Dispositivos clínico-institucionais nos casos de dependência extrema de substâncias
psicoativas: contribuições da metapsicologia de Piera Aulagnier ao estudo de caso
Tatiana Tostes Vieira da Costa.
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Psicóloga, Psicopedagoga (UNIP), Mestre (Universidade Federal do Ceará) e
Doutoranda em Psicologia (Universidade de Fortaleza- UNIFOR). Formação em
Psicanálise e em Psicodiagnóstico. Responsável Técnica pelo Serviço de Práticas
Psicológicas (UNIFOR). Professora e Orientadora de Estágio em Processos Clínicos e
Intervenção em Saúde. Membro do LEIPCS (Laboratório de Estudos e Intervenção
Psicanalítica na Clínica e no Social).
Leônia Cavalcante Teixeira
Av. Washington Soares, 1321. Sala N-13. Bairro Edson Queiroz. Fortaleza. Ceará.
Brasil. 60811-905 Tel. 0055 (85) 34773219. Emails: [email protected] /
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Profa. Titular Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza
(UNIFOR); Dra. em Saúde Coletiva com Pós-Doutorado em Psicologia; Ms. em
Educação; Psicanalista; Coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções
Psicanalíticas na Clínica e no Social (LEIPCS); Membro do GT da ANPEPP
“Dispositivos clínicos em saúde mental”.
Dispositivos clínico-institucionais nos casos de dependência extrema de substâncias
psicoativas: contribuições da metapsicologia de Piera Aulagnier ao estudo de caso
Este trabalho pretende discutir a dependência extrema das substâncias psicoativas à luz
da psicanálise. Parto do pressuposto de que nestes casos há uma falha na origem do
desenvolvimento libidinal que culmina em uma constituição psíquica precária. Refiro
como dependência extrema os casos em que a relação com as substâncias é marcada
pelo gradual abandono da condição subjetiva. Ressalto: O afastamento da realidade
material, necessidade da substância, dificuldade com as frustrações culturais, abandono
do corpo e de outras formas de investimento libidinal. Os casos, a que me refiro, só
podem ser encontrados nas instituições, onde a ênfase do tratamento responde à lógica
da reabilitação e desintoxicação. Presumo que o dependente dessas substâncias não
consegue sustentar seu desejo, restando-lhe a opção de não mais desejar. Para discutir
questões tão essenciais à psicanálise, recorro a Freud, Aulagnier e Violante.
Considerando a complexidade do fenômeno em função da particularidade com que o
sujeito se relaciona com o objeto, atribuindo o prazer à sensação que este induz sobre a
realidade enquanto estiver sobre o efeito da droga, pretendo indagar se, as medidas
sócio educativas respondem como dispositivos clínicos eficazes nestes casos.
Palavras Chaves: Psicanálise, Dependência de Substâncias Psicoativas, Constituição
Psíquica, Medidas Sócio Educativas.
Sabe-se que a história do homem mostra que não registrou até o momento
nenhuma sociedade que não tenha feito uso de qualquer substancia psicoativa para
qualquer finalidade. Mas a partir do final do século XX uma profusão de saberes tenta
dar conta do fenômeno do uso de drogas. Porém o que se tem verificado atualmente é a
difusão do discurso psicopatológico acerca dessas questões. É importante levantar tal
questão, uma vez que este fenômeno tem ocupado lugar de destaque nas discussões
sobre psicanálise e psicopatologia.
O saber médico, jurídico e social tentam sustentar um ponto de vista acerca das
questões referentes ao uso dessas substâncias (psicoativas), entretanto são limitados e,
muitas vezes, contraditórios para trabalhar com a diversidade que o tema sugere. É
nesse cenário que as medidas socioeducativas surgem como uma proposta de
dispositivo clínico, resultado da interlocução desses saberes.
Considerando a visão que dispositivo refere-se a um agrupamento de práticas
em meio a vários contextos é possível o apoderamento de dispositivos como medida
socioeducativa. Gondar (2001) reflete sobre uma modalidade de intervenção clínica
eficaz com pacientes compulsivos, implicando algumas condições: “o esvaziamento do
imperativo superegóico, fonte propiciadora de seus sintomas; a constituição de uma
esfera imaginária e fantasística; e, o mais importante, a assunção da dimensão desejante,
comumente esmagada pelo supereu cruel” (p. 32).
Tratar da eficácia de dispositivos clínicos em meio a dependentes de
substâncias psicoativas é inserir-se no âmbito dos prazeres e lidar com formas
diferenciadas de padecimento. Dessa forma Gondar (2001) acredita que neste momento
“o campo transferencial seria convocado para propiciar um traçado de consistência aos
lampejos de desejo, aqueles que o supereu não foi capaz de submeter de todo”, além
disto, é nesta conjuntura que as pequenas manifestações desejantes têm a possibilidade
de expressão e de articulação, um reconhecimento e uma legitimidade.
Ao tratarmos de sujeito, a particularidade entra em questão, isto possivelmente
não se aplica quando ‘discutimos’ a respeito de dependentes de substâncias psicoativas,
a atuação neste campo requer uma abordagem e uma intervenção muito particular.
Entre tantos desafios encontrados ao lidar com esses sujeitos, a relação que eles
estabelecem com seus sintomas é particular a cada um deles, tornando-os de difícil
acesso às interpretações, mas Gondar (2001) afirma que esse sintoma fala e acaba por
representar o sujeito, além de revelar algo sobre o seu desejo. Este desafio, de certo
modo, destaca a ‘atuação’ dos dispositivos clínicos neste campo, nesse sentido torna-se
importante a abrangência de diversos dispositivos e o cuidado ao lidar com eles,
Foucault (1999, p.445) destaca estes como técnicas:
[...] que permitem aos indivíduos efetuar, sozinhos ou com a ajuda de
outros, algumas operações sobre o seu corpo e a sua alma, os seus
pensamentos, as suas condutas e o seu modo de ser, assim como se
transformar, a fim de alcançar um certo estado de felicidade, de força, de
sabedoria, de perfeição, ou de imortalidade.
Weinmann (2006) considera “incerta a estabilidade de um dispositivo” e
destaca, por esta questão, “a necessidade de rearranjos e de rearticulações constantes em
sua configuração”, pois podem gerar fissuras nos estados de dominação que tal
dispositivo engendra.
Foucault (1995) conceitua o dispositivo como uma configuração específica de
domínios do saber e de modalidades de exercício do poder, a qual possui uma função
estratégica, em relação a problemas considerados cruciais em um momento histórico.
Desta forma percebe-se a necessidade de mais persistência e delicadeza ao trabalhar
com novas formas de subjetivação, já que se torna uma prática de poder e dever perante
a sociedade. Gondar (2001) acredita numa ampliação dos dispositivos psicanalíticos ao
lidar com as compulsões: “seria preciso tornar mais finas e mais complexas as regras da
associação livre e da atenção flutuante, bem como a proposta de abstenção do analista, a
fim de que possam abarcar essas novas modalidades subjetivas” (p.34).
A experiência clínica com dependentes extremos de substâncias psirevela que
existem várias formas de uso, e é nessa multiplicidade que se encontra o maior desafio
clínico e teórico para abordarmos o assunto. A intensidade, a freqüência, a relação de
cada sujeito com sua droga é marcada muito mais por uma representatividade desta para
com ele, do que pelo efeito que ela produz.
Entretanto há algo de comum a todos: uma relação marcada pela dependência
dessas substâncias sejam quais forem, ou que efeito produzam. Uma relação que,
inicialmente, visava o prazer e, finalmente, após atingir um grau de dependência, a
necessidade é de evitar o desprazer causado pela falta desta substância. Momento que
marca o que entendo como dependência extrema de substâncias psicoativas.
Acredito que sem uma aproximação da experiência clínica com o dependente
de substâncias psicoativas não é possível estabelecer nenhum saber a este respeito, pois
a relação do sujeito com a droga é peculiar, individual e intransferível. O máximo que
se pode chegar num estudo sobre uso de drogas é compreender que esta representa algo
para cada sujeito e engendra seu circuito pulsional, podendo levá-lo até à destruição.
Há diversos aspectos que a clínica faz interrogar sobre a dependência as
substâncias psicoativas: 1) A relação Prazer-Desprazer, 2) A relação ambivalente com o
corpo, onde ora se apresenta como espaço das sensações de prazer e ao mesmo tempo é
atacado em seu aspecto funcional por essas vivências.
À medida que comentamos os aspectos acima, nos introduzimos na
problemática que situamos. Correlacionamos esses aspectos com pensamento de
Aulagnier (1979). A autora constata no dependente das substâncias psicoativas, “um
compromisso entre o desejo de não mais pensar a realidade e a recusa ou
impossibilidade de recorrer à reconstrução delirante desta realidade” (p.123).
Aulagnier (1975) situa este compromisso “entre o desejo de preservar e o
desejo de reduzir ao silêncio a atividade de pensamento do eu”.(p.151-152). Ela
reconhece a complexidade do fenômeno da dependência de substâncias psicoativas em função
da particularidade com que o sujeito se relaciona com o objeto (substância psicoativa),
declarando que neste caso a experiência de prazer depende da relação que o objeto induz entre o
sujeito e sua representação sobre a realidade enquanto estiver sobre o efeito da droga.
(Aulagnier, 1979, p.151)
A autora atribuir a Toxicomania (que aqui trato por dependência de substância
psicoativa) o valor de uma relação passional, onde o afeto que opera é a paixão. A
autora compreende a paixão não como excesso de amor, mas como falta. (Aulagnier,
1979).
Nesse sentido, considero a hipótese de Violante (1984) como complementar ao
pensamento de Aulagnier (1979), pois revela que onde falta amor, instaura-se a
melancolia. As duas teóricas compreendem que tanto na paixão como na melancolia,
constata-se a supremacia da pulsão de morte que é correlata ao desejo de não mais
desejar.
Suponho que, na origem desta recusa, o desejo é correlato de um nível de
tensão psíquica elevado, e que desta decorre uma forma particular de relação com os
objetos da realidade material e com seu corpo. Concebo, assim, que a tensão em relação
às exigências pulsionais são viabilizadas no mundo externo e sentidas, constantemente,
como angústia ou como desprazer.
Relaciono alguns casos clínicos que ilustram bem essa questão. Por exemplo:
como explicar a necessidade que alguns pacientes têm de se internar para
desintoxicação apenas? “Me internei porque senão eu ia morrer né?, agora dá pra
agüentar mais um tempo” de que morte ele está falando? Minha hipótese é que alguns
desses pacientes procuram a internação para manter o funcionamento do corpo, embora
o circuito pulsional esteja fortemente comprometido.
Freud (1930/1987) traz como colaboração para o que entendemos como causa
de sofrimento psíquico e aumento da tensão psíquica, a tese de que há um mal-estar
inerente à civilização por ocasião do antagonismo entre as exigências da pulsão e as
restrições que o mundo externo impõe a sua satisfação.
Nesse conflito, o sujeito se encontra marcado pela busca da felicidade, porém
cercado pela insatisfação, preço pago pela convivência social. Nesse processo é preciso
passar do modo de funcionamento ancorado no princípio de prazer, exclusivamente,
para o de realidade, onde a satisfação precisa ser muitas vezes adiada.
Assim, no momento em que o eu se vê em perigo e ao mesmo tempo não
encontra no supereu proteção ou salvação, deixa-se morrer. Ou, mais ainda, quando o
supereu que deveria ser protetor torna-se tirânico e o eu não tem a quem recorrer,
entrega-se à destruição. (Freud, 1930/1987)
A tese de Violante (1995) sobre a potencialidade melancólica, corrobora a
hipótese de que pode haver algo na constituição subjetiva que destina à pulsão de morte
um lugar de destaque no psiquismo, uma vez que ela já se encontra lá desde o inicio e
tende a manter-se como um desejo de não desejar.
Até o momento, a maior contribuição que a psicanálise pode oferecer ao estudo
da dependência de substâncias psicoativas é: esclarecer sobre o modo de funcionamento
mental como sendo lugar fecundo para pensarmos qualquer tipo de vínculo que o sujeito
venha a estabelecer com seus objetos e o lugar que estes passam a ocupar na vida
pulsional do sujeito, independente do tipo de objeto ou mais precisamente do tipo de
substância psicoativa. (Costa, 2005)
Tal postura pressupõe lançar um olhar além dos conceitos, olhar atento à
clínica e ao que o sujeito anuncia acerca de sua experiência. Aquele que pretende
prestar atendimento a esse tipo de clientela deve estar atento à função da “droga” para o
sujeito, já que ela comporta-se como objeto capaz de promover em espaço neutro entre
a intolerável realidade material e a utópica realidade psíquica.
Partindo da minha experiência clínica em uma instituição voltada para o
tratamento de dependentes de substâncias psicoativas, suspeito que nestes casos o que
dificulta o tratamento é a ambivalência da relação prazer-desprazer que tais substâncias
revelam, pois entende-se que não se busca “tratamento” para livrar-se de um objeto
causa de prazer, ao mesmo tempo em que essa busca pelo prazer custa ao corpo a
vivência do desprazer.
Se a relação com a substância está localizada na dimensão do circuito
pulsional, seja como saída para o desprazer que as renuncias pulsionais impõe, seja
como busca de prazer, então só podemos pensar a dependência em seu caráter mais
singular.
E mais, ao levarmos em conta que as medidas sócioeducativas se oferecem
como possibilidade de funcionar como uma modalidade de dispositivo clínico
possivelmente capaz de resgatar o dependente jovem da condição de “marginal”, seria
necessário, no mínimo interrogar quais propostas de intervenção poderiam dar conta
daquilo que os autores referidos acima denominam de recusa, desejo de não desejo,
desejo de destruição?
Meu questionamento é o seguinte: Se a problemática da dependência de
susbstâncias psicoativas aponta para uma recusa em relação aos imperativos da vida em
coletividade, o que compromete a socialização e o sentimento de “pertence” ao grupo,
como uma medida que se propõe a “educar” para “re-inserir” pode ser oferecer como
um dispositivo clínico capaz de um sofrimento que encontra suas bases justamente na
relação com o social?
Embora as medidas sócioeducativas tenham surgido a partir de propostas de
reinserção dos menores dependentes com problemas com a lei, na sociedade - o que
poderia até pressupor uma possibilidade de “fazer as pazes” com o social-, há que se
ponderar que a experiência de cada um só pode ser pensada a partir da relação particular
que a substância assume com o sujeito e seu circuito pulsional.
Em momento algum me posiciono de forma pessimista, até porque, suponho
que potencialidade não garante ato. Assim, considerando que o dependente de
substâncias psicoativas apresenta uma recusa pelo social que se paresenta como tirânico
e opressor, aponto de uma das saídas por em cena a própria destruição, isso não exclui
de maneira nenhuma a possibilidade de um dispositivo clínico que possa alcança-lo no
prazer mínimo que sustente uma possibilidade de suportar a renúncias que deve fazer
para viver em coletividade, apresentando a dimensão do social mais aprazível e menos
dolorosa.
Mas, insisto na premissa de que, sem uma aproximação da experiência clínica
com o usuário de droga, não é possível estabelecer nenhum saber a este respeito, pois a
relação do sujeito com a droga é peculiar, individual e intransferível, escapando a
qualquer modelo previamente estabelecido.
Até onde se pode chegar num estudo sobre uso de drogas é compreender que
esta representa algo para cada sujeito e engendra seu circuito pulsional, podendo levá-lo
até à destruição. Portanto qualquer proposta interventiva ou qualquer saber que reduza
toda a historicidade, a economia pulsional, os aspectos fisiológicos às questões
normativas, disciplinadoras ou punitivas, que se encerram em uma definição pronta, está
fadada a fracassar clinicamente e o mais grave está se oferecendo como um saber que
legitima práticas disciplinadoras do corpo e do psiquismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aulagnier, Piera. (1975). A violência da Interpretação – Do Pictograma ao enunciado.
Trad Mari a Dara Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago.
Aulagnier, Piera. (1979). Les destins du plaisir – Aliénation, amour et passion. France:
Puf.
Costa, T. T. (2005). Uma Leitura Psicanalítica sobre a dependência de substâncias
psicoativas: Relatos de experiência clínica. Dissertação de Mestrado. Fortaleza,
Ceará, Brasil: UFC.
Foucault, M. (1995). Sobre a história da sexualidade. In: M. Foucault, Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Graal.
Foucault, M. (1999). História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:
Graal.
Freud, S. (1987). O Mal Estar na Civilização. (Edição Standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Vol.21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente
publicado em 1930).
Gondar, Jô. (2001). Sobre as compulsões e o dispositivo psicanalítico. Ágora (Rio J.)
[online]. 2001, 4(2), 25-35. ISSN 1516-1498. http://dx.doi.org/10.1590/S151614982001000200002.
Violante, Maria Lucia Vieira. (1984). A criança mal-amada – Estudo sobre a
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Weinmann, Amadeu de Oliveira. (2006). Dispositivo: um solo para a subjetivação.
Psicol.
Soc.
[online].
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ISSN
1807-0310.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822006000300003.
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