscavam conviver
de uma forma menos problemática
com alguns elementos de cultura que
primavam pela permanência. Alguns
mais outros menos, compartilhavam
uma distância quanto aos atributos
humanos, especialmente duvidavam
das possibilidades do homem vir a
resolver todos os problemas afeitos à sua
existência. Numa palavra, enfrentavam a
idéia da morte através de uma chegada
abnegada e no mínimo, possuíam
suportes – fornecidos mais do que
atualmente pela cultura de então
– para aceitação da sua inexorabilidade.
Era por demais natural que se
sentissem acuados pelos espetáculos da
modernidade, especialmente quando
o que se propunha era uma aposta na
transformação, na revolução, sem que
com isso se oferecesse algum tipo de
garantia. Nessa ambiência, o conceito
de risco ainda não tinha se agregado,
como hoje, sintomaticamente, à idéia
ensandecida de que seja algo em que se
vale a pena o investimento.5
Enfim, valendo-se da pirotecnia
provocada pelas descobertas e invenções
e investindo no homem, muito mais pelo
que apresentava de problemas e sedições,
essa época fez apegar à concepção de
técnica e futuramente de tecnologia, a
imagem de que esse era o lado certo
e para onde, compulsoriamente a
humanidade deveria se dirigir. De
tal forma que, através desse discurso
político, eivado por interesses, constituiuse a noção de atraso e progresso, de
tradição e ruptura. Veja-se que em nada
pode ser constatada uma concepção que
se traduza em evidência. Quem diz que
se algo é bom para o corpo é bom para
a sociedade? Quem pode julgar se os
benefícios que introduzem conforto
ao homem, são também viabilizadores
de alguma espécie de transcendência?
Como podemos constituir valores acerca
da matéria? Um bom carro ou uma boa
ferramenta são aqueles que melhor
correspondem ao que foi desejado que
pudessem permitir fazer. E esse critério
pode dizer respeito ao homem?
E se fizemos essa retomada ligeira,
foi para que se pudesse perceber alguns
aspectos de modo a poder se aproximar
da contemporaneidade, digamos, de
uma maneira menos espalhafatosa. As
tensões entre ciência e religião (entendida
como um campo teórico que apresenta
possibilidades de tratamento da
transcendência) não é novidade. Ela, no
mínimo,e para somente permanecermos
na tradição judaico-cristã, vem desde
as tensões medievais havidas entre
Giordano Bruno, Galileu Galilei ou
Nicolau Copérnico e a Igreja. Do ponto
de vista teórico, diga-se, já era percebida
e aprofundada por Santo Agostinho.
Se hoje estamos às voltas com as
possibilidades da manipulação genética
e da perspectiva da realização de um
projeto eugênico6 destituído das tensões
e dos ruídos daquele posto em prática
na década de 40 do século passado, na
Alemanha de outrora, tivemos outras
perspectivas oferecidas pela ciência e
que também provocaram tensões para
com aqueles que tem por hábito duvidar
da capacidade humana de produzir
felicidade e transcendência a partir
da matéria. Os estudos darwinistas, a
imagem do homem criando outros
homens, como no Frankenstein de
Mary Shelley e os questionamentos
da teologia para com esses casos já
vêm de longa data. No nosso modo
de entender essa oposição – ciência e
religião – perpassa a nossa história – ao
menos a ocidental – mais ou menos
desde o Renascimento, naquela feita,
traduzida na luta entre fé e razão, entre
corpo e espírito ou entre teocentrismo e
antropocentrismo. 7
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E, finalmente, exemplos históricos, trabalhados de uma
maneira mais cautelosa também permitem que dissociemos
avanços tecnológicos das alterações sócio-culturais. Ou
seja, é bem provável que consigamos mensurar as melhorias
técnicas que se processaram, por exemplo na aviação. Nesse
caso, quando construímos a frase “do 14 Bis ao Boeing” não
cometemos nenhum erro aparente. E, se nos servirmos do
critério, tão cabível nesse caso, do custo-benefício, entendemos
que as melhorias são muitas: mais pessoas viajam, num tempo
mais curto e com mais segurança. É possível que constituamos
algum critério que dê conta de apontar que, de fato, do ponto
de vista sócio-cultural, vivemos melhor na atualidade do que
os patrícios de Roma antiga? Ou dos atenienses da época
de Péricles? E quanto aos nobres da época de Luís XIV? E
se o leitor mais apressado julgar que somente me pautei, de
modo arbitrário e preconceituoso pelas “classes dominantes”
– conceito igualmente vago, datado e prenhe de uma concepção
mítico-narrativa de épocas passadas –, lhe direi que hoje, ao
falarmos das sociedades culturalmente “mais avançadas”, o
fazemos mencionando os suecos, os canadenses, os finlandeses,
os dinamarqueses, os americanos, etc. Diga-se que as soluções
sociais encontradas em sociedades do chamado terceiro
mundo, somente podem figurar como conteúdos da hoje tão
divulgada História Cultural. Ou seja, quem de nós, tomados
a partir do empirismo, gostaria de viver ou criar seus filhos na
Zâmbia? Mas enquanto fornecedora de assuntos e reflexões,
abrigados pelo ar-condicionado de nossas salas de aula, essas
informações ainda produzem algum efeito.
Enfim, em escala talvez maior, ao buscar de forma obsessiva
e sintomática a felicidade corpórea e a satisfação de nossas
sensações, talvez tenhamos produzido um número maior de
desastres do ponto de vista sócio-cultural. Nesse sentido, é
interessante que se invista no homem naquilo que ele apresenta
como ideal? Ou seria o caso de se voltar para o estudo e
aprofundamento de seus erros? Com que critério poderemos
julgar que de fato houve um avanço entre as formas de
convívio entre homem e mulher na Idade Média, digamos, e
na atualidade? A comparação, rigorosamente, é indevida uma
vez que na medievalidade não era sequer concebida a noção de
subjetividade humana – ao menos nos moldes do que veio a
ocorrer a partir do Renascimento –, quanto mais de se pensar
naquilo que pudesse fazer com que o homem se tornasse mais
feliz8 - o que hoje proliferou na indústria do entretenimento,
que tem muito a ver com distração, ou seja, algo que nos
afaste do sentimento de nossa agonia frente à morte. E o
que as transformações sócio-culturais - tão potencializadas na
atualidade - têm a dizer sobre esses aspectos mais escatológicos
e inclusive mais definidores de conceito de vida (a morte limita
e distingue a vida, de uma maneira absolutamente clara e
vidente)? Somos mais felizes na medida em que somos mais
condescendentes conosco? Essas questões, tão contemporâneas,
têm de fato, sentido lógico? Ou somente fizeram migrar para a
filosofia os aspectos obtidos e estimulados pela distração e pelo
entretenimento que acima nos referimos?
É bem provável que, no entrecruzamento da transcendência
mística tipicamente alegórica e fantasiosa da Idade Média para
as tentativas,ao nível da sofística – o homem é a medida de todas
as coisas – tão apropriadas à modernidade pós-renascentista,
possamos perceber que, de fato, não são notadamente os
discursos universalizantes que necessariamente apresentem
problemas. O homem é quem se introduz como grande
aporia: tem dificuldades de se ver como constrangido por
um corpus filosófico que o achata e deprime em seu exercício
da humanidade e se vê como contradição num mundo onde
os valores, ao se pautarem pelo humanismo desenfreado,
variam numa grade que vai do bem estar ao extermínio de
seus semelhantes como ponto de partida provável para que se
alcance a felicidade terrena.
Nesse sentido, coerentemente, deveríamos buscar todo tipo
de apoio na memória como meio de dar espessura à concepção
de vida, uma vez que a história é bem maior do que os poucos
anos que vivemos. Por motivos óbvios e sintomáticos, se
a história encontra espaço em mídia, o faz pelas suas
características exóticas, como a demonstrar exemplos que
venham a atestar os nossos avanços contemporâneos ou os
acertos do passado que, sem se darem conta, estavam na
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origem daquilo que se percebe como
bom ou mal para o presente. Temos
uma dificuldade heróica em nos
deparamos com a experiência histórica
como indicadora de que a humanidade é
fadada ao erro. E não por acaso, vivemos
num período em que quem ocupa
espaços de poder, pensa estar fazendo
o correto e quem o almeja, opera na
perspectiva da reorientação salvadora.
Temos uma hipótese que circula
essa proximidade entre os sucessos
espetaculares das ciências aplicadas
e o drama da existência humana.
Acreditamos que se trata de uma
possibilidade, tomada como crível, de
se constituir uma narrativa sobre um
período e, a partir daí, constituir uma
relação de empatia e de identidade.
Ou seja, os acontecimentos – alguns
em especial – tornam-se permeáveis à
leitura, produzem sentido lógico, bem
concatenado e, adiante-se, variando para
todos os gostos.Como nos acostumamos
à bipolaridade enxergando nela um
meio de apreensão de realidades – bom
e mal, preto e branco, certo e errado,
esquerda e direita – cremos ter também
estabelecido uma abordagem razoável.
Quem de nós, aqueles mais próximos
das humanidades, ainda jovens, não se
permitiu emocionar pela narrativa coesa
pautada na falta de sincronia entre a
infra e superestrutura? Quantos de nós,
já mais velhos, não nos enveredamos
pela aceitação dos benefícios do wellfare
state sem crises de consciência – afinal,
para que serve mesmo a consciência?
De um modo ou de outro, nota-se
de maneira preliminar que ambas
as entradas que caracterizam esta
oposição se valem das certezas em
detrimento das dúvidas. Elas existiram
é certo, mas acostumamo-nos a operar
com as soluções e, nesse sentido, no
máximo, situamos as incertezas
num espaço coeso, destinado a servir
como degrau rumo ao sucesso. Mais
uma vez, se nosso compromisso é
com a concretude dos resultados
técnico-aplicáveis, o resultado é o
que conta. Mas, se operamos com os
sutis elementos das humanidades, a
reciprocidade não existe.
Parto então de minha experiência
como historiador. Meus meios,
digamos, são as fontes históricas.
Mas elas não se apresentam com
objetividade e não transferem
automaticamente a perspectiva da
leitura, da penetração no território
do passado. São indícios que variam
quanto à possibilidade, bem como
quanto às formas de se darem ao
entendimento. Uma carta, um
documento oficial, uma notícia
de jornal ou um manifesto de um
partido político ou movimento
artístico, em suas épocas, estão
sujeitos a toda uma gama de
interesses que interagem entre si.
Muito dificilmente irão permitir ou
possibilitar a condução segura de
um encadeamento. Especialmente
quando este se pautar pela busca da
interpretação com início, meio e fim
bem concatenados.
E diga-se, essa dúvida recai sobre
todo aquele que minimamente
suspeita das possibilidades de, de fato,
ter realizado a apreensão cognitiva dos
elementos produzidos pelo homem
no passado. Quando não, talvez
possamos nos deparar com os indícios
que apresentem justificativas para o
fato de muitos “cientistas sociais” se
aproximarem de uma das vertentes
das “humanidades aplicadas”, ou seja,
a política. Enfim, como negar que os
políticos somente se apóiam nas certezas
como meio, inclusive, para lastrear – no
campo das aparências – suas práticas
bem concretas? É bastante nítido que
um político – entendido aqui como
profissional, ou seja qualificado, não
no sentido aristotélico, mas sim como
alguém que obtém sustento a partir
de sua ligação a um sindicato, partido
ou órgãos legislativos – que faz uso do
repertório das humanidades, somente
se pauta pela possibilidade inequívoca
da realidade histórica poder vir a se
compor por meio de uma estrutura lógica,
acatando causa e efeitos.
Diga-se que esse uso da história
não é invenção ou atributo moderno.
A narrativa histórica, mesmo
que num campo mais alegórico,
possibilitava também o proseletismo
religioso. Ou seja, os mitos, lendas
ou histórias de um povo também
produziam sentido para uma prática
religiosa. Nesse caso, no entanto, pesa
a favor da incerteza o fato de tais
reflexões tomarem como premissa
a própria inviabilidade humana de
conceber sua redenção frente ao
assédio da condição natural de sua
existência. Modernamente contudo,
já introduzidos na espetacularização
da fé em si mesmo, as certezas, mais
ou menos brilhantemente suportadas
pelo repertório das humanidades,
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foram potencializadas. Mas como poderia ser diferente?
Como produtos, quem acolheria um discurso apologético
ao fracasso? E não serão esses os motivos que conferem
verossimilhança a esse acordo tácito entre cavalheiros? Não
serão essas as razões que nos possibilitam uma aparente,
mas às vezes hipócrita crença no progresso da humanidade,
comparável aos modelos das ciências aplicadas? Nessa
contenda, os participantes não conseguem se distinguir
uns dos outros, o que talvez possa tangenciar o momento
atual em que vivemos. Ao que parece, para aqueles que
procuram algo de novo, o mais indicado é se voltar para
o aprofundamento dos eventos e indícios mais apegados
ao passado mais remoto. Em humanidades, talvez valha o
oposto daquilo que as ciências aplicadas dispõem: o melhor
parece estar no passado.
NOTAS
O aprofundamento nesses aspectos pode ser realizado de forma bastante
profícua a partir de dois textos. A obra de Peter Gay, O século de Schnitzler:
1
a formação da cultura da classe média 1815-1914, São Paulo, Companhia
das Letras, 2002, é um desses casos. O historiador partiu das anotações do
diário do escritor austríaco Schnitzler – mais conhecido atualmente por conta
de ter sido o autor da história levada aos cinemas por Stanley Kubrick, em
seu De Olhos Bem Fechados – para se remeter à ambiência sócio-cultural
da virada do século XIX para o XX. O outro texto é a introdução realizada por
Nicolau Sevcenko ao Volume 3, da História da Vida Privada no Brasil, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. Sevcenko, como é de seu costume, passa em
revista com rara acuidade, toda uma série de espetaculares transformações
operadas a partir da Revolução Técnico-científica dos finais do século XIX.
Salientamos que a bibliografia concernente a esse tema é extensa e aqui
somente sugerimos algumas abordagens.
No texto citado, Freud apontava que: “Se não houvesse ferrovias para abolir
as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua terra natal e eu não precisaria
de telefone para ouvir a sua voz; se as viagens transoceânicas não tivessem
sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu não
precisaria de um telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito. Em que
consiste a vantagem de reduzir a mortalidade infantil, se é precisamente essa
redução que nos impõe a maior coerção na geração de filhos, de tal maneira
que, considerando tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores
ao reino da higiene, ao passo que, ao mesmo tempo, criamos condições
difíceis para a nossa vida sexual no casamento e provavelmente trabalhamos
contra os efeitos benéficos da seleção natural? Enfim, de que vale uma vida
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longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias e tão cheia de desgraças que
só a morte é por nós recebida como uma libertação?”. Mal-estar na Civilização,
São Paulo, Coleção Os pensadores, Abril Cultural, 1978, p. 150.
Nesse sentido, note-se ainda o acréscimo da ênfase romântica de que os
traços subjetivos concorrem para que sejamos diferentes uns dos outros.
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A obra O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1870 – 1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1995 de Lilia Moritz
Schwarcz, apresenta importantes contribuições nessa direção. A autora buscou
matizar os pensamentos que atuavam mais ou menos diretamente sobre os
agentes responsáveis pela organização de algumas instituições científicas
no Brasil no âmbito dos anos selecionados. Cesare Lombroso, por exemplo,
acredita ser possível se deparar com elementos concretos que, a partir da
análise dos crâneos, pudessem justificar a atuação de um criminoso. Diga-se
que os estudos nessa direção se aprofundaram, especialmente pela atuação
de Nina Rodrigues, professor doutor da Faculdade de Medicina da Bahia no
período em questão.
Uma obra que oferece elementos que contribuem para essa discussão
é Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia, São Paulo, Editora Nobel,
1994, de Neil Postman. O autor foi feliz ao apontar tensões provocadas pela
modernização compulsória ocorrida, de forma geral, em várias nações dos
meados do século XIX.
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A eugenia já vem abordada na República de Platão, isto é, no século V a.C.
Trata-se de uma referência que atravessou o idealismo e que ainda parece ter
fôlego para se apresentar como uma proposta viável à humanidade.
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O artigo de Luiz Felipe Ponde, “Cultura Genética: Vertigem Ontológica e
Dissolução do Conceito de Natureza”. Revista São Paulo em Perspectiva
Fundação Seade Puc SP, São Paulo, v. 14, n. 13, p. 68-77, 2001, oferece
significativas contribuições nessa direção.
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Chamo a atenção para a possibilidade de se operar com a história da
felicidade. E como ganhos possíveis aos leitores, penso na possibilidade de,
através do tratamento histórico, percebermos que esse termo não se traduz
numa evidência inconteste. E o fato de modernamente ser tão estimado,
ansiado e valorizado, diz mais respeito aos sintomas de uma sociedade
que a busca por conta de cotidianamente ser marcada pela angústia e pelo
sofrimento. Ou seja, ao mirarmos a felicidade, vamos nos deparar, sem
trocadilho, com a tristeza, talvez a parte mais constitutiva do homem que a
primeira, ao menos depois dos 4 ou 5 anos de idade.
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FERNANDO AMED
Historiador, Doutor pela FFLCH da USP.
Professor de Filosofia da Faculdade de
Comunicação da FAAP
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O século XIX está entre nós: