A filha do escritor
A filha do escritor
Gustavo Bernardo
Este livro foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural
Copyright © 2008, Gustavo Bernardo Galvão Krause
Capa
Retina 78
Revisão
André Marinho
Produção editorial
Lucas Bandeira de Melo
CIPBRASIL. CATALOGAÇÃONAFONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
B444f
Bernardo, Gustavo, 1955A filha do escritor / Gustavo Bernardo. - Rio de Janeiro: Agir, 2008.
Programa PETROBRAS Cultural
ISBN 978-85-220-0971-8
1. Romance brasileiro. 2. Programa Petrobras Cultural. I. Título.
08-2786.
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3
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À minha filha,
Adriana Krause.
loucura
loucura
como fosse assim
uma prosa indireta
Sumário
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 : A perturbação
15
 : Tão bonita
23
 : Alma fendida
27
 : 1872
37
 : A irmã
43
 : O quarto 22
51
 : Déjà lu
57
 : Je ne suis pas fou
67
 : A confabulação
75
 : Há ou não há
87
 : O fundo do poço
91
 : Como se
95
 : A Casa Verde
99
 : Quente
103
 : A viagem
111
 : A morte do Poste
117
 : Hipóteses e ficções
125
 : Foi ele
131
 : Encantado ao contrário
135
 : O pai
137
 : Medice, cura te ipsum
147
 : Nunca
 
A perturbação
Ela me perturba. Eu reconheço isso: ela me perturba. Mas não
deveria. Não podia. Eu sou o médico. A faca e o queijo, isto é, o bisturi
e o bloco de receitas, ambos estão na minha mão. O caso deveria ser
simples, relativamente simples.
Lívia é esquizofrênica. Ela é esquizofrênica.
Estou me repetindo para tentar me convencer do meu próprio
diagnóstico? Não é verdade nem necessário. Acontece que quando
eu fico perturbado acabo repetindo uma palavra ou outra, às vezes
até uma frase ou outra.
Essa repetição é mero resquício de um problema da adolescência.
Durante aquela fase complicada para todo mundo eu gaguejava um
pouco, mas depois o problema se curou sozinho. Como médico, não
podia passar insegurança aos pacientes ou a seus parentes. Devo ter
decidido que não seria mais gago, ou então a gagueira decidiu que
não iria mais me incomodar, não importa.
Mas ela – Lívia, não a gagueira – me incomoda. Então volta esse
tique remanescente, essa repetição de frases muito de vez em quando.
É apenas um tique, não tenho dúvida sobre o diagnóstico de Lívia.
Minha dúvida é sobre como tratá-la. A esquizofrenia se manifesta
sob muitas formas e portanto pode ser tratada de várias maneiras.
Essa dúvida é uma dúvida clínica normal, também não é isso que
me perturba.
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 
Então, qual é o problema? Por que ela me perturba? Boa pergunta.
Boa pergunta. Não é o diagnóstico que perturba, nem as alternativas
possíveis para o tratamento, mas a história que ela conta. Ela conta,
como se fosse realmente a sua própria vida, uma boa história: uma
história altamente elaborada que sugere refinada pesquisa e igualmente sofisticada arrumação dos elementos pesquisados.
Como alguns esquizofrênicos, minha paciente parece ter um
coeficiente de inteligência muito alto, da ordem de cento e oitenta
pontos – você sabe, acima de cento e trinta já encontramos uma
inteligência superior, assim como abaixo dos setenta encontramos
uma inteligência inferior, isto é, praticamente a debilidade mental.
A escolaridade dela, no entanto, é nitidamente precária. Seus estímulos familiares devem ter sido frágeis, embora ainda me faltem
elementos mínimos para reconstituir sua vida familiar. Faltam-me
inclusive documentos de identificação, como carteira de identidade
ou certidão de nascimento: Lívia ou não os trouxe ou nem os tinha
consigo para trazer.
Sei que alguns pesquisadores relacionam esquizofrenia com
inteligência superior, como se uma coisa levasse à outra ou fosse
causa da outra. Mas no meu parco entender essa inferência se mostra
deveras apressada. Tantos matemáticos, tantos artistas demonstraram
inteligência muito acima da média e nem por isso foram internados
como esquizofrênicos. Também não vale afirmar que eles seriam
esquizofrênicos disfarçados.
Salvo melhor juízo, a esquizofrenia, termo que vem do grego “alma
fendida”, é uma doença mental devastadora que impossibilita o mínimo desempenho social, logo, o mínimo convívio social. Ninguém pode
conviver bem ou sequer fingir que convive bem com a sensação, pior,
a certeza de que é dois, ou de que há vários dentro de si mesmo.
Há autores que dizem o contrário? É verdade, existem aqueles
que não concordam com o que nós psiquiatras defendemos. Mas não
   
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os respeito muito, de qualquer forma. Respeito a minha experiência,
respeito os meus mestres, respeito o que vejo. Os esquizofrênicos
são devastados moral e afetivamente por sua doença, ponto. Não é
exatamente o caso de Lívia?
Muito inteligente e bonita, pode-se dizer que muito bonita, pela
combinação da cor da pele com os traços finos do rosto, e não pode
ter uma vida normal, não pode ter um marido normal, não pode nem
ousar pensar em filhos normais. Por isso, inventa o pai e o filho, e
por isso está aqui, presa neste mesmo hospital em que moro, presa
aqui comigo – embora eu não me encontre preso de fato, mas apenas
atendendo os internos como ela.
Por que ela está presa, ou melhor, internada? Ora, porque insiste
em dizer que seu pai é um escritor famoso e que ele se chama Machado de Assis.
É verdade que um escritor famoso com esse nome de fato existiu
– mas ele morreu cerca de cem anos atrás.
 
Tão bonita
Ela me perturba. Sei que eu já disse isso, mas que posso fazer: ela
me perturba. Ela não tem culpa de me perturbar assim, ou pelo menos
não tem culpa exclusiva. Estou cansado. Por estar cansado, decerto me
torno propenso a uma e outra perturbação no meu ânimo. Além de
cansado, também me encontro sozinho, minha família, meus parentes
em outra cidade, a setenta quilômetros de distância daqui.
Preciso me manter no meu posto, precisamente neste lugar, porque
este lugar é muito bom para a minha carreira e para as minhas pesquisas sobre a doença de que falamos, mas se eu não fosse psiquiatra
há tanto tempo talvez eu mesmo enlouquecesse.
Dia e noite, paredes brancas. Noite e dia, paredes brancas. Dia após
dia, noite após noite, pacientes mais ou menos neuróticos, mais ou
menos psicóticos, mais ou menos esquizofrênicos ou oligofrênicos.
Dia e noite. Noite e dia. Paredes brancas. Esquizofrênicos. Oligofrênicos.
Pára. Pára, o.k.? Não me provoque, não preciso disso. Os outros
pacientes são parte do meu dia-a-dia, tiro-os de letra, como se diz.
Eu falo agora é sobre a perturbação de Lívia. É, sobre a minha perturbação com Lívia — preciso sempre dizer todos os possessivos e
conectivos?
Estou, estou irritado, qual é a surpresa?
Respiro. Respira você também, para poder me escutar direito.
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 
Ninguém a trouxe para o hospital, nem parentes nem ambulância
chamada por vizinhos. Ela chegou sozinha e por suas próprias pernas,
calmamente subiu a escadaria da entrada e se apresentou na portaria.
Bom dia, meu nome é Lívia. Sou filha de Machado de Assis, o
escritor. Marquei encontro aqui com o meu pai, preciso encontrá-lo.
No entanto, não sei o dia certo em que ele virá, por isso gostaria de
me hospedar no seu estabelecimento.
Engraçado? Não sei. Não achei. Você a viu, naquele dia mesmo
– ela não o viu, ainda bem. Como eu estava de plantão, me chamaram. No hall ela me repetiu o mesmo discurso introdutório: bom
dia, meu nome é Lívia, et cetera. O senhor é o gerente? Não, não sou
o gerente, respondi. Meu nome é Joaquim e... e ela me interrompeu,
perguntando: também?
Não entendi o porquê do “também”. Então, ela me explicou que o
nome do seu pai também era Joaquim. Mas a senhora não disse?...,
sim, Machado de Assis: Joaquim Maria Machado de Assis.
Ah, vivendo e aprendendo. Agora eu sabia o nome completo de
Machado de Assis, para o que quer que isso me servisse. Sorri, pensando: se eu fosse psicanalista, a transferência já teria começado. No
instante seguinte, porém, me dava conta de que o nome do pai dela
de verdade podia não ser Joaquim, aliás era muito provável que não
fosse Joaquim.
De qualquer forma lhe respondi, meio atrasado, que sim, também:
meu nome é doutor Joaquim, sou o médico de plantão hoje. Preciso
esclarecer, minha senhora, que este lugar não é exatamente um hotel,
mas sim um hospital para pessoas com problemas mentais. A senhora
tem certeza de que veio ao lugar certo?, perguntei, com a sensação
de que a pergunta era retórica: claro que ela sabia que tinha vindo
ao lugar certo.
Eu sei que isto não é um hotel, ela respondeu, confirmando seu
discernimento. Ainda assim, preciso me hospedar no seu estabele-
   
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cimento para, na hora adequada, me encontrar com meu pai. Está
certo, respondi, anotando mentalmente que ela insistia em dizer
“estabelecimento” no lugar de “hospital” ou dos termos mais precisos:
sanatório, nosocômio, manicômio, hospício.
Vamos para o meu consultório, eu disse, enfatizando a palavra
“consultório”, para uma primeira consulta e anamnese do seu caso
– enfatizando as palavras “consulta” e “anamnese”. Com um pequeno
sorriso, que não me pareceu nem espantado nem irônico, ela me
acompanhou tranqüilamente. Quem ficou com um sorriso irônico
na boca, os olhos baixos, foi a atendente da portaria.
Enquanto caminhávamos para o meu consultório, atravessando
dois corredores em níveis diferentes e subindo as escadas que os ligavam, eu observava que ela se vestia bem, com um vestido discreto
mas fino, de cor branca. Não trazia nenhum tipo de bolsa, logo não
tinha nenhum tipo de documento com ela, como sói acontecer com
os raros pacientes que chegam até nós por sua própria conta.
Entretanto, parecia se cuidar e cuidar da higiene pessoal: ela não
cheirava mal, ou melhor, cheirava bem, exalando um perfume tão
suave e discreto quanto o vestido. Bem mais baixa do que eu, mas
acompanhava minhas passadas sem dificuldade. De soslaio, andando, aproveitando a circunstância de ela olhar apenas para a frente,
eu observava seu perfil, a cor da sua pele, as curvas definidas do seu
corpo, o que acabou por me sobressaltar: tropecei no degrau da escada
e quase fui ao chão.
Ela não tentou me segurar, mas mostrou simpatia quando me
reequilibrei: o senhor se machucou? Não, não me machuquei, obrigado, desculpe – digo, está tudo bem.
Meu sobressalto era óbvio: por um instante eu a via não como
médico, mas como homem: um homem que ficaria sozinho dentro
de uma sala fechada com uma mulher que naquele momento lhe
parecia bela, bela de meter medo. Ao mesmo tempo, ela se anunciava
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 
louca, quero dizer, esquizofrênica, o que os exames e o inquérito muito
provavelmente confirmariam. Essa condição lhe emprestava uma aura
de fantasia escura que suscitava, então, lástima.
Como uma mulher tão bonita...
Era melhor que eu parasse de pensar nela como uma mulher
bonita. Se eu consegui parar de pensar nela desse modo? Você é
inteligente, o que acha? Claro que não consegui, senão ela não me
perturbaria tanto.
Todavia, não tire nenhuma conclusão apressada, como a de
que eu não poderia tratar dela, ou a de que eu não posso continuar
tratando dela. Estamos apenas no começo da história e do caso. Há
outras variáveis em jogo, deixando-me na posição de ser o único a
poder tratar de Lívia.
Arrogância? Pretensão? Não julgue tão rápido, já lhe pedi. Pelo
menos por um tempo, me concede a suspensão do seu juízo? Obrigado, aprecio sua condescendência.
No consultório, assumi minha posição detrás da mesa de madeira
branca e ela sentou-se à minha frente, sem parecer especialmente
tensa. Peguei minhas fichas e a caneta de estimação: como um médico das antigas, continuo escrevendo tudo primeiro em fichas de
cartolina, daquelas que se usam em biblioteca, sabe como são?, para
apenas mais tarde, sozinho, passar para o computador. É bem mais
fácil levantar os olhos das fichas brancas para encarar o paciente do
que fazê-lo com o computador, sua tela luminosa me agarra e me
aliena do outro, justamente aquele a quem preciso olhar bem.
Antes de pegar seus dados, expliquei que éramos um hospital
particular mas, como parte do financiamento vinha do poder público, atendíamos também de graça. Para saber qual era a situação
dela, perguntei-lhe se tinha plano de saúde, quase adivinhando a
resposta negativa. Adivinhei errado: ela parecia nem saber o que era
exatamente esse tal de “plano de saúde”, deixava o plano para a sua
   
19
saúde nas mãos de Deus. Coloquei-a então na cota da prefeitura, da
ordem de dez por cento dos nossos atendimentos.
Seu nome?, perguntei. Lívia, ela tornou a responder, como se
já não tivesse dito seu primeiro nome pelo menos duas vezes. Seu
nome completo, por favor?, pedi. Lívia de Assis, ela respondeu, com
a mesma tranqüilidade. De Assis, claro. Machado de Assis. Casada?
Viúva, disse, mas se apressou em explicar que enviuvara muito cedo,
por isso continuava a usar o sobrenome de solteira, portanto o nome
do pai.
Certo, disse eu. Parentes próximos? Um irmão, mas o perdi de
vista, não sei onde ele mora. Carteira de identidade? Não tenho, respondeu tranqüilamente. Certidão de nascimento? Não está comigo,
respondeu, com a mesma tranqüilidade. Cê-pê-efe? O senhor me
desculpe, não sei o que é isso, respondeu, um pouco menos tranqüila.
Certo; tem filhos?
Nessa hora seu rosto se iluminou e virou para o lado direito,
enquanto levantava o braço para afagar o ar: sim, esse rapaz, ele
não é bonito?; chama-se Luís e vai completar seis anos de idade no
próximo mês.
Por mais que eu fosse treinado, por mais que tivesse estudado, não
consegui não me assustar e não me comover ao mesmo tempo. A doença a tornara uma atriz consumada. Seu movimento, sua expressão,
seu sorriso, até as lágrimas no canto dos olhos eram autênticas. Não
havia, é claro, ninguém do seu lado, ninguém chegara com ela, muito
menos um menino. Engasguei e não soube o que dizer.
Então ela voltou a baixar o braço e se voltou para mim, repentinamente preocupada: ele pode se hospedar comigo, não pode? Por
favor, não tenho com quem deixá-lo, ele só tem a mim no mundo. Eu
ainda tenho meu pai, mas ele não, ele só tem a mim no mundo.
Eu devia ter mostrado que não havia mais ninguém no consultório
além de nós dois, mas naquele momento não tive a iniciativa – ou a
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 
coragem. Se o filho era ilusório, o amor da mãe parecia muito real,
mais real do que eu já vira em muita mãe verdadeira.
Respondi que Luís podia ficar hospedado com ela. A seguir, corrigi:
ambos poderiam ficar internados no hospital. Ela deu um suspiro e
um sorriso de alívio, como se não tivesse escutado as minhas últimas
palavras, apesar de eu as ter cuidadosamente enfatizado.
As outras perguntas da ficha da paciente deram margem a uma
seqüência de evasivas e negativas que se mostravam, no entanto,
coerentes.
Onde a senhora mora? Aqui, respondeu de pronto, como se a
resposta não fosse absurda. Onde a senhora morava antes de morar
aqui?, especifiquei. No Rio de Janeiro. Em que bairro? No bairro do
Catumbi, respondeu, segura. Endereço, por favor? Não me lembro,
respondeu, com a mesma segurança. Desculpe: como não se lembra, se morava lá até há pouco? Simplesmente não me lembrando,
doutor Joaquim; não moro mais lá, portanto não preciso ir mais lá,
portanto não preciso mais me lembrar do endereço. O bairro, não
sei bem por quê, me ficou, mas talvez logo o esqueça também.
A resposta era espantosa e ao mesmo tempo lógica. Enquanto
tentava decifrar essa lógica, não me passava desapercebido que ela
acabara de me chamar de “doutor”, indicando que ao menos parcialmente sabia que não estava em um hotel e que eu não era, digamos,
o gerente. Para não deixar passar a oportunidade, bati novamente
na tecla do hospital-que-não-é-um-hotel: se eu sou um doutor, isso
não é um hotel, certo?
Certo, ela respondeu: senão o senhor estaria de terno elegante e eu
teria de pagar a hospedagem. Com esse adendo, comecei a especular
se a sua loucura não era mais esperta do que parecia, se ela não era
uma falsa louca querendo apenas casa, comida e roupa lavada.
Onde a senhora acha que está?, perguntei, para ouvir a mesma
resposta: em um estabelecimento. Em um estabelecimento hospita-
   
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lar para tratamento de doenças mentais, completei eu com todas as
letras. Não foi o que eu disse?, retrucou ela, com um sorriso triste.
Logo o sorriso se abriu mais um pouco para pedir que eu não me
preocupasse com Luís, seu filho ficava feliz em qualquer lugar, ele
brincava sozinho com as mariposas.
Abaixo da sua ficha, fui anotando: “mariposas”, “Luís”, “não pode
pagar”, “Machado de Assis”. Então lhe perguntei, o mais burocraticamente possível: o nome do seu pai, por favor? Machado de Assis, ela
respondeu, também burocraticamente, olhando para a ficha na mesa.
Logo a seguir, disse o nome completo do seu suposto pai, escandindo
bem as sílabas como se ditasse para mim: Jo-a-quim-Ma-ri-a-Macha-do-de-As-sis.
Levantei os olhos para estudar os dela e os movimentos do seu
rosto. Os músculos da face pareciam relaxados como se estivesse
dizendo o óbvio, como se realmente não estivesse inventando ou
mentindo, e também como se não estivesse fazendo alguma ironia
comigo. Fiz silêncio por alguns segundos, mas ela me encarou com
toda a calma. O nome da sua mãe?, perguntei então.
Curiosamente, foi apenas naquele instante que Lívia demonstrou
nervosismo. Mordeu o lábio, esfregou as mãos, olhou para o chão,
não respondeu. O nome da sua mãe, por favor?, insisti. Em voz muito
baixa, quase inaudível, ela respondeu: não posso lhe dizer. Por que não
pode me dizer o nome da sua mãe?, perguntei, elevando um pouco
a minha voz. Ainda falando em tom muito baixo, Lívia perguntou
de volta: o senhor não entende?; o senhor não entende por que não
posso lhe dizer o nome da minha mãe?
Por um segundo não atinei com o motivo, mas logo me ocorreu
uma hipótese coerente com a ficção que ela me trazia. Porque ela
não é a esposa do seu pai?, perguntei. Nervosa e triste, Lívia apertou
as mãos e confirmou, muito de leve, movendo a cabeça para baixo e
para cima. Eu não me lembrava do nome da esposa de Machado de
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 
Assis, mas resolvi lhe perguntar também isso: a senhora sabe o nome
da esposa do seu pai? Sei, respondeu Lívia, enquanto uma lágrima
isolada lhe escorria pela face: o nome dela é Carolina.
A lágrima escorrendo no rosto de Lívia quase provocou outra no
meu próprio rosto. Eu não estava vendo apenas uma moça que alucinava, mas parecia girar dentro da alucinação dela. Ainda por cima
tinha de voltar à escola, digamos assim, para pesquisar um pouco
sobre Machado de Assis e conferir o nome verdadeiro da sua esposa e
descobrir se havia alguma moça chamada Lívia e ainda algum menino
chamado Luís nas suas relações ou mesmo nos seus romances. Precisava fazer isso logo, minhas fichas já continham muitos elementos
para processar e outras tantas lacunas para preencher.
Recompondo-me, chamei a enfermeira de plantão, que, a propósito, atende pelo sugestivo nome de Leonela. Pedi-lhe que desse
o uniforme do hospital a Lívia, que guardasse suas roupas e que a
conduzisse a seu quarto, na ala dos pacientes mais tranqüilos, a ala
cinzenta. Não prescrevi nenhuma medicação, nem mesmo um calmante, já que ela se mostrava bastante calma. Apenas uma dieta leve,
disse a Leonela, que estranhou um pouco mas nada disse.
Quando ela saiu do meu consultório, com o mesmo sorriso triste
no rosto, as mãos encostadas ao corpo mas a esquerda parecendo
levar a criança imaginária com ela, observei novamente seus gestos
lentos, calmos e agradáveis, seu corpo jovem, firme e discreto. Quando
a porta se fechou atrás delas, comecei a tremer. Novamente segurei
o choro.
Se tomei aquele uísque? Você conhece a garrafa da gaveta, claro.
Uma dose. Bem, duas; para parar de tremer.
 
Alma fendida
Não vou repetir que ela me perturba, não se assuste. Encomendei na
internet alguns livros de e sobre Machado de Assis, mas eles ainda não
chegaram e ainda não os li, é claro. Faz um bom tempo que não leio literatura stricto sensu, só literatura médica e minhas próprias anotações nas
fichas dos pacientes. Vou ter de encarar, agora, logo Machado de Assis.
A ficha da paciente Lívia. Não preenchi o campo “idade”. Senti
um certo medo, confesso, de lhe perguntar quando nasceu, mais
especificamente: em que ano. E se ela me dissesse um ano do início
do século passado – ou pior, do século anterior ao século passado?
Na próxima consulta, farei essa pergunta e as outras, para demarcar
a extensão do seu delírio.
Um esquizofrênico, ao perder o contato com a realidade, pode ter
alucinações sim. No entanto, elas são sobretudo auditivas. A minha
paciente exibiu, porém, uma alucinação visual: um menino a seu lado.
Também se apresentou, e isso a destaca, como filha de um escritor
morto cerca de cem anos atrás, embora ela mesma não deva ter muito
mais de vinte anos de idade.
Aliás, ela manifesta a doença um pouco antes, não sei ainda quanto
antes, do normal em mulheres: enquanto nos homens a doença se
manifesta entre os quinze e os vinte e cinco anos, nas mulheres o
problema começa a aparecer entre os vinte e cinco e os trinta anos
de idade, ou seja, um pouco mais tarde.
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 
Vamos rever juntos: a esquizofrenia, nome dado por Bleuler ao
distúrbio conhecido anteriormente como “dementia praecox”, é uma
doença funcional do cérebro caracterizada pela fragmentação dos
processos mentais, acompanhada da dificuldade em estabelecer a
distinção entre experiências externas e internas. Correto? Correto.
Primariamente é uma doença cognitiva, mas gera efeitos, às vezes
devastadores, no comportamento e nas emoções. Claro está que Lívia
tem dificuldade em fazer a distinção entre suas experiências internas e
as experiências de toda a gente, mas não percebo ainda, com a mesma
clareza, a fragmentação em seus processos mentais. Eles são delirantes,
mas coerentes dentro do delírio, pelo menos até agora.
Eu sei que é cedo para fechar o diagnóstico, você sempre me diz
isso e eu sempre lhe respondo que é assim que eu trabalho: fecho o
diagnóstico o mais rápido possível para ajudar a pessoa o mais rápido
possível. Mas os sintomas da esquizofrenia não são os mesmos de
indivíduo para indivíduo, o que às vezes dificulta um pouco, outras
vezes muito, fechar o diagnóstico.
Tais sintomas podem aparecer de forma insidiosa, isto é, lenta
e progressivamente, ou podem aparecer de maneira brusca, isto é,
explosiva e instantaneamente. Não tenho como saber o que se deu
nesse caso específico, ninguém a havia trazido nem ela se referira a
nenhum parente.
Já pude constatar, na primeira abordagem, os chamados sintomas
positivos da esquizofrenia: o delírio verbal com o suposto pai, o delírio
visual com o suposto filho. Os sintomas negativos, como diminuição
das capacidades mentais, falta de iniciativa e indiferença emocional,
ainda não se mostraram. De toda forma, é normal que eles apareçam
somente depois da emergência dos sintomas positivos, ou seja, depois
da crise mais forte.
Dos cinco tipos usuais de esquizofrenia – paranóide, desorganizada, catatônica, indiferenciada e residual –, você vai concordar comigo
   
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que o tipo um, paranóide, é o que mais se adequa ao caso Lívia. Seu
delírio é relativamente bem organizado, embora ela não pareça ser
também desconfiada, reservada ou agressiva. Talvez seja conveniente
que lhe prescreva um neuroléptico a partir da próxima consulta, vou
avaliar isso. Não é necessário, e espero que não seja, colocá-la em uma
camisa-de-força ou prendê-la na cama, afinal ela nos procurou. A sua
história de encontrar com o pai no nosso “estabelecimento” pode ser
a sua maneira de pedir ajuda, pode ser a sua metáfora de contato.
Não deixa de ser bonita – a metáfora, não a paciente. A paciente é bonita também, já reconheci, mas agora estamos falando da metáfora.
Nem sempre o esquizofrênico, em particular, ou o doente mental,
em geral, são agressivos, eu sei. Vários estudos, alguns recentes, comprovaram que a incidência de comportamento violento é a mesma nos
dois grupos, o doente e o sadio. A pessoa considerada normal pode ser
tão violenta quanto a pessoa considerada louca, anormal. Poderíamos
dizer: os perturbados mentais nos assustam bastante, é verdade, mas
eles não nos agridem mais do que uma pessoa normal, como nós dois,
poderia fazê-lo. Isso, supondo que nós outros façamos parte do grupo
das pessoas normais.
Claro. Você tinha de dizer isso. Você sempre diz isso. Não tem graça,
não é científico, mas repete essa balela. Eu sei que o cientista desta sala
sou eu, mas nesse tempo todo vossa senhoria não aprendeu nada comigo? Cansativo. Cansativo. E não posso fazer muita coisa a respeito.
Por exemplo? Por exemplo, demiti-lo. Seria divertido, não? Não, você
não acha, é natural. E eu sei que não posso demiti-lo, você não é funcionário do hospital, era apenas força de expressão. Às vezes realmente
eu gostaria de demiti-lo da minha vida, se isso fosse possível.
Por quê? Por exemplo, porque esse seu discurso supostamente
crítico é afim à vulgata da psicanálise. Diz essa vulgata, nas mesas dos
bares: através do louco vemo-nos a nós mesmos, vemos como somos
loucos também. De louco e médico todos temos um pouco, não é
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 
mesmo? Não, não é tão simples. Você leu alguns dos meus volumes
encadernados da obra completa do Freud e não entendeu nada.
O próprio Freud sempre admitiu sua incapacidade de cuidar dos
esquizofrênicos: os parafrênicos, como ele preferia chamar, se desinteressam do mundo externo e dão foros de realidade a seu mundo
interno extravagante, o que os torna inacessíveis à psicanálise. Logo,
resta a... psiquiatria.
Resta quem? O psiquiatra.
Restamos nós, com todo o nosso arsenal de horror tão exaustivamente denunciado pelos filósofos da new age: os neurolépticos, os
eletrochoques, a insulinoterapia, a lobotomia, enfim, o manicômio
– como diz Lívia, “o estabelecimento”. Para os filósofos new age, a
loucura não é absolutamente uma doença, mas sim uma história: “a
história de uma viagem, de uma passagem ou de uma situação, da
qual a esquizofrenia era a forma mais aperfeiçoada porque traduzia
em uma resposta delirante o desconforto de uma alienação social
ou familiar.”
Vê como cito de cor e já traduzido? A propósito, está bem traduzido? Sim, eu também li Roudinesco. Os argumentos não me são estranhos nem parecem absurdos. Absurdo é achar que a “papoterapia”,
como dizia meu pai, velho homeopata, pode dar conta do problema
de uma Lívia, ou de que basta curar a família para curar a filha.
Como é que eu vou achar a família de Lívia? Como é que eu vou
achar o pai verdadeiro de Lívia? E se achar, como vou curá-los, e de
quê, para então curá-la?
A discussão é longa. Por isso mesmo, podemos dar por encerrada
essa nossa sessão.
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1872
A segunda consulta com Lívia foi mais longa. Quando Leonela
a trouxe, ela já usava o vestido azul claro das pacientes mulheres e
parecia bastante tranqüila. Sentou-se com dignidade, arrumando o
vestido como se o tivesse acabado de comprar no shopping.
Perguntei-lhe se dormira bem, confirmou-me que sim. Seu rosto
encontrava-se de fato relaxado, sem rugas, sem marcas, atraindo
meus olhos. Esforcei-me para baixar os olhos e passei a conferir nas
fichas minhas anotações e rabiscos. Perguntei-lhe, com cuidado, se
seu filho também dormira bem e como ele estava se sentindo morando no hospital.
Ela respondeu, abrindo um sorriso enlevado, que como ela ele
dormira muito bem e que como ela ele estava muito contente, querendo saber de tudo sobre o avô que encontraria. Neste momento, ela
completou, ele brinca com as outras crianças no pátio.
Há dois pátios no hospital. A paciente se referia ao pátio menor,
aquele para o qual as janelas dos quartos se abrem: apenas dois bancos
de pedra à sombra de uma única amendoeira já bastante idosa, no
centro de um retângulo de terra batida e sem grama, aqui e ali tufos
de mato insistente.
Como não internamos crianças, não era possível que Luís estivesse
brincando com as outras crianças. No entanto, como Luís também
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não existe, a ausência de crianças não chegava a ser um problema
para ele ou para mim.
Perguntei-lhe, então, se tivera bons sonhos. Ela me informou que
nunca sonhava. Eu lhe disse que ela sonhava, é claro, como todas as
pessoas neste mundo, embora não se lembrasse dos seus sonhos. Muita gente não se lembra dos próprios sonhos mas toda a gente sonha.
Ela me retrucou, com sua lógica severa, que se ela não se lembrava
era como se não sonhasse, pois quem senão ela teria acesso a seus
próprios sonhos?
A senhora tem razão, eu disse, em parte impressionado com seu
argumento, em parte para fazê-la pensar que marcava um ponto comigo. A senhora tem razão. Deixemos seus sonhos de lado, por ora.
Conte-me sobre a sua família: ontem se referiu a apenas um irmão
com o qual não tem contato, mas os seus parentes mais distantes, me
diga por favor quem são, o nome deles, por exemplo seus avós, tios,
primos, se eles também moram no Catumbi, no Rio de Janeiro, se
sabem que a senhora está aqui, se se preocupam com a senhora.
Ela hesitou em responder, olhando com atenção as fichas que eu
arrumava para começar as anotações do dia. O senhor vai escrever os
nomes dos meus parentes nesses cartões?, perguntou. Sim, respondi;
vou escrever os nomes dos seus parentes bem como toda informação
que puder me passar sobre a senhora, para melhor ajudá-la.
Mas o senhor já está me ajudando, não precisa fazer mais nada,
ela retrucou, fugindo de responder ao que lhe perguntara. O senhor
já está me deixando ficar hospedada aqui para esperar o meu pai,
sempre lhe agradecerei por isto.
Dona Lívia, disse eu, mal contendo a ironia, não creio que a
senhora tenha nos procurado apenas para que a hospedássemos no
nosso estabelecimento. Não, respondeu ela, eu os procurei para que
me hospedassem no mesmo lugar onde eu marquei encontro com
o meu pai.
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29
Não pude deixar de sorrir com a sua coerência interna. Certo, disse
eu, e fiz uma pergunta mais direta, para ver se a tirava do prumo: seu
pai ainda é vivo?
Seu rosto manifestou espanto genuíno: como eu poderia me
encontrar com ele se ele estivesse morto? Certo, disse eu, e para não
deixá-la respirar contra-ataquei, alterando de propósito a forma de
tratamento: em que ano você nasceu, Lívia?
1872, ela respondeu com toda a calma. A senhora quis dizer “1972”?,
perguntei, mesmo assim achando que ela não teria tanta idade. Não,
respondeu ela, com um sorriso de incredulidade: eu quis dizer o que
disse, 1872, senão eu teria perto de cento e quarenta anos de idade.
Parei de respirar e fiz a conta rapidamente em uma das fichas. A
sua matemática se mostrava totalmente invertida, mas correta: se por
absurdo a sua história fosse verdadeira, ela contaria de fato com bem
perto de cento e quarenta anos de idade. No entanto, ela se atribuía
todos esses anos se tivesse nascido em 1972, e não no século dezenove.
Uma conta se misturava com a outra e a minha cabeça girava, apesar
do meu treinamento em lógicas ilógicas.
De todo modo, preferi não corrigi-la. Anotei as contas na ficha,
sentindo um arrepio incômodo na base da nuca. Em que dia e em
que mês, por favor, perguntei, como se fosse um burocrata. Se não me
engano, primeiro de janeiro, doutor. Se não se engana? Em que dia
você comemora o seu aniversário?, perguntei, entre sorrisos. Nunca
comemorei meu aniversário, ela disse, abaixando os olhos. Nunca?,
espantei-me. Mas, por quê? Não posso responder a essa pergunta, eles
nunca me informaram isso. “Eles”, quem?, perguntei, enfatizando as
aspas. “Eles”, ora, respondeu ela, com a mesma ênfase: “eles” é sempre
o meu pai.
Não entendi bem o que aquela frase queria dizer mas a anotei
imediatamente: “eles é sempre o meu pai”. Parecia importante, assim
como o ano de 1872.
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Como disse na nossa conversa precedente, eu já encomendara
uma biografia de Machado de Assis e alguns dos seus romances,
provavelmente eles me dariam alguma explicação para Lívia ter
escolhido aquele ano em particular como o ano do seu nascimento.
Logo eu teria muita coisa para ler.
Levantei a caneta e voltei a perguntar, de bate-pronto: a senhora
sabe em que ano nós estamos? Não, ela respondeu também de batepronto e sem desviar os olhos, como se eu tivesse perguntado em que
ano Cleópatra nasceu.
Não? Não, ela insistiu, e ainda acrescentou: desculpe, eu não
tenho relógio.
Naquele momento, quando ela misturou de repente anos, horas
e relógios, eu não pude conter o riso, me vendo de repente frente a
uma comediante tarimbada. E, exatamente como uma comediante
tarimbada, ela não riu e perguntou do que que eu estava rindo. Pigarreei e lhe pedi por minha vez desculpas, era apenas uma piada
que me havia ocorrido.
O senhor não pensa as piadas, as piadas é que lhe ocorrem assim
como se tivessem vontade própria?, foi a vez de ela perguntar, como se
eu fosse o louco e ela, a médica. Fiquei de boca aberta por alguns segundos, que se estenderam por outros tantos porque ela não tirava seus
olhos límpidos dos meus. Quando finalmente consegui falar, pigarreei
novamente e preferi usar sua própria expressão para tentar escapar da
armadilha: sim, as piadas têm vontade própria e são muito perigosas.
Mas me diga, então, perguntei, para retornar às questões da consulta: em que cidade nós estamos?
Itaguaí, ela respondeu. Resposta correta, como sabemos.
Eu precisava confrontar seu delírio com a realidade, batendo o
ano de 1872 contra o ano em que estamos. Poderíamos determinar
a extensão da sua doença, sua possibilidade de cura ou não, a partir
desse confronto, que talvez fosse até mesmo um choque para ela.
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Tentei fazê-lo inicialmente através das coisas e dos aparelhos que
nos rodeavam naquela sala. Peguei primeiro o telefone da minha mesa
e lhe perguntei se ela sabia que aparelho era aquele. Ela respondeu,
corretamente, que era um telefone – acrescentando que o Imperador
tinha experimentado um, como ela lera nas folhas.
O telefone acabou de ser inventado, Dom Pedro II experimentou
um aparelho e eu já tenho outro na minha mesa? O senhor deve ser
realmente um doutor importante, concluiu ela. Por um instante me
senti envaidecido, mas no instante seguinte me senti um tolo que em
breve “daria uma ligadinha” para a Princesa Isabel.
Então virei a tela do monitor da minha mesa para ela e perguntei,
e isto, o que é? Lívia apertou os olhos, aproximou-se mais e disse, hesitante: não sei... é uma espécie de cinetoscópio? Ouvi falar disso, mas
não sabia que tinha cores tão bonitas.
Resisti à tentação de exibir os recursos do computador, como se a
minha paciente de fato estivesse desembarcando do século dezenove.
Sua fantasia resistia bem ao teste da realidade, adequando-se às minhas perguntas. Eu era quem tinha de lutar contra a minha própria
imaginação para não embarcar na fantasia da moça, se já avaliava que,
para uma mulher do século dezenove, ela se mostrava bastante bem
informada. Mas, consertando um pouco a pressa da minha avaliação,
podia concluir que obviamente Lívia tinha estudo e leitura, inclusive
do escritor que dizia ser seu pai.
No entanto, a abordagem do confronto e do choque não começava
muito bem, seria adequado recuar para usá-la novamente mais tarde.
Talvez fosse melhor partir de dentro da fantasia para tentar achar a
falha que a levaria de volta à realidade.
Lembrei que ela havia marcado encontro com o pai, o escritor
Machado de Assis, no nosso estabelecimento. Perguntei se o encontro havia sido marcado por telefone ou por e-mail. Não, nem uma
coisa nem outra; ele me escreveu uma carta e a mandou entregar
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por um menino. A senhora sabe o que é um “electronic mail”, ou em
português, um correio eletrônico? Não tenho idéia, ela respondeu,
mas suponho que deva ser algo bem diferente da carta que me foi
entregue em mãos pelo menino.
Ah..., retruquei, desconcertado com as respostas tranqüilas que
ela dava às minhas tentativas de desconcertá-la. E onde exatamente
o seu pai mora?, perguntei rápido, no esforço de me recuperar. Acho
que na região das Águas Férreas, na beira do rio Carioca. Anotei o
nome, percebendo que ainda teria de pesquisar, além da biografia do
suposto pai da minha paciente, a história do Rio antigo. A senhora
acha, não tem certeza?, destaquei. Sim, porque eu nunca fui lá; a
esposa do meu pai não é a minha mãe, eu nunca pude visitá-lo para
não constrangê-lo.
Resisti à nova tentação, a saber, a de lhe perguntar outra vez o
nome da sua mãe. Minhas perguntas não podiam tomar a forma de
um interrogatório policial.
Voltei ao pai e à carta: o que ele lhe dizia na carta? Ele me pediu
para encontrá-lo no mês em que estamos, na rua Nova, na Casa Verde.
Como o seu estabelecimento é o único prédio da cidade cujas janelas
são pintadas de verde, deduzi que esse era o lugar; como ele não disse
o dia exato, vim no primeiro dia do mês para esperá-lo aqui sem dar
margem ao azar. Eu quero encontrá-lo, ela enfatizou então, fechando
de leve o punho esquerdo sobre as pernas cruzadas.
O punho fechado sobre as pernas cruzadas. As pernas cruzadas,
os músculos da coxa bem desenhados no algodão azul do vestido. A
pele mulata, escura, bem destacada pela cor da roupa.
Respirei fundo. Respiro fundo agora, de novo.
O gesto de fechar o punho por cima das pernas não era especialmente erótico ou provocante, mas, não sei por quê, me provocou – me
perturbou bastante. Eu precisava escapar do seu punho e das suas
pernas; na hora, a única coisa que me ocorreu foi escrever furiosamente
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em uma, duas, três fichas de cartolina. Escrevi, no caso, várias vezes,
as mesmas palavras soltas, desconexas: dedos, dados, doidos; dedos,
doidos, dados; doidos, dados, dedos; doidos, dedos, dados; dados,
dedos, doidos; dados, doidos, dedos.
Mas logo me forcei a parar de escrever dedos, dados, doidos. Respirei fundo novamente e perguntei a Lívia como ela havia viajado do
Rio de Janeiro a Itaguaí, municípios próximos mas, de toda forma,
separados por dezenas de quilômetros. Viera de ônibus, de carro, de
motocicleta ou de trem?, perguntei, propositalmente omitindo as opções mais antigas e menos confortáveis, mas não de todo impossíveis,
como a cavalo, numa carroça ou mesmo a pé.
Não me lembro ao certo... respondeu a moça, hesitante. Decerto
não vim a pé, seria muito longe, o sol muito quente; mas isso é importante?, retrucou, tentando fugir da minha pergunta. Temo que seja
importante, dona Lívia, enfatizei, aumentando o nível de formalidade
da nossa conversa e me empertigando detrás de minha mesa.
Ela não pareceu se abalar ou se constranger: bem, se lhe parece
importante como cheguei do Rio de Janeiro à sua cidade, em alguma
hora vou me lembrar, o senhor não se preocupe. Temos tempo, me
parece, até o meu pai chegar. Talvez, tentou lembrar, ou disfarçar,
talvez eu tenha vindo no bonde dos burros?, ou então tenha tomado
um tílburi? Realmente não me lembro, mas, se isso é importante, eu
vou me lembrar, não se preocupe.
Ela se desviou da questão do transporte mas não muito bem, embora tivesse o cuidado de falar de meios anacrônicos de transporte,
como o bonde dos burros e o tílburi. Supus, então, que poderia tê-la
abalado pelo menos um pouco. Assim, mantive a carga e perguntei
se ela alguma vez havia se encontrado com seu pai.
Na verdade, nunca, ela respondeu, baixando os olhos e tremendo
os lábios de leve. Com aquele movimento, muito delicado, eu perdi
de novo a minha respiração. Assaltou-me a vontade idiota, pouco
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profissional, de tomá-la no colo como se ela fosse uma menina de
cinco anos de idade que se tivesse perdido do pai e da mãe no parque
de diversões. Logo me lembrei, porém, que ela não tinha cinco anos,
mas sim, a julgar por suas próprias palavras, algo em torno de cento
e quarenta anos de idade! Recompus-me rapidamente e lhe perguntei
como sabia, então, que seu pai era o seu pai verdadeiro e não, digamos,
um pai hipotético ou emprestado.
Ela voltou a me olhar, levemente indignada. Respondeu: minha
mãe nunca me escondeu o nome do meu pai, eu li o nome do meu
pai na minha certidão de nascimento, ele mesmo se correspondeu
comigo mais de uma vez!
Você, me desculpe, a senhora, a senhora tem a certidão do seu nascimento consigo?, tentei aproveitar a deixa. Aqui, não, ela disse; na verdade
preferi não trazer nenhum documento para essa estadia. Desculpe-me
novamente, pedi, mas é normal as pessoas carregarem seus documentos
para todo lugar, principalmente se estão longe de suas casas e até de
suas famílias; por que razão a senhora “preferiu”, como disse, não trazer
nenhum documento para sua estadia conosco?, perguntei.
Lívia baixou mais uma vez os olhos, cruzou as mãos sobre as
pernas já cruzadas e respondeu, a voz igualmente um pouco mais
baixa: senhoras não andam com seus documentos.
Desde quando... eu ia perguntar, mas me detive a tempo. A pergunta certa seria a contrária: desde quando as mulheres passaram a
andar com seus documentos na rua – provavelmente desde que as
mulheres começaram a votar, no início do século vinte.
Fiquei um pouco tonto: ao tentar reconstruir a história e o delírio
de Lívia, via-me jogado para lá e para cá entre três séculos distintos.
De toda forma, não conseguia devolvê-la à realidade, como se ela
estivesse ganhando aquele jogo de máscaras e relógios. Para me apoiar
em coisas mais tangíveis, lembrei-me de que sou um médico e lhe
perguntei qual era o seu tipo sanguíneo.
   
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Ela respondeu que seu sangue era “normal”. Só podia responder
isso, é claro, pois somente em 1900 descobriu-se a diferença entre
os tipos de sangue e, conseqüentemente, descobriu-se também por
que algumas pessoas morriam em decorrência de uma transfusão e
outras, não.
Agarrei-me no talonário de solicitação de exames (como um
náufrago se agarra a seu colete salva-vidas) e, escrevendo com pressa,
solicitei exames completos de sangue e de urina, bem como os eletros
de praxe: um eletrocardiograma e um eletroencefalograma.
Não, eletrochoque não é exame, é tratamento, a que hoje recorremos em situações bem mais restritas. Sim, ainda se usa, mas pouco,
de maneira bem controlada, e o caso de Lívia está longe de pedir esse
tipo de intervenção. Você sabe de tudo isso, por que pergunta? Não
sabe? Então deveria saber.
Sim, quase pedi uma tomografia do cérebro de Lívia, mas, primeiro, não temos tomógrafo no hospital e, segundo, certamente uma
tomografia não me daria resultados mais palpáveis do que os que
tenho até agora. A paciente parece fisicamente bastante saudável, de
fato muito saudável, e ainda não mostrou qualquer sintomatização
além dessas, de se apresentar como filha de Machado de Assis e de
acariciar a cabeça de um filho inexistente.
Eu ainda não me sentia seguro para lhe prescrever os neurolépticos, como haloperidol ou mesmo olanzapina. Ela, por seu turno,
mostrava-se absolutamente convicta quanto às suas fantasias, o que
aumentava a minha própria insegurança. A medicação poderia detonar a agressividade e a auto-agressividade que ainda não tinham se
manifestado, ou pior, poderia empurrá-la para um quadro depressivo
à beira da catatonia.
Encerrei a consulta um pouco abruptamente, chamando a enfermeira que faz plantão nos meus turnos para levar a paciente de volta
a seu quarto e providenciar os exames. Leonela chegou rapidamente,
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sorrindo de leve, o que não era nada comum para ela. Assim como a
atendente na portaria, Leonela também parecia se divertir com o caso,
caso este que ainda não lhe dava nenhum trabalho maior, mas fornecia
histórias para comentar no refeitório e contar em casa, à noite.
Lívia se levantou, calma e dócil, para acompanhar a funcionária,
não sem antes desejar boa tarde, doutor.
Bo-boa tarde, Lívia, respondi, e me irritei comigo mesmo. Esperei
elas saírem para dar um soco na minha mesa, fazendo saltar minhas
anotações e quase jogar no chão o monitor.
 
A irmã
Por que me irritei comigo mesmo? Sua pergunta quer me irritar
mais ainda, já que você sabe a resposta. Porque gaguejei, ora. Fazia
muito tempo que não gaguejava. Foi apenas uma palavra, e uma
palavra pequena, mas bastou para me irritar.
Normalmente me sinto mais seguro e mais forte quando atendo
os pacientes do hospital, eles se mostram tão frágeis e tão inseguros.
Com Lívia, acontece o contrário.
Ela chegou sem nada, mas calma e firme como se estivesse com
tudo, como se realmente não precisasse de nada a não ser dela mesma.
Para piorar, ela é bonita. Sua beleza não tem nada de atriz de novela,
muito menos lembra uma modelo anoréxica: as curvas estão todas
no lugar. Essa beleza é ao mesmo tempo familiar e estranha: familiar
porque lembra as salas de visitas nas casas antigas, e estranha porque
parece pertencer ao terreno do sonho.
Do meu sonho, sim.
Mesmo a contragosto, eu conto tudo para você. Na falta de um
supervisor de verdade, só posso contar com você. Que fazer. Usualmente o trabalho me basta, mas a chegada dessa mulher intensificou a
sensação de solidão. O fato de ela ser jovem e bonita ajuda e atrapalha
ao mesmo tempo: a sua aparente segurança interior é determinante
para me mostrar a minha própria insegurança.
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Nasci no morro, como sabe. Tira essa máscara de surpresa do
rosto, não tem graça. Você está careca de saber onde nasci e de onde
venho. Minha pele é quase branca mas também é quase negra: sintome mais manchado do que mestiço ou mulato. Tive de estudar tanto,
tive de provar tanta coisa a tanta gente, que me sobrou muito pouco
tempo para rir, namorar ou simplesmente olhar.
Agora, ela chega e, ainda por cima, me obriga a ler Machado de
Assis.
Na escola mandaram ler um livro dele, mas como se fosse uma
obrigação cívica: nem a professora de português parecia gostar de ler,
quanto mais de ler Machado de Assis. No corredor, os colegas faziam
brincadeiras grosseiras, dizendo que era a história de um viado que
virou corno ou vice-versa. Não me lembro do nome do protagonista
mas lembro o nome da personagem feminina, ela se chamava Capitu.
Inventei a minha própria piada a respeito, a qual, para variar, não fez
o menor sucesso entre os garotos: “Capitu, a mulher do capítulo.”
Li o livro aos saltos, pulando pedaços, como todo mundo, mas
me atrapalhei no trecho que falava dos braços nus de Capitu. À noite,
chegava a sonhar, envergonhado, com os braços nus de Capitu – é
claro que nunca contei isso para os meus colegas, só posso contar
para você. Eles não perdoariam uma fantasia tão ridícula e jamais
me deixariam em paz depois de saberem disso.
Capitu seria irmã de Lívia? Como personagem, faz sentido. Passei
a noite folheando os livros que encomendei, quase todos já chegaram,
e encontrei a Lívia do Machado de Assis. Encontrei, sim, por que a
surpresa? Eu sei trabalhar e eu sei ler.
Não, não encontrei uma filha com esse nome, o escritor e a esposa
não tiveram filhas ou filhos. Também não localizei até agora nenhum
caso extraconjugal do Machado, com filhos ou sem. Mas a protagonista do primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição, se
chama justamente Lívia: não deve ser coincidência.
   
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A Lívia desse romance também é viúva e também tem um filho
com o nome de Luís. Viu como não deve ser coincidência? O romance
propriamente dito foi publicado pela primeira vez em 1872, ou seja:
precisamente o ano que Lívia deu como o de seu nascimento. Não
faz sentido? Faz todo o sentido, embora um sentido tão-somente
literário.
Não é um dos romances mais lidos do autor; é o primeiro, talvez o
menor, no sentido da sua qualidade. No entanto, já é cheio da ironia
que o tornou famoso, veja só.
Lívia é uma viúva jovem, tão bela quanto digna. Ele a descreve
fisicamente? É curioso, de fato ele não a descreve, apenas sugere suas
qualidades. Ela parece branca, talvez pelo contexto da época, os protagonistas só poderiam ser brancos – mas as sugestões descritivas do
narrador não impedem que ela pudesse ser negra ou mulata – como
a “minha” Lívia.
A Lívia do Machado tem um pretendente chamado Félix, o qual
tem tudo para ser feliz mas não o é, por causa de um ceticismo que
o envenena por dentro. O título do romance, Ressurreição, chama
a atenção para a possibilidade de ressurreição do amor, tanto para a
viúva Lívia quanto para o cético Félix – mas não se dá ressurreição
nenhuma, apenas: decepção, solidão e tristeza. Logo, o próprio título
do romance já é uma grande ironia.
A amargura do escritor vem anunciada desde o primeiro parágrafo, que comenta o primeiro dia do ano. Deixe-me ler para você:
“tudo nos parece melhor e mais belo – fruto da nossa ilusão – e alegres
com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também
um passo para a morte.”
Pesado, não? Machado de Assis põe logo no primeiro parágrafo
do seu primeiro romance uma frase deprimente como essa: não estranha que a minha professora não gostasse do autor que era obrigada
a indicar para os seus alunos. Explica-se também por que a minha
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Lívia, digo, por que a nossa paciente escolheu a data de primeiro de
janeiro como a de seu aniversário, e porque nunca o comemorou: o
romance começa no primeiro dia do ano e não há festas de aniversário dentro dele.
Se eu li o romance? Da mesma maneira que com a história de
Capitu e seu marido de quem não me lembro o nome, eu passei as
páginas rapidamente para ler saltado, parando aqui e ali para deixar
os olhos se deterem mais um pouco. Ou seja, não li direito. Mas, pela
primeira vez, deu vontade de ler.
A “minha” Lívia, digamos assim, para facilitar e distingui-la da
personagem do romance, me deixou curioso a respeito da Lívia do
escritor. Enquanto espero os resultados dos seus exames, não atenderei
hoje, nem ela nem qualquer outro paciente. Depois de conversar com
você, vou avisar que não estou para ninguém e começar a ler o livro de
cabo a rabo. Parece-me óbvio que ela leu muito bem esse livro, não sei
se na escola ou mais tarde, o que não importa. Importa eu saber o que
ela sabe para poder tratar da sua doença, para poder tratar dela.
Tratar de você é que eu não posso, não é verdade? Você não deixaria, e se deixasse eu é que não ia querer fazê-lo. Deixemos como está,
por enquanto; ainda que vossa senhoria me irrite de vez em quando,
de certo modo preciso de você.
Embora psiquiatras não necessitem realmente de supervisão, como
os psicanalistas, tão inseguros, coitados, eu sempre tenho necessidade
de conversar com alguém. Quando estava na faculdade de medicina,
antes das provas, em casa, eu conversava horas com o espelho do banheiro, a voz baixa e a porta trancada para ninguém da família ouvir
e achar que eu estava ficando maluco, ainda mais aqueles que não
tinham a menor idéia do que era fisiologia. Eles só imaginavam que
eu deveria ter algum problema no intestino ou algo parecido.
Com o tempo, eu mesmo estranhei ficar falando com o espelho,
fui ficando com medo de me dissociar de repente. Quando a gente
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fica se olhando muito tempo no espelho, acabamos percebendo um
estranho do outro lado. Se ainda assim continuarmos olhando atentamente para o nosso próprio reflexo, acabamos vendo algo parecido
com um monstro. Se ainda assim continuarmos olhando mórbida
e atentamente para o nosso próprio reflexo, podemos passar para
o outro lado e nos tornarmos o monstro que estávamos vendo. E
não ria do meu monstro, não tem graça. Na verdade, ele é perigoso,
muito perigoso.
É por isso que aqui no hospital recorro a você, que não tem muita
alternativa a não ser me ouvir e fazer uma ou outra pergunta de vez em
quando. Às vezes até tenta não me escutar, às vezes me enche mesmo
o saco, falando em português claro, mas relevo porque preciso muito
da sua visão das coisas.
O quê?..., não, hoje não vou tomar nenhuma dose. Uísque demais
é como espelho demais.
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O quarto 22
No dia seguinte Leonela me avisou que Lívia não queria ir ao
consultório, preferia ficar no seu quarto. Perguntou se podia trazêla à força; como a paciente era baixinha e magra, não precisava de
ajuda, dava conta sozinha.
Eu respondi, não, não use a força. Eu a atendo no quarto. Em que
quarto ela está?
A enfermeira imediatamente deu um passo para trás e levantou a sobrancelha direita, preocupada com a quebra da prática
corrente: uma coisa era a paciente ficar sozinha com o doutor
no consultório dele – mesa, cadeiras, estante, livros, arquivos –,
outra, bastante diferente, seria a paciente ficar igualmente sozinha
com o doutor, mas no seu próprio quarto – armário, mesinha de
cabeceira, a cama.
Depois de um ou dois segundos, ela perguntou, a voz mais rouca
do que o normal: o senhor quer que eu o acompanhe?; ou fique esperando no corredor?
Não há necessidade, respondi, e voltei a perguntar em que quarto
Lívia estava. Reticente, Leonela respondeu que a havia deixado no
quarto 22. Agradeci e repeti, enquanto juntava as fichas brancas e a
caneta para levar comigo, que não havia necessidade de me acompanhar, não se tratava de uma paciente agressiva.
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Leonela provavelmente não estava pensando na eventual agressividade de Lívia, mas isso era problema dela: eu não estava ali
para tratar das fantasias de uma enfermeira. Levantei-me, saí do
consultório e me dirigi para o quarto da paciente, deixando minha
funcionária ainda de sobrancelha levantada e com o pé para trás
do corpo.
Bom dia, Lívia!, falei bem alto, talvez com um certo excesso de animação, assim que abri a porta do minúsculo quarto. Logo na entrada
senti o aposento mais quente do que os demais e do que o normal,
precisava me lembrar de verificar a ventilação naquela ala.
Lívia estava deitada de costas na cama e assim permaneceu, embora me respondesse, com a voz bem mais baixa e olhando para a parede:
bom dia, doutor. O vestido azul-claro, mais amarfanhado, mostrava
um pouco mais de suas pernas do que eu deveria ver. Desviando os
meus olhos, acabava percebendo os seus pés descalços e notava que
eles eram muito pequenos (perfeitos, pensava). Observando a sua
pele, não vi gotas de suor, como se ela não sentisse o calor. Mas eu
sentia e começava a suar.
Espantava-me que ela estivesse tão largada, quem sabe deprimida.
Na verdade não havia razão nenhuma para espanto, faz parte das
fases da doença a intercorrência de momentos de depressão mais
ou menos aguda, mas a minha expectativa era a de encontrá-la tão
animada quanto no dia em que chegara ao hospital. Expectativa
pouco racional, admito, porque o simples fato de não querer sair do
quarto para a consulta com o seu médico deveria ter me sugerido
um momento depressivo.
Puxei então o banquinho de ferro e me sentei ao lado da cama,
pondo o montinho de fichas no colo. Apertei o botão da caneta e
senti falta de outro instrumento de trabalho: o gravador. Eu o havia
esquecido, agora já não dava mais tempo de voltar para pegá-lo.
Confiei então na minha memória e na minha caneta e lhe perguntei
   
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como estava. Ela respondeu, irônica, com outra pergunta: o que o
senhor acha?
Acho que não está muito bem, eu disse; pode me dizer por quê?,
completei. Meu filho, ela disse. O que há com Luís?, perguntei, cuidadosamente enfatizando o nome do seu filho imaginário. Ele está
infeliz aqui; as outras crianças não querem brincar com ele. Não há
crianças internadas no nosso hospital, falei, olhando atentamente para
as suas reações faciais. Foi o que eu disse, reafirmou: que as outras
crianças não querem brincar com ele.
A conversa ficava difícil, já que ela escutava o que queria. Mas eu
estava acostumado, ou devia estar; tratava-se da popular “conversa
de maluco”, ou melhor, “de maluca”.
Aproveitei o momento da infelicidade imaginária do imaginário
Luís para perguntar, trocando de propósito o tratamento por outro
mais informal: e você, está feliz aqui? E você, está feliz aqui, ela repetiu,
tirando a entonação de pergunta, como se estivesse me arremedando.
Mas logo em seguida respondeu que isso não vinha ao caso, ela estava
ali apenas para encontrar com o seu pai.
Certo, disse eu. Diga-me uma coisa, tentei mudar de assunto,
trocando novamente o pronome de tratamento: a senhora não quer
se encontrar também com o senhor Félix?
Devagar, Lívia tirou os olhos da parede e os voltou para mim,
injetando-os de sangue e mágoa: Félix? Sim, o senhor Félix, repeti.
O senhor tem como chamá-lo?, ela perguntou de volta. Se a senhora
nos der seu endereço, um número de telefone, o e-mail...
Ela voltou novamente a cabeça para a parede, enquanto dizia que
não via Félix havia muito tempo e que não queria vê-lo nunca mais.
Ele não confiou em mim e não confia em ninguém, enfatizando a
última palavra, “ninguém”.
Gostaria muito de encontrá-lo e de conversar com ele, eu disse,
para que ela retrucasse então que pouco se lhe dava, não se importava.
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Repeti o comentário, agora em forma de pergunta: a senhora pode,
por favor, nos dar o endereço do senhor Félix, um número de telefone
ou o endereço eletrônico?
Ela tornou a dizer que não via Félix havia muito tempo e que não
queria vê-lo nunca mais: ele não confiou em mim e não confia em
ninguém, repetiu, enfatizando a palavra “ninguém”.
Para não ficarmos eternamente presos no círculo, tentei quebrálo perguntando como Félix era, se ela gostara muito dele. À guisa de
resposta, Lívia voltou para dentro do círculo: não o vejo há muito
tempo e não quero vê-lo nunca mais: ele não confiou em mim, ele
não confia em ninguém, eu não posso confiar nele.
Seu tom de voz, os olhos injetados, o canto da boca tremendo,
tudo indicava uma forte decepção amorosa que abalara sua própria
identidade. Seria um bom caminho de abordagem para chegar às
causas da sua doença, mas isso se Félix existisse de verdade. Todavia, “Félix” era apenas, aliás como “Lívia”, personagem do primeiro
romance de Machado de Assis. Ambos se encontravam ainda entre
aspas.
Pensei se não seria produtivo tocá-la gentilmente para quebrar sua
couraça de fantasia, mas logo pensei também que talvez eu quisesse
tocá-la por outras razões, menos terapêuticas. A terapia reichiana fala
da necessidade do toque, mesmo do carinho, mas eu sempre achei isso
ridículo e aquela não era a hora de mudar de opinião, seria oportunista
e desonesto. Não, eu não deveria arriscar, precisava manter minha
isenção. O problema é que não conseguia fechar minimamente um
diagnóstico para prescrever a medicação adequada – e “isenção”, para
mim, implica “medicação”.
Enquanto eu hesitava quanto ao próximo passo e quanto à próxima pergunta, aproveitava para enxugar com o lenço o suor da minha
testa. Naquele exato momento a enfermeira Leonela abriu repentinamente a porta do quarto de Lívia dizendo, doutor, os exames que
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pediu. Sobressaltei-me, é claro, contendo-me para não admoestar a
funcionária por entrar nos lugares sem bater: os quartos dos pacientes
só se trancavam pelo lado de fora e é claro que as enfermeiras e os
médicos podiam entrar sem bater.
Lívia continuava deitada de costas com a cabeça voltada para a
parede e assim ficou, sem parecer se assustar ou se incomodar com
a entrada intempestiva da outra mulher.
Em poucos segundos, recompus-me do susto – e do impulso de
discutir – para guardar o lenço, estender o braço e pegar os exames,
dizendo, o-obrigado. Sem levantar o rosto para Leonela, senti-a
novamente levantar a sobrancelha e registrar, no seu caderninho
mental, a minha reação assustada e o pequeno gaguejar na palavra
“obrigado”.
Mordendo a língua, apressei-me a folhear os exames, enquanto
escutava a enfermeira se retirar, bem mais devagar do que o normal,
e encostar a porta sem fechá-la. Precisei folhear os exames várias
vezes até conseguir enxergar alguma coisa. Eram os exames de Lívia, sem dúvida: seu sangue é AB negativo; o eletroencefalograma
não acusou nenhuma anomalia; o eletrocardiograma também não
acusou a menor alteração, nem sequer aquele sopro comum no
coração; enfim, os indicadores são todos, sem exceção, perfeitos,
sempre na média ótima preconizada para uma mulher na suposta
idade dela.
Revi os números várias vezes, comparando-os com as tabelas que
os ladeavam, até suspeitar de que eu não tinha nas mãos os dados de
uma paciente, mas sim a tabela de um livro de medicina. À exceção
do tipo de sangue, o mais raro de todos, todos os demais indicadores
numéricos são absolutamente precisos: eles não apenas estão dentro
da média como são, todos, a própria média. As linhas dos dois eletros,
por sua vez, se revelam anormalmente regulares, como se tivessem
sido desenhadas com capricho por uma menina.
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Lívia parecia ter escapado não de um romance de Machado de Assis,
mas sim da décima-quinta edição do Manual Harrison de Medicina
Interna.
Passei os exames entre as mãos tantas vezes, outras tantas o lenço
na testa, novamente, que a própria Lívia voltou devagar o rosto para
mim. Sem se sentar, sempre deitada, perguntou: algum problema? Esse
é o problema, respondi, sem pensar: não há nenhum problema. Por
que é um problema que não haja nenhum problema?, perguntou ela,
acuradamente.
Voltei os meus olhos para ela e pensei no que poderia lhe responder. Não tinha a menor idéia da formação que teria tido antes do seu
surto psicótico, mas sem dúvida ela demonstrava uma inteligência
relativamente superior. Ainda não lhe aplicara um dos testes de Q.I.,
mas já podia deduzir isso por suas respostas e perguntas.
Lívia, disse eu. Sim?, disse ela. Você fez os exames direitinho?,
perguntei, só mais tarde notando que passara a tratá-la por “você”.
Sim, disse ela; a agulha doeu um pouco, como seria de se esperar, e as
máquinas de fios me assustaram um pouco também, mas na verdade
não me machucaram.
Ela se referia certamente aos eletrodos do eletrocardiógrafo e
do galvanômetro. Continuou me olhando inquisitivamente, esperando a minha resposta à pergunta sobre o problema de não haver
problema.
Lívia, tentei responder, seu tipo de sangue é o menos comum,
AB negativo, mas todos os demais indicadores são tão normais, tão
dentro da média que dá para estranhar. Que eu soubesse, ninguém se
encaixa tão perfeitamente nesses números como você; suponho que
haja algum problema com as máquinas e no laboratório de análises
clínicas daqui do hospital, vou mandar verificar. De todo modo, não
há nada negativo; fora o tipo de sangue, todos os outros elementos
são positivos.
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O fato de eu ter um sangue, como o senhor diz, negativo, significa
que eu sou uma pessoa errada?, perguntou ela. Explica, por exemplo,
por que não conheci ainda o meu pai, por que o meu pai ainda não
conheceu o seu neto?
Não, não, disse eu, sorrindo da sua ignorância, que não seria exclusiva das pessoas nascidas no século dezenove – mas também notando
que ela continuava a me chamar de senhor. A senhora compreenda,
procurei explicar de maneira simples, retomando o tratamento formal: cerca de oitenta e cinco por cento das pessoas no mundo têm
um determinado fator no sangue, chamado fator RH, e as quinze por
cento que não têm esse fator são consideradas como de RH negativo.
Não há nenhum problema para essas pessoas, para pessoas como a
senhora, exceto que não podem receber transfusões de sangue com
RH positivo. Pode haver problema também para o filho, acrescentei,
se os pais tiverem sangue com RH diferente, mas não deve ser o caso
de Luís, ele parece um menino saudável.
Logo depois de falar isso, sobressaltei-me novamente, chegando
a me levantar do banquinho. Eu me referira a Luís como se o tivesse
visto de verdade, como se o tivesse examinado também, como se aquele filho imaginário de Lívia realmente existisse. Não foi um truque
para surpreendê-la, por um momento eu de fato fiquei preocupado
em não assustar a mãe de um menino chamado Luís.
Senti a minha cabeça girar novamente, sensação ampliada por
outra: a do déjà-vu. Despedi-me apressadamente, arrumando as fichas
e tentando guardar a caneta no bolso superior do guarda-pó – não
consegui, a caneta caiu no chão, mas preferi deixá-la lá e sair o mais
rápido possível daquele quarto.
Enquanto fazia isso, pelo canto do olho notava que Lívia se sentava
na cama e, por um instante, mostrava mais um pouco das suas pernas. Resisti à tentação de olhá-la com o olho inteiro e saí do quarto,
fechando a porta com cuidado mas firmemente. Encostado na porta,
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segurando a maçaneta, eu tentava respirar, primeiro, e enxugar o rosto,
depois, para só então tentar escutar os ruídos do lado de dentro. Mas
escutava apenas a minha própria respiração confundindo-se com as
batidas taquicárdicas do meu próprio coração.
Do quarto, não vinha o mínimo ruído: era como se não tivesse
ninguém lá dentro. Não quis abrir novamente, para ver como tinha
deixado Lívia, ou para saber se ela pegara a minha caneta. Fiquei
com medo, embora não soubesse bem do quê. Soltei a maçaneta e fiz
um esforço para ir embora, dirigindo-me diretamente para os meus
próprios aposentos, na ala dos funcionários qualificados.
Da ponta do corredor, Leonela me observava.
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A filha do escritor