PROVA ESCRITA DE DIREITO CIVIL E COMERCIAL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL (artigo 16.º, n.º 2, alínea a), da Lei 2/2008, de 14/1) Via académica 2.ª Chamada – 17 de abril de 2014 Grelha de Correção Nota: As indicações constantes da grelha refletem as que se afiguram ser as soluções mais corretas para cada uma das questões formuladas. Porém, não deixarão de ser valorizadas outras opções, desde que plausíveis e alicerçadas em fundamentos consistentes. CASO I - 8 valores 1.ª – Aprecie a responsabilidade da “Transportes Tejo, S.A.” e da “Companhia de Seguros Segurança, S.A.”, analisando também a prescrição deduzida pelas Rés. 4,5 valores Soluções plausíveis Solução A a) Antes de apreciar a exceção da prescrição, cumpre indagar se estamos perante um caso de responsabilidade contratual ou de responsabilidade extracontratual ou aquiliana. Os factos sugerem estar em causa uma relação contratual atinente ao transporte de passageiros, quer do prisma da declaração tácita, definindo-a a lei como aquela que se “deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” ou mesmo da declaração expressa – “feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade” – cf. artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil. A obrigação nuclear e caracterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório final ou primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário, ou a chegada do passageiro (e suas bagagens) incólume ao destino. Este contrato não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, nele se incluindo o período que decorre desde o momento que o transportador recebe as pessoas ou coisas a transportar até que são entregues no local acordado. Assim, assumem especial relevo os acidentes sofridos à entrada para o veículo de transporte ou nos cais e gares. Conclui-se, pois, que estamos perante um caso de responsabilidade contratual. Importará ainda indagar se a “Transportes Tejo, S.A.” cumpriu os deveres de transporte que lhe competia, designadamente o dever de zelar pela segurança e proteção dos transportados. b) Segundo o disposto no artigo 309.º do Código Civil, “O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos”. Nos termos do artigo 320.º, n.º 1, do Código Civil, “A prescrição não corre contra menores, enquanto não tiverem quem os represente ou administre os seus bens, salvo se respeitar a actos para os quais o menor tenha capacidade; e, ainda que o menor tenha representante legal ou quem o administre os seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade”. Preceitua o artigo 498º, nº 1, do Código Civil que “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (...)”. Este prazo de três anos reporta-se à responsabilidade aquiliana. Como vimos, a responsabilidade em causa é contratual. Assim, é aplicável o prazo ordinário da prescrição, ou seja, de vinte anos. Afonso Guerra intentou a presente ação mais de um ano após ter atingido a maioridade. O acidente ocorreu em 1996 e a ação foi intentada em 2010. Nesta data ainda não decorrera o referido prazo de vinte anos. Em princípio, a prescrição interrompeu-se cinco dias após a data da propositura da ação, nos termos do artigo 323.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Assim, não colhe a argumentação da “Transportes Tejo, S.A.” e da “Companhia de Seguros Segurança, S.A.” no sentido da prescrição da obrigação de indemnizar. c) No domínio da responsabilidade contratual (cf. artigo 798.º do Código Civil), a ilicitude de um facto danoso resulta da desconformidade entre o comportamento devido (a prestação debitória) e o comportamento observado. No caso, apurou-se que, devido à forte ondulação que então se registava, o barco, apesar de amarrado ao cais, ora se encostava ao pontão do cais, ora dele se desencostava. A “Transportes Tejo, S.A.” sabia que, sobretudo em horas de grande afluxo de pessoas, estas utilizam a passadeira movediça destinada ao acesso de veículos automóveis para veículos, a qual, como é óbvio, não tem as mesmas condições que a passadeira reservada à entrada de peões. Ora, das duas uma: - ou impedia as pessoas de por aí passarem; - ou zelava e atuava no sentido de a passagem dos peões ser feita por uma passadeira que se mostrasse suficiente e possibilitasse a entrada das pessoas no barco em tempo útil. Não foram manifestamente observados os deveres de cuidado, proteção e segurança que lhe incumbia. No que concerne à culpa pelo incumprimento destes deveres, ela presume-se, nos termos do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, não resultando da matéria descrita qualquer facto que nos permita ilidir essa presunção. As lesões físicas de Afonso Guerra não se teriam verificado se não fosse a atuação/omissão da “Transportes Tejo, S.A.”, pelo que entre elas intercede o nexo de causalidade adequada previsto no artigo 563.º do Código Civil. É de concluir pela responsabilidade contratual da “Transportes Tejo, S.A.”, d) Por contrato de seguro celebrado com a “Companhia de Seguros Segurança, S.A.”, a “Transportes Tejo, S.A.” transferiu a sua responsabilidade pelo pagamento das indemnizações imputáveis à segurada por danos corporais e/ou materiais causados aos passageiros transportados em embarcações daquela, até ao limite de 50 000 euros por vítima. A responsabilidade da seguradora funda-se na existência de um contrato de seguro e na ocorrência de um sinistro. Assim, a seguradora é solidariamente responsável com a “Transportes Tejo, S.A.”, até ao montante de 50 000 euros, nos termos dos artigos 100.º e 425.º e ss. do Código Comercial (este último artigo foi, entretanto, revogado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.04). Solução B a) Não se pode inferir do facto de Afonso Guerra estar, no momento do sinistro, a entrar no barco da “Transportes Tejo, S.A.” que efetuava o transporte de passageiros entre Almada e Lisboa, a existência de um contrato de transporte. Na verdade, este pressupõe a existência de outros elementos, maxime um título válido, o qual, conjugado com outros elementos, permitisse concluir pela obrigação assumida pela “Transportes Tejo, S.A.” de efetuar o transporte de Afonso Guerra. Aqui, neste particular, apenas podemos afirmar que Afonso Guerra se preparava para entrar no barco pela mão de sua avó e que tal barco era o que realizava o transporte de passageiros na travessia Almada-Lisboa, nada mais. Nada foi alegado no sentido de ter sido celebrado um contrato de transporte, pelo que estamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana. b) Dispõe o artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil que “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (...)”. Relativamente aos menores, preceitua o artigo 320.º, n.º 1, segunda parte, do Código Civil que “A prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre seus bens, salvo se respeitar a actos para os quais o menor tenha capacidade; e, ainda que o menor tenha representante legal ou quem administre os seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade”. Trata-se de um caso de suspensão da prescrição a favor dos menores. À data do acidente, Afonso Guerra era menor. Assim, o prazo prescricional teria decorrido, não nos três anos após a data do sinistro, mas sim um ano e um dia após Afonso Guerra ter atingido a maioridade (aos dezoito anos – artigo 122.º do Código Civil). No ano em que Afonso Guerra intentou a ação, já tinha vinte anos. Ora, importa ter presente que, nos termos do artigo 325.º do Código Civil, o reconhecimento do direito perante o seu titular, interrompe a prescrição, sendo que a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo - artigo 326.º, n.º 1, do mesmo diploma. No caso, houve o reconhecimento da “Transportes Tejo, S.A.” e da “Companhia de Seguros Segurança, S.A.”, expressamente manifestado perante Afonso Guerra, da existência do seu direito, através dos vários tratamentos que lhe foram ministrados e das despesas hospitalares que lhe foram pagas através da seguradora. Há, porém, que analisar a possibilidade de um prazo que se encontrava suspenso poder ser declarado interrompido. É que, paralelamente a tal prazo de suspensão, a lei ficciona um prazo de prescrição, salvaguardando assim os casos em que o prazo prescricional já se mostre decorrido por qualquer via, o qual só se completará um ano após a maioridade do menor. Tendo ocorrido factos interruptivos do prazo prescricional geral a que alude o artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, tais factos vêm a ter plena eficácia após a cessação do prazo de suspensão em curso. De outro modo, a entender-se que aquele prazo de um ano após a sua maioridade é um prazo prescricional imperativo, o menor seria prejudicado pela sua condição, pois se se tratasse de um maior, teria três anos para intentar a ação após o facto interruptivo; sendo menor, e estando o prazo suspenso, qualquer circunstância interruptiva não poderia ter eficácia. É de concluir pelo não acolhimento da argumentação da “Transportes Tejo, S.A.” e da “Companhia de Seguros Segurança, S.A.” no sentido da prescrição da obrigação de indemnizar. c) É no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil que reside o preceito-regra em matéria de responsabilidade civil extracontratual subjetiva. São seus pressupostos: o facto ilícito (facto voluntário violador de direitos alheios ou de interesses juridicamente protegidos); o nexo de imputação do facto ao agente, ou seja, a culpa (a título de dolo ou negligência); o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade entre estes e o comportamento do agente. Estamos perante uma ofensa do direito à integridade física de Afonso Guerra. Não se discutindo o dolo, nem sendo um caso excecional de responsabilidade objetiva, resta saber se o facto pode ser imputado à “Transportes Tejo, S.A.” a título de negligência. Configura a negligência a atuação de alguém que omitiu os deveres de cuidado e de diligência a que, segundo as circunstâncias e capacidades pessoais, estava obrigado e de que era capaz, não prevendo, como podia, o resultado danoso (negligência inconsciente), ou tendo-o previsto, confiou em que o mesmo não se verificaria (negligência consciente). Há que averiguar se, nas circunstâncias do caso concreto, a “Transportes Tejo, S.A.”, através de seus agentes, podia e devia ter agido de modo diferente e, em que grau, segundo a diligência do homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso (bonus pater familias, na terminologia legal do artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil). No caso, apurou-se que a passadeira movediça destinada ao acesso de veículos automóveis é, com a complacência da “Transportes Tejo, S.A.”, utilizada pela generalidade dos peões para acederem ao interior do barco, sobretudo nas ocasiões de grande afluxo de passageiros, em que a passadeira reservada à entrada de peões se mostra insuficiente, pela exiguidade das suas dimensões, para possibilitar a entrada no barco, em tempo útil, a todos os passageiros. Está demonstrada a complacência da “Transportes Tejo, S.A.”. Esta sabia que, sobretudo em horas de grande afluxo de pessoas, estas utilizam a passadeira para veículos, a qual, como é óbvio, não tem as mesmas condições que a passadeira reservada à entrada de peões. Ora, das duas uma: - ou impedia as pessoas de por aí passarem; - ou zelava e atuava no sentido de a passagem dos peões ser feita por uma passadeira que se mostrasse suficiente e possibilitasse a entrada das pessoas no barco em tempo útil. Na verdade, atendendo às circunstâncias do caso concreto, a “Transportes Tejo, S.A.” podia e devia ter agido de modo diferente (artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil). As lesões físicas de Afonso Guerra não se teriam verificado se não fosse a atuação negligente da “Transportes Tejo, S.A.”, pelo que entre elas intercede o nexo de causalidade adequada previsto no artigo 563.º do Código Civil. Face a esta conceptualização, pode concluir-se que a “Transportes Tejo, S.A.” é responsável pela ocorrência do sinistro. d) Por contrato de seguro celebrado com a “Companhia de Seguros Segurança, S.A.”, a “Transportes Tejo, S.A.” transferiu a sua responsabilidade pelo pagamento das indemnizações imputáveis à segurada por danos corporais e/ou materiais causados aos passageiros transportados em embarcações daquela, até ao limite de 50 000 euros por vítima. A responsabilidade da seguradora funda-se na existência de um contrato de seguro e na ocorrência de um sinistro. Assim, a seguradora é solidariamente responsável com a “Transportes Tejo, S.A.”, até ao montante de 50 000 euros, nos termos dos artigos 100.º e 425.º e ss. do Código Comercial (este último artigo foi, entretanto, revogado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.04). 2.ª – Caso Afonso Guerra pretenda responder à defesa da “Transportes Tejo, S.A.” e da “Companhia de Seguros Segurança, S.A.”, analise se o poderá fazer e qual o momento processual adequado. 1,5 valores A “Transportes Tejo, S.A.” e a “Companhia de Seguros Segurança, S.A.” defenderam-se por via de exceção, mais precisamente por exceção perentória (artigos 493.º do CPC revogado e 576.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho). Ao abrigo do princípio do contraditório, Afonso Guerra poderá responder aos factos em que se baseiam as defesas por exceção apresentadas pelas Rés. Como a ação judicial foi instaurada antes de 1 de setembro de 2013, seguindo a forma de processo comum ordinário, Afonso Guerra poderá pronunciar-se em sede de réplica, nos termos do artigo 502.º do Código de Processo Civil revogado, aplicável por força da disposição transitória do artigo 5.º, n.ºs 2 e 3, da referida Lei n.º 41/2013. 3.ª – As Rés defendem que Afonso Guerra não tem direito a uma indemnização pela perda de capacidade de ganho por não ter qualquer emprego. Aprecie esta argumentação. 2 valores Afonso Guerra foi considerado curado com desvalorização, ficando portador de uma Incapacidade Geral Permanente Parcial de (IGPP) de 34%. Apesar de não se ter apurado que a IPP de 34% de que Afonso Guerra ficou a padecer se haja repercutido em maior ou menor grau na sua capacidade de ganho atual e efetiva, é manifesto que uma redução mais ou menos drástica da capacidade física acarretará para o lesado o dispêndio de maior esforço e energia para conseguir proventos ou ganhos futuros. Não há dúvida que Afonso Guerra sofreu um dano biológico. Para alguns autores, o dano biológico é um tertiem genus, intermédio entre os tradicionais danos patrimoniais e não patrimoniais, indemnizável, de per se, que não se reconduz a uma pura e simples afetação dos valores de troca inerentes à força de trabalho da pessoa humana, abrangendo também os valores de uso conexos com essa pessoa, porquanto neste sentido qualquer um de nós «usa» o seu próprio bem-estar psíquico-físico, na medida em que nos traz utilidades e bem-estar. Para outros, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, tudo dependendo da apreciação casuística, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, e só por si, uma perda de capacidade de ganho, ou se se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. No cálculo da indemnização pela perda de capacidade de ganho resultante de uma incapacidade permanente geral ou parcial, um dos elementos certos e seguros de que há que partir é o rendimento auferido pelo lesado à data do acidente pois isso mesmo nos impõe o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil que determina que se atue dentro dos limites que se tiverem por provados. Se o lesado ainda não trabalhar, a indemnização não deve ser afastada. Na verdade, o comando legal do nosso ordenamento jurídico sobre a indemnização exige uma reparação integral do dano (cf. artigos 562.º e ss. do Código Civil). Embora se reconheça ser difícil o cálculo da indemnização por danos futuros nestas situações, a jurisprudência tem vindo a atribuir verbas indemnizatórias calculadas com recurso à equidade, tendo em conta critérios como o do ordenado mínimo, se outros não puderem ser considerados em função dos factos provados, perspetivando-se o trabalhador potencial que seria o lesado em função do curso que frequentava e do tipo de aluno que era. No caso, Afonso Guerra tem direito a ser indemnizado pela perda de capacidade de ganho. Não havendo elementos que apontem para uma mais substancial remuneração do trabalho, sempre será de recorrer ao salário mínimo nacional, sem prejuízo de se equacionar, em sede de danos morais, todas as repercussões do sinistro, como o facto de Afonso Guerra ter dificuldades em movimentar-se e permanecer de pé e não poder acompanhar os amigos nas idas ao futebol ou à discoteca e outras atividades fora de casa, o que lhe causa grande sofrimento. E de ter desistido de se candidatar ao ensino superior, tendo-se ficado pelo 12.º de escolaridade. CASO II – 6,5 valores 1.ª - Arlindo Alves alega que o contrato em causa é nulo, por Bernardo Bonifácio não ser dono do prédio, ou que é, pelo menos, anulável devido a erro. Qualificando juridicamente o contrato, aprecie a pretensão de Arlindo Alves. 2,5 valores Entre Arlindo Alves e Bernardo Bonifácio foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda, regulado nos artigos 410.º a 413.º do Código Civil, tendo por objeto o lote de terreno identificado. Não obstante o declarado no documento que consubstancia o referido contrato-promessa, à data da sua celebração, Bernardo Bonifácio ainda não era proprietário do lote de terreno prometido vender. Arlindo Alves fundamenta juridicamente a sua pretensão na aplicação do regime previsto no artigo 892.º do Código Civil ex vi do artigo 410.º, n.º 1, do mesmo Código, o qual consagra o princípio da equiparação, determinando que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. Porém, não lhe assiste razão, uma vez que o referido artigo 892.º do Código Civil constitui precisamente uma disposição que, pela sua razão de ser, não se deve considerar extensiva ao contrato-promessa, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência a validade do contrato-promessa de venda de bem alheio. Conclui-se, pois, que o negócio era possível e válido, sendo apenas ineficaz relativamente à dona do lote de terreno à data da celebração do contrato-promessa enquanto esta não o ratificasse – cf. artigo 268.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Numa outra perspetiva, importa indagar se a situação em causa constitui fundamento para anulação do contrato-promessa ou legitimava a resolução deste por parte de Arlindo Alves, ao abrigo dos artigos 247.º, 251.º e 252.º do Código Civil. Ora, da factualidade descrita não decorre que para Arlindo Alves fosse elemento essencial do negócio que Bernardo Bonifácio já tivesse a qualidade de proprietário aquando da celebração do contrato-promessa, a fim de que pudesse, ainda antes da data prevista para a celebração da escritura da prometida venda, providenciar no sentido do licenciamento de construção de moradia. Muito menos resulta que o promitente-vendedor soubesse da importância que tal circunstância assumia para o promitente-comprador. Assim, não há fundamento para a anulação do negócio, sendo certo que a existir, e à semelhança do que sucederia se fosse nulo, as consequências não seriam a restituição do dobro da quantia que havia sido paga, mas apenas da referida quantia em singelo, por força do artigo 289.º do Código Civil. 2.ª - Na hipótese de o contrato vir a ser considerado válido e eficaz, aprecie se foi incumprido por alguma das partes e quais os direitos que à outra parte assistem. 4 valores Cabe apreciar o comportamento de Arlindo Alves, analisando se podia resolver o contrato-promessa ou se, pelo contrário, ao fazê-lo, mais se recusando a celebrar o contrato prometido na data que veio a ser marcada por Bernardo Bonifácio e, posteriormente, na sequência de interpelação feita em termos admonitórios, incorreu em incumprimento definitivo. Antes de mais, importa proceder à qualificação jurídica da quantia de 10.000 euros, antecipadamente paga, sendo fora de dúvida que se trata de sinal, atento o disposto nos artigos 440.º e 441.º do Código Civil. O regime do sinal está consagrado no artigo 442.º, do Código Civil, normativo que, embora literalmente se limite a estipular as consequências do incumprimento aí referido sem esclarecer quando se verifica, tem sido interpretado como significando que a aplicação das sanções nele previstas (perda do sinal, sua restituição em dobro ou do valor da coisa prometida) pressupõe o incumprimento definitivo do contrato-promessa e não a simples mora. Deste modo, o direito potestativo de resolução do negócio em causa e os direitos previstos no artigo 442.º do Código Civil são indissociáveis, dependendo sempre (ressalvados os casos de resolução convencional) de fundamento legal, que radica no incumprimento definitivo da prestação devida pela parte faltosa (artigos 410.º, n.º 1, 405.º, 432.º a 436.º, e 790.º e ss. do Código Civil). O direito de resolução fundado na lei está sempre condicionado a uma situação de inadimplência. O incumprimento é uma categoria vasta que pode incluir as situações seguintes: a) o incumprimento definitivo, propriamente dito; b) a impossibilidade de cumprimento; c) a conversão da mora em incumprimento definitivo; d) a declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não; e) em certos casos, o cumprimento defeituoso. Transpondo estes ensinamentos para o caso do contrato-promessa, conclui-se que o incumprimento definitivo se verifica nas seguintes situações: - pura e simples recusa do cumprimento de forma categórica e inequívoca; - os casos em que a prestação se torna impossível, total ou parcialmente, por culpa do devedor (ex. destruição ou alienação a terceiro da coisa prometida pelo promitente-vendedor); - a ultrapassagem de prazo fixo essencial e absoluto; - e a conversão da mora (culposa do promitente-faltoso) em incumprimento definitivo por via dos mecanismos previstos no artigo 808.º do Código Civil, a saber, a ultrapassagem de prazo suplementar razoável fixado em interpelação admonitória feita pelo promitente não faltoso (credor da prestação devida em falta) ou a perda objetiva de interesse, por parte deste mesmo promitente, na celebração do contrato prometido, em consequência daquela mora. No caso vertente, não assistia a Arlindo Alves o direito de resolver o contrato-promessa, pois não se verificava da parte do promitente-vendedor uma situação de incumprimento definitivo, nem sequer de mora ou de impossibilidade do cumprimento, não constituindo fundamento de resolução a circunstância de este não ser o proprietário do lote de terreno à data da celebração do contrato-promessa. Com efeito, embora Arlindo Alves pretendesse a colaboração de Bernardo Bonifácio no sentido de acelerar o processo de licenciamento da moradia, a verdade é que não resulta dos termos do contrato-promessa que impendesse sobre ele uma obrigação acessória de prestar tal colaboração ou que assim devesse proceder de harmonia com o princípio geral da boa fé (cf. artigo 762.º do Cód. Civil). Considera-se até, na falta de elementos de facto que apontem em sentido contrário, que seria perfeitamente legítima a recusa de Bernardo Bonifácio, mesmo que já fosse o proprietário do lote, em assinar um requerimento para apresentar na Câmara Municipal com vista à aprovação de projetos de construção para o lote de terreno. Aliás, os factos inculcam a ideia de que Bernardo Bonifácio já teria acordado com a anterior proprietária a compra do lote de terreno em causa, o qual lhe havia sido entregue e que veio efetivamente a adquirir dentro do prazo previsto para a celebração da escritura da venda prometida a Arlindo Alves, não fazendo sentido a posição deste, a poucos dias da data marcada para a mesma, em recusar-se a outorgá-la, invocando a nulidade do contrato-promessa. De salientar que o atraso na obtenção da pretendida licença de construção seria de poucos dias, face à proximidade da data fixada para a celebração da escritura da prometida venda (a qual tinha sido comunicada a Arlindo Alves por carta de 17.01.2007), sem qualquer significado no âmbito do previsível período de tempo (de vários meses) que Arlindo Alves ainda teria de esperar para lograr obter a licença de construção. Existiu, assim, da parte de Arlindo Alves, com a sua carta de 24.01.2007, uma afirmação da sua recusa em cumprir o contrato, o que não pode deixar de corresponder a uma declaração antecipada de incumprimento, suficiente para integrar a previsão dos artigos 798.º e 442.º, n.º 2, do Código Civil. A razão que aquele invocou para essa recusa não é atendível, pelo que se considera que incumpriu definitivamente o contrato-promessa com o envio dessa carta. Ainda que assim não se entendesse, sempre seria de se considerar verificada uma situação de mora convertida em incumprimento definitivo por via da interpelação admonitória que lhe foi feita por Bernardo Bonifácio (cf. artigos. 804.º e 808.º do Código Civil). Assiste, pois, a Bernardo Bonifácio o direito de resolução do contrato-promessa, com perda do sinal prestado por Arlindo Alves. CASO III – 5,5 valores 1.ª - Aprecie se a “Forte Saber, Lda.” tem direito a esta indemnização, fundamentando juridicamente a sua resposta. 3,5 valores a) Enquadramento do caso no instituto da responsabilidade pré-negocial - artigo 227.º do Código Civil. Referência ao caso típico de rutura de negociações. Recondução da responsabilidade pré-negocial a uma manifestação da cláusula geral de boa fé. b) Descrição do entendimento que apela à ideia de tutela da confiança para fundamentar a responsabilidade pré-negocial por rutura de negociações. Referência ao elenco doutrinário dos elementos da tutela da confiança: situação de confiança, justificação da confiança, investimento de confiança e imputação da confiança. Referência à ideia doutrinária de nexo de causalidade finalístico entre a situação de confiança e o investimento de confiança. c) Discussão sobre o caso concreto. Argumentos: acordo pré-contratual (“protocolo”) cria situação de confiança; investigação técnica (“estudos”) constitui investimento de confiança; investimento foi finalisticamente causado pela situação de confiança; rutura de negociações não foi justificada (falta de demonstração mínima da inviabilidade do projeto). Conclusão pela verificação de uma rutura de negociações injustificada, contrária aos ditames da boa fé. d) Discussão sobre a consequência jurídica aplicável: querela sobre a indemnização pelo interesse contratual negativo ou pelo interesse contratual positivo. Referência à posição jurisprudencial maioritária, que sustenta a indemnização pelo interesse contratual negativo, em caso de rutura de negociações. Conclusão pela indemnização pelo interesse contratual negativo. 2.ª – Suponha que, no decurso da audiência final, o mandatário da “Forte Saber, Lda.” requer a prestação de declarações de parte do representante legal da “Energia Limpa, Lda.”. Analise do ponto de vista processual a admissibilidade desta pretensão. 2 valores O Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, consagrou um novo meio de prova denominado “prova por declarações de parte” no artigo 466.º. Para além do depoimento de parte, previsto nos artigos 452.º a 465.º, todos do Código de Processo Civil, apenas circunscrito à confissão (como já sucedia no CPC revogado), estabelece o n.º 1 do artigo 466.º, a possibilidade de as próprias partes requererem em audiência final, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo diretamente ou de que tenham conhecimento direto. No caso em análise, coloca-se a questão de saber se uma das partes pode requerer as declarações da contraparte, designadamente no decurso da audiência final. De acordo com o n.º 1 do artigo 466.º, as partes podem requerer este meio de prova até ao início das alegações orais em 1.ª instância. Trata-se de uma exceção à regra geral instituída no novo Código de Processo Civil da apresentação de todos os meios de prova nos articulados [artigos 552.º, n.º 2, e 572.º, alínea d)], com a possibilidade de alteração dos requerimentos probatórios prevista nos n.ºs 1 e 2 do artigo 598.º, do referido diploma. Resulta, pois, da disposição em causa que a própria parte poderá requerer as suas próprias declarações de parte até ao início das alegações orais em 1.ª instância. O n.º 2 do citado artigo 466.º estabelece que “às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.”. Tal significa que é aplicável, com as devidas adaptações o regime do depoimento de parte. Neste regime, o artigo 453.º, n.º 3, do Código de Processo Civil dispõe que “Cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também o dos seus compartes.”. De acordo com esta disposição legal, aparentemente seria admissível a parte requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, as declarações da contraparte. Importa, no entanto, considerar que uma das partes, ao requerer as declarações da contraparte (sobretudo no decurso da audiência final, em especial após a produção da prova testemunhal), pretenderá, na maior parte dos casos, obter uma confissão. Se assim for, tal constituirá uma tentativa extemporânea e, nalguns casos, mesmo fraudulenta, de obter a confissão da outra parte, o que não se pretendeu. Não parece que aquele preceito seja aplicável às declarações de parte. Sem embargo, nada impede que, no âmbito dos seus poderes instrutórios, o juiz possa determinar oficiosamente que a parte preste declarações. Tal resulta, não tanto do artigo 452.º, n.º 1, ex vi artigo 466.º, n.º 2, mas antes dos artigos 7.º, 411.º, e 417.º, todos do Código de Processo Civil.