AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO DIREITO DE
PARTICIPAÇÃO
Maria Goretti Dal Bosco1
INTRODUÇÃO
O cidadão não é apenas mais um mero espectador das realizações do
poder público. Além de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveres
ou goza de liberdades em relação ao Estado, ele é também o titular, mesmo
que de forma parcial, de uma função ou de um poder público.2
O direito de participação do administrado no Brasil ainda encontra
inúmeras barreiras para sua implementação efetiva pela estrutura
administrativa brasileira, situação que igualmente ocorre em alguns países
desenvolvidos, como a Espanha, mas que se agrava ainda mais quando se
trata da América Latina, onde as leis falam de participação, mas a prática
política as desmente.
As barreiras no Brasil são primeiramente de natureza cultural, já que o
modelo político que adotamos, chamado de democracia, encontra-se ainda
em fase de aperfeiçoamento, motivada esta situação, em muito, pelo longo
período de ditadura militar que tomou conta do País. O presente trabalho
busca abordar as principais questões relacionadas ao direito de participação
no Brasil, dando ênfase às audiências públicas, instrumento presente na
legislação já há algum tempo, principalmente depois da promulgação da
Constituição de 1988, mas de fraca utilização pela administração pública.
A incursão se dá à doutrina nacional, seguindo-se uma avaliação do
tema na doutrina e legislação de países estrangeiros, esta motivada pela
ainda restrita bibliografia pátria específica acerca do tema, em especial as
audiências públicas que parece interessar pouco aos estudiosos brasileiros,
os quais dedicam apenas algumas linhas ao assunto em suas obras.
1
Advogada, professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, e da
UNIGRAN, em Dourados-MS, Mestre em Direito pela UNESP-SP e doutoranda em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.
2
BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova – Revista de Cultura
e Política. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1994, no. 32, p. 9.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
137
A participação envolve a discussão da legitimidade do poder do Estado.
Por isso, o trabalho aborda o conceito de legitimidade e seu confronto
com a legalidade, a discricionariedade e as políticas públicas cuja decisão
e execução competem ao Estado, através da Administração. Isto porque
são nestas definições, ao que parecem indicar as circunstâncias, que
ocorrem as limitações ao direito de participação da coletividade, o que
implica em administrações ineficientes e, em muitos casos, até imorais.
Aborda-se, ainda, a participação política enquanto direito de quarta
geração, ao lado dos direitos individuais, considerados de primeira geração;
os direitos sociais, de segunda geração, e os direitos da fraternidade, de
terceira geração. Passa-se, também, pela visão da participação política
como um dos direitos consagrados na Declaração dos Direitos Humanos,
avaliando-se, por fim, as formas de participação, seus instrumentos e,
entre eles, a audiência pública, prática das mais inovadoras no sistema
jurídico administrativo brasileiro.
LEGITIMIDADE DO PODER
A questão da participação da sociedade nas ações do poder público
está ligada à legitimidade deste mesmo poder. O professor Diogo
Figueiredo Moreira Neto, ao abordar o tema, toma a legitimidade como
referencial político, sendo um dos três referenciais éticos do poder, junto
com a licitude (referencial moral) e a legalidade (referencial jurídico).3
Assim, a licitude é o resultado de um juízo de valor cujo lastro são os
paradigmas fundamentais de comportamento, produzidos no processo
histórico-cultural do desenvolvimento de um grupo social e situa-se no
campo da Moral; A legalidade, diz o professor, é o referencial ético mais estrito
das sociedades superiormente desenvolvidas, pois necessita de uma sedimentação
institucionalizada da vontade social em forma de normas jurídicas. Está relacionada
ao Direito como um conjunto de leis de uma sociedade juspoliticamente organizada;
a legitimidade aparece na aceitação consensual pela sociedade, de um
comportamento, de uma decisão ou de uma idéia que, direta ou indiretamente, diga
respeito à direção do grupo.4
3
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder – parte I. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992, p. 221, destaques do original.
4
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do Poder. Op. cit., p. 224-226 e 229, destaques do
original.
138
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
A legitimidade, portanto, é caracterizada pelos interesses do grupo,
aquilo que a sociedade almeja do poder. Ela é a base do poder político.
O autor ainda lembra que é muito difícil estabelecer uma legitimidade
de grande abrangência em países com grandes desigualdades econômicas
e educacionais; ele considera a atribuição de poder um problema delicado,
pois implica em definir a medida legítima de poder que cabe aos indivíduos,
às instituições, aos grupos, à sociedade como um todo e ao Estado: é
uma das definições cruciais das constituições dos Estados, ao lado da
destinação de poder, ou seja, a escolha dos grandes objetivos sociais
que devem ser buscados pelo poder estatal. Essa destinação, ou resultado
do exercício do poder em relação aos anseios e aspirações da coletividade
é chamada de legitimidade finalística ou teleológica.
LEGITIMIDADE E LEGALIDADE
A legalidade contraposta à legitimidade indica que a norma jurídica,
que é o referencial para apreciação ética do poder, deve cristalizar valores
vigentes na sociedade. Diogo Moreira Neto ensina que a legalidade possui
fenômenos característicos: concentração, atribuição, destinação,
exercício, contenção e detenção do poder; na concentração,
estabelecem-se os limites e impedimentos ao processo de aglutinação do
poder; na atribuição, a ordem jurídica discrimina o poder reservado aos
indivíduos, às instituições e grupos e o que é deferido ao Estado; no
fenômeno do exercício encontra-se a legalidade em sentido estrito, quando
o poder está balizado juridicamente sob aspectos orgânicos e funcionais;
a contenção do poder se estabelece pelas técnicas de limitação e de
controle, através de instrumentos legais para assegurar o Estado de Direito;
a detenção, fenômeno que mais importa neste estudo, implica em que a
manutenção do poder será legal sempre que o acesso e a manutenção de
cargos e funções se dêem de acordo com a previsão da norma legal.
É aqui que ganham importância os mecanismos jurídicos de participação,
através dos quais ocorre a compatibilização entre a detenção legítima do
poder (consenso) e a detenção legal do poder (título).5 E um sistema
juspolítico vale enquanto tenha eficiência em todos os fenômenos da
5
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do Poder. Op. cit., p. 231-233.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
139
legalidade. Norberto Bobbio aperfeiçoa um conceito de Max Webber sobre
a ordem legítima no qual destaca o papel do consenso como técnica
social imprescindível à dinâmica política (a legitimidade) para objetivar
se numa dinâmica jurídica (a legalidade), possibilitando o equilíbrio,
evitando o clima de tensão e garantindo o respeito e o ajustamento dos
valores que correspondem, no sentimento coletivo, à aspiração de justiça.6
A conclusão desse raciocínio é a de que sistemas juspolíticos de alto
consenso têm maior legitimidade e baixo nível de coerção, enquanto que,
os de baixo consenso têm maior legalidade, mas necessitam de alto nível
de coerção para funcionar.
DISCRICIONARIEDADE E LEGITIMIDADE
Para o professor Diogo Moreira Neto, a discricionariedade não se resume
a um fenômeno restrito da atuação do Estado administrador, mas também
enquanto legislador ou juiz, sendo muito mais uma técnica de integração
jurídica que transcende ao Direito Administrativo e interessa a todo o
Direito Público. 7 Afirma o autor que, em sentido restrito, a
discricionariedade é a possibilidade jurídica outorgada pelo legislador ao
administrador para integrar a definição do interesse público específico,
previsto na norma legal; e sua função é integrar um ato abstrato no que
seja necessário, em termos de interesse público, para que possa ser
executado. Assim, a discricionariedade pode ser conceituada como:
[..]. a qualidade da competência cometida por lei à Administração
Pública para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo de
legitimidade necessário para integrar a definição de elementos
essenciais à prática de atos de execução voltados ao atendimento de
um interesse público específico.
A discricionariedade, portanto, envolve o poder discricionário, como
modo de atuar do poder do Estado; atividade discricionária, enquanto
função estatal, ou expressão dinâmica do poder; e ato discricionário,
que é o resultado qualificado do exercício da função estatal. O nascimento
do dever da boa administração deu origem às modernas teorias sobre
discricionariedade. E a discricionariedade existe para que a Administração
Apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, p. 7-8, destaque do original.
7
In Legitimidade e discricionariedade. Op. cit., p. 31.
6
140
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
seja concretamente boa, toda vez que a legislação não puder definir
previamente, senão em abstrato, o que seja o bom atendimento do interesse
publico.8
CRISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A definição das políticas públicas no País transformou-se num exercício
de ineficiência. Os mecanismos que cercam estas definições – Lei
Orçamentária e Lei de Diretrizes Orçamentárias, além dos planos
plurianuais de investimentos – não têm sido capazes de ajustar-se aos
recursos financeiros do orçamento público e nem de atender às necessidades
básicas da população. Basta observar o direcionamento dos recursos
públicos nos diversos níveis de governo para perceber que a escolha das
áreas para investimentos, em sua maioria, deixa de fora questões cruciais
que afligem a sociedade, como a saúde precária, a violência, o transporte
público, entre outras.
O tema foi objeto de discussão recente em seminário educativo apoiado
pelo jornal Folha de São Paulo e que resultou na edição da Segunda Carta de
São Paulo, documento contendo as principais conclusões do encontro
apresentadas pelos expoentes da administração pública no Brasil, incluindo
personalidades da organização governamental federal.
O tema participação popular na definição de políticas públicas,
curiosamente, não fez parte das discussões do encontro, que definiu como
importante, neste aspecto, a atuação da imprensa, segundo consta do
documento final, nestes termos: 9
A Imprensa desempenha relevante papel no desenvolvimento do
País e nas políticas públicas, desde que tenha a garantia de sua
indispensável liberdade de expressão, que não pode ser restringida
sob qualquer pretexto. Esse equilíbrio repousa na pluralidade dos
veículos de difusão noticiosa, garantindo-se aos seus usuários a opção
dentre diferentes versões dos acontecimentos, e na responsabilidade
das fontes informativas, que devem atuar sem mordaças, conscientes
8
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. Op. cit., p. 36-42,
destaques do original.
9
Segunda Carta de São Paulo, documento final do seminário A crise das políticas Públicas. Instituto Metropolitano
de Altos Estudos para o Desenvolvimento das Pesquisas – Uni-FMU/Folha de São Paulo, março/2002,
veiculada em encarte do jornal FOLHA DE SÃO PAULO. 28.04.2002, negrito do original.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
141
do dever de respeitar a privacidade e a intimidade dos indivíduos
que protagonizam as notícias.
A crise parecer ser mesmo de competência, de ausência de vontade
política, ambas nascidas na falta de participação da sociedade, de exigência
de seus direitos aos serviços públicos básicos, contemplados na
Constituição Federal.
DIREITO DE PARTICIPAÇÃO
DEMOCRACIA COMO NOVO DIREITO
Modernamente, a democracia deve ser considerada mais como um
direito do que uma forma de governo. Um direito novo, de quarta geração.
A tese é do professor Paulo Bonavides10 , para quem os direitos individuais
seriam os de primeira geração, os direitos sociais, de segunda e os direitos
da fraternidade, de terceira geração. E acrescenta: os direitos humanos de
primeira geração pertencem ao indivíduo, os de segunda, ao grupo, os da
terceira, à comunidade e os de quarta geração, ao gênero humano. Os três
primeiros são direitos de defesa e os três últimos, de participação, conforme
a clássica teoria alemã.
Assim, tanto quanto o desenvolvimento - considerado direito de terceira
geração – a democracia é direito do povo – diz o autor – se converte em
pretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder,
subjetivado juridicamente na consciência social e efetivado de forma
concreta pelo cidadão, em nome e em proveito da sociedade, e não do
Estado.
DIREITO DE PARTICIPAÇÃO E DIREITOS HUMANOS
A Declaração dos Direitos Humanos, no art. XXI reza: Todo homem
tem direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por
intermédio de representantes livremente escolhidos.
Fábio Konder Comparato desenvolve o raciocínio de que na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o princípio da liberdade
compreende tanto a dimensão política quanto a individual, e que as duas
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. rev., ampl. São Paulo: Forense, 1996,
p. 15-16.
10
142
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
são complementares e interdependentes.11 O autor diz que a liberdade
política, sem as liberdades individuais, não passa de engodo demagógico
de Estados autoritários ou totalitários. E o reconhecimento das liberdades
individuais, sem efetiva participação política do povo no governo, mal
esconde a dominação oligárquica dos mais ricos.
Ainda está nítida na declaração, para Comparato, a afirmação da
democracia como único regime político compatível com o pleno respeito
aos direitos humanos. O regime democrático já não é, pois, uma opção
política entre muitas outras, mas a única solução legítima para a organização
do Estado. Ele cita, ainda, o reconhecimento, pela declaração, no art. 28,
o direito da humanidade a uma ordem internacional que respeite a
dignidade humana. É nisto que consiste, hoje, o direito à busca da
felicidade, que a Declaração de Independência dos Estados Unidos
considerou como inato no ser humano.12
DIREITO
DE
PARTICIPAÇÃO
EM
PAÍSES
DESENVOLVIDOS
O direito de participar das definições da administração pública está
presente já há algum tempo nas discussões de vários autores estrangeiros
de Direito Público. Garcia de Enterría e Tomáz-Ramón Fernandes,
abordam o tema lembrando que a participação dos usuários nos sistemas
de serviços públicos costuma ser pouco relevante porque depende de
estruturas de organização que só a Administração pode estimular, embora
haja na Constituição espanhola previsão de inúmeras formas de
participação do cidadão (pais e professores no controle das escolas, na
seguridade social, etc.), além de prever, genericamente, que devem os
poderes públicos (...) facilitar a participação de todos os cidadãos na vida
política, econômica, cultural e social.13
Os autores afirmam que o cidadão fica praticamente indefeso diante
da Administração quando precisa que um novo serviço seja criado, ou
11
KOMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 229-34.
12
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. Op. cit., p. 234.
13
GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo, e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito
Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista os Tribunais, 1990, p. 794-99.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
143
melhorado aquele já existente. Eles lembram que a participação dos
cidadãos jamais pode sobrepor-se à lei. Há, segundo os autores, três círculos
de participação cidadã sobre as funções administrativas: atuação orgânica,
na qual o cidadão incorpora-se a órgãos da Administração especialmente
criados para isso – os conselhos, etc.; a atuação funcional – em que o
cidadão desempenha funções administrativas de sua própria posição
privada, como opinar sobre determinada atividade, convidado pela
Administração, que seria a participação em informações públicas,
denúncias, ações populares, iniciativas e sugestões, entre outras; e a
atuação cooperativa – na qual o cidadão colabora de forma voluntária
com a Administração, nos programas e atividades por ela propostos, mas
sem qualquer ligação oficial com o poder público.14
Marcelo Caetano refere-se à necessidade de estabelecer um
compromisso maior do Poder Público para com os direitos de participação
do cidadão, lembrando que as garantias políticas previstas nas Constituições
não dão qualquer segurança de que haverá efetivamente o exame e o
atendimento ao clamor individual ou coletivo.15
Os direitos de pedir, de representar, exercer atividade cívica, de
promover ou de participar de reuniões e de associações – diz o autor –
estão previstos em todas as constituições, mas o único dever que a eles
corresponde da parte do Poder político é o de não embaraçar o respectivo
exercício. A sorte da ação desenvolvida à sombra desses direitos depende
da receptividade de quem detém o poder e da conveniência que encontre
em atendê-la. O autor lembra da figura do Comissário Parlamentar previsto
na Constituição sueca (espécie de ombudsman - como o mediatéur, da França)
encarregado de receber as queixas sobre o funcionamento de serviços e
investigá-las, recomendando providências aos órgãos competentes.
O argentino Roberto Dromi fala de uma representação e participação
cidadãs no poder. Afirma que os povos vêm reclamando mais do que a
democracia representativa prevista no art. 22 da Constituição argentina.
Os povos vêm exigindo uma democracia participativa para somar
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Op. cit., p. 801.
CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo.RJ:Forense,1989, p. 479.
16
DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 5. ed. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1996, p.
81-3, tradução nossa.
14
15
144
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
propostas, compromissos e esforços, pois, chegou o momento de construir
sobre as coincidências.16
O autor constata que o indivíduo alienado, ocupado por demais consigo
mesmo, com o eu e despreocupado do vós já conscientizou-se de que
também deve ocupar-se do nós no qual se encontra o seu destino final
(venha nós e ao vosso reino, nada) O Estado de direito democrático deve
quebrar a indiferença social e a apatia política se quiser seguir vivendo
em um mundo de liberdade.
A institucionalização da participação não deve ficar só na letra da lei,
mas também no espírito dos povos. Ele defende o incentivo às instituições
de caráter profissional, econômico e associativo nascidas do espírito de
organização e de empresa do homem, com missões e responsabilidades
específicas. A sociedade pluralista impõe uma repartição de competências,
em distribuição subsidiária entre as associações que viabilizam a
participação individual e a cooperação social.17
A democracia, como forma civilizada de viver, aspira a realização
plena do homem em liberdade e, para isso, exige uma “participação
integral”, não só política e nem simplesmente política eleitoral, mas
também administrativa, econômica e social. O homem deve ser
“partícipe” da gestão pública em seus distintos níveis institucionais.
DIREITO DE PARTICIPAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
O professor Bernardo Kliksberg aponta dez falácias que as autoridades
públicas e os especialistas costumam afirmar sobre a América Latina. A
oitava falácia é exatamente a da participação do cidadão nos governos.18
O autor apresenta dados sobre a situação dos povos latino-americanos e
constata que a grande maioria dos pobres desta região é de crianças e
adolescentes. Dados da Cepal, do ano de 2000 (Comissão especializada
em estudos sócio-econômicos da América Latina), apontavam que 58%
das crianças menores de 5 anos eram pobres, o mesmo acontecendo com
57% das crianças de 6 a 12 anos e 47% dos adolescentes de 13 a 19 anos.
No conjunto, os menores de 20 anos representam 44% da população da
DROMI, Roberto. Op. cit., p. 82. Tradução nossa.
KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. Trad. de Sandra Trabucco
Valenzuela e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Cortez; Brasília,DF: Unesco, 2001, p. 39-40
17
18
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
145
região e 54% de todos os pobres.19
O autor afirma que o discurso político tende cada vez mais a reconhecer
a participação, pois seria muito antipopular enfrentar a pressão próparticipação da sociedade e com argumentos tão contundentes a seu favor.
Mas os avanços reais com relação a programas com altos níveis de
participação comunitária são muito reduzidos. Predominam os programas
“chave na mão” e impostos de cima para baixo, onde os que sabem têm o
poder de decisão e a comunidade desfavorecida deve acatar suas diretivas.
São comuns os programas que trazem fortes apelos participativos, mas
que têm, na verdade, um mínimo conteúdo real de intervenção da
comunidade. O discurso diz “sim” à participação, mas os fatos com
freqüência dizem “não”.20
A questão brasileira está mais ou menos nesse caminho. Exemplo: as
consultas públicas são anunciadas no Diário Oficial da União ou nos sítios
oficiais do Governo na Internet, mas esses meios levam a informação a
poças pessoas. Na América Latina, segundo dados da Cepal, menos de
1% das pessoas têm acesso ao computador, um dado que não é muito
diferente no Brasil. Quanto a Diário Oficial da União, o acesso é ainda
mais restrito.
Os custos dessa falácia são enormes, garante Kliksberg: desperdiça-se
uma grande energia latente nas comunidades pobres, que poderia ser
canalizada para iniciativas de grande sucesso. Ele cita os casos de uma
vila no Peru, escolas em El Salvador e do orçamento municipal
participativo de Porto Alegre. E assegura que a presença da comunidade
na discussão das políticas públicas é um dos poucos meios provados que
previnem a corrupção. E mais: o divórcio entre o discurso e a prática é
claramente percebido pelos pobres e eles ficam ressentidos, descontentes
e frustrados, passando a resistir profundamente às iniciativas de
participação, porque as comunidades estão “escaldadas” pelas falsas
promessas.
O mesmo autor aponta um levantamento sobre o pensamento dos povos
latino-americanos sobre a situação que enfrentam: apenas 17% disseram
estar vivendo melhor que seus pais; mesmo assim, a maioria prefere o
19
20
KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 18-19..
KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 40.
146
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
sistema democrático de governo (mais de 60%), embora estejam
insatisfeitos e desesperançados; é um sistema que atende os anseios de
apenas 35% das pessoas ouvidas. Aparecem cerca de 20% desejando
regimes autoritários. Só para uma comparação, na União Européia, a
democracia é considerada eficiente para 47% das pessoas, enquanto na
Dinamarca, esse índice chega a 84%.21
TÉCNICAS DE PARTICIPAÇÃO
Há dois fenômenos da administração pública contemporânea, vistos
por Massimo Giannini:22 abertura do processo administrativo a qualquer
portador de interesse e o desenvolvimento de instrumentos de
administração consensual. No primeiro caso, o fenômeno está ligado à
processualidade ampla, enquanto no segundo, encerra a expansão da
consensualidade na atividade administrativa pública. Assim para o superior
atendimento de inúmeros interesses públicos, convém mais ao Estado
ser parceiro do que órgão de coerção.
O professor Diogo Moreira Neto fala de institutos polivalentes e
univalentes de participação. Os polivalentes são aqueles que se dirigem à
atuação de quaisquer entes ou poderes do Estado, como a representação
política, a publicidade, a informação, a certidão e a petição. Os univalentes
(ou específicos) são os que se destinam especificamente a determinadas
ações realizadas pelo Estado, como a coleta de opinião, o debate público,
a audiência pública, o colegiado público, a co-gestão de órgão ou entidade,
a assessoria externa, a delegação atípica, a provocação de inquérito civil,
a denúncia aos tribunais ou conselhos de contas a reclamação relativa à
prestação de serviços públicos.23
AUDIÊNCIA PÚBLICA
Agustín Gordillo relata a existência de um direito constitucional
implícito à audiência pública prévia, antes da adoção de medidas que
possam afetar a coletividade, previsto na Constituição Nacional argentina,
nos arts. 42 e 43, e de forma explícita na Carta Constitucional de Buenos
KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 13.
Apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 199.
23
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit. P. 203.
21
22
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
147
Aires.24 Ele considera esse um direito substantivo e adjetivo de incidência
coletiva, e também um direito subjetivo. Pode ser aplicada em relação a
todos os serviços públicos privatizados, sob condições de monopólio.
Sua utilidade prática, na Argentina, segundo o autor, tem demonstrado
ser um instituto insubstituível e que obriga as autoridades a ouvir as razões
e avaliar alternativas antes de tomar decisões que afetam o meio ambiente
ou a comunidade, de qualquer outra forma. Há decisões na jurisprudência
Argentina de anulação de atos que prescindiram da audiência pública antes
de serem editados. Gordillo afirma que o Judiciário deve conceder medidas
cautelares para que se realizem audiências públicas antes de decisões que
afetarão direitos dos usuários.
O direito à audiência pública ainda está implícito, segundo o autor, no
Pacto de San José da Costa Rica, artigo 23.1; Declaração Universal dos
Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e
Declaração de Direitos e Deveres do Homem.
Entre outros exemplos da audiência pública como um direito de
incidência coletiva, O ele relata a situação concreta do reajuste de tarifas
telefônicas, na década de 90, que só foi estabelecido após a Justiça conceder
à população o direito de avaliar o assunto em audiência pública.
ORIGEM
A audiência pública tem origem no direito anglo-saxão, fundamentado
no direito inglês e no princípio de justiça natural, e no direito norteamericano, ligada ao princípio do devido processo legal (due process of
law).Para Agustín Gordillo, ela representa a garantia clássica de audiência
prévia e a garantia constitucional do devido processo em sentido
substantivo.25
DISTINÇÃO DE SESSÃO PÚBLICA E REUNIÃO POPULAR
Gordillo distingue a audiência da sessão pública, afirmando que, na
sessão pública, a platéia apenas assiste passiva, assim como os jornais e
emissoras de rádio e TV. Na audiência pública, a coletividade é parte
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho
Administrativo, 1998, T. II, p. II-41, tradução nossa.
25
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Op. cit., p. XI-1.
24
148
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
interessada e ativa,com direitos de natureza procedimental a ser
respeitados, direitos de oferecer e produzir provas e controlar as que são
produzidas e de fazer alegações. E a falta de sua ocorrência pode ocasionar
nulidade da decisão da Administração, como está previsto em algumas
leis, especialmente as que dizem respeito a serviços concedidos. Mesmo
quando a lei se referir apenas a “audiências”, deve-se ter esta conotação
de participação ativa, diz o autor.
Quanto às reuniões populares (town mettings, em inglês), são de caráter
informal, abertas ao público e apenas servem para troca de opiniões entre
a autoridade e os cidadãos.É o mesmo procedimento dos candidatos a
cargos públicos, só que nas town mettings, os funcionários utilizam o contato
para certificar-se de que estão atuando em sintonia com o que a população
deseja. O funcionário público ouve diretamente a população e recebe
informações que não vinculam sua atuação, apenas servem para orientação
destinada a melhorar o trabalho.
PRINCÍPIOS GERAIS
Gordillo recomenda não esquecer que as audiências públicas, embora
tenham caracteres semelhantes ao processo judicial, sempre terão natureza
administrativa. Ele aponta nove princípios gerais que regem o instituto
da audiência pública: o devido processo, a publicidade, oralidade,
informalismo, contraditório, participação, instrução, impulso de ofício e
economia processual. Alguns autores acrescentam a gratuidade.
O professor Diogo Moreira Neto desdobra em quinze princípios,
desmembrando ainda, o princípio do devido processo. Inicia com os
princípios fundamentais, previstos na Constituição brasileira: princípio
democrático – que se manifesta na legitimidade, ou a conformidade do
agir do Estado com a vontade popular; e desdobra-se nos princípios da
cidadania – (art. 1o., II, da CF), que reconhece no povo o poder político
elementar de decisão sobre a coisa pública; e da participação política –
(art. 1o., p. Único da CF) – que instrumenta o poder político, tanto para a
escolha dos dirigentes públicos quanto para a escolha do conteúdo político
ou administrativo das decisões consensualmente deliberadas. Aqui,
funciona como princípio informativo da audiência pública.26
26
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Mutações do direito administrativo. Op. cit. p. 206-209.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
149
A seguir, o autor trata dos outros princípios constitucionais: da
igualdade, da reserva legal, princípio associativo, da publicidade, do devido
processo, do contraditório, da ampla defesa; por último, princípios
desenvolvidos pela doutrina: da realidade, da lealdade, da motivação, da
proporcionalidade, e da prevenção de litígios.
A igualdade implica na proibição de tratamento diferenciado para os
participantes das audiências públicas; a reserva legal informa que a lei é
a única fonte de direitos e obrigações da Administração e dos participantes
da audiência; o princípio associativo resguarda a liberdade de manifestação
dos indivíduos, atendendo às previsões do art. 5o. da CF, como o
reconhecimento das entidades para representarem seus filiados; a
publicidade representa o direito à informação, tanto no interesse particular
quanto coletivo ou geral, destinada a fundamentar as decisões individuais
dos participantes; o devido processo implica em que, sendo a audiência
espécie processual administrativa, também deve respeitar as garantias do
devido processo, cercado do contraditório e da ampla defesa; o princípio
da realidade traduz no processo o senso comum dos participantes,
possibilitando que se definam os interesses que melhor satisfazem às
aspirações dos interessados; da lealdade, pelo qual o Estado deve atuar
sempre respeitando a boa fé dos administrados, não dando prioridade aos
seus interesses públicos derivados, jamais usando essa prática para
mascarar ou encobrir suas reais intenções; o princípio da motivação impõe
a enunciação expressa ou tácita das razões que determinam a realização
da audiência pública; da proporcionalidade, que pode ser aspecto da
razoabilidade e implica num sentido finalístico ao processo da audiência
pública, tentando limitar os sacrifícios decorrentes da ação da
Administração às vantagens esperadas pelos participantes, assim como
limitar o sacrifício individual exigido à correspondente compensação que
possa ser auferida individual ou de forma coletiva; a prevenção de litígios
traduz a necessidade de prudência da administração em esgotar todos os
meios para evitar os conflitos e demandas.
Agustín Gordillo faz uma abordagem interessante sobre o princípio da
gratuidade. Aventa a possibilidade de necessidade de gastos para produção
de provas ou assessoramento para instruir a audiência pública. Neste caso,
diz que o ressarcimento deve ficar a cargo da discricionariedade da
150
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
Administração. E quando a Administração resolver fazer as audiências
longe de sua sede, provocando gastos desnecessários aos usuários que
desejarem participar, poderá caracterizar-se desvio de poder, uma vez
que o propósito da Administração seja conseguir opiniões favoráveis às
decisões que pretende tomar. O autor cita o exemplo das audiências
públicas na Argentina para a reestruturação tarifária, em 1995 e 1996. Os
usuários alugaram ônibus e foram à audiência e os técnicos não colocaram
o tema em discussão. A decisão que autorizou as novas tarifas foi anulada
pelo Judiciário, por falta da audiência pública.27
Quanto aos gastos com publicidade, o autor sugere que a lei ou o
contrato de concessão de serviços concedidos, por exemplo, repassem às
concessionárias esses custos, que podem ou não ser transferidos às tarifas.
Nos EUA, as audiências para grandes projetos têm uma publicidade
especial, em página completa e ímpar dos grandes jornais (Washington Post
e New York Times) e em jornais dos locais onde haverá audiências públicas.
PREVISÃO LEGAL
Gordillo, ao contrário do professor Diogo, defende que a Administração
seja obrigada a realizar audiências públicas não apenas nos casos previstos
em lei ou regulamento, mas em todos os demais casos em que os efeitos
da decisão excederem o caso particular, e quando objetivamente seja
necessário para o exercício do direito de defesa dos usuários e outros
afetados, colaborando para maior eficácia e legitimidade jurídica e política
das decisões. Na Argentina, um decreto-lei nacional prevê nulidade à da
decisão por ausência de audiência pública ou a sua realização defeituosa.
PROCEDIMENTO DA AUDIÊNCIA PÚBLICA
a) pré-audiência
Gordillo informa que nos EUA, o Estado de Nova Iorque tem em sua
legislação a previsão de que preside a audiência pública pode acordar
para a celebração de uma pré-audiência para ordenar e simplificar assuntos,
acertar a troca de testemunhas ou documentos, limitar o número de
depoimentos, fixar datas e emitir instruções para o melhor desenvolvimento
do processo. Os fatos expostos na pré-audiência terão privilégio na
27
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Op. cit., p. XI-16.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
151
audiência definitiva. É uma espécie de saneamento do processo.
O autor afirma preferir uma pré-audiência obrigatória em todos os casos
em que está indicada, e discorda de assuntos privilegiados tratados em
pré-audiência, pois atenta contra o caráter público e igualitário do
procedimento. A lei do Estado de Wisconsin veda que os funcionários
envolvidos na audiência pública intervenham apoiando ou se opondo à
causa tratada. A interferência é só a suficiente para conhecimento dos
fatos. A legislação argentina prevê imparcialidade obrigatória ao instrutor
dos sumários administrativos.28
b) Regras sobre provas
Agustin Gordillo, afirma que o critério fundamental é a amplitude das
provas, e a adoção do princípio da razoabilidade para casos de
indeferimento. O registro dos atos pode ser feito por notas taquigráficas,
gravações de áudio e vídeo, mas deve sempre haver um tipo de registro
dos atos realizados.29
A legislação brasileira não tem instituto específico a regular o
procedimento de audiências públicas, mas a Lei 9.784/99 (do processo
administrativo), contém as regras gerais para todo procedimento
administrativo e que informam também a audiência pública. O art. 36
abre a possibilidade para apresentação de provas pelo interessado, assim
como indicá-las à autoridade, no caso de documentos e atos registrados
em órgãos públicos, os quais serão providenciados de oficio pela
autoridade (art. 37).
A recusa de provas só pode ocorrer caso sejam ilícitas, impertinentes,
desnecessárias ou protelatórias (não há o conceito desses adjetivos) – art.
38 – e a decisão deve ser fundamentada.
Os despachos e decisões deverão ser motivados sempre que impliquem
em limitação ou agravamento da situação dos litigantes, e ainda em casos
específicos do art. 50 da Lei do Processo Administrativo.
c) As partes na audiência pública
Em princípio, a legislação brasileira não veda a presença de qualquer
pessoa aos procedimentos públicos de natureza consultiva em que é
admitida a presença dos cidadãos comuns. Na Argentina, segundo Gordillo,
28
29
GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI-19.
GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI-20.
152
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
podem ser admitidos cidadãos portadores de direito subjetivo, interesse
legítimo e, mais modernamente, também interesse difuso; pessoas públicas
supranacionais, internacionais, ou simplesmente privadas. É necessário
estar presente também um defensor do usuário, um fiscal ad hoc, além do
que se chama de Defensor do povo da Nação.30
AUDIÊNCIA PÚBLICA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
No Brasil, o art. 1o. da Constituição prevê que “todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”. O professor Diogo aponta a existência
de mais de uma centena de dispositivos de um Direito de Participação na
Constituição Federal. Entretanto, afirma que a adoção da audiência pública
depende de previsão legal que lhe defina o processo e a eficácia, mesmo
nos casos previstos na Constituição:
a) Previsão constitucional
A Constituição Federal tem várias previsões expressas ou implícitas do
uso da audiência pública pela Administração. Estão nos seguintes
dispositivos: art. 29, XII – cooperação das associações representativas no
planejamento municipal; art. 194, parágrafo único, VII – participação da
comunidade nas decisões sobre a seguridade social; art. 198, III –
participação da comunidade nas ações e serviços públicos de saúde; art.
204, II – a participação da população através de organizações
representativas na formulação de políticas de assistência social; art. 225,
caput – implicitamente impõe à sociedade o dever de atuar para defender
e preservar o meio ambiente; art. 58, parágrafo 2o., II - adoção nominal
pelas comissões do Congresso Nacional, nas matérias de sua competência,
de audiências públicas com entidades da sociedade civil.
b) Legislação infraconstitucional
Nas leis ordinárias, há algumas previsões sobre a utilização da audiência
pública, como nos seguintes dispositivos: Lei 8.666/93 (Licitações e
Contratos administrativos), art. 39, prevê a realização de audiência pública
em casos de projetos que seja superior em cem vezes ao valor da
concorrência pública. Neste aspecto é preciso reconhecer que muitos
grandes projetos ficam em menos de 100 vezes esse valor e não obrigam
a audiência. Embora a lei não diga, a interpretação mais apropriada parece
30
GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI- 22.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
153
ser a de que a previsão tem efeito vinculatório e anula o procedimento em
sua falta, sempre que isto resulte prejuízos ao erário público ou aos
particulares.
No que se refere ao meio ambiente, o art. 225 da Constituição, caput,
encontra-se regulamentado no art. 8o., II da Lei 6.938, que instituiu o
Conselho Nacional do Meio Ambiente, autorizando a convocação de
entidades privadas para atuar informativamente na apreciação de estudos
de impacto ambiental.
A resolução 009/87 do Conama regulamentou a previsão prevendo a
realização de audiência pública sempre que julgar necessário ou quando
solicitada por entidade civil, pelo Ministério Público ou por mais de
cinqüenta cidadãos. Quando solicitada e não realizada a audiência, a licença
ambiental será invalidada.
A Lei n. 9.784/99 (do Processo Administrativo) prevê, no art. 32, a
possibilidade de audiência pública para debates sobre a matéria objeto de
processo administrativo, antes da tomada de decisão, sempre haja
relevância da questão, a juízo da autoridade. No art. 33, a lei abre à
Administração uma brecha para adotar outras formas de participação dos
administrados, diretamente ou por associações.
A legislação que trata das concessões e permissões de serviços públicos
traz previsão sobre o assunto. A lei 8.897/95, no art. 3 o., fala em
cooperação de usuários na fiscalização das concessões, o que, tacitamente,
segundo o professor Diogo Moreira Neto, autoriza o Poder público,
discricionariamente, a regulamentar as audiências públicas.31 A Lei 9.074/
95 confirmou a previsão no art. 33, transferindo ao poder concedente a
escolha da forma de participação dos usuários na execução da fiscalização.
O bom senso parece impor a obrigatoriedade de adoção do
procedimento da audiência pública sempre que seja esse o melhor meio
para realizar essa fiscalização, isto aferido em critérios técnicos e não
políticos, como forma de melhor preservar o interesse público e os
interesses dos cidadãos. Nesse caso, o Poder Público estaria obrigado a
adotar a audiência pública.
Finalmente, o art. 37, p. 3o, da CF, acrescentado pela emenda 19, previu
regulamentação, por lei, da participação dos usuários na administração
31
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit., p. 217.
154
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
pública, inclusive quanto às reclamações e ao exercício negligente ou
abusivo da função pública. A Emenda 19 fez quatro anos e a lei não foi
editada.
Parece que aí estaria a oportunidade para o legislador criar na lei federal
a previsão genérica para a realização das audiências públicas como forma
de participação da sociedade na decisão sobre políticas públicas,
fiscalização, etc.
VANTAGENS DA AUDIÊNCIA PÚBLICA
Entre as vantagens do procedimento da audiência pública, o professor
Diogo Moreira Neto anota algumas consideradas mais significativas: 32
evidencia a intenção do administrador de produzir a melhor decisão;
galvaniza o consenso em reforço da decisão que for adotada; demonstra o
cuidado com a transparência dos processos administrativos; e renova o
diálogo entre os agentes políticos e seus eleitores.
Agustín Gordillo anota como vantagens a garantia objetiva de
razoabilidade para o administrado; é mecanismo idôneo de formação de
consenso da opinião pública a respeito da juridicidade e da conveniência
da atuação da Administração; é garantia objetiva de transparência dos
procedimentos estatais, uma transparência que é exigida pela Convenção
Interamericana contra a Corrupção – pois a luz do sol é o melhor desinfetante
e a melhor polícia; é elemento de democratização do poder e modo de
participação cidadã no poder público.33 Assim, diz o autor, o fundamento
da audiência pública é duplo: serve de um lado, ao interesse público para
que não se produzam atos ilegítimos; ao interesse dos particulares de poder
influenciar com seus argumentos e provas antes da tomada de uma decisão
importante e, ainda, serve para diminuir o risco de erros de fato e de
direito para as autoridades públicas, com conseqüente eficácia de suas
ações e consenso que podem conseguir na comunidade.
CONCLUSÃO
A audiência pública é um direito de participação que integra a
democracia chamada de direito de quarta geração, junto com os direitos
32
33
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit. P. 211.
GORDILLO, Agustín. Op. cit, p. XI-9.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
155
individuais, sociais e de fraternidade, todos integrantes da categoria de
direitos humanos, conforme as teses da doutrina moderna sobre o tema.
Apesar dessa constatação e embora a democracia seja a forma de
governo de maior expansão no mundo nos últimos séculos, especialmente
na América Latina, e em que pesem os avanços nas legislações, o que se
percebe é que os direitos de participação das comunidades não
acompanharam o mesmo ritmo da ampliação das democracias.Nos países
latino-americanos, a constatação é de que o discurso de participação
popular é contundente, mas a prática, nula. Mesmo em países
desenvolvidos nota-se o descuido dos governantes para com a opinião de
seus governados acerca da administração pública.
A audiência pública mostra-se um mecanismo eficiente na busca do
aperfeiçoamento dos mecanismos de definição das prioridades de
investimentos estatais nas chamadas políticas públicas, uma das atribuições
dos governantes que maiores criticas tem gerado nos últimos tempos.
É uma técnica que integra a classe dos institutos univalentes de
participação, conforme a conclusão esboçada neste trabalho do professor
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, já que se destina à avaliação de
atividades específicas a serem desenvolvidas ou em desenvolvimento pelo
poder público, diferentemente das técnicas polivalentes, as quais se prestam
à consulta de temas genéricos da administração pública.
O procedimento deve obedecer uma série de princípios, nos moldes
dos processos administrativo e judicial, de modo a facilitar a amplitude
do procedimento em relação às partes e às provas.
No Brasil, o instituto da audiência pública não tem previsão genérica
na Lei Maior, como é o caso da Constituição argentina, da legislação
americana, entre outros países. Alguns dispositivos da Carta brasileira
contemplam a possibilidade de audiência pública. A legislação
infraconstitucional prevê poucos casos em que ela deve ser aplicada, e
vários outros em que é um mecanismo a ser usado conforme decisão da
autoridade, neste caso, de forma discricionária. A oportunidade para o
legislador brasileiro incluir o direito de audiências públicas de forma
genérica na legislação ordinária parece ser na edição de lei complementar
ao art. 37, parágrafo 3o. da Constituição, acrescentado pela Emenda
Constitucional n o. 19, que trata da participação dos usuários na
administração pública, a qual deverá prever, inclusive, as formas de
156
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
reclamação acerca de atos abusivos e de excesso de poder, praticados
pela Administração.
BIBLIOGRAFIA
ARGENTINA. Constitucion de la Nación Argentina. Buenos Aires:
Ediciones Ciudad Argentina, 1995.
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua
Nova - Revista de cultura e política.São Paulo: Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea, 1994, no. 33.
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social.6. ed. rev. e ampl.
São Paulo: Malheiros, 1996.
CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio
de Janeiro: Forense, 1989.
DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 5. ed. Buenos Aires: Ediciones
Ciudad Argentina, 1996.
GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo, e FERNANDEZ, TomásRamón. Curso de direito Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo:
Revista os Tribunais, 1990.
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires:
Fundación de Derecho Administrativo, 1998, T. II.
KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. Trad. de
Sandra Trabucco Valenzuela e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Cortez;
Brasília, DF: Unesco, 2001.
KOMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.
2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001.
MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1993.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder – parte I. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
__________. Legitimidade e discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001.
__________. Mutações do direito administrativo. 2. ed. atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002.
157
158
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.
Download

Baixe o artigo aqui