Vagueio nas recordações da minha infância, recuando até ao tempo de
miúdo, porque as recordações de criança já se tornam vagas para um homem
feito.
Por vezes a vida provoca-nos rumos indescritíveis, por vezes sentimos
perdidos e sem retorno. Embalados pelo esvoaçar do tempo amadurecemos
e olhamos para trás soltando hipotéticas perguntas que muitos de nós, de
certeza já as fizeram...
Será que fazia tudo igual?
Se eu não fizesse isto, aquilo não me acontecia?
A vida é uma estrada principal só com um rumo, mas com vários
obstáculos, arranjos na via e fugas para estradas secundárias que provocam
o que nós chamámos de destino. Fazemos amizades, perdemos amigos,
ganhamos inimigos, criamos laços, desfazemos... Geramos sementes e
também as perdemos.
Porém, nesta viagem tumultuosa encontrámos pessoas que nunca as
poderemos esquecer, um mau rumo pode nos enviar para lugares que a nossa
mente nunca irá apagar da nossa memória.
Na nossa adolescência sentimo-nos os senhores do mundo, tudo se
torna fácil a nossos olhos e o objectivo é tornar-nos em egoístas.
À nossa volta o mundo gira de maneira diferente, os que nos rodeiam é
que não sabem como se vive... Pensamos nós na nossa inocência...
A ignorância toma-nos de alto a baixo e só caímos na realidade quando
algo nos enfrenta e nos entra pelos olhos dentro.
O passado esse recuado, transporta-nos só para pequenos momentos,
partes de uma porcelana partida que pacientemente tento unir, memórias
indistintas que anseio por apanhar.
“Penteio suavemente os seus cabelos, enquanto ouço os seus feitos e
pequenas aventuras que teve no seu dia de escola, parecem fios de seda,
entrelaçam sem cerimónias entre meus dedos, afundo-me no seu mar de
ondas enamorado pelo seu cheiro. Através do espelho vejo perante mim o
tesouro da minha vida, nas suas façanhas a minha imaginação ondulava e
vagueava na altura que tinha a sua idade”
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No tempo nos perdemos e desvanecemos, atropelados pelo quotidiano
e rotina, mas o tempo esse… Tudo se centra no tempo, tudo vive do tempo,
mas ele não se interessa, porque tudo aquilo que ansiamos demora tempo
para ter… O tempo ilude-nos com pequenos pretextos, sentamo-nos
derrotados pelo tempo a olhar para um infinito que nos irá engolir, mas o tempo
esse, senta-se ao nosso lado e acompanha-nos nesta viagem de fim de tempo.
“Ela ergue os seus enormes olhos de engolir mundos e segue uma
mosca que voa em redor de escovas de dentes e elixires, acabando por pousar
no espelho. Matreiro, viro o secador na sua direcção e afugento-a com uma
baforada de ar quente, arremessando-a para fora de tão lindo quadro. Irritada,
olha-me com aquele ar inquisidor, arqueando os seus braços de encontro ao
corpo fazendo uma pose imponente perante um sujeito que errou no que
estava a fazer, circunspecto e desviando o olhar, prossegui com a escova o
leve passeio em busca dos caracóis perfeitos.
- Tu viste o que fizeste papá!
- Simplesmente afastei, qual é o problema?
Encheu o seu peito de ar e soltou um vozeirão, que encheu aquele
pequeno WC num tumultuoso eco:
- Mas, tu não vês que podias matar a pobre mosca!
Admirado com o seu tom de voz e surpreso pela reacção, também fiz o
meu pequeno desafio, pensando que ganhava no meu papel de pai. Levanto o
meu dedo desafiador que poucas vezes se levantava, mas quando era dia para
sair era o ver se te avias, mas nem com o dedo desafiador ou com a minha
cara mais produzida de raiva, senti um breve arrepio na sua face. Toda a sua
atitude continuava lá, seus olhos eram capazes de incendiar.
- Não é um ser vivo como tu, gostavas de levar com ar quente em
cima…
- Elas chateiam, e são porcas!
- E se morrem, o que é que tu fazes?
Deitas para a sanita e atiras água para ela para se afogar. Ela também
deve ter filhos ou pais, podem agora ficar preocupados…”
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A morte, nas minhas lembranças de passado pouco lembrado, ficou-me
marcada por um homem, sujeito rude e pouco dado a conversas, vizinho
próximo de meus pais, lavrador de alguns terrenos onde a vizinhança da minha
idade tinha o hábito de passar e roubar alguns tomates ou cenouras da sua
plantação.
Num dia, fui apanhado numa fuga desamparada; escondido atrás de
uma árvore onde costumávamos sentar para descansar das fugas frequentes,
ergueu-se enorme e fulminante um vulto que se acercou de mim e do meu
braço sem querer largar, de nada me valeu estrebuchar e pedir ajuda aos
meus amigos, já adivinhava o que se iria passar a seguir.
Subi o morro que separava a minha casa dos campos entre
escorregadelas e safanões, Sr. Moutinho olhava de soslaio para mim sem que
eu conseguisse fixar o meu olhar no dele. Esperava-me uma bela reprimenda
de meu pai, que imaginava a abrir a porta e a receber-me com uma boa
estalada e talvez um pouco mais. As escadas íngremes defronte à minha porta
anunciavam
a
chegada
ao
meu
calvário,
Sr.
Moutinho
desceu
compassadamente cada degrau, eu ansiava que meu pai ainda não tivesse
chegado do trabalho, com a minha mãe era mais fácil lidar com estas
situações, porque as mães são mais permissivas e compreensivas. A sua
enorme mão ergueu-se no ar e arremessou contra a porta ecoando num toque
que me fez abalar anunciando-se, ouvi a lingueta da fechadura a ceder e a
porta escancarou-se para trás mostrando aquela face masculina que por vezes
me arrepiava. O olhar de meu pai, que mal escondia a raiva que se apoderava
ao de leve, emergiu do outro lado. Sr. Moutinho puxou-me para si e soltou um
breve sorriso para o meu progenitor.
- Prometa-me que não irá fazer nada ao rapaz!
Atónito com tal afirmação, meu pai olhou-me de soslaio e levantou
um pouco o beiço mostrando um sorriso disfarçado. Incrédulo esperava pela
reacção de um e de outro.
- Sr. Moutinho, desculpe-me mas um castigo vai ter, ele já tem idade
para pensar no que faz.
- Oh! Pinto, já tiveste a idade dele e fazias o mesmo.
3
Se queres que ele tenha um castigo, que seja eu a dá-lo!
Minhas pernas tremiam, todo o meu corpo tremia, sentia todo o meu
mundo a abanar, não era eu que tremia era o mundo inteiro, os dois olhavamse cúmplices, um entendimento consentido estava a ser selado naquele
momento. Foi o início do fim da minha infância.
Ao longo do resto do dia nenhuma palavra foi proferida, olhares fugazes
foram trocados mas nada, minha mãe estranhava aquele clima e deixava-se
flutuar sem ferir ninguém, o tempo estacionava e esperava por um desabafo,
um grito ou talvez um simples nada. A noite se abatia com salpicos de uma
chuva que teimosamente batia no vidro da janela do quarto, imaginava como
iria ser o meu castigo, solto nos meus pensamentos não dou com a presença
do meu pai que me olhava altivo e com um olhar decepcionado, viro-me para
ele esperando que algo fosse acontecer, e as suas palavras ainda hoje me
tocam.
- Vais aprender a dar valor ao trabalho e às pessoas!
Virou costas e bateu com a porta do quarto, deixando um profundo
silêncio invadir o meu pequeno espaço. Naquela noite pouco dormi sentia-me
como um condenado à forca que esperava a sua vez para chegar ao cadafalso,
o Sr. Moutinho pairava sobre mim e apontava-me o dedo, gelando-me por
dentro.
A manhã chegou e um novo dia de aulas esperava-me, de sacola na
mão corri desenfreado pela rua abaixo, a chuva da noite passada deixara uma
fila de poças que eu saltava sem parar, quando me apercebo que não sou o
único nesta pista de obstáculos que era o caminho para a escola. Alguns
vizinhos e também colegas de turma seguiam-me com a mesma vontade de
serem os primeiros a chegar, Nandinho que era o rapaz mais avantajado do
nosso núcleo de amigos, urrava o seu nome desalmado como um vencedor já
declarado, a palavra derrota não pertencia ao seu dicionário pelo menos era o
que ele pensava. A rua começava a subir a pique as forças começavam a faltar
e parecia que sentia a respiração do Nandinho atrás de mim, queria ser o
primeiro a chegar pelo menos ao portão, nos rapazes novos os dias de escola
são dias de desafios e eu sentia que aquele podia ser o meu, ao longe
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deslumbro o portão carcomido pelo tempo, mais umas passadas e o meu
objectivo era alcançado.
- Ontem não correste assim, otário!
Por isso foste apanhado.
As palavras de Nandinho estancaram-me, todos os meus músculos
pararam e não me respondiam, senti o vulto de Nandinho a passar por mim
e a atravessar o portão triunfante. Vagaroso e penante acabo de chegar à
minha meta imaginária, rodeado de um coro de troça de todos os meus colegas
soltando otário como palavra de ordem.
A manhã foi-se passando com uns risos trocistas no meio da aula, e uns
olhares fugazes de Tó que tapava a boca para não deixar sair mais um sorriso
que se iria juntar aos outros todos que se amontoaram no recreio para me
brindar. Nandinho e o resto dos rapazes combinavam mais uma partida de
futebol no campo do Mouro, claro que já não contavam comigo porque tinha o
meu carrasco ansioso para me ter a seu lado.
Terminada a ultima aula, corri apressado para a porta para ser o
primeiro a sair, assim pensava eu que não tinha de aturar o Nandinho com as
suas provocações até casa, sorte a minha ele morar mesmo por cima de mim...
e levar com os acenos de concordância que Toni permanentemente fazia
sempre que o seu líder falava. As escadas que me levavam até ao átrio da
escola eram de madeira que rangia de todas as vezes que um degrau era
pisado, pareciam rugidos que me fugiam dos pés. Chegado ao portão inicio a
minha corrida estrada abaixo em direcção a casa, a chuva já não dava sinais
de vida e um sol envergonhado tentava aparecer para, talvez nos oferecer uma
tarde quente. Azar o meu, que não iria aproveitar com os meus amigos. Tinha
um castigo para cumprir...
“Ela olha desconfiada enquanto se prepara para deitar na cama,
aconchego os cobertores e deixo-me vaguear nos seus olhos cor de avelã,
dizem que os olhos são o espelho da alma, para mim, são uma porta que
podemos deixar aberta a quem queremos e ela queria que eu lhe invadisse o
seu olhar”. A dúvida espelhava-se no fundo.
- Que tens filha, ficaste chateada comigo?
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Decidida inspira uma boa lufada de ar e solta um longo suspiro
embalando palavras que balbuciou com cara de desinteressada.
- Não! Deixa lá...
Aquele “deixa lá” ainda me deixou mais curioso sobre o que a
apoquentava, sento-me na beira da cama e afago-lhe a face tão macia que
parecia veludo, viro a sua cara para mim e encaro-a com meiguice.
- Alguma coisa se passa, diz pequenina, podes confiar em mim!
- Não tens medo da morte?
Minhas pernas tremiam como varas verdes, não esperava uma pergunta
destas, feita por uma criança de apenas 10 anos.”
No fim do almoço, esperava-me o meu encontro com o Sr. Moutinho,
saio cabisbaixo e com pouca vontade, subo as escadas de granito que me
separavam da rua e desço o passeio embrenhando-me na entrada para os
campos, uma entrada ladeada por dois enormes muros a que nos chamavamos de quelha, por vezes, jogávamos à bola ali, mas um pontapé mais forte
podia originar o fim do jogo porque a bola iria para a estrada e poderia ficar
espalmada por algum carro.
Desço decidido a ladeira e avisto ao longe um pequeno ponto que se
mexia no meio de tantos riscos verdes, era o Sr. Moutinho que estava no seu
campo orlado por umas estacas de madeira e uma árvore.
A pequena ladeira se finara para dar vez a um pequeno carreiro que se
soerguia de um pequeno curso de água que passava lentamente a meus pés,
esse rego a que chamavam os lavradores, servia para regar os campos que
existiam à volta. Encontro-me em frente ao campo do Sr. Moutinho, ele cavava
a terra sem notar que eu me aproximava, tentava com cuidado não calcar os
sulcos que ele cavava, parei e olhei em volta soltando um Boa tarde sem fixar
o olhar nele. Sem camisola deixando o sol queimar a sua pele, olhou sereno
para mim e apontou para um pequeno monte de varas que estavam
encostadas a uma enorme macieira que se avistava ao fundo do terreno que
estava a cavar, sem dizer uma palavra limpou o seu suor a um lenço meio sujo
que tirou das calças. Desinteressado fui para onde ele mandou e sentei-me, a
macieira fazia um pouco de sombra e tornava-se agradável estar ali sentado.
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Defronte a mim Sr. Moutinho deixou a sua enxada espetada na terra e
caminhou na minha direcção, todo o seu corpo se prolongava acima da terra,
parecendo uma enorme montanha que conseguia tapar o sol, aproximou-se e
empunhou a sua enorme mão para mim.
- Os homens olham-se nos olhos e cumprimentam-se assim...
A minha mão ficou em desvantagem perante a sua que açambarcava
e apertava com força torcendo os meus dedos, aguentando a dor olhava
resistente à sua investida, quando a soltou, meus dedos ansiavam por
liberdade e um pouco de movimento para fazer correr o sangue que de certeza
tinha parado naquele instante. Seu corpo voltou para o mesmo sítio donde
viera e eu fiquei ali, com a mão a doer e a olhar para um sujeito a cavar.
A terra elevava-se no ar levada pelo vento em cada sacudidela que ele
fazia na terra com a enxada, todo o seu corpo estremecia em cada golpe que
desferia, o suor escorria-lhe pela face caindo derrotada na terra. O meu castigo
era ver o que lhe custava tirar partido do seu pequeno lote de terreno?
Ao longe, avisto os meus amigos a chegarem de mais um jogo de
futebol, envergonhado permaneço quieto e aguardo que passem sem darem
conta que ali estou, Sr. Moutinho ouve a algazarra que costumavam fazer e
para o seu serviço repousando seu corpo em cima da enxada, olha com
desafio á passagem dos fedelhos, (nome carinhoso que costumava dar aos
miúdos da rua), esperando que algum deles lhe roubasse algum tomate ou
estragasse alguma coisa, Nandinho dá conta da minha presença e avisa os
outros que em uni som espalham o grito de otário ao vento enquanto
atravessam o pequeno carreiro. Mergulho a minha cabeça entre as minhas
mãos e espero impacientemente que passem rápido, toda a cantoria acaba
quando chegam ao cimo da ladeira onde param e ficam a olhar com cara de
troça para mim. Já o sol ia se pondo soltando uma cor alaranjada no horizonte
e o pequeno cercado de miúdos ainda se mantinha ali no alto da ladeira a
olhar, Sr. Moutinho continuava no seu afazer, no meio de cada cavadela cuspia
para a terra e limpava mais um pouco a testa. Um grito de chamamento ecoou
pelos campos assustando-me.
- OH NANDIIIIINHO!
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Dona Branca chamava o seu neto para o seu lar, Sr. Moutinho olhou
para mim e fez-me sinal para ir embora. Ergui-me rapidamente e dirigi-me para
ele, estiquei o meu braço e ofereci-lhe a minha pequena mão para a sua.
- Afinal hoje aprendeste alguma coisa, não foi?
Envergonhado senti meus ossos a estalar enquanto ele me apertava,
olhei de soslaio para a ladeira e já não via a comitiva de mirones que á pouco
zombavam de mim.
- Amanhã á mesma hora aqui, esta bem?
Nem uma palavra lhe disse, limitei-me a acenar com a cabeça
afirmativamente e virei-lhe costas correndo para casa.
Entrei em casa de rompante, parco em palavras, fechei-me no meu
quarto. Divagava sobre o que eu era, no que me estava a tornar, no Sr.
Moutinho...Sei lá...
Nessa noite a figura paternal do meu pai evidenciou-se, estava
habituado a uma figura ausente e dispersa, ele chegou-se a mim e pousou-me
um beijo na testa, depois estendeu-me a mão, incrédulo assisti ao seu
movimento e estendi a minha e apertei-a firme e consistente. Com um sorriso,
que eu há muito tempo não via, soltou o aperto de mão e virou-se em direcção
da porta sem antes se voltar e desejar-me uma boa noite de uma maneira
meiga, não foi uma boa noite entre dentes, mas com as palavras a fluírem com
gosto.
Alguma coisa estranha estava a acontecer, mas eu estava a adorar.
No dia seguinte, lá estava eu defronte a meu carrasco para submeter a
mais um castigo, se forem todos iguais aos de ontem não me importava nada.
Estendi a minha mão e disse boa tarde olhando-o nos olhos sem pestanejar,
ele cordial assentiu ao meu cumprimento e apertou a minha mão, não com a
força do dia anterior mas com aquele aperto forte sem aleijar. Olhei na
direcção da macieira e vi uma pequena enxada encostada, ele olhava-me em
silêncio esperando a minha reacção. Decidido fui buscar a enxada e apresenteime perante Sr. Moutinho com ela ao ombro. Um sorriso fugiu-lhe de seus
lábios, cuspiu para as mãos e agarrou-se á sua enxada erguendo-a no ar e
depois soltando com toda a força na terra soltando um som esganado do ferro
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com a terra. Nem uma palavra desatou, olhei á minha volta e copiei todos os
movimentos que antecederam, cuspi nas mãos mesmo sem saber para que,
ergui a minha enxada no ar, bati com toda a força na terra mas o som foi
diferente e a enxada teimava em não cair certa no ponto que eu queria.
Sentia-me a ser seguido pelo seu olhar, mas tentei fazer como ele e
continuei sem desistir.
- Porque é que te chamaram de otário, ontem?
- Porque fui apanhado por si, naquele dia que me levou ao meu pai.
- Deixas que te chamem nomes?
- Na escola chamam-me de idiota...
Porque dizem que eu tenho muitas ideias, só que eu não gosto muito.
- É melhor idiota do que otário.
Sabes, existe um livro que se chama idiota, é de um escritor esquisito,
acho que é russo, é Fedor qualquer coisa.
- Você já o leu? Com esse nome não deve ter muitos leitores.
- Não, eu não sei ler, o meu filho é que me fala dos livros que lê e eu
limito-me a imaginar as histórias á minha maneira.
Não tenho mãos para livros, rapaz.
Para mim fazia-me confusão uma pessoa que não sabia ler, na minha
família só conhecia a minha avó, Sr. Moutinho ainda era novo para meus olhos
mas pelos vistos o peso da vida tirou-lhe o acesso a uma educação. O meu pai
sempre me dizia que ler abria-nos portas, para o Sr. Moutinho elas
continuavam fechadas. Continuava o seu bater na terra incessante, e eu mal
ou bem ia conduzindo a minha enxada o melhor que podia.
O tempo passava e ao longe avistava os mesmos mirones do dia
anterior, riam-se como desalmados ao ver empunhando a minha enxada.
-Não tenhas vergonha de estar a trabalhar rapaz, as vezes também tiras
lições nestas experiências, nem só os livros te mostram a realidade.
Depois do dia de hoje vou te mostrar o que ganhaste.
Aquelas palavras não calaram o meu ego ferido de ser gozado por
estar num campo a lavrar, mas desliguei os pensamentos sobre o Nandinho
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e companhia e continuei o meu trabalho. O suor já me escorria pela fronte
enfiando-se pelos olhos, passava o braço para limpar a testa mas o braço
conseguia estar mais molhado que o resto do corpo, nunca imaginei que o meu
corpo tivesse tanta água para deitar fora. Por vezes deitava o olho para ver
como estava o sol para calcular o tempo que me restava mas parecia que o
tempo tinha parado e o sol teimoso não queria sair donde estava.
Minhas mãos ferviam, olhava para elas e via-as vermelhas cor de
sangue, ele fazia de conta que não reparava em mim mas notava que estava a
achar um gozo enorme, ver-me a olhar para as mãos, lá no alto o pessoal
sentado á sombra não desviava os olhos de mim.
- Então estás cansado, queres parar um pouco?
- Se você parar eu também paro.
Pousou a enxada no ombro e andou em direcção á macieira, eu
obediente seguia o seu rasto pelas pegadas enormes que deixava na terra,
meus pés pareciam que eram engolidos pelos enormes buracos que deixava
à sua passagem. Sentamo-nos a usufruir daquela sombra agradável e a beber
água de um cântaro que estava pousado ali perto, quando chegou a minha vez
de matar a sede, deitei um pouco de água fresca para as minhas mãos para
as humedecer e arrefecer porque parecia que tinha um pequeno inferno em
erupção ali nas minhas palmas.
- Deixa-me ver as tuas mãos!
Estiquei as minhas mãos para ele que docemente as virou para poder
ver as minhas palmas, passou os dedos por umas bolhas que me tinham
aparecido e sorriu.
- Estas são umas mãos que estão a aprender a trabalhar, um homem
mede-se pelos calos que possui nas suas mãos.
Estendeu as suas e pousou-as no meu colo, pareciam dois blocos de
granito áspero e rude, olhei para ele pasmado, ele apertou as minhas mãos
nas dele.
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- A minha vida está toda aqui, cada calo é uma história ou um período
da minha jornada. Um homem sente-se vivo pelas marcas que obtém do seu
esforço diário.
Naquele local podia avistar os meus amigos que conversavam uns
com os outros enquanto eu descansava junto a Sr. Moutinho, reparei que
ele também olhava para eles e sorria para dentro, sem deixar entender que
a situação se tornara engraçada para ele. Esperava que eu disse-se algo
mas continuei em silêncio e admirava-me do trabalho que tinha efectuado até
aquela altura, alinhava com a vista o meu rego torto mas imponente, tinha
saído da força de meus braços.
- Quando olho para o meu campo imagino a vida que irá nascer naquele
rego que andei a abrir, posso escolher couve-galega, cenouras, alface, batata,
um sem número de coisas mas o que é mais importante é que nasce da terra
mas precisa do meu suor para eclodir. Sinto-me dono e senhor do que nasce
e morre aqui, trato como se saíssem de mim porque eu também faço parte da
terra, eu sinto que nasci da terra...
Em cada cavadela que dou, uma parte de raiva em mim atravessa o seu
ventre. A terra, miúdo é a nossa melhor confidente, atravessamos com raiva
e ela absorve, alimentamo-la e ela faz criar vida, abençoamos o alimento que
nos dá. Depois deixamo-la em repouso para fazer tudo novamente. Esta terra
recebeu tudo o que tive em vida, vivemos momentos felizes, alturas menos
boas mas sempre me recebeu bem. Todos os meus pensamentos e angústias
enterrei-os aqui, já sorri, chorei, gritei, tudo para dentro dela.
Gostava que ela me recebesse por todo… um dia talvez?
Quero acabar os meus dias à sombra da macieira, plantei-a com o meu
filho, ele também gostava de estar sentado onde estás agora. Falávamos de
tudo e de nada e por vezes também ficava assim em silêncio a ouvir-me.
O que estou a fazer contigo, que tu achas que é um castigo, á muito
tempo atrás fiz com o meu filho, vocês precisavam de sentir a terra, dar o valor
á vida que ela encerra e que aos poucos com a nossa ajuda ela faz despontar.
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Fiquei estático, o silêncio acompanhou-nos durante aquele momento,
a minha cabeça possuía um turbilhão de ideias dispersas que começaram a
encaixar nos sítios certos e a fazer sentido.
Ele olhava sem destino para a macieira a contemplar os últimos raios de
sol que atravessavam suavemente por entre as folhas, acabando por avistar os
meus amigos sentados do outro lado a olhar para nós.
- Até eles já perceberam isto sem fazer nada…
Sr. Moutinho tinha razão, perdiam o seu tempo a olhar lá do alto da
ladeira e viam o esforço que demonstrávamos e gozavam com isso, até
acabarem sentados a olhar, mas de uma maneira diferente, parecia que as
palavras de Sr. Moutinho atravessaram a terra e embrenharam-se neles,
fazendo o acerto de ideias tal como eu. Nandinho ao longe deixou de ter o
olhar altivo que tinha, sentia-se ligado, envolto nas palavras humildes e sábias
daquele homem.
O chamamento do Nandinho ecoou pelo ar, estava na hora de eu me
despedir. Sr. Moutinho não se levantou, permaneceu quieto, a admirar o sol a
esconder-se atrás dos prédios, olhei para ele e peguei na minha enxada.
- Quer ajuda para levar as enxadas para casa?
- Meu rapaz, ainda tenho força para te levar ao ombro para casa.
Soltamos umas gargalhadas bem ruidosas para o ar e depois
estancamos inertes em frente um do outro, estiquei a minha mão que devia
estar cheia de febre para ele e ele apertou gentilmente com a sua.
- Sinto-me orgulhoso do meu trabalho Sr. Moutinho!
- Fico contente por ouvir isso, tu és um bom rapaz!
Permaneceu ali sentado agarrado ao seu sonho que permanecia
escondido em si, seus olhos queriam verter dilúvios infinitos de lágrimas, mas
tive que ir embora para o deixar só porque por vezes o melhor é a solidão, e
sentia que era o que ele naquele momento precisava.
Levantei a minha mão para me despedir, olhei para ele no fundo de uma
lágrima que não queria soltar e apertei-a forte e decidido como ele me tinha
ensinado.
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- Até amanhã Sr. Moutinho!
- Até amanhã rapaz...
Aquele até amanhã não parecia o fim da conversa porque o seu olhar
não fugia de mim, já o campo era ocupado por uma sombra enorme que se iria
transformar aos poucos e poucos na noite.
- Gostava de ter um neto assim como tu...
- Então, que ideia parva, o seu filho irá dar-lhe um neto de certeza!
- Não sei se andarei por aqui nessa altura...
Segui o meu caminho para casa com a sua última frase na minha mente,
ou não percebi a sua ideia ou não queria entender o seu propósito. Olhei mais
uma vez do alto da ladeira para o campo e assisti à sua imobilidade, seus
pensamentos dispersavam-se e ele tentava apanhá-los com suas mãos de
pedra.
Nas minhas lembranças de infância, muitas vezes lembro-me da nossa
hora de jantar. Por vezes eu e a minha mãe comíamos sozinhos porque o meu
pai ainda chegava tarde, mas nas lembranças do fundo do baú sobressai um
jantar em que estávamos os três. Nossos olhares cruzavam-se entre o bater
de talheres e de um som de uma televisão esquecida, num noticiário ainda
monocromático, sobre notícias que ninguém naquele momento queria saber.
Só aquele fragmento de tempo é que interessava, minha mãe feliz, meu pai
risonho e eu arrebatado de alegria.
Quando queria erguer o jarro de água para verter no copo, minhas mãos
cederam e um grito de dor soltou-se para espanto dos meus progenitores, o
meu pai pegou na minha mão e virou pra si a palma para ver o que me tinha
causado a dor, depois de ter conferido o problema olhou para a minha mãe e
esboçou um sorriso sorrateiro.
- As minhas primeiras bolhas!
- Ainda bem que tens orgulho delas...
Naquele momento senti que meu pai me dizia algo sem querer dizer, ele
tinha orgulho em mim, via nos seus olhos aquele brilho que não sabemos muito
bem explicar, só sabemos com o passar do tempo. Existem emoções que se
expressam sem necessitarem de explicações.
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- Estás a começar a dar valor às coisas que dantes nem sabias que
existiam, e isso está a tornar-te um homem.
Contive uma lágrima teimosa que teimava em eclodir de meus olhos.
Apertei fortemente as mãos e a figura de Sr. Moutinho aparecia-me nos meus
pensamentos. Nessa noite o cansaço dominava-me mas sentia-me realizado.
Mais um dia, e cheio de vontade de estar perto do Sr. Moutinho, no
fim do almoço comido com pressa corro em direcção aos campos, já não ia
contrariado, sentia todo o meu corpo com vontade de explodir e ouvir mais
uma vez aquele homem que me abria os olhos de um modo que mais ninguém
fazia.
Alcanço a ladeira e não vejo o Sr. Moutinho no seu campo, em vez disso
três miúdos aninhados andavam ao redor dos regos que abrimos a apanhar
pedras e ervas daninhas, consigo distinguir o Nandinho, o Toni e o seu irmão
Carlos. Não esperava vê-los por ali, afinal as palavras atingiram-nos sem
saberem, todos estivemos em castigo e o Sr. Moutinho tinha razão em dizer
que eles também aprenderam e não fizeram nada.
Estranhei a ausência dele e decidi fazer-lhe uma visita a sua casa, eram
dois passos curtos até ao seu lar e fui brindado por um garnisé que se pôs em
poses de lutador á entrada do portão. Chamei pelo seu nome á entrada, e os
cacarejos do garnisé envolveram-se no meu grito que ecoou para dentro do
átrio, vejo um pequeno vulto a emergir, era Dona Guidinha, senhora afável que
só via o nosso Senhor Redentor, espalhando a sua palavra com todos os que
lhe dessem ouvidos.
- Olá meu filho, já por aqui?
- Venho chamar o Sr. Moutinho para irmos para o campo, venho de
lá agora e ele não estava, por isso vim aqui. Pode precisar de ajuda com as
enxadas.
- Ele ainda está a almoçar, mas se quiseres podes ir ter com ele à sala.
Entra, não tenhas medo do Vergílio que ele só manda peito.
Puxei o ferrolho do portão e entrei em direcção ao átrio da casa, o
Vergílio já não cacarejava, olhava por cima do seu “ombro” sempre com o seu
ar de dominador mas sempre a recuar para que não ficasse na minha alçada.
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Dona Guidinha apontou para uma porta para que entrasse na casa, ficando
para trás para sacudir umas galinhas que aproveitaram a ausência do garnisé
Vergílio para conhecer melhor os canteiros arranjados da dona da casa.
A casa cheirava a antigo, fotografias antigas de família ornamentavam
as paredes gastas pelo tempo, o soalho rangia á minha passagem. Dona
Guidinha aparecia como uma moça nova numa fotografia em que o seu marido
está abraçado a ela, o tempo passa...
- Já nem me lembro que idade tínhamos na altura.
- Faziam um casal e pêras. Não?
- Faziam não... fazemos...
- Sim, claro desculpe.
Temos que ir para o campo rapidamente para ver o que está a
acontecer.
- Calma miúdo, temos tempo, já almoçaste?
- Sim, sim. Venha ver...
Meio desorientado lá pegou nas duas enxadas e partimos em direcção
ao seu campo, quando chegamos ao cimo da ladeira deparamo-nos com
os três gozões anteriores a arrumarem as pedras á volta do campo e a
fazerem uma pilha de ervas no meio do pequeno carreiro. Nem uma palavra
pronunciou, deixou-se levar pelo caminho do carreiro e chegado á entrada do
seu campo os três miúdos voltaram-se para ele e estenderam-lhe as mãos.
Não sabia se havia de me rir ou de participar naquele estranho encontro. A
todos apertou as mãos e a cada um deu um afazer que afincadamente ia
cumprir.
Comandava as suas tropas como nenhum general o tinha feito, a sua
face permanecia dura e insensível, mas aquela lágrima teimosa ainda rondava
pelos seus olhos. Os meus amigos uniram-se e mostraram que podiam
ser diferentes, Nandinho agora entretinha-se a montar um espantalho com
indicações do Sr. Moutinho, Toni abria os canais de rega com a sua enxada
pequena para dar passagem á água que banhava os sulcos abertos por mim e
pelo Sr. Moutinho, Carlos arranjava cuidadosamente as varas para segurar os
feijoeiros.
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Todos se sentiam úteis e o tempo passava entre risotas e brincadeiras,
eu continuava a cavar, expulsar a raiva contida para a terra. já não se avistava
ninguém no cimo da ladeira, agora todos juntos ficávamos a admirar o sol a
pôr-se, sentados perto da macieira.
Durante muito tempo passamos a ajudar o Sr. Moutinho no seu campo,
o tempo do castigo tinha passado sem darmos por isso, porque se fazemos
com gosto nada se torna em castigo ou sacrifício. Por vezes íamos jogar
futebol como antes mas desta vez passávamos pelo carreiro dos campos em
passo lento e visitávamos sempre o nosso companheiro e deambulávamos
em conversas vãs na sombra da sua macieira. As conversas passavam pelas
raparigas que conhecíamos na escola ou que gostávamos de conhecer, ou
aquela discussão com os pais do dia anterior. Tudo era dito e explicado no seio
de um grupo de amigos que o destino decidiu juntar.
“As palavras não se soltam com facilidade quando temos algo difícil para
explicar, ela tão pequena e com pensamentos tão adultos. Os pais sempre
acham que os seus filhos nunca crescem, a inocência não dura para sempre,
mas desejávamos.
- Não, filha... Todos têm que morrer um dia.
Mas ainda és muito pequena para falar nisto.
- Mas não respondeu à minha pergunta.
Tens medo da morte ou não?
A insistência dela feria-me, a minha mente vagueava em frases bonitas
para amaciar a conversa, mas a pose dela mantinha-se firme, inabalável,
aguardando a qualquer momento uma resposta.
- Toda a gente tem medo, claro que eu também tenho.
Porque quando acontecer, deixo de estar perto de ti e da tua mãe. Não
quer dizer que seja agora ou daqui a muitos anos, temos que olhar para a vida
e não pensar que é uma viagem curta.
Existe um provérbio espanhol que explica bem isso, acho que é assim:
“A morte ciente da sua vitória dá-nos a vida de avanço”
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As suas pequenas mãos envolveram a minha face e um beijo soltou-se
de seus lábios para pousar na minha testa.”
Já o inverno chegava com seus ventos em surro pio e chuvas de bradar
os céus, terrenos alagados e pouco sol para jogar futebol ou acompanhar o Sr.
Moutinho na sua lide. Durante algum tempo deixei de aparecer no campo do
Sr. Moutinho com os meus amigos, tinha entrado na escola preparatória e os
dias eram bastante preenchidos, e tinha agora amigos novos.
Dona Guidinha frequentava a minha casa como se fosse da família, lá
trazia novidades do seu marido. Sempre temente a Deus e zelosa pelos
nossos actos e rumos na vida. Levava hortaliça do seu campo, dizia ela que
dava uma sopa divinal, com a ajuda de Deus aquela hortaliça era um manjar
dos deuses. Desabafava com a minha mãe o cansaço do marido, que já não
tinha forças para ir para o campo.
- A idade pesa Milinha! Ele já não tem a força de um jovem.
Ao ouvir as suas palavras senti-me como um parvo, deixei de aparecer
com o resto do pessoal e ele acabou outra vez sozinho. A vergonha impediume de aparecer perante ele, mas sabia que o Sr. Moutinho sentia a nossa falta.
Num dia envergonhado, o sol deixava-se esconder por vários momentos
por nuvens cinzentas, recebi a notícia que fez abalar o meu pequeno mundo.
Sr. Moutinho tinha falecido naquela manhã. Minha mãe ainda tentou em vão
segurar-me mas já trepava em alvoroço as escadas íngremes que me levavam
em direcção á rua, precipitei-me pela quelha fora com as lágrimas a soltar-se
vazias pelo meu rosto. Apareci defronte ao portão que eu arremessei para trás
com toda a força, nem o garnisé apareceu para impor o seu respeito, todo
aquele átrio era um silêncio absoluto, abri vagarosamente a porta que dava
acesso á sala e ali estava ele deitado dentro de um caixão em cima da mesa
da sala.
Na minha inocência perante tal visão, em vão tentei acordá-lo, minhas
lágrimas caiam desalmadas pela minha cara, agarrei-me a ele e o seu corpo
gélido fez todo o meu ser arrepiar. Olho á minha volta e deslumbro aquele
momento forrado com fotografias de família expostas pela sala, fotografias
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essas que outrora admirei, espaços de tempo presos em papel, agora jazia ali
sem piscar de olhos, sem enxada na mão, sem aperto de mão, sem nada…
Foi o dia em que me senti realmente só. Debrucei-me e pousei um beijo
na sua nuca, meus dedos passeavam na sua face humedecendo-a com as
lágrimas que teimavam em não parar de jorrar.
Dona Guidinha abriu a porta e deixou-se a mirar a minha despedida,
meus olhos deram pela sua presença e fixaram-se nas mãos entrelaçadas,
ainda falta uma coisa, ela libertou um olhar condescendente e deixou-me á
vontade para fazer o que queria. O que eu queria era um último aperto de mão,
demorei-me um pouco a sentir a falta de força que faltava nele mas sabia que
nunca mais o iria esquecer. Voltei-me e abracei Dona Guidinha num espasmo
de tristeza, ela tranquilamente beijava-me na face dizia que ele agora estava
com o Senhor e sentia-se feliz por isso.
Soltei os braços e sai da sala, a imagem ficou-me gravada na mente até
hoje, um homem jazia num caixão em cima de uma mesa da sala e a sua
mulher serena a despedir-se de mim.
- Meu filho, não fiques assim. O Senhor está a fazer o seu rebanho no
céu e precisou dele.
Não tinha palavras para argumentar, para que é que um Deus assim tão
poderoso precisava de um simples homem que iria fazer tanta falta aqui na
terra.
- Morreu á sombra da macieira. Estava a descansar e morreu em paz.
Sr. Moutinho sonhava com esse fim e obteve o que queria, toda uma
vida dentro daquela macieira e daqueles campos. Cada folha era um
pensamento, cada ramo uma encruzilhada na sua vida, cada raiz a força de
que precisava. Tanto nos ensinou, em tão pouco tempo e o tanto que lhe
ficamos a dever.
Levantei a minha mão como sinal de despedida e deixei-a com todos os
familiares e amigos que apareciam para fazer uma última homenagem, juntos
em tristeza abraçavam-se compassadamente entre choros e gritos sem
controlo.
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Junto ao canteiro das rosas, Nandinho olhava para mim apático, Toni
esfregava os olhos para secar as ritmadas lágrimas que lhe escorriam pela
face, Carlos olhava distante para um ponto fixo no chão.
Abeirei-me dos meus amigos e também permaneci a assistir ao velório
que naquele instante se iniciara com a ajuda do Sr. Padre, amigo íntimo da
família. Nossos olhares cruzavam-se no meio de choros e de tristeza, o Sr.
Moutinho já não esta aqui...
Pensamentos cruzados fizeram-nos levantar e sair dali, as pernas
já sabiam o rumo a tomar, os estreitos carreiros abriram-se para facilitar
a passagem, os arbustos teimosos baixavam seus ramos enquanto
atravessávamos. Em pouco tempo, quatro amigos sentaram-se debaixo da
macieira que chorava sob gotas de chuva a sua perda, levemente a chuva
parou e um raio de sol iluminou a macieira como nunca tinha feito, raiava só
para nós.
Sr. Moutinho sentado a nosso lado sorria, devolvemos o sorriso e
continuamos a admirar o brilho do sol glorioso nas folhas daquela bela
macieira, em silêncio.
“
- Agora dorme pequenita, já é tarde!
Solto as palavras impacientemente para acabar com aquela conversa,
aconchego suavemente os seus cobertores enquanto lhe admiro a luz dos seus
olhos, repouso um demorado beijo na sua testa afagando-lhe o cabelo.
- Bons sonhos, sonhos coloridos e nanã bem!
- Bons sonhos, sonhos coloridos e nanã bem!
- O que é que eu sonho Papá?
- Sonha com...??
Sonha com uma macieira... “
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FIM
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A Macieira