O Milagre da Arte na Construção da Casa do Homem E, depois da tempestade, vem sempre a bonança... Sete da manhã, madrugada silenciosa e solene. As ruas estão revestidas de sonolência e desespero, suspirando as últimas gotas de chuva do temporal da noite anterior. Houve uma grande tempestade que varreu os gritos de clamor das crianças assustadas e dos mendigos, trapos tão abandonados que, ao pedirem ajuda, a água lhes tapava a boca e lhes tirava o fôlego. Mas, agora, embora todo o temporal tenha acabado, nos corações das famílias reinam a mágoa e a angústia, sentimentos cruéis capazes de dissolver a magia do ar e o azul do céu. É este triste cenário que me desvanece a alma e me preenche o olhar, ao qual assisto através da janela do meu pequeno quarto, pincelado de um verde angustiante e melancólico. Estou sentada numa cadeira velha, destruída pela crueldade do tempo, e uso uma camisola tricotada por alguém, de quem me esqueci com o fugir da minha memória. Está uma manhã fria e sinto o meu corpo a tremer com um frio que jamais partirá, um frio que me bloqueia e entristece. O aquecedor no meu quarto estala, geme e vomita ar quente de uma forma intensiva, mas o meu corpo continua a tremer. O tempo, infelizmente, vai tornando tudo mais difícil. Uma doença rola através do meu corpo, já não sou forte nem saudável, e os meus dias vão acabando como uma velha amizade esquecida, como um sonho que, lentamente, me abandona. Sou, agora, o que sempre temi ser, do qual sempre tentei escapar. Sou alguém que foi esquecido pelo Mundo. Ao longe, avisto cisnes, lindos, brancos, pálidos amantes, que, por entre as suas penas de veludo esbranquiçado, escondem a aragem de um sonho guardado, à luz do amanhecer. O meu quarto já havia sido caracterizado como um mar de memórias, e, pensando bem, talvez seja verdade. Em todas as paredes tenho pendurados quadros de infância, de todos os grandes momentos que vivi. Foram tantos! Uns tão belos e outros que me quebram o coração de dor. Olho para o meu relógio de parede e as horas esvoaçam-se que nem penas atrevidas. Pego num texto que escrevi há muitas décadas, naquelas em que ainda acreditava em mim própria. Leio-o todos os dias, desde que era flor, e, agora, quando sou fruto: “O ar à volta parece querer devorar-me de tanto aconchego. Estou num mundo limpo, puro e natural. Os corais, à minha volta, são mantos azuis, cobertos de neve. A água, revirada pela minha passagem, forma um eco com o seu ondular. Mais acima, está revoltada com a Humanidade. Aqui, apenas, pretende mostrar a sua beleza infinita. Aqui, tudo é diferente: é um mundo cheio, denso, com várias cores e tonalidades. Muitos exploram este reino. Ninguém me conhece em pleno. Sou metade do Mundo e do Mar. Sou parte da guerra e parte da paz. Sou a guerreira pacífica. Sou a deusa partilhada. Pertenço a ambos os mundos, mas só um me sabe encontrar. Tenho muitas cores. Sou coberta de pequenas, flácidas e frágeis porções de vida. Alimento-me do amor e da amizade, esse tão grande fervor vivo e infinito. Tenho cabelos ruivos, feitos de ondas, enfeitados com conchas e colares marinhos. Muitos pensam que não existo e outros, aqueles que acreditam na essência do meu ser, julgam que sou nua por dentro, despida de alma. Mas, não! Eu existo. Sou uma chama viva. Sinto o fogo da adolescência e a tristeza da velhice. Sinto a angústia da extinção e a nostalgia da perda. Eu sou a guardiã da Humanidade. Sempre o fui e continuo a sê-lo, mas, às vezes, estou muito escondida nos corações dos homens.” - Esse texto é muito bonito – ouço. Desvio o olhar. É uma menina que descobri há algum tempo. Uma verdadeira flecha de luz. Quando a encontrei, estava em África, na minha última viagem física por esse Mundo: “Era um grande lago invadido por centenas de cisnes que circundavam um pequeno barco, onde estava uma menina sentada. Chamei-a e ela virou-se. Disse algo, mas não ouvi, pois as palavras estavam sendo abafadas pelas lágrimas que lhe preenchiam os olhos – esmeralda e lentamente deslizavam sobre o seu rosto de traços delicados e pele macia como seda. Era uma criança raramente difícil de caracterizar: os seus cabelos loiros arruivados caíam-lhe sobre a face tapando uma pequena cicatriz já desvanecida pelo passar do tempo. A sua pequena estatura fazia-me deduzir que talvez tivesse uns três ou quatro anos. E, incrivelmente, ela saiu do barco, e correu para o meu colo, e deixou-se envolver pelos meus braços, e chorou.” - Entra, querida. Senta-te. Vou-te contar uma história: era uma vez um novo ser. Era diferente de todos os outros. Ao longo de muitos anos, esse ser foi crescendo, crescendo. O Homem cresceu tanto e construiu um mundo novo aos seus pés. Durante algum tempo, valorizou a sua casa, a Natureza, um mundo de magia, de ternura, em que tudo é idílico. Agora, dominado pelo poder, pela força, constrói paredes à sua volta, muros de pedra que me impedem de encher o seu coração. O Mundo é frágil. A sua vivacidade é como um turbilhão de emoções. Porém, essa força está a mudar. Tudo o que era puro e singelo já tem uma marca negra a cobrir-lhe o manto de virgindade. O Homem é o ser vivo mais poderoso que alguma vez existiu. Muitas vezes, isso leva-lhe a pensar que é capaz de ter mais poder do que a própria Mãe Terra. O Homem aproveitou-se durante anos da fragilidade da sua casa, e, agora, esta está cada vez mais revoltada: catástrofes, terramotos, crises económicas, fomes, pobrezas, guerras… Tudo isto foram vocês que causaram. O Homem já está a perceber o quão grave é a situação. Se não tomarem uma atitude, em conjunto, unidos que nem grãos de sal vagueando pelas ondas, não conseguirão. Continuarão com as vossas mãos sedentas de desespero a tentar assegurar o vosso futuro, a vossa sociedade que, agora, é mesquinha, cruel, que não passa de um conjunto de pessoas individuais e egoístas. O Homem é tão poderoso e capaz de fazer coisas tão bonitas, tão belas, tão preciosas. O Apocalipse está mais próximo do que pensam: o fim da civilização, de tudo o que o Homem construiu em centenas de anos já passadas, e que, agora, destrói em seu próprio benefício. É triste, muito triste. O Homem constrói coisas que mais nenhum ser é capaz. Uma delas é a personalidade, aquilo que nos leva e embala durante todo o percurso da vida. A personalidade, um misto de incerteza, convicção e sentimento, que nem uma ave coberta de penas multicores. Assim, continuo fixada a olhar para lá da janela, para o mundo que, agora, me deseja mais do que tudo. Pessoas dispersas e à espera da chegada de um milagre para as embalar de paz e segurança. E a tarde passa e a noite finalmente chega. O céu está devorado por estrelas brilhantes e repleto de tons de azul escuros e claros. O dia amanhece e o meu quarto está vazio. Eu estou na sala de urgência, à mercê da ciência e da medicina. A minha vitalidade e resistência já não são as mesmas e a minha mente já não funciona como antigamente. Os aparelhos detectam anomalias no meu estado vital, os médicos ficam alarmados com a situação, e já com os olhos semicerrados, olho e sinto uma pequena lágrima a lavar-me o rosto de emoção. À minha volta, estão todos aqueles que amei. Tudo o que se formou em tantas décadas, centenas de anos, está prestes a desabar. Antes, era como todos vocês: uma ave jovem, insegura. No fundo, continuo a sê-lo. Sei voar sozinha, mas tenho medo de não me manter muito tempo em pleno voo. Tudo acaba por cair. Todas as aves acabam por cair. Sim, todas. Mais cedo ou mais tarde. Eu não quero cair. Mas, isso irá acontecer um dia. Ou por causa do tempo, ou, apenas, porque chegou o meu fim. Não sei. A única coisa de que tenho a certeza é de que vou cair: mais tarde, quando tiver a minha cara desfigurada, a minha pele enrugada e o meu corpo débil ou quando ainda for jovem, aventureira e viva. Mas, vou cair. Triste, abandonada e com um passado atrás, como todos. Não sei. Acho que não sei nada. Já estou habituada a não saber nada. É isso que distingue a Humanidade dos outros seres vivos. A sua capacidade de saber tudo e de não saber nada. De conhecer e vencer tudo e de, ao mesmo tempo, temer e perder tudo. Já perdi muito. Não o quero mais, mas sei que ainda não perdi tudo o que tinha a perder. Todos nós perdemos algo. No fundo, acabamos por perder tudo. Quando chega o nosso fim, ficamos sem nada. Apenas, entregues a nós próprios. Nós somos os causadores do sofrimento. O sofrimento dói e custa a sarar. Eu choro. Quando sofro, eu choro muito. É bom chorar. Liberta-nos a alma, o coração e substitui as palavras. Também, é bom gritar. Sentimo-nos donos do mundo e do nosso próprio sofrimento. Da nossa bolha pessoal, melancólica e dolorosa. É bom olharmos para nós. Fazermo-nos únicos e talentosos. Todos somos talentosos. Não há ninguém que seja tão vencedor que não tenha algo a ganhar e não há ninguém que seja tão vencido que não tenha nada a perder. O talento reside em todos nós. Naquilo que fazemos, de bem ou de mal, pois alguém irá aprender com isso. Todos temos talento, mas nem todos o descobrem e exploram. Porém, todos sabem viver. Cada um do seu modo. Todos temos o mesmo princípio e o mesmo fim. As nossas vidas são filmes. Uns com legendas e outros, apenas, com imagens. Só não quero voar sozinha, porque tenho medo de cair. Eu sei que acabarei por cair. Só não quero estar sozinha, pois quero que alguém esteja lá, para me ajudar a levantar. Ah! Só mais uma coisa: eu sou uma sereia e o meu nome é Esperança. Carolina Zeferino Arruda, 11.º G (texto elaborado para o concurso Outono Vivo)