Classe média está ressentida com PT em SP, diz
estudiosa
Entrevista com Maria Victoria Benevides
Folha de S.Paulo, 27.10.2008
Kassab é apenas um "político fabricado" e só venceu a eleição porque rejeição a
Marta é muito forte, afirma Benevides
A CIENTISTA POLÍTICA Maria Victoria Benevides, 66, avalia que Gilberto Kassab
não venceu a eleição porque sua aprovação é alta, e sim porque a rejeição a Marta
Suplicy é muito forte. "Kassab não provocou nenhuma rejeição. Isso não significa que
ele seja bom: significa que as pessoas eram indiferentes a ele".
Professora titular da Faculdade de Educação da USP e autora de "O Governo
Kubitschek" (1976), "A UDN e o Udenismo" (1980), "O Governo Jânio Quadros"
(1981) e "O PTB e o Trabalhismo" (1989), entre outros livros, Benevides afirma que
Kassab é apenas um político fabricado pelo governador tucano José Serra -"ele é uma
espécie de Pitta que deu certo"- que conseguiu reunir todas as vertentes da direita
paulistana em sua batalha contra o PT.
Marta Suplicy, por sua vez, foi vítima tanto de sua rejeição pessoal como do
ressentimento da classe média paulistana, que se sente abandonada por um governo que
privilegia os muito ricos e os muito pobres:
FOLHA - Kassab começou no PL, um satélite do PFL, mas logo ingressou no próprio
PFL, que aqui em São Paulo reunia herdeiros da UDN. É possível dizer que a
"direita udenista" conseguiu substituir a "direita populista" representada por
Maluf?
MARIA VICTORIA BENEVIDES - A direita udenista certamente está com Kassab,
mas Kassab não é fruto da direita udenista, mas dos liberais que vieram da esquerda do
antigo MDB e da oposição à ditadura. É por isso que é muito difícil estabelecer
claramente uma definição de sua identidade política. Nós podemos falar do DNA dele: o
DNA dele, com toda a certeza, é de direita, mas um mix da direita udenista com a
direita pessedista. Mas basta ver quem o fabricou politicamente: foi José Serra, que está
longe de ter um DNA de direita udenista. Ele vem da esquerda e depois evoluiu para
uma posição liberal.
Kassab é apoiado hoje por uma parte importante do antigo Partidão [PCB], por uma
parte importante do antigo movimento sindical. Isso não tem nada a ver com a direita
udenista, mas, numa escolha em dois turnos, ele ficou com a direita udenista, a direita
malufista, a direita janista e a direita adhemarista. Conseguiu reunir não só a direita
udenista, mas todo o conjunto conservador das direitas de São Paulo, mais os tucanos
liberais, dos quais a maioria não tem origem na direita, mas que acabaram se
"endireitando" no governo.
FOLHA - Mas qual seria a substância político-eleitoral de Kassab?
BENEVIDES - Eu acho que ele foi uma pessoa fabricada. Ele é uma espécie de Pitta
que deu certo. O Pitta foi fabricado pelo Maluf igualzinho o Kassab foi fabricado pelo
Serra. Quem era Kassab antes do Serra? Eu mesma nunca tinha ouvido falar dele, assim
como ninguém tinha ouvido falar do Pitta. É o Pitta que deu certo. E deu certo porque o
PSDB, embora rachado e enfraquecido por divisões internas, se deu conta de que ele era
a maneira que tinha de ganhar a batalha contra o PT, que é seu grande adversário.
FOLHA - A questão é saber se esses políticos fabricados têm longevidade. Hoje a
aprovação a Kassab (59%) na cidade é bem maior do que a do próprio Serra (38%), o
que sugere que ele poderia sobreviver a uma eventual derrota de Serra em 2010. Mas,
olhando para o passado, os políticos fabricados não duraram muito: Adhemar
fabricou o Lucas Garcez; Jânio, o Carvalho Pinto; Quércia, o Fleury. Fabricaram
um sucessor, mas o sucessor não teve sobrevida.
BENEVIDES - O que falta nessas comparações que você fez é a perspectiva do
segundo turno: o que mais beneficiou Kassab foi a possibilidade de reeleição contra sua
principal adversária, a Marta, que tinha uma enorme rejeição. Kassab não provocou
nenhuma rejeição. Isso não significa que ele seja bom, significa que as pessoas eram
indiferentes a ele. É muito mais fácil criar uma perspectiva positiva em relação a
alguém que tem uma imagem indiferente do que destruir uma rejeição e transformar
essa rejeição em aprovação. E Kassab apareceu muito, teve um apoio muito grande do
governo Serra e também, indiretamente, do governo federal, porque Lula não quis se
indispor com São Paulo. Ao contrário. Serra não tem uma queixa a fazer do Lula.
FOLHA - Uma reportagem recente da Folha mostrou que a gestão Kassab recebeu
mais verbas do governo Lula do que a própria gestão Marta.
BENEVIDES - Exatamente. Eu não apostaria na continuidade do Kassab, mas também
não apostaria no fim. O que eu fiquei impressionada foi com os míseros 6% [dos votos]
do Maluf. Os malufistas morreram...
FOLHA - O populismo em São Paulo praticamente acabou?
BENEVIDES - O populismo na vertente malufista. Mas o populismo continua, sob
formas clientelistas -aliás utilizadas por todos os partidos-, porque ele está muito
entranhado na cultura brasileira. Não acredito que o populismo tenha acabado. E não
vejo, a não ser pelo estilo mais cordato, muita diferença entre Maluf e Kassab.
FOLHA - A sra. diz que o Kassab se beneficiou da rejeição a Marta. Mas o que
explica essa rejeição?
BENEVIDES - Há uma rejeição grande ao PT, que aumentou muitíssimo depois da
crise de 2005, que decepcionou muita gente, dos meios intelectuais até uma esquerda
tradicional, além de uma classe média que se sentiu abandonada, porque na realidade
houve uma prioridade aos mais pobres. O problema é que o governo ficou nos
extremos: favoreceu muito os muito ricos e os muito pobres, e a classe média tem
motivo de ressentimento. Isso aumentou muitíssimo a rejeição ao PT.
E a própria Marta é vítima de muito preconceito e muita rejeição. Dela ficou o quê? O
que ficou de lembrança da Marta? O "Martaxa". A prova é que ela bateu muito contra
isso. O problema é que a memória da imensa maioria dos eleitores, os mais pobres e os
menos politizados, é mais curta. Marta devia ter um nível de aprovação altíssimo por
causa dos CEUs, mas os CEUs foram apropriados pelos outros: ninguém diz que vai
abandonar os CEUs. Deixou de ser algo exclusivo do PT. E a rejeição a Marta é muito
forte porque juntou a rejeição ao PT, que piorou muito em razão do que aconteceu, à
rejeição a Marta, que é grande por ela ser a Marta: ela agrega rejeição por ignorância,
por preconceito, pelo grupo dela no PT.
FOLHA - Segundo o IBGE, em 2006 a taxa de luz existia 3.893 municípios, e a taxa
do lixo, em 2.753. Ou seja, elas existem na maioria das cidades, e não causam tanta
celeuma.
BENEVIDES - E principalmente aqui em São Paulo, para a imensa maioria das
pessoas, era um valor ridículo. Eu me lembro que minha faxineira veio reclamar disso, e
eu perguntei quanto ela pagava de taxa de lixo. Era R$ 3. O filho dela estudava num
CEU e ele ia e voltava da escola numa van da prefeitura, mas o ficou foi a tal taxa do
lixo, porque isso foi superdimensionado pelos adversários. Eles foram competentes em
grudar esse adesivo na Marta. E essa coisa das taxas nunca foi apresentada de uma
maneira que mostrasse que ela eliminou o IPTU de muitos. Por exemplo, um de meus
filhos mora hoje num prédio que ficou isento. Isso nunca foi suficientemente mostrado.
Aí predominou a rejeição. E a campanha da Marta foi contaminada por equívocos de
marqueteiros e assessores.
FOLHA - A sra. citou o impacto da crise de 2005. Mas, olhando o país, o PT foi quem
mais cresceu na eleição.
BENEVIDES - Mas aí é importante ver que o PT de São Paulo não é e nunca foi o PT
nacional.
FOLHA - Qual é a diferença?
BENEVIDES - O PT nacional se beneficiou enormemente das políticas regionais e
municipais no governo Lula. O PT no resto do Brasil está ligado a propostas e projetos
locais, nos quais o conteúdo ideológico é muito pequeno, e a presença da classe média
também. Essa classe média forte, organizada, com imprensa, universidades, pequenos e
médios empresários, é imensamente mais forte aqui. Dificilmente existe, no resto do
Brasil, essa rejeição forte e absoluta ao PT que existe em São Paulo. Inclusive porque
São Paulo tem esses extremos: tem uma forte presença de pobres e miseráveis, mas tem
a maior classe média, a maior concentração de riqueza, a maior concentração de
universidades, intelectuais, empresários organizados, que atuam com muito mais força
na opinião pública do que os partidos. O PSDB e o PFL não são só partidos políticos:
são partidos vinculados aos grupos de interesse de tudo o que é forte em São Paulo. Eles
têm apoio majoritário na Fiesp, UDR, associações de empresários, instituições da
sociedade civil. Basta ver que o PT sempre teve enorme dificuldade para ganhar na
cidade. Ganhou com Erundina porque não tinha dois turnos, ganhou com Marta porque
polarizou com Maluf.
FOLHA - Ela teve inclusive o apoio do governador Covas e do PSDB.
BENEVIDES - O apoio do PSDB. E hoje o PSDB sabe que seu maior adversário é o
PT. Por isso o PSDB não faria em São Paulo aliança com o PT, como foi tentado em
Belo Horizonte.
FOLHA - É possível dizer então que o PSDB conseguiu se tornar o partido dessa
classe média organizada?
BENEVIDES - Sim. O PSDB, aliás, é o partido que está no poder desde Franco
Montoro, com um breve interregno. Está lá. E está fortemente instalado no governo
Kassab. Por isso não dá para dizer que o kassabismo é a direita udenista. É direita, mas
com muitas nuances. Direita udenista é o DNA dele: direita udenista que apoiou o golpe
militar, que esteve com Maluf e Pitta. Mas a coalizão dele é muito mais ampla. Esse foi
o grande trunfo dos tucanos. Como foi o grande trunfo do PT em outros Estados do
Brasil.
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