A OUTRA FACE DE EVA: Eva tentada
O estigma de Eva como tentadora de Adão persegue ainda hoje
as mulheres fazendo dos homens “pobres” vítimas da sedução
feminina. Parece-me que este estigma consegue cegar até mesmo
uma grande maioria de mulheres que acabam sentindo-se em culpa
quando são vítimas de abuso sexual dos homens.
Por outro lado, o papel de vítima tentada por Eva, é cômodo pois
desresponsabiliza alguns tipos de homem de algumas de suas ações e
lhe dá o O.K. para usar, sem nenhum escrúpulo, a sedução do poder,
do status e do dinheiro para abusar e fazer vítimas entre mulheres
fragilizadas pela condição econômica, uma vez que são elas as mais
expostas. Sim, é a outra face da moeda, desconhecida, ignorada,
ridicularizada e até mesmo compactuada.
Infelizmente, a realidade de “Eva tentada” presente em várias
culturas e em vários países do terceiro mundo é um grito preso na
garganta de tantas mulheres, sufocado pelo medo da incompreensão e
pela vergonha de uma sociedade que a vê, quase sempre como
tentadora do homem e, portanto, culpada pela violência sofrida.
Conheço muitas “Evas tentadas” , mas falarei somente sobre
algumas “Evas” africanas. Os países da África assim como da América
Latina, são ricos de pobres que, infelizmente, são mais empobrecidos
ainda pelos bombardeamentos das propagandas televisivas que criam
necessidades impossíveis de serem satisfeitas pela grande maioria do
seu povo que acaba sendo assim, presa fácil de abusadores.
Em um contexto assim, não nos surpreende que a sedução da
riqueza fácil se transforme em uma arma muito eficaz que atinge tantas
mulheres africanas desejosas de sair da miséria econômica, de
conseguir uma vida diferente daquela que os seus pais vivem. Ou seja,
mulheres desejosas de conseguir terminar a escola média superior,
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cursar uma faculdade, ter uma profissão, conseguir um trabalho, uma
casa, ajudar seus irmãos menores e, às vezes, desejam somente ter
algo na panela para cozinhar e ver o sorriso voltar nos lábios dos seus
irmãozinhos. No entanto, tais desejos são simplesmente direitos de
todo ser humano e não algo a ser conquistado com a venda do próprio
corpo, com a barganha da própria dignidade humana.
Mas, por que isso acontece? Por que um direito, tantas vezes,
precisa de ser comprado com o preço da própria dignidade? A resposta
só pode ser encontrada no egoísmo do ser humano que encontra o seu
prazer em aumentar a dose de dor a quem já está sucumbindo pela
overdose de sofrimento e disposta a gestos desesperados para vencêlo.
Desfila na minha mente uma quantidade de jovens africanas
castigadas fisicamente por professores pelo simples fato de não aceitar
os seus pedidos de prestações de favores sexuais; outras ainda, pelo
mesmo motivo, vêem suas notas abaixadas a ponto de não
conseguirem a média suficiente para passar de ano; e outras, acabam
por abandonar os estudos por não suportar a pressão; ou cedem, mas,
acabam deixando de qualquer maneira os estudos porque jovens
grávidas não podem freqüentar a escola, ou optam pelo aborto com
todas as conseqüências que isto comporta; ou ainda, assumem a
própria gravidez, muitas vezes sozinha. E muitas e muitas dessas
jovens acabam contraindo a AIDS. Somente, um parêntese: em muitos
vilarejos africanos a população está desaparecendo por causa da
AIDS: restam somente as crianças morando sozinhas nas casas
deixadas pelos pais e parentes falecidos. Fecho o parêntese.
Vejo ainda uma outra quantidade de jovens batendo nas portas
de patrões para conseguir um emprego e sendo obrigadas a enfrentar
um estranho “exame de seleção” que não tem nada a ver com a sua
competência e motivação e nem com o tipo de trabalho oferecido. Mas,
conseguir o trabalho tem um preço que precisa ser pago antes de
começar a trabalhar: satisfazer sexualmente o patrão.
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O “desfile” de Evas tentadas continua na pessoa daquelas ainda
meninas que em troca de comida, de uma casa e um mínimo de
conforto para os seus, se submetem a pousar para filmes pornôs ou
pior ainda, aceitam relações com animais cujos filmes enriquecem
empresas internacionais pornográficas. Recordo um fato, ocorrido há
vários anos, que revoltou o povo de um país africano: dois estrangeiros
que trabalhavam em uma empresa do país, após divertirem-se com
uma jovem, a obrigou a manter relação com o cachorro de raça deles.
Embriagados, tiraram várias fotografias. A jovem, apoderou-se da
máquina fotográfica e, naquela mesma manhã, os denunciou.
Até agora falamos da falta de escrúpulos de ricos. Mas, o que
dizer diante da pobreza de pais que empurram as próprias filhas para o
mundo da prostituição? Infelizmente, a pobreza material, mas também
aspectos pobres de algumas culturas os levam a tal absurdo. Em
algumas regiões, as meninas que terminam a escola fundamental,
ainda que menores de idade, são consideradas autônomas. Como tais,
devem contribuir economicamente, com a família. Mas, não só
economicamente, também numericamente. Explico-me. Terminada a
escola fundamental, os pais constroem um barraco para a filha onde
deve dormir sozinha. O seu compito é trazer algum dinheiro para casa
e também filhos. Amor às crianças, poderíamos pensar. Talvez. Mas o
motivo principal é que com um filho, o pai da criança será obrigado a
sustentá-lo, assim toda a família se beneficia.
Neste contexto, um dos trabalhos das Irmãs é empreender uma
corrida contra o tempo e os meios: antes que a menina termine a
escola fundamental, precisam procurar uma escola particular com
internato, arrumar o dinheiro suficiente para sustentar os estudos da
mesma e convencer o pai a deixá-la estudar. Na realidade, somente
algumas conseguem ter tal sorte.
Conheci Aline quando havia 11 anos de idade. Não sabia ler
nem escrever, pois nunca tinha freqüentado uma escola. Mas, tinha
uma vontade imensa de estudar! A esta idade, já tinha que contribuir
economicamente com família e para tal, ao cair da noite e à luz da
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lamparina, vendia salgadinhos à beira da estrada. Era uma linda
menina, simpática e sempre bem vestida e penteada.
Assim que chegamos ao vilarejo, Aline se aproximou de nós.
Começamos a ajudá-la fornecendo-lhe alguns ingredientes para os
seus salgados e alertando-a sobre o perigo de vender salgados àquela
hora da noite. Após algum tempo deixou de vender salgados à noite e
começou a fabricar em casa, sacos de papéis e vendê-los para os
feirantes.
Quando abrimos uma pré-escola, ela pediu para freqüentá-la
pois queria aprender a ler e escrever. Como já estávamos na metade
do ano escolástico, aceitamos o seu pedido com a finalidade de
prepará-la para a primeira série. Revelou-se uma aluna excelente e em
pouco tempo já sabia ler e escrever.
Chegou o momento de matricular-se na 1ª. Série. Acompanhada
por uma das Irmãs foi à única escola fundamental do vilarejo. A
Diretora não se opôs a recebê-la apesar da idade, mas, era necessário
o consentimento da mãe. Esta não lhe permitiu, pois não via
necessidade de estudo para suas filhas, além de ser uma “perda de
tempo”. Mais uma vez, Aline recorreu às Irmãs que acompanharam-na
à sua casa para conversar com a mãe. Finalmente, a convencem e
Aline começa a estudar. As Irmãs conseguem um padrinho da Itália
que ajuda nas despesas com os estudos. Ela é sempre a primeira da
classe. Estuda com entusiasmo e em casa continua a confeccionar
sacos de papéis para ajudar economicamente, a família.
Quando cursava a 4ª. Série do ensino fundamental, lhe vem a
primeira menstruação. A mãe desconfia e procura de certificar-se, pois
segundo o costume da sua tribo, por ocasião da menarca a menina se
torna uma reclusa na própria casa até que uma grande festa é
preparada. Enquanto se prepara a festa, a menina junto com outras
são “treinadas” para a vida de casada, pelas anciãs da tribo.
Finalmente, no grande dia da festa é apresentada ao público
masculino. Em tal ocasião, o rapaz que lhe é interessado se apresenta
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aos pais; começa, então, as tratativas e a preparação para o
casamento.
Aline sabe que corre risco, sabe que se tudo isso acontecer
deverá deixar de estudar e além do mais, deverá esposar-se e isto ela
já havia dito que não era a sua vocação. Só encontra uma alternativa:
corre para a casa das Irmãs e se esconde lá. Não demorou muito e lá
estava a sua mãe na porta da casa do convento. Furiosa, esbraveja
contra as Irmãs que “escondem a minha filha porque vocês têm medo
de homem” Em seguida, resolve voltar para sua casa deixando a filha
lá. Depois, também Aline voltou para sua casa e nenhuma festa lhe foi
feita. A jovem conseguiu mais esta vitória e pôde assim, continuar os
seus estudos por mais um pouco de tempo.
Aos 19 anos, quando já estava terminando a penúltima série do
ensino fundamental, Aline viu escorregar das mãos a sua chance de
continuar os estudos. Era um dia como todos os outros, e como todos
os outros dias, ela foi buscar água para a família. Ali, sozinha e
indefesa foi violentada por um seu admirador. Ficou grávida, deixou a
escola e já quase não se via o seu belo sorriso brilhar em sua face. O
seu sonho de estudo e de uma vida diferente daquela das suas irmãs
mais velhas, evanesceu naquela tarde.
Ela deu à luz uma linda criança, mas, com o pai do seu filho não
queria ter nada a ver. Continuou a vender salgados e morar com sua
família. Com o tempo percebe que não era possível alimentar toda a
sua família e sustentar, ao mesmo tempo o seu filho. Resolve alugar
um barraco e foi para lá com o filho. Continua a trabalhar e, para não
gastar todo o dinheiro, pede que uma das Irmãs o conserve.
Não demora muito e o pai vem reivindicar o seu direito de pai e
de marido. Relutante, mas pressionada por alguns parentes, Aline o
acolhe e tenta construir um relacionamento. Mas, a tentativa é
frustrante: a ele não agrada muito trabalhar e a maltrata.
Mas Aline é uma Eva lutadora: levanta-se às duas da
madrugada, prepara o fermento para os salgados, dorme mais um
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pouco, mas, às quatro da madrugada se levanta de novo, prepara a
massa, frita-a e às seis da manhã já está de porta em porta oferecendo
os salgados para o café da manhã, enquanto o filho dorme sozinho em
casa.
Encontrei-a há algum tempo e ainda chorava pensando na sua
grande vontade de estudar. Ora ela está freqüentando um curso
profissionalizante de corte e costura na casa das Irmãs.
Uma outra Eva marcou a minha vida: Diana. Menina de poucas,
mas profundas palavras. Desde pequena sabia o que queria e
perseguia os seus objetivos silenciosa e persistentemente.
Também ela se deparou, várias vezes, com as dificuldades de
ser mulher e negra. Por fortuna, vinha de uma família de classe
remediada, mas sobretudo, de uma família honesta e profundamente
cristã. Quanto sofrimento por persistir em querer ser “diferente” das
suas colegas de classe não aceitando pagar os “favores” em troca da
partilha de conhecimento.
Explico-me melhor. Os estudantes da escola média formam
grupos entre eles para que um partilhe com os outros os seus
conhecimentos em matérias que têm mais facilidade de aprendizagem.
Fazem estes estudos fora do horário de aulas, à noite e, geralmente,
na biblioteca da escola.
Por não aceitar às pressões do grupo, Diana se viu logo
rejeitada pelos colegas e pelas colegas e exclusa do grupo de estudo.
Então, pesquisava e estudava sozinha ou com alguma colega também
deixada à margem.
Infelizmente, a pressão não parou aí. O grupo de rapazes
começou a planejar um estupro à saída da biblioteca. Chegando ao
conhecimento do fato, Diana comunicou à sua família que a
compreendeu e ajudou: a partir daí todas as noites a mãe ou um dos
irmãos ia buscá-la à saída dos estudos.
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Ela não conseguiu entrar na faculdade. Fez alguns cursos
profissionais e começou a lutar para ter um espaço no mundo do
trabalho. Todas as suas iniciativas começavam bem, mas não
demorava muito a chegada de cobranças de “pagamento”. Ela então
era obrigada a desistir de suas iniciativas.
Diana “fracassou” como comerciante, mas, na sua “via-sacra”
em busca de um lugar na sociedade, aprendeu coisas que nenhuma
faculdade ensina. E, como todo aprendizado autêntico comporta uma
mudança de vida, Diana tornou-se sempre mais sensível aos
sofrimentos da mulher pobre e de todo marginalizado pela sociedade,
pois se deparou com muitos deles. Descobriu qual era o seu lugar
naquela realidade de opressão: resgatar a dignidade do seu povo
pobre e conscientizar a mulher sobre o seu próprio valor.
Como è bonito constatar o milagre de um cristianismo autêntico:
afasta a mágoa e o ódio que levam a oprimir e transforma um oprimido
em uma pessoa capaz de conquistar a liberdade pessoal e capaz de
cooperar no processo de libertação do oprimido.
Hoje, Diana é uma voluntária em uma ONG em seu país e,
contando com homens e mulheres de boa vontade, ela dedica-se
totalmente ao pobre e marginalizado do seu povo.
Enquanto finalizava este artigo, recebi, não por acaso, uma
mensagem via e-mail que partilho com você convidando-lhe a voarmos
juntos na reflexão sobre a grande riqueza de Deus: o ser humano
formado pelo homem e mulher:
NECESSITAMOS VOAR
Agora mais do que nunca, a causa da mulher è a causa de toda a
HUMANIDADE.
B. Boutros Ghali
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Para cada mulher forte cansada de aparentar debilidade,
há um homem débil cansado de parecer forte.
Para cada mulher cansada de ter que agir como tonta,
há um homem agoniado por ter que aparentar saber tudo.
Para cada mulher cansada de ser qualificada como “ser emotivo", há
um homem a quem se tem negado o direito de chorar e ser “delicado”.
Para cada mulher catalogada como pouco feminina quando compete,
há um homem obrigado a competir para que não se duvide de sua
masculinidade.
Para cada mulher cansada de ser um objeto sexual,
há um homem preocupado com sua potência sexual.
Para cada mulher sem acesso a emprego ou a um salário satisfatório,
há um homem que deve assumir o sustento de outro ser humano.
Para cada mulher que desconhece os mecanismos do automóvel, há
um homem que não aprendeu os segredos da arte de cozinhar.
Para cada mulher que dá um passo em direção à sua liberação, há um
homem que redescobre o caminho da liberdade.
A Humanidade possui duas asas:
Uma é a mulher, a outra é o homem.
ENQUANTO AS ASAS NÃO ESTIVEREM IGUALMENTE
DESENVOLVIDAS,
A HUMANIDADE NÃO PODERÁ VOAR
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NECESSITAMOS UMA NOVA HUMANIDADE.
NECESSITAMOS VOAR.
Ir. Elizabeth S. Ribeiro, CMSTMJ
Com a permissão da Irmã Elisabeth, quero acrescentar uma outra
poesia, MARIA MARIA. Esta poesia abre o musical para balé que tem o
mesmo nome, Maria Maria, escrito especialmente para o Balé Corpo,
de Minas Gerais. Ela apresenta em resumo simbólico a vida das
mulheres pobres, sobretudo das mulheres negras do Brasil, até porque
a maioria da mulheres pobres são negras. É também o resumo da vida
das mulheres negras no mundo, como vemos no texto acima.
Maria Maria
Milton Nascimento/Fernando Brant
Maria Maria, um simples nome de mulher
Corpo negro de macios segredos, olhos vivos
Farejando a noite, braços fortes trabalhando o dia.
Memória da longa desventura da raça,
Intuição física da justiça.
Alegria, tristeza, solidariedade e solidão.
Uma pessoa que aprendeu vivendo
E nos deixou a verdadeira sabedoria:
A dos humildes, dos sofridos,
Dos que tem o coração
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maior que o mundo.
Maria Maria nasceu num leito qualquer de madeira.
Infância incomum, pois nem bem ela andava, falava e sentia e
Já suas mãos ganhavam os primeiros calos de trabalho precoce.
Infância de roupa rasgada e remendada, de corpo limpo
e sorriso bem aberto. Infância sem brinquedos,
mas cheia de jogos aprendidos com as velhas
que lavavam roupas nas margens do Jequitinhonha.
Infância que acabou cedo, pois já aos 14 anos,
como é normal na região, ela já estava casada.
Do casamento ela se lembra pouco,
Ou não quer muito se lembrar.
Homem estranho aquele a lhe dar
Balas e doces em troca de cada filho.
Casamento que em seis anos,
seis filhos lhe concedeu.
Os filhos se amontoavam nos quatro cantos da casa.
Enquanto ela estendia a roupa na beira dos trilhos,
os seis meninos sentados brincavam na terra fofa.
Os seus olhinhos de espanto não entendiam nada.
De repente, notícia vinda dos trilhos.
Maria Maria era viúva.
Pela primeira vez a morte entrava em sua vida
E vinha em forma de alívio. E de retalho em retalho
Maria se definiu: solitária, operária e brincalhona.
Ela pode ao mesmo tempo
Ser Maria e ser exemplo de gente
Que trabalhando em todas as horas do dia,
Conserva em seu semblante
Toda pura alegria, de gente que vai sofrendo
E quanto mais sofre, mais sabe.
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