A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO GHEMAT: UMA
ANÁLISE FOUCAULTIANA
Mônica de Oliveira Costa - [email protected]
Universidade Nilton Lins
Av. Profº Nilton Lins, s/n, Parque das Laranjeiras
Manaus – Amazonas
Raiziana Mary de Oliveira Zurra – [email protected]
Universidade do Estado do Amazonas
Rua: Estrada do Bexiga, nº 1085, Jerusalém
Tefé – Amazonas
Resumo: O objetivo do artigo é realizar uma análise dos trabalhos desenvolvidos pelo
Ghemat (Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil) na área da
História da Educação Matemática a partir de uma perspectiva foucaultiana. Acredita-se que
por esse grupo ser referência de pesquisa na área, é de suma importância a discussão da
ideia de história abordada no desenvolvimento desses estudos. Percebe-se ao longo do
trabalho que não há um conceito fechado acerca da ideia de história usada pelo Ghemat em
seus estudos, mas a relação de perspectivas históricas diferenciadas, como a tradicional e a
de Foucault. Para esclarecer tal afirmação, o artigo organiza-se em três momentos
principais, além das considerações iniciais e finais: no primeiro, uma discussão da história
dentro da obra de Foucault; no segundo, a descrição das atividades desenvolvidas pelo
grupo de pesquisa em questão e, por fim, a análise deste por meio da ideia de história
desenvolvida por Foucault.
Palavras-chaves: História, Foucault, Educação Matemática
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS: SITUANDO ALGUNS ARGUMENTOS
Este trabalho busca analisar o conceito de história utilizado como referência nos
trabalhos de História da Educação Matemática do Ghemat. Para atingir tal objetivo me
debrucei sobre a obra Microfísica do Poder, de Foucault, mais especificamente sobre o
capítulo Nietzsche, a genealogia e a história, (1979) para referenciar esta análise acerca de
que história se propõe este autor e de que história está presente no Ghemat. Sendo assim, o
artigo encontra-se dividido em três partes principais: a primeira, que trata da ideia de história
para Foucault, mas esta não se configura um modelo para entendê-la; a segunda que explica
as pesquisas realizadas pelo Ghemat e seu foco na questão histórica e a terceira que analisa o
conceito de história usado no Ghemat e no desenvolvimento dos seus trabalhos tendo como
referencia o trabalho foucaultiano.
É importante salientar que os próprios historiadores interrogaram o trabalho de Foucault
como historiador, talvez porque ele questionou as bases nas quais se pautou a prática
historiográfica, ou seja, ao criticar o “mito filosófico da história”, Foucault quis discutir sobre
os conceitos cristalizados como razão, poder e contradição que organizavam os fatos
históricos. Portanto, ele negava a imutabilidade das categorias históricas e defendia a
contingência radical e o caráter descontínuo do conhecimento histórico, por isso pode ter
incomodado os historiados ditos tradicionais.
2
FOUCAULT E A HISTÓRIA: QUE RELAÇÕES PODEMOS ESTABELECER?
Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou, de
preferência, para os longos períodos, como se, sob as peripécias
políticas e seus episódios, eles se dispusessem a revelar os equilíbrios
estáveis e difíceis de serem rompidos (...) As velhas questões de
análise tradicional são substituídas, de agora em diante, por
interrogações de outro tipo. FOUCAULT
Mesmo que muitos historiadores possam pensar, Foucault não é avesso à história, mas
sim a determinadas maneiras de pensá-la, construí-la e ensiná-la. Ao longo de sua obra
podemos perceber sua crítica a noções e procedimentos cristalizados da história, tornando-a
contínua e globalizante, como é o caso de: sujeito fundador, origens nobres e abordagens
teleológicas.
Esta historiografia tradicional teve início em meados do século XIX e se prolongou até
o início do século XX, chamada de escola metódica. Uma de suas características é o discurso
cientificista imposto aos historiadores afastando-se do discurso literário. Essa visão entendia a
história como algo linear, contínuo e feita de grandes heróis e eventos. Seu objetivo era
resgatar o passado das nações, de seus líderes e grandes movimentos.
É esta visão de história que Foucault critica: a ilusão de recompor a realidade, como se
pudesse o historiador descobrir o que realmente aconteceu. A materialização dos fatos
históricos, como partes ordenáveis e preexistentes, dava confiança e cientificidade à história.
A semelhança das ciências ditas naturais caberia à história descobrir a lógica da realidade, as
leis universais, para assim, ordená-las.
Sendo assim, a história é como se fosse uma colcha de retalhos onde o tempo iria
costurando as partes para formar o todo, o fato em si. Mas como comprovar sua verdade? Seu
ordenamento correto? Os documentos oficiais. Os fatos tornavam-se verídicos se
confirmados pela documentação oficial do Estado. Esta dava fidelidade ao processo de
construção histórica. Como afirma (TÉTART apud PINTO, 2011, p. 152):
a história nova estritamente metódica. Em nome de um racionalismo
total (...) prega unicamente o estudo das fontes escritas: coleta dos
documentos (heurística), crítica externa (data, autor, origem...) crítica
interna (hermenêutica), resumo crítico, síntese e colocação em
perspectiva dos dados.
Para Foucault a história tem um outro significado: ela não escreve a si mesma, nem os
documentos são fontes por si só. Por isso, não se compara a um quebra cabeça, que possui um
formato preestabelecido e que se pode debruçar sobre ele para descobrir sua ordem. Para
Foucault não há verdade a ser ensinada, mas sim verdades que se impõe num cotidiano
conflitivo e caótico. Nesse contexto, o documento ganha um outro sentido, assim “o
documento, pois, não é mais para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta
reconstruir o que os homens fizeram ou disseram (...) ela procurar definir, no próprio tecido
documental, unidades, conjuntos, séries, relações.” (FOUCAULT, 2007, p. 07)
A lógica agora é outra. O documento não mais como fonte inerte de informações e, sim
como elemento que considera a lógica dos seus produtores, sendo assim um fato histórico.
Não é necessário ser fiel a ele ou somente reproduzi-lo, mas entender a possibilidades das
informações nele contidas. Nenhum documento foi arquivado de forma inocente. Dentro dos
estudos culturais, as evidências são fabricações tornando os documentos acontecimentos
históricos. Para Foucault, um elemento essencial é a singularidade como procedimento de
análise histórica que deseja tanto suprimir os encadeamentos naturais e teleológicos como
emergir os jogos de poder, as estratégias de dominação e a construção da realidade em seu
caráter discursivo.
Nietzsche é referência para Foucault na noção de história efetiva que entende o
acontecimento em sua singularidade, trazendo à tona as relações que possibilitaram aquele
acontecimento. O fato não é algo dado, mas produzido. O acontecimento não é a realidade e
sim se questionar como foi possível. Busca assim desnaturalizar as experiências e discursos
que são acontecimentos e estão na ordem do poder. O próprio pesquisador é desnaturalizado e
visto como uma produção.
A questão do sujeito é um dos temas centrais nos trabalhos de Foucault. Essa relação
história/sujeito é por ele descrita como a história dos modos de subjetivação/objetivação do
próprio ser humano em uma cultura. Sendo assim, não seria possível um sujeito fundador,
pois ele mesmo produto de sua época. Nesse contexto, a questão não é quem escreveu a
Constituição Federal de 1988 do Brasil, mas sim o que permitiu que ela fosse escrita, quais
forças a produziram, que interesses estavam em jogo.
Entretanto, a maior contribuição de Foucault para a historiografia é a reativação da
noção de genealogia. Em “Nietzsche, a genealogia e a história”, o ensaio mais organizado que
escreveu sobre o tema, ele se pautou no filósofo alemão fazer uma proposição de uma
abordagem histórica que não considerasse a busca das origens com o objetivo de dedicar-se
para o jogo casual das dominações que formam os acontecimentos. O autor considera ser essa
uma tarefa cinza e meticulosa que exige erudição incansável para que se encontre a
“proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se
formaram” (FOUCAULT, 1979, p.). O enfoque genealógico reestabeleceria a disparidade que
domina o começo das coisas, o dissenso, aquilo que está por trás delas e não permitiria
reinstalar a “identidade inviolável da origem”.
Assim, a genealogia se contrapõe a história dos historiadores tradicionais que buscam o
que “verdadeiramente aconteceu”. A procura da imagem primordial adequada à sua natureza,
estes historiadores permitiram que a perspectiva supra-histórica dominasse o sentido
histórico. Ao buscar esse objetivo, Foucault acusou-os de se reportar ao acontecimento
singular a uma estrutura que deveria ser tão unitária quanto conseguisse, necessária, inevitável
quanto possível. Em oposição, a genealogia restabeleceria a singularidade do acontecimento.
Assim como afirma (DUSSEL, 2004, p. 48) “dividindo nossas emoções, multiplicando nossos
corpos, privando o ser de estabilidade, a genealogia não se deixava levar por nenhuma
obstinação muda na direção de um fim milenar.”
Dessa forma, a genealogia não se configura como um saber neutro; pelo contrário, é
perspectiva absoluta. Ela constrói uma contra memória ao separar a história da memória, ou
seja, para transformar a história desdobrando-a numa “forma totalmente diferente do tempo.”
(FOUCAULT, 1979, p.) Daí a afirmação (ALBUQUERQUE JR., 2004) que para Foucault
não se faz história como espectador, de sala com ar condicionado, torcendo na arquibancada,
mas sim entrando no jogo, vestindo a camisa, para ver que atrás das coisas há algo totalmente
diferente que são as situações e condições que determinam aquele acontecimento histórico.
Por fim, quando se fala em Foucault e história não se pode deixar de lado o conceito de
jogo. Este conceito também é muito presente no capítulo “Nietzsche, a genealogia e a
história”, para diferenciar como os historiadores configuram o passado e como estabelecem a
relação dele com a história, da forma como Nietzsche e Foucault praticavam história e como
estabeleciam relações com os relatos que chamamos de memória. O uso da palavra jogo não é
uma simples metáfora, mas como forma explicar o funcionamento da sociedade, um modo de
ver e pensar o mundo, de relacionar as empirias e conceitos.
Foucault entende a história como resultados de múltiplos jogos, de vários afrontamentos
entre forças e saberes, é oriundo da emergência de uma dispersão de acontecimentos que são
frutos de embates que emergem em meio a forças questionantes. Portanto, a história praticada
como genealogia “reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência
antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações.” (FOUCAULT, 1979, p.17)
3
GHEMAT E SUA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
O Ghemat (Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil) foi
criado no ano de 2000 e está cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq, tendo
como líderes os professores Dra. Neuza Bertoni Pinto (Pontifícia Universidade Católica do
Paraná) e Dr. Wagner Rodrigues Valente (Universidade Federal de São Paulo – Campus
Guarulhos). Fazem parte desse grupo pesquisadores de várias partes do Brasil que atuam em
colaboração no desenvolvimento de projetos coletivos.
Pautado na relação história e educação matemática, o objetivo principal do Ghemat é
desenvolver pesquisas na área da história da educação matemática por meio de estudos
históricos que elejam documentações como fonte de pesquisas e base de dados que possam
ser aceitas pela comunidade de historiadores. Para receber tal documentação, o Ghemat
disponibiliza em seu site um link que pode ser consultado ou pode ser inserido essas
documentações vindas de vários estados brasileiros. A consulta é aberta a qualquer pessoa que
deseje acessar esses arquivos.
Muitos professores participantes do grupo possuem orientandos que estão em processo
de formação (mestrado ou doutorado) e direcionam suas pesquisas para a área de atuação do
Ghemat que por sua vez possui um projeto maior para que possa englobar todas essas
pesquisas. Assim é possível desenvolver estudos aprofundados sobre a história da educação
matemática em várias épocas. Para apresentação dos resultados desses trabalhos são
realizados os Seminários Temáticos que se configuram como espaços de troca e orientação
das pesquisas. O último seminário foi realizado este ano em Santa Catarina e teve como título
a Aritmética, a Geometria e Desenho no curso primário em perspectiva histórico comparativa,
1890-1970. Como atua com colaboração com outros pesquisadores, inclusive internacionais, é
possível estabelecer relações e estudar temas semelhantes no mesmo período em países
diferentes, ou seja, estudos histórico-comparativos, como é o caso da França e de Portugal.
O Ghemat possui um Centro de Documentação que reúne vários materiais que podem
servir como bases de dados e fontes de pesquisa. Esse material está disponível à comunidade
(pesquisadores ou não) para qualquer tipo de consulta. Assim como livros e outras produções
do grupo, o Centro de Documentação possui acervos pessoais de alguns autores da área da
matemática, como é o caso de Euclides Roxo, Ubiratan D´Ambrosio e Osvaldo Sangiorgi,
dentre outros. Também fazem parte desse acervo materiais utilizados pelos alunos em outras
épocas, como livros didáticos, cadernos e provas que podem servir ou já serviram como
fontes de pesquisas e muitas de suas análises já se encontram sistematizados no próprio
centro. Este possui uma equipe de profissionais especializados que recebe, organiza, cataloga
e arquiva todo o material recebido e disponibiliza para as consultas que podem ser agendas
por email ou pelo próprio site.
Por ser um grupo de pesquisa com um grande volume de produções, o Ghemat possui
muitas publicações em formas de livros e artigos científicos onde se encontram sistematizados
os resultados dos estudos desenvolvidos. Tais obras passam a servir como base para futuros
trabalhos e demonstram a necessidade do resgate histórico da educação matemática no Brasil
e em outros países. Alguns desses livros são frutos de estudos sobre determinada escola que
tenha sido referência num determinado tempo histórico ou sobre processos escolares que
marcaram determinado período, como é o caso do livro Os exames de admissão ao Ginásio
1931-1960 e do livro Arquivo Escolar do Colégio Pedro II.
Outros livros e dvd’s servem como base de dados e são dedicados ao estudo dos livros
didáticos no Brasil e reúnem características importantes de determinadas períodos históricos,
assim como sua legislação vigente, o que permite a realização de vários estudos como: que
conteúdos matemáticos foram introduzidos ou suprimidos num determinado período? Quais
as mudanças didático-pedagógicas no ensino da matemática na escola? Entre outros.
O Ghemat também possui um arquivo de entrevistas de vários matemáticos de
referência no Brasil, como Ubiratan D’ambrosio, que discutem sobre o Movimento da
Matemática no Brasil, os temas são diversificados pois o período de atuação de cada um é
diferente. Outro arquivo que o grupo possui é o de Memória Fotográfica que reúne fotos da
participação dos membros do grupo em diversos eventos na área da história da educação
matemática, inclusive os eventos organizados pelo próprio Ghemat. Alguns destes momentos
também são registrados por meio de áudio e vídeo.
Com toda essa riqueza de material é possível ao grupo realizar estudos de importância
singular para a história da educação matemática, especialmente no Brasil e que serve como
referência para a compreensão dos objetos escolares dentro dessa área. Daí a necessidade de
se estudar sobre que ideia de história é usada dentro dos trabalhos do Ghemat com o objetivo
de apreender que perspectivas podem trazer tais estudos e como eles subjetivaram as pessoas
que a eles tiverem acesso.
4
ANÁLISE DA IDEIA DE HISTÓRIA PRESENTE NO GHEMAT A PARTIR DE
ESTUDOS FOUCAULTIANOS
“(...) E, talvez nessa história em que um homem se narra a si mesmo,
nessa história que talvez não seja senão a repetição de outras histórias,
possamos adivinhar algo daquilo que somos.” LARROSA
Ao iniciar a análise da ideia de história presente no Ghemat a partir de estudos
Foucaultianos é preciso esclarecer como foi realizada essa análise. Mesmo um leitor
superficial pode observar que nas obras de Foucault não são presentes modelos. Assim, nesse
caso específico, o autor discute de forma central a importância do estudo da história, mas não
apresenta nenhum caminho de como fazê-lo. Portanto, a análise que agora se inicia está
pautada em requisitos foucaultianos de como deveria ser constituída a história, ou seja, não há
maneira certa ou errada de constituir os fatos históricos, mas há jeitos diferentes de se
proceder, assim devem ser apontados parâmetros para tal, no caso deste trabalho, os conceitos
de Foucault sobre a história.
Para proceder a análise foram escolhidos alguns materiais específicos postados no site
do Ghemat, que possuem informações mais completas sobre os trabalhos desenvolvidos, são
projetos de pesquisa, dissertações, teses, comentários explicativos sobre livros e dvd’s, em
especial. Acredito que as mesmas ideias sobre história presentes nesses trabalhos se repetem
nos demais. Para o trabalho ter uma melhor organização didática, optei por trabalhar com
grandes linhas de características de Foucault sobre a ideia de história e como elas se
apresentam dentro dos estudos do Ghemat.
A primeira linha de características sobre história dentro do pensamento foucaultiano é
que a história não é linear nem cíclica, pois quando ela congrega o antigo não é
necessariamente para fomentar o novo e, sim o impensado. Como sustentação de sua prática
arqueológica, Foucault esclarece muito bem que o seu desejo de mapeamento das mudanças
na epistéme, do século XVI ao XIX, não está relacionada à descrição progressiva do
conhecimento na direção a uma objetividade na qual a ciência atualmente possa reconhecer.
(FOUCAULT, 1999, p. 19) Nos trabalhos do grupo de pesquisa do Ghemat não está presente
essa ideia de mostrar o impensado, ou seja, as situações que não se repetem ou que não são o
foco daquele momento histórico. Entretanto, os autores buscam narrar as situações envolvidas
em determinados movimentos escolares a partir de suas motivações históricas. Isso fica claro
em trabalhos como (SILVA, 2013, p. 10) quando afirma
o cenário na qual esta pesquisa está inserida refere-se a um momento
de grandes mudanças para a educação brasileira – 1939 a 1961. A
década que antecede os anos 1930 foi marcada por uma série de
movimentos em todo país, como a criação da Associação Brasileira de
Educação, em 1924; a primeira reforma educacional, encabeçada por
Sampaio Dória, em 1920, no estado de São Paulo; (...)
Assim, podemos perceber que nos trabalhos do Ghemat o sentido da história não está
pautada na linearidade dos fatos que ocorrem ou na repetição em que certos fatos históricos se
repetem, mas em descrever como a situação ocorreu, enfatizando muito mais as diferenças do
que as similaridades das situações ocorridas na história da educação matemática. Pois, de
acordo com o pensamento de (WHITE, 1994, p. 63):
(...) o historiador não presenta nenhum bom serviço quando elabora
uma continuidade especiosa entre o mundo atual e o mundo que o
antecedeu. Ao contrário, precisamos de uma História que nos eduque
para a descontinuidade de um modo como nunca se fez antes, pois a
descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino.
Aproximando-se desse tema, temos a segunda linha de características que se refere a
não busca pela “verdade”, pela “certeza”, pela “revelação”, pelo “fato” nos trabalhos sobre
história de Foucault, busca sim entender como estes e outros conceitos são produzidos dentro
de complexas relações entre vida e linguagem. Assim, a história, para este autor, é impotente
para reconstruir quadros temporais com exatidão, não podendo assumir a forma de doutrina
do tempo e não deve constituir uma forma de ditadura moral da experiência a partir de
cenários passados, por meio de julgamentos de certo ou errado. Na introdução do trabalho de
(PARRÉ, 2013, p. 10) fica evidente esse fato:
A fabricação aqui chamada para iniciar os trabalhos é resultado de um
jogo entre os conhecimentos que o texto carrega e aqueles que seu
receptor já possui. O confronto entre o rol desses saberes resultará em
uma nova elaboração de conhecimentos, razão pela qual cada nova
fabricação leitora é única e original, e muitas vezes não receberá um
registro merecido.
Dessa forma, não uma verdade a ser descoberta pelo leitor na leitura do trabalho e que
várias pessoas ao lerem terão acesso a mesma informação. O que existe são fabricações de
subjetividades diferentes a partir do contato com o mesmo material. Assim, as situações
vivenciadas pelo pesquisador durante o estudo também fazem parte da história do trabalho, já
que a sua leitura da história depende dessas experiências. Tudo é sinalizado por Foucault, com
o desejo de demonstrar que a prática arqueológica não oferece uma leitura positiva e estável
como afirma a prática histórica tradicional, mas, pelo contrário, é uma prática mais por
ofuscamento do que por meio de transparências. Portanto (WHITE, 1994, p. 59) sugere que
“não há essa coisa de visão única, correta, de algum objeto em exame, mas sim muitas visões
corretas, cada uma requerendo o seu próprio estilo de representação.”
Em outras palavras, Foucault buscou destituir, por meio de um questionamento
profundo, a positividade dos objetos da história, já que a ênfase de sua compreensão sobre o
assunto está pautada na ideia de que não existe objetos duráveis (terceira linha de
característica), como o “Estado”, a “cultura”, a “loucura”, que, através dos tempos, sofram
alterações ou evoluções a partir de uma fonte comum. Dentro dessa ideia o Ghemat possui
uma visão mais na perspectiva tradicional de história quando no projeto A matemática
moderna nas escolas do Brasil e de Portugal: estudos históricos comparativos, sob a
coordenação dos professores José Manuel Matos e Wagner Rodrigues Valente explicam que:
Em 1908, em Roma, durante a realização do IV Congresso
Internacional de Matemática, foi dado início a um levantamento da
educação matemática praticada em diferentes países, a partir da
criação de uma comissão internacional, que resultou na primeira
proposta de internacionalização do ensino de matemática. O Brasil,
dentre muitos outros países, foi convidado a participar das
discussões promovidas pela IMUK (Internationale Mathematische
Unterrichtskommission) ou CIEM (Commission Internationale de
L'enseignement Mathématique).(GHEMAT)
Para este grupo, então existe a História da Educação Matemática como um objeto
permanente que passa por um processo histórico influenciado pelas circunstâncias intrínsecas.
Diferentemente do que pensa Foucault quando explica que as circuntâncias em torno da
avaliação de um texto são contornadas por um contexto. Assim, exemplificando, não existe a
“loucura” e, sim situações em que as referências a essa ideia (a de loucura) adquirem
visibilidade numa esfera estrutural. Veyne (1998, p. 274) reafirma essa fala ao lembrar que
Foucault nos lembra que “os objetos de uma ciência e a própria noção de ciência não são
verdades eternas.” Veyne propõe ainda que Foucault narra uma filosofia da relação, onde as
estruturas é que dão seus rostos objetivos a matéria, negando o contrário: que a consciência
conhece seus objetos de antemão. E termina metaforicamente “nesse mundo, não se joga
xadrez com figuras eternas, o rei, o louco: as figuras são o que as configurações sucessivas no
tabuleiro fazem delas.” (1998, p. 275)
A quarta linha de característica se preocupa com a ideia de herói, de destaque de um
personagem num determinado tempo histórico dentro da história tradicional. Na verdade, não
apenas para Foucault a história se afasta dessa noção de heroísmo. (ROLT, 2011, p. 1009)
afirma “de uma posição agregadora, pautada na noção de que os fatos condensam percursos
evolutivos que precisam ser comunicados com objetividade, passamos a uma expectativa em
que a História perde o caráter de registro de prática de perpetuação de discursos
essencialistas.” Sendo assim, não heróis, como aprendi e tantas outras pessoas nas aulas de
história na escola, pois o enfoque não é a ação da pessoa, mas as circunstâncias que estão em
volta. Analiso ser nessa direção que o Ghemat promove os estudos da vida e obra de alguns
educadores matemáticos, como Euclides Roxo e Ubiratan D’ambrosio. Além disso, é num
desses sentidos, como tratado anteriormente, que Foucault usa o termo genealogia, que se
opõe “(...) ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas
teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem.” (FOUCAULT, 1979, p. 12)
Portanto, mas importante do que supervalorizar a ação da pessoa, como se esta estivesse
isolada de uma rede de situações e fatos históricos. É necessário olhar para a forma, o enredo,
o conjunto linguístico e complexo que faz parte da história e, entender que muito mais que
descobertos, heróis e fetos históricos são elaborados pelo tipo de pergunta que faz o
pesquisador frente aos fenômenos que tem diante de si. Para reforçar esta intenção, é válido
lembrar que afirma (ALBUQUERQUE JR. et all, 2009, p. 353) ao confirmarem que uma das
maiores contribuições de Foucault é “um deslocamento do olhar daquilo que sempre foi
considerado como central, nuclear, essencial para se entender o funcionamento da sociedade e
das instituições, para aquilo que era descrito como periférico, marginal, menor, fronteiriço.”
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE FICA DA HISTÓRIA?
(...) É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos
reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa
“reencontrar” e sobretudo não significa “reencontrar-nos”. A história
será “efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em
nosso próprio ser. FOUCAULT
A análise do trabalho nos leva a crer que ele não está dentro da perspectiva específica da
história, mas sim possui nuances mais fortes de determinadas posições da ideia de história,
como a tradicional e a foucaultiana. Dentro desta, posso afirmar isso perceber que o Ghemat
não está atento às causas dos fatos e, sim aos elementos que se cruzam, seus desejos,
encontros, intenções, motivações... Dessa forma, o trabalho do historiador da educação
matemática é de desmontagem: interessa mostrar as peças que fazem parte do jogo em sua
dispersão.
Nessa perspectiva, Foucault propõe três novos e deferentes usos para a história, que se
pode estender para a história da educação matemática feita no Ghemat. O primeiro é o uso
irônico ou paródico. É a história que dessacraliza o real e o que dizem que somos, opondo-se
a história tida como reminiscência ou conhecimento.
O segundo é dissociativo e destruidor da identidade, que ao se contrapor a história como
continuidade e tradição , propõe o afastamento da continuidade, da linearidade, o fim dos
modelos de identidade impostas no passado. Por fim, o terceiro uso é o sacrificial e
destruidora verdade, ou seja, uma história que desconfie das verdades que chegam até nós
prontas e acabadas e que busque destronar os ídolos, inquietar o pensamento e por fim ao
pensamento acrítico. (ALBUQUERQUE JR, 2004)
Diante disto, acredito que é possível pensar a história a partir da reflexão de nós
mesmos e de nossas práticas, como bem faz o Ghemat, dentro da história da educação
matemática.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault
no campo da historiografia. Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 11, n.19/20, jan/dez, p. 79-100,
2004.
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO, Alípio de.
(orgs) Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
DUSSEL, Inés. Foucault e a escrita da história: reflexões sobre os usos da genealogia.
Revista Educação e Realidade. Jan/jun. p. 45-68, 2004.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
_____ . As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
_____ . Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
PARRÉ, Adauto Douglas. Escola Nova, Escola Normal de Campos e o ensino de
Matemática na década de 1940. Universidade Federal de São Paulo, 2013
PINTO, Luciano Rocha. A história como jogo: contribuições de Michel Foucault para o
ensino da história. Revista História e Ensino, Londrina, v. 17, n.1, p.149-165, jan/jun,2011.
ROLT, Clóvis. Foucault e a história numa trama de conceitos. Revista de Ciências Sociais,
Fortaleza, v. 42, n. 2, jul/dez, p. 108-118, 2011.
SILVA, Martha Raíssa Santana. A matemática na pedagogia, da FFCL – USP e FNFi
(1939-1961). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São Paulo, 2013.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: editora
da Universidade de Brasília, 1998.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: editora
da USP, 1994.
A HISTORY OF MATHEMATICS EDUCATION IN GHEMAT: AN
ANALYSIS FOUCAULT
Abstract: The aim of the paper is to analyze the work undertaken by Ghemat (Research
Group for the History of Mathematics Education in Brazil) in the area of History of
Mathematics Education from a Foucauldian perspective. It is believed that by this group to be
a reference in the research area, it is extremely important to discussing the idea of history
addressed in the development of these studies. It is noticed throughout the work there is not a
closed concept of the idea of history by Ghemat used in their studies, but the relationship of
different historical perspectives, such as traditional and Foucault. To clarify this statement,
the article is organized in three main stages, plus the initial and final considerations: first, a
discussion of the history in the work of Foucault; in the second, the description of the
activities developed by the research group in question and, finally, the analysis of this idea
through the story developed by Foucault.
Keywords: History, Foucault, Mathematics Education
Download

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO GHEMAT: UMA