Pombo bravo – por Nurmuhemmet Yasin
2010-05-13
Esta história foi publicada pela primeira vez no nr. 5/2004 do Kashgar Literature Magazine por um
jovem escritor independente, Nurmuhemmet Yasin, que foi amplamente aclamado no seio do povo
Uyghur. O autor foi detido depois disso pelas autoridades chinesas devido à forma vigorosa com que
retratou um povo profundamente infeliz com a vida submetida ás regras de Pequim. Na RFA, uma
versão dramatizada desta história foi difundida no início do ano na língua Uyghur.
Parte 1:
Sonho ou realidade?
Aqui estou eu, aparentemente voando no céu profundamente azul. Não sei dizer se estou a sonhar
ou acordado. Um vento revigorante golpeia-me a asa – a minha mente esvoaça e o meu corpo é
vigoroso e forte. O fulgor da manhã parece infinito e o sol espalha-se com brilho e beleza sobre o
mundo. Que belas paisagens! Subo sempre mais alto à medida que os meus pensamentos esvoaçam.
Os campos de morangos desaparecem da vista e o mundo torna-se de repente mais amplo, como
um tapete azul escuro estendido por baixo de mim. É um país de maravilhas que nunca havia visto
antes. Amo este lugar como amo a minha cidade natal – com todo o meu coração – com tudo o que
tem de belo por baixo das minhas asas.
Agora surgem casas e povoações lá em baixo, juntamente com criaturas vivas que se movem –
devem ser os humanos que a minha mãe me advertiu que evitasse. Talvez a minha mãe tivesse
ficado velha. Não me parecem perigosos – como poderiam tais criaturas, que rastejam tão devagar
na terra, ser mais poderosas do que os pássaros que voam pelos céus?
Talvez me engane, mas não parecem assim tão terríveis. A minha mãe sempre me disse que são
criaturas traidoras e calculistas, que mal olham para nós estão prontas para nos armadilhar e
engaiolar. Como pode ser tal coisa? Talvez não seja suficientemente esperto para entender isso. De
súbito vejo-me avassalado pelo desejo de ver e conhecer esses humanos e passo a voar mais baixo,
pairando sobre eles e vendo tudo com maior clareza. E a minha mãe sempre a dizer-me: “As manhas
do género humano são imensas; os seus planos estão escondidos nas suas entranhas; assegura-te de
que a tua leviandade nunca se torne no teu carcereiro.”
De súbito apercebo-me de que quero ver esses planos do género humano. Por que razão os
esconderiam eles nas suas entranhas? É-me impossível entender tal coisa.
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A descida
Vou descendo aos poucos, pairando no ar por cima das habitações. As coisas lá em baixo estão
agora muito nítidas. Posso ver pessoas, as suas vacas, carneiros e galinhas e muitas outras coisas que
nunca havia visto antes. Um grupo de pombos anda aqui a voar à volta, com alguns deles pousados
num ramo.
Desço para me juntar à sua conversa – ou para descansar? Não posso lembrar-me agora com
clareza. Os meus sentimentos na altura estavam bastante confusos. Mas queria muito saber mais
acerca das suas vidas.
“De onde vens?” perguntou-me um dos pombos. É mais velho do que os outros, mas não sei dizer
ao certo se é o chefe do grupo. De qualquer modo não sou nenhum deles e portanto a sua posição
não é assim tão importante para mim. Logo, repondo simplesmente: “Venho do campo de
morangos.”
Começa a história do pombo
“Ouvi o meu avô falar desse lugar – os nossos antepassados também vêm daí”, responde. “Mas eu
pensava que era muito longe daqui – e que levaria meses a voar até lá. Não podemos voar tão longe.
Talvez estejas perdido?”
Seria ele tão velho a ponto de não poder voar essa pequena distância em poucos dias, como eu
tinha feito? Talvez ele fosse muito mais velho do que parecia – ou talvez estivesse a pensar num
campo de morangos diferente e mais distante. Se o avô dele veio do mesmo campo de morangos
talvez pudéssemos mesmo ser parentes, penso. Mas respondo ao velho pombo: “Não estou perdido.
Estava a exercitar o voo e vim aqui de propósito. Venho a voar apenas há poucos dias, mas não comi
nada desde que saí de casa.”
O que é uma alma?
O velho pombo parece surpreendido. “Deves ser um pombo bravo”, diz ele. “Todos dizem que não
somos tão valentes como tu, que não pensamos para além dos ramos onde descansamos e das
gaiolas onde dormimos. Sempre vivi aqui e nunca me aventurei a ir mais longe – e por que razão o
faria? Aqui tenho um ramo para descansar e uma gaiola para viver e tudo é preparado para mim. Por
que razão sairia daqui – para sofrer? Além disso sou casado, tenho família. Para onde poderia ir? Os
meus donos tratam-me bem”, conclui, debicando um pouco nas suas próprias penas.
“Ouvi dizer que esse género humano é terrível”, respondo. “Dizem que se os humanos nos
apanham, escravizam as nossas almas. É verdade?”
“Alma? O que é uma alma, avô?” pergunta um jovem pombo ao meu lado. Fico surpreendido por
ele não conhecer essa palavra, por não saber o que é uma alma. O que é que estes pombos ensinam
aos seus filhos? Viver sem uma alma, sem compreender o que é uma alma, é insignificante. Eles não
vêem isso? Ter uma alma, ter liberdade – essas coisas não podem ser compradas ou dadas de
presente; tão pouco podem ser obtidas rezando.
Liberdade da alma, sinto, era crucial para esses miseráveis pombos. Sem isso, a vida não tem
sentido, e contudo eles parecem nunca ter ouvido essa palavra.
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O velho pombo toca na cabeça do neto e diz: “Também não sei o que é uma alma. Ouvi outrora a
palavra dita pelo meu avô, que a tinha ouvido do seu bisavô. E ele talvez a tenha ouvido dizer ao seu
trisavô. O meu próprio avô dizia às vezes: ‘Nós, os pombos, perdemos a alma há muito tempo’ e
talvez isso seja a alma de que este pombo bravo está agora a falar – e hoje não possuímos nem uma
sombra de tal coisa.”
O velho pombo dá a volta para me encarar e pergunta, “Diz-me, meu filho, sabes o que é uma
alma?”
O debate dos pombos
Fico petrificado, percebendo que não posso começar a responder à verdadeira questão que as
minhas palavras tinham induzido. Finalmente respondo, “Não posso. Mas a minha mãe diz-me que
possuo o espírito ousado e aventureiro do meu pai… Quando ele amadurecer, saberei e entenderei
certamente o que é uma alma.”
O velho pombo responde, “Deve ser o espírito do teu pai em ti agora. Não foram só as gerações
dos nossos pais que perdemos, mas a alma de toda uma comunidade de pombos já desapareceu. A
minha mãe e a sua família nunca mencionaram a alma diante de nós e eu tão pouco usei a palavra
diante dos meus próprios filhos. Talvez tenhamos então entrado já numa era sem almas. Que belo
seria regressar a esse tempo de outrora.” O velho pombo sorri e cai num agradável devaneio.
“Sem as nossas almas”, digo-lhe, “gerações de pombos serão escravizadas por seres humanos –
que podem em qualquer altura fazer de ti um repasto. Mesmo que te ponham em liberdade, não
deixarás para trás a tua família nem as tuas rações de comida. Não queres abandonar o teu lugar de
descanso nem uma pequena porção de comida para pombos. Contudo deixas que os teus
descendentes se tornem em escravos do género humano. Vai precisar de um chefe mas primeiro
tens de libertar a alma – e entender o que é uma alma. Por que não vens comigo e podemos tentar
perguntar à minha mãe?”
Não sei dizer se é o velho pombo ou sou eu quem quer aprender coisas acerca da alma. Talvez
sejamos ambos.
“Tenho já um pé na sepultura”, diz-me ele, “e a minha gaiola de pombos é segura. Onde poderia
eu procurar entender a alma? Não reconheceria uma alma se a visse e não saberia onde procurá-la.
E como me desenvencilharia se encontrasse a minha? Aqui as nossas vidas são pacíficas. Nada
acontece e as nossas vidas são tranquilas. Como posso pedir a outros para renunciar a tal vida para
encontrar algo cujo valor não podemos ver?”
Contemplo as palavras do velho pombo – que parecem ser sábias no primeiro momento, mas que,
reflectindo, são inteiramente erradas. De súbito sinto-me envergonhado, embaraçado, por ver-me a
travar essa discussão filosófica com estes pombos, estes pássaros sem alma. Decido ir ao encontro
da minha mãe.
Estranhas palavras em lugar do leite materno
Nessa altura um grupo de pombos desce até ao ramo junto de nós. Oiço-os falar entre eles, mas
não posso entender as suas palavras. Talvez estejam a usar a sua própria língua materna. Temos
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também ocasionalmente alguns desses estrangeiros que voam até ao lugar onde vivemos. Serão
visitantes estrangeiros? Amigos ou parentes do velho pombo? Não sei dizer. Nem sei dizer se
desejam incluir-me na sua discussão.
“Como estás, meu filho”, pergunta o velho pombo, debicando nas penas de um pombo mais
pequeno.
“Não estou bem. Tenho fome”, responde o pombo mais pequeno. “Por que é que a minha mãe já
não me dá de comer?” O pombo mais pequeno continua a falar de comida para pombos – creio
ouvir a palavra trigo ou milho, ou cânhamo. Usam muitos nomes diferentes para a comida de pombo
que eu desconheço. Estes pombos domesticados são muito estranhos – assim como muitas das suas
palavras que não reconheço.
“A tua mão está a tentar poupar todo o alimento para os irmãos que vais ter em breve”, responde
o velho pombo. “Tens de esperar que venham os humanos e nos dêem de comer.”
“Não posso esperar – devia voar até ao deserto e procurar eu mesmo”, responde o jovem pássaro.
“Ouve-me por favor, meu bom rapazinho. É demasiado perigoso – se fores aí, alguém vai apanharte e comer-te. Por favor não vás.” O pequeno pombo tenta acalmar a sua expressão. Todos estes
pombos parecem escutar esse pombo mais velho do grupo.
Aceitação de uma vida engaiolada
Estes pombos estão a viver entre os humanos que podem apanhá-los e comê-los, mas não percebo
como o podem fazer. Será que entendi mal a palavra “comer”? Talvez queira dizer a mesma coisa
que “cuidar” no seu dialecto. Se for uma palavra tomada de empréstimo, talvez a tenha interpretado
mal. E contudo é uma palavra importante – cada pombo deve conhecê-la. A minha mãe diz-me para
ter cuidado – “não deixes que os humanos te apanhem e comam.” Se estes pombos receiam ser
apanhados e comidos, como podem ter vivido entre os humanos? Talvez tenham até esquecido que
têm asas e talvez não queiram abandonar a gaiola a que tanto se acostumaram.
“Então como está o nosso dono?” começa o pombo pequeno a perguntar ao velho pombo.
“Muito bem”, responde o mais velho.
“Mas talvez o nosso dono seja como os outros humanos, e se tivesse oportunidade apanhar-nos-ia
e comer-nos-ia.”
“Isso é outra coisa”, replicou o mais velho. “Os humanos mantêm-nos na gaiola para nos
alimentarem e é verdade que nos comeriam se fosse necessário; é uma necessidade do género
humano ser capaz de apanhar-nos e comer-nos. É assim que deve ser. A nenhum pombo entre nós é
permitido pôr objecções a esse acordo.”
Quem é o inimigo?
Agora entendo que “comer” quer dizer a mesma coisa aqui do que em casa. Há momentos eu estava
a tentar adivinhar o que eles queriam exactamente dizer quando pronunciam a palavra “comer”.
Agora já não tenho de adivinhar.
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“Mas o nosso dono derramou toda a nossa comida – e o pombo maior comeu-a toda. Não posso
começar a lutar pela comida de que necessito. Que posso fazer? Estou cada dia mais fraco e magro.
Não posso sobreviver se continuar assim por muito tempo.”
“Crescerás devagar e aprenderás também a arrebanhar um pouco de comida do sítio do pombo
grande. Mas não podes de modo algum dar a outros nada de comestível. É a maneira de sobreviver
aqui.”
Os pombos debatem a alma
“Mas, avô – “começa o jovem pombo.
“Basta, meu filho. Não digas mais nada. Os pombos deveriam aprender a estar satisfeitos com o
que têm. Não tentes discutir acerca do que excede as obrigações.”
Um espaço mais amplo
Nesse ponto sinto-me compelido a falar e interrompo. “Cercearam a liberdade dele”, digo.
“Deveriam dar-lhe um espaço mais amplo. Deveriam deixá-lo viver de acordo com a sua livre
vontade.” Não posso simplesmente ficar calado. Viver como sugere o velho pombo destruiria todo o
companheirismo entre a nossa espécie.
“Ah, tu não compreendes a nossa situação”, contrapõe-me o pombo mais velho. “É impossível
fazer o nosso dono zangar-se. Se alguém desobedece às suas regras e se aventura para fora do seu
território, todos nós acabarão dentro de uma gaiola – olhando atrás das grades durante meses.
Perderíamos o próprio ramo em que estamos sentados.”
O que é exactamente essa coisa, uma gaiola de pombos? Não faço qualquer ideia. Estes pombos
dizem estar tão aterrados por irem parar à gaiola, mas ao mesmo tempo têm medo de a perder. O
mais intrigante de tudo é como qualquer destes pombos poderia suportar viver entre os homens.
Terei discutido isto com o meu próprio avô? Não creio que ele me tenha dado alguma vez uma
resposta clara.
Em vez disso digo ao pombo mais velho, “As tuas palavras soam exactamente como as de um deles
– de um dos homens. Tirando comida aos pombos mais fracos e mais pequenos e proibindo-os de
resistir. Depois tentas com muito afinco encobrir o teu mau comportamento. Como pode este
ambiente garantir o crescimento e a saúde de gerações futuras? És depravado – ignorante e
estúpido.”
“Não insultes os humanos”, responde indignado. “Sem eles, não estaríamos hoje aqui. Vai para
outro lado com a tua propaganda anti-humana.”
Como podia ele deixar de ver que eu não disse aquilo por mal – que só pretendia ajudar? Talvez
devesse explicar melhor.
Um sonho de destino
“Não tens sentido de responsabilidade – estás a condenar outros a esta existência; estás a levar a
tua função até aos limites da fogueira”, continuo. Quero prosseguir para impor a mesma mensagem
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com maior vivacidade ainda. Mas de súbito oiço um som penetrante e sinto uma dor ruim nas
minhas pernas. Tento voar mas as minhas asas estão penduradas e vazias de ambos os lados. Todos
os outros pombos levantam voo e esvoaçam por cima de mim.
“Olha para ti, como te agitas – agora vais experimentar a vida dentro de uma gaiola de pombos”,
grita um deles. “Então vamos ver se continuas por essa via!”
De súbito entendi. O velho pombo atraiu-me para cerca dele para que eu me colocasse de modo a
que o seu dono me apanhasse. A dor enche-me o coração. Os humanos não tinham sido um perigo
para mim – foi a minha própria espécie que me traiu na esperança de alcançar lucros próprios. Não
posso entender e sofro. De súbito fico obcecado com a ideia de que não posso capitular – enquanto
puder partir as pernas, posso libertar-me. Usando toda a minha força, voo numa direcção e noutra
de cada vez.
“Não sejas tonto, filho, levanta-te! O que se passa contigo?” A voz é da minha mãe. Olha fixamente
para mim e dou-me conta de que estou ileso.
A minha mãe diz: “Tiveste um pesadelo”. “Tive um sonho bastante terrível.” Dou à minha mãe um
abraço apertado e conto-lhe todo o sonho.
“Filho, no teu sonho viste o teu destino”, responde ela. “O género humano está a pressionar-nos a
pouco e pouco, tomando o que outrora era inteiramente o nosso espaço. Querem expulsar-nos da
terra que ocupámos durante milhares de anos para nos tirarem a nossa terra. Querem mudar o
carácter da nossa herança – privar-nos da nossa inteligência e do nosso saber comum. Despojar-nos
da nossa memória e identidade. Talvez num futuro próximo venham a construir aqui fábricas e
arranha-céus e o fumo que provém de produtos de que não precisamos irá para o ambiente e
envenenará a nossa terra e a nossa água. Os rios que restarem já não correrão com água pura e doce
como agora, mas preta com o lixo das fábricas.”
Saindo do campo de morangos
“Essa invasão do género humano é terrível”, diz ela. “As gerações futuras nunca verão água pura e
ar limpo – e pensarão que sempre foi assim. Irão cair na armadilha do género humano. Esses
humanos estão agora a aproximar-se cada vez mais de nós e em breve será tarde demais para voltar
para trás. Mais ninguém pode salvar-nos deste destino – temos de salvar-nos a nós. Vamos sair
daqui. Chegou a hora de contar-te acerca do teu pai.”
Conduz-me lá para fora. À nossa volta, a terra está coberta com flores silvestres e um tapete verde
– não há estradas nem pegadas, apenas uma vasta e infinita estepe. A nossa terra assenta num
rochedo que se debruça sobre a margem de um rio, com milhares de ninhos de pombos por perto.
Um rio antigo corre por baixo, enviando-nos uma espécie de canção de embalar para onde estamos.
Para mim este é o lugar mais belo e seguro na terra. Sem os humanos a usurpar-nos as coisas,
poderíamos viver para sempre neste paraíso.
“Esta é a nossa terra”, diz a minha mãe. “Esta é a terra dos nossos antepassados. O teu pai e o teu
avô, ambos chefes de todos os pombos no território, ajudaram a torná-lo ainda mais belo. O seu
trabalho, a sua herança, só nos elevaram por entre os pombos. O peso sobre os nossos ombros é
grande e só espero que possas seguir as valentes pisadas do teu pai. Todas as manhãs te tenho
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treinado, ensinando-te a voar centenas de milhas por dia. Os teus músculos são duros e fortes e a
tua sabedoria já é grande.”
“O teu corpo está maduro e agora a tua mente, a tua inteligência, tem de alcançá-lo. Tem sempre,
sempre cuidado com os humanos. Não penses que estás seguro só porque eles andam no solo
debaixo de nós. Eles têm armas. Podem atirar e fazer-te cair a uma distância de milhares de metros.
Sabes como morreu o teu pai?”
“Não”, digo-lhe. “Começaste uma vez mas paraste, dizendo que ainda não era tempo.”
“Bom, o tempo agora chegou”, diz ela. “Há alguns dias, vi alguns humanos a explorar aqui nas
redondezas. Seguiam-nos atentamente com os olhos. Temos de encontrar um lugar seguro antes
que eles venham para aqui. Foi às suas mãos que o teu pai morreu.”
Uma herança orgulhosa
“Por favor conta-me, mãe. Como é que ele foi cair nas mãos deles?” A minha mãe fica
contemplativa – o seu rosto está triste.
“Um dia, o teu pai chefiava um grupo de pombos à procura de comida para nós. Habitualmente
escolhiam áreas seguras com comida abundante. O teu pai sempre chefiava essas missões – era um
líder forte e responsável. Assim, nessa vez ele guiou os outros até ao exterior mas não tinha
regressado ao fim de vários dias. Eu estava terrivelmente preocupada. Habitualmente, se
encontrasse um lugar com muita comida à distância de mais de meio dia de voo daqui, mudávamos
para lá o nosso ninho. Nunca ele iria tão longe ou ficaria tanto tempo longe de casa.”
“No meu coração, estava certa de que ele tinha tido um acidente. Por essa altura, tu e os teus
irmãos e irmãs mais jovens tinham saído recentemente da casca, de modo que eu não podia deixarvos para ir à procura dele. Ocorridos vários meses, um dos pombos que tinha saído com o teu pai
regressou. Isso deu-me ainda mais a certeza de que o teu pai tinha caído numa espécie qualquer de
armadilha. Depois, todo o resto deles regressou ileso – um após outro. Todos menos o teu pai.”
Nessa altura espero que a minha mãe se ponha a gemer ou a lamentar, mas um fulgor de bravura
vem-lhe ao olhar.
“O teu pai era um rei dos pombos com um espírito régio. Como poderia proteger os outros se não
podia proteger-se a si próprio? Como poderia um pombo caído numa armadilha humana regressar e
cumprir o seu papel como rei dos pombos? Os humanos lançaram-lhe uma armadilha, detiveram-no
e, mantendo as tradições da casa real, ele comeu a língua. Não podia aguentar um segundo mais
fechado nessa gaiola de pombos. A gaiola estava tingida de vermelho com o seu sangue. Ele recusou
a comida e bebida deles e viveu exactamente uma semana. Sacrificou-se a si próprio. O seu espírito
era realmente livre. Espero que cresças e te tornes como o teu pai, um protector da liberdade para
sempre.”
“Mamã, por que é que o meu pai não pôde encontrar uma oportunidade para escapar como
outros pombos?”
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Liberdade ou morte
“Os humanos esperavam que o teu pai acasalasse com outra pomba, uma pomba domesticada, e
produzisse uma raça mista com ela. Mas ele nunca poderia ter filhos que fossem mantidos como
escravos – seria para ele uma vergonha demasiado grande. Esses pombos no teu sonho eram
descendentes daqueles que aceitaram a escravidão e passaram a mendigar para viver. Filho, as suas
almas são mantidas prisioneiras. Mil mortes seriam preferíveis a uma vida assim. És o filho desse
valente pombo. Conserva vive em ti o seu espírito”, diz ela.
As palavras da minha mãe são um choque para a minha alma durante muito tempo. Fico
infinitamente encantado por ser o filho de um pombo tão valente, mas sinto uma vaga de orgulho e
felicidade. O meu coração sente-se forte e altivo. Com todo o amor no meu coração, abraço a minha
mãe.
“Agora tens de ir”, diz-me ela. “Renuncio a ti por amor à nossa terra-mãe e a todos os pombos.
Não deixes esses pombos sem um chefe. Os humanos são cada vez mais agressivos, usando todas as
tácticas para nos armadilhar. Vai agora e encontra um lugar seguro para nós, meu filho.”
As minhas asas estão molhadas com as lágrimas da minha mãe. Agora é claro o significado do meu
sonho: tenho de partir em expedição. Mas de modo algum, penso, cairei numa armadilha montada
por humanos.
Voo para cada vez mais longe, primeiro ao longo do rio e depois para a área onde os humanos
fazem as casas deles. Não se compara ao lugar dos meus sonhos para habitar, mas tenho cuidado –
voando cada vez mais alto. As minhas asas têm força suficiente. Não oiço disputas humanas mas a
música do vento nos meus ouvidos,
Em busca de um novo lar
Esses humanos não são assim tão fortes e assustadores, penso. Se voar demasiado alto, receio
falhar o meu alvo. Se voo para demasiado longe, prejudicarei o nosso plano migratório. Para dizer a
verdade, discordo do plano migratório da minha mãe. A nossa terra assenta num precipício muito
alto – como podem os humanos trepar até aqui quando até para pombos isso é difícil? Estivemos
aqui, um após outro, geração após geração, vivendo uma vida feliz. Por que razão deveríamos partir
agora, fugir de humanos mais fracos do que imaginamos? Estou a voar agora por cima de povoações
humanas. Não sinto perigo. Talvez a minha mãe se preocupe demasiado.
Agora o céu está negro. Tudo à minha volta está a escurecer e agora o mundo desaparece numa
escuridão de breu. Tudo desaparece na noite e dou-me conta de que estive a voar um dia inteiro e
estou exausto. Tenho de descansar. Já explorei o espaço a ocidente, a norte e a sul e continuo a não
encontrar um sítio onde viver. Não encontrei ainda um bom lugar para onde possamos migrar.
Talvez tenha voado demasiado alto. Talvez amanhã posse voar para oriente numa altitude mais
baixa. As estrelas cintilam no céu. Como pode alguém que vive em semelhante mundo de beleza ter
medo? Desço devagar, caindo numa árvore. Amanhã acordarei mas não sei onde. Então partirei de
novo, voando mais baixo no céu. Talvez seja capaz de encontrar para nós um novo lar.
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Parte 2
Uma voz lírica acorda-me, arranca-me ao sono profundo e doce que pertence apenas a quem é
muito jovem e aos que estão exaustos para além do normal. Um grupo de pombos vem em bando
ao meu encontro – oiço as suas vozes juntamente com o bater das asas e fico chocado ao ver que
são exactamente iguais a mim. Primeiro parecem-se com os pombos do meu sonho, mas olhando
mais de perto posso ver que são diferentes.
Em primeiro lugar, porém, tenho de descobrir onde posso encher o meu estômago vazio. Pergunto
a estes pombos onde há um sítio seguro onde se pode encontrar comida. Mudam de súbito a
direcção, afastando-se dos lugares habitados. Sigo-os.
Uma barriga vazia
“Para onde vão?” pergunto ao pombo na cauda do grupo.
“Para o moinho”.
“Que vão lá fazer?”
“Procurar comida de pombo.”
“Estão à procura de alguma coisa para comer?”
Os seus olhos têm um frio de gelo ao perguntar-me, “Então és um pombo bravo?”
“És um pombo bravo de origem?”
“Sim, venho do campo de morangos.”
Os apanhadores de pombos
Sigo-os até ao moinho onde vejo uma grande quantidade de trigo armazenada e coberta com
palha. O aroma é realmente doce e penso que este armazém tem bom aspecto – sem qualquer rasto
de humanos. Os outros pombos parecem pacíficos e satisfeitos. Começo também a confiar neste
ambiente pacífico, tomo coragem e encho a barriga.
Nada disto se parece com o modo como a minha mãe descreveu o mundo exterior.
Confiadamente, chego-me ao trigo diante de mim. De súbito, uma força violenta detém-me pelo
pescoço. Tento afastar-me tão rapidamente como uma flecha disparada do arco mas encontro-me
impedido de o fazer e uma força desconhecida puxa-me para trás com igual velocidade. Tento
esconder-me mas não posso – sou puxado para baixo, a voar aos círculos, sem direcção.
Todos os outros pombos espalham-se voando para cima e receio chocar contra o solo como no
meu sonho. Receio estar a cair em mãos humanas mas não há humanos por perto. O tempo passa
mas não tenho ideia de quantas horas decorrem. De súbito surgem dois humanos e penso ter sido
apanhado – então o travão no meu pescoço abranda.
“Isto é um pombo bravo”, diz um dos humanos que parece mais novo.
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“Segura-o com firmeza – amarra-lhe as asas para não poder fugir”, diz o outro. Juntos atam-me as
asas, agarram-me pelo pescoço e olham-me nos olhos.
“Hei, esta é uma espécie magnífica – realmente foi muita sorte”, diz o mais velho dos humanos,
virando-me e revirando-me nas suas mãos para olhar mais de perto.
‘Liberta-o’
“Este pombo bravo já não tem utilidade – liberta-o”, diz o mais velho. “Liberta-o. Ele já comeu a
língua. Quando apanhas esta espécie de pombo, não tens alternativa senão libertá-lo. Normalmente
é só o chefe do grupo que faz isso.”
“Pelo menos podemos ficar com ele para ter ovos”, protesta o mais jovem dos humanos.
“Esta espécie de pombo – não vai comer nem beber se ficarmos com ele. Vai resistir e recusar até
à morte.”
O humano mais novo é inflexível. “Não podemos simplesmente deixá-lo ir!”
“Muito bem, então a opção é tua. Estás a ver que digo a verdade. Apanhei uma vez um pombo
destes e insisti em ficar com ele – mas ele só viveu uma semana”, diz o mais velho.
A tortura da gaiola
“Vou domesticá-lo de certeza”, responde o humano mais jovem com confiança.
Nunca me domesticarás, penso. Encontrarei um caminho para casa. Tenho vergonha de mim
mesmo por ter negligenciado tomar a sério as palavras da minha mãe e caído a seguir numa
armadilha colocada por humanos. Recorro a toda a minha força restante e sinto por um momento
que poderia voar livremente. Em vez disso vou chocar contra o solo.
“Porco malvado!” grita o humano mais jovem. “Pelo menos amarrei uma asa – penso que isso o
impediu de voar livremente.”
Mete-me num saco, aparentemente planeando levar-me consigo para algum lado. Talvez tenha
por objectivo amarrar ambas as asas e meter-me numa gaiola. Vejo alguns pombos atrás de barras
de ferro, todos num canto.
“Tens de ter estado com muita fome, na verdade, senão não terias caído na minha armadilha”, diz
o humano mais novo ao colocar comida e água num canto da gaiola de ferro. No instante em que
pousa a comida, há pombos que se precipitam para o canto da gaiola, dirigindo-se a ele com frenesi.
Nesse momento sinto a raiva queimar-me e pergunto-me se chocar contra as barras faria rebentar a
minha cabeça de forma fatal e pôr fim a este horror.
Mas a minha asa permanece amarrada – e estou imobilizado. Levanto ligeiramente a cabeça em
direcção ao sol, pensando como em menos de um dia caí numa armadilha montada por humanos. Se
a minha mãe pudesse ver-me agora, que pensaria ela? Deito-me no solo.
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Nem comer nem ser comido
No meu sonho vejo a minha mãe contra um céu azul profundo, chamando por mim. Aparece o
meu pai, alto e de bom porte e sinto-me orgulhoso dele. Voltam a chamar-me e voo ao seu encontro
– mas eles recuam. De novo voo ao encontro dos meus pais e de novo eles recuam. Paro de voar e
eles param também. Tenho sede e exclamo, “Mãe, água!”
Uma voz humana sacode-me de volta ao estado consciente. “Este pombo é verdadeiramente
teimoso”, diz a voz. “Está aqui há cinco dias e não comeu nada”. É o mais novo dos dois humanos
que me apanhou primeiro.
“Não te disse que seria inútil dar-lhe de comer?” responde o mais velho irritado.
“Mas se ele continuar a jejuar, morrerá. Não seria melhor cozinhar com ele um caldo para o meu
filho?”
O mais velho é dissuasor. “Não obterias dele nada agora e talvez adoecesses. Deixa-o partir. Ver
um pombo como este morrer lentamente é demasiado penoso.”
“Deixá-lo em liberdade não nos traz nada de bom”, responde o mais jovem.
‘Nada de bom advém daqui’
“Nada de bom advém daqui em caso algum.”
“Deveríamos ter feito com ele uma sopa de imediato”, diz o mais jovem. E quando tenta desatar as
minhas asas e colocar-me no chão da gaiola, junto toda a força que me resta pensando que poderia
voar para o céu. Mas o arame é demasiado forte e não posso.
Quero atirar-me violentamente contra a porta da gaiola, mas não consigo. Esta gaiola é
supremamente inteligente na sua crueldade, penso, ao permitir a quem esteja preso dentro dela
uma vista ampla das liberdades que lhe são negadas – sem esperança de as readquirir.
O ar é idêntico dentro e fora desta gaiola, penso, mas a vida possível do meu lado destas barras de
ferro também poderia pertencer a um universo diferente. Quem quer que tenha concebido tal
dispositivo era verdadeiramente um punho de ferro com o mais negro dos corações – determinado a
imobilizar pequenas criaturas como eu mesmo que não lhes possa trazer qualquer concebível
vantagem. Engaiolando o meu corpo esperam escravizar a minha alma, penso. Quero pôr fim à vida
mas não posso e isto é o pior de tudo. “Humanos sem coração que mataram a minha liberdade”,
quero exclamar, “ponham-me em liberdade ou deixem-me morrer!”
Chega até mim um cheiro familiar e vejo então a minha mãe – os olhos brilhando, ansiosos,
notando à volta as minhas penas perdidas, a minha boca partida, as minhas asas patéticas, torcidas.
A libertação da alma
“Perdoa-me, mãe”, começo a dizer. “Não estive à altura da confiança que depositaste em mim.
Não tenho estofo para ser teu filho.” Baixo a minha cabeça como um criminoso condenado na gaiola
do tribunal. Por que razão não pude morrer antes de ela ter aqui chegado?
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“Fizeste tudo o que estava ao teu alcance”, respondeu ela. “Agora tens de pôr um fim a isto.”
“Mas, mamã, não posso”, digo-lhe. “Sou um prisioneiro – sem energia, sem força. Por mais que
queira morrer, não posso.”
“Isso é claro”, diz-me ela. “E foi assim que vim para trazer-te a liberdade.”
“Já não mereço a liberdade”, digo. “Já não sou digno de ser o teu filho.”
“Então dir-te-ei de novo – trouxe-te a liberdade. Ainda és o meu valente filho – não dever ser
forçado a viver como um escravo mas devem deixar-te morrer com valentia, com dignidade”, diz ela,
empurrando um pouco de comida na minha direcção.
Um preço alto pela liberdade
“Este morango é da variedade venenosa – come-o e ele irá libertar-te. Repõe a honra da nossa
estirpe. E lembra-te sempre que a verdadeira liberdade só chega por um preço alto. Vá, traz a tua
boca para mais perto de mim.”
Olho fixamente a minha mãe pela última vez. Parece tranquila e corajosa. Estendo a minha boca
ferida na sua direcção. O meu bico, a única arma que me resta – um inimigo dos humanos, que me
protegeu e alimentou e depois me levou à armadilha dos humanos. Está agora partido, quebrado
pela minha colisão falhada contra as barras de ferro.
Os venenos do morango fluem por mim como o som da própria liberdade, juntamente com a
gratidão por poder agora, finalmente, morrer livremente. Sinto-me como se a minha alma estivesse
incendiada – voando ao alto e livre.
Vejo agora tudo com clareza – o céu é ainda de um tal azul profundo e o mundo permanece tão
belo e tudo está tão quieto e calmo. Um grupo de pombos junta-se na borda da gaiola à minha volta,
observando-me, perplexo e surpreendido.
Condado de Maralbeshi
24 de Março de 2004
Traduzido por Dolkun Kamberi, Director sos serviços Uyghur da RFA, editado por Sarah Jackson-Han.
Produzido para a net em inglês por Luisetta Mudie.
Tradução da versão inglesa para português: Teresa Salema, Maria do Sameiro Barroso
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Pombo bravo – por Nurmuhemmet Yasin 2010-05