RESENHAS Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa Jarouche, São Paulo: Globo, 2005, 2v. todos os lugares e agradam a todo o mundo”, por apresentar a sinceridade dos sentimentos, a novidade das tramas, um colorido pleno de calor e uma imaginação fecunda em prodí- CHRISTIANE DAMIEN CODENHOTO* gios; e, mais adiante, observa também o prazer que a leitura do livro suscita, indagando, As primeiras palavras que tangem o livro são, de modo bastante próprio ao seu contexto no mínimo, sugestivas: “[...] avisamos aos ho- histórico-literário: “qual é o homem que não mens generosos e aos senhores gentis e hono- tem necessidade de, às vezes, distrair-se dos ráveis que a elaboração deste agradável e sa- aborrecimentos da vida efetiva com as ilusões boroso livro tem por meta o benefício de quem deliciosas de uma vida imaginária?”2 Mas, o lê: suas histórias são plenas de decoro, com para muito além da distração da amargura, significados agudos para os homens distintos; como menciona o Livro das mil e uma noites, por meio delas, aprende-se a arte de bem falar ou dos aborrecimentos, dos quais lembra No- e o que sucedeu aos reis desde o início dos dier, o fato é que semelhante obra conta com tempos. Denominei- riquíssimos elementos textuais - entre eles o de livro das mil cita-se a estrutura encadeada de narradores e e uma noites, que histórias, o tema e os motivos, mas que não contém, igualmente, cabe, por hora, discuti-los - e um repertório histórias excelentes fantástico que escritores tão diversos quanto [...] Este livro, enfim, Voltaire, Marcel Proust, Machado de Assis, também os levará ao deleite e à felicidade nos Edgard Allan Poe, Jean Potocki, Jorge Luis momentos de amargura provocados pelas vi- Borges, e o próprio Charles Nodier não se cissitudes da fortuna, encobertas de sedutora furtaram de nela se inspirar. Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa Jarouche, São Paulo: Globo, 2005, 2v, p.39. 2 Nodies, Ch. Notice sur Galland. In: Les mille et une nuits. Traduction d’Antoine Galland. Paris: Garnier, 1955, p.8. 1 248 perversidade”1. Tais palavras atravessam, até As histórias do livro – permeadas por o momento, aproximadamente setecentos elementos sobrenaturais como gênios, fei- anos, mas não é a atualidade quem primeiro tiçarias, metamorfoses, objetos mágicos, e confirma o êxito dos propósitos referenciados caracteres essencialmente humanos, viven- no livro e a excelência de suas histórias; desde ciados nas paixões desenfreadas, no ódio, sua primeira publicação, na França do século nas atitudes generosas, nos comportamentos XVIII, as Mil e uma noites encantam e provo- cruéis, na curiosidade aguçada – são profe- cam sensações de assombro e deleite a quem ridas pela exímia narradora Šahrazād, a fi- sobre elas se debruça. lha do vizir mais importante do reino, que as Nesse sentido, Charles Nodier, autor utiliza como um ardil para conter a medida do romantismo francês e também crítico de drástica de Šahraiār, o rei sassânida, de des- literatura, em comentário sobre o livro, con- posar uma mulher por noite e assassiná-la na sidera que as Mil e uma noites “agradam a manhã seguinte. Tal comportamento desme- surado desencadeara-se depois de o rei ver a conhecidas, foi dividida por parte da críti- traição de sua esposa com um escravo negro ca em dois ramos, nos quais se distinguem e de ter constatado, pela experiência de uma com clareza as duas redações acima men- viagem, que não havia uma só mulher que cionadas: o ramo sírio e o egípcio, sendo estivesse livre da perversidade e da perfídia. este último subdividido em antigo e tardio. Diante de semelhante fato, toma a resolução O ramo sírio é constituído pelos manuscri- de manter-se casado por somente uma noi- tos que foram copiados entre os séculos te, para, na manhã seguinte às núpcias, dar VIII H./ XIV d.C. e XII H./ XVIII d.C., na a sentença de morte à esposa, pois, somen- região do Levante - onde hoje correspon- te assim estaria a salvo de uma nova trai- de ao Líbano, Síria e Palestina. Esse ramo ção. Depois de muitas mortes, a inteligente possui quatro manuscritos, dentre eles en- Šahrazād decide acabar com essa situação e contra-se o “Arabe 3609-3611”, em três se oferece em casamento a Šahraiār – apesar volumes, é considerado o melhor e o mais da resistência do vizir, seu pai – quando, a antigo dos manuscritos do livro, remontan- seguir, inicia a sua estratégia: na primeira do à metade do século VIII H./ XIV d.C.; noite, como nas demais que se sucedem, ele pertenceu a Antoine Galland, o primei- conta-lhe histórias espantosas e as suspen- ro tradutor das Mil e uma noites, e está de- de ao amanhecer; o rei, por sua vez, movido positado na Biblioteca Nacional de Paris. pela curiosidade, poupa Šahrazād da morte Todos os manuscritos desse ramo contêm para ouvir, na próxima noite, o desfecho da 282 noites e se encerram no mesmo ponto narrativa interrompida. da narrativa, ao final da décima primeira A reunião das histórias noturnas contadas por Šahrazād ao rei Šahraiār compõe noite da “História do rei Qamaruzzamān e seus filhos ÿAmjad e ÿAscad”. o livro que, na verdade, não possui uma O ramo egípcio compõe-se por ma- única redação. Perdidos os originais mais nuscritos que foram copiados nessa região, antigos de uma matriz iraquiana que re- o mais antigo deles remonta ao século XI monta ao século III H./ IX d.C., hoje se dis- H./ XVII d.C., pertence à subdivisão do tinguem duas redações dessa obra, advin- ramo antigo, e chegou a 870 noites. O nú- das de uma reelaboração produzida entre a mero de noites do livro passou a correspon- segunda metade do século VII H./XIII d.C. der ao título, ou seja, Mil e uma noites, so- e a primeira do século VIII H./ XIV d.C., mente na segunda metade do século XII H./ dentro do Estado Mameluco - assim cha- XVIII d.C., com o corpus do que se chama mado por ser liderado por uma casta de es- ramo egípcio tardio. Essa elaboração seria cravos - quando abrangia as terras da Síria o resultado de uma iniciativa isolada de e do Egito. Essa reelaboração do período um copista do Cairo, que teria agregado mameluco, que mantém as características materiais dispersos, e, assim, conferido pelas quais as Mil e uma noites são hoje à obra as mil e uma noites de narrativas. 249 RESENHAS 250 Ressalte-se que as histórias acrescentadas glês, destaca-se Edward Lane, John Payne ao livro por esse anônimo escriba não eram e Richard Burton, ambos no século XIX; e, recentes, muitas delas são mais antigas do mais recentemente, Husain Haddawi, em que as próprias Mil e uma noites, como a da 1992. Em espanhol, Juan Gines Vernet, ara- donzela Teodora, do marinheiro Sindabād e bista catalão, e o escritor Ricardo Cansinos- do sábio Sindabād - obras diferentes cujos Asens, ambos no século XX; em alemão, protagonistas, por coincidência, apresen- cita-se Littmann, na década de 20. No Bra- tam o mesmo nome. sil, as traduções, até o final do século passa- A primeira tradução das Mil e uma do, deram-se por via indireta, especialmen- noites, como já fora dito, foi realizada pelo te do francês, a partir de Antoine Galland orientalista francês Antoine Galland e pu- ou de René Khawan. A primeira permitiu blicada em doze volumes, entre os anos o contato dos leitores com uma tradução de 1704 e 1717. Os oito primeiros foram mundialmente conhecida, mas distanciada elaborados com base no manuscrito “Ara- da fidelidade ao texto original; e a segunda be 3609-3611”, pertencente ao ramo sírio; que, pela arbitrariedade do tradutor, divide os volumes seguintes constituíram-se por as histórias de acordo com o “agrupamento acréscimos de histórias que não fazem parte temático”, suprimindo totalmente a seg- desse documento - entre elas estão “Aladim mentação das histórias em noites – o que e a lâmpada maravilhosa”, “Ali Babá e os provoca o apagamento de um traço bastante quarenta ladrões”, “O príncipe A¬mad e a distintivo do livro. Havia, desse modo, duas fada Pari-Banu”, “Abý-Hassan e o dormen- únicas versões que circulavam com alguma te desperto” e “A aventura noturna de Hārýn regularidade, mas que, além de apresenta- Arra¹÷d”. Além de incorporar histórias ao rem determinados descaminhos em relação livro, Galland suprimiu de sua versão algu- ao texto original, eram a tradução de uma mas que constam do texto original, e, ade- outra tradução. Os leitores brasileiros, por mais, fez suas personagens falarem ao modo sua vez, fossem eles curiosos ou estudiosos da língua de Versalhes; por esses e ainda da obra, não tinham acesso a uma versão outros motivos aqui não mencionados, sua direta do árabe para a língua materna. Se- tradução é tradicionalmente criticada, ainda melhante lacuna foi, felizmente, eliminada que, por outro lado, seja aquela que o mundo no ano de 2005, com a tradução direta dos conheceu e tem viva em sua memória. manuscritos árabes das Mil e uma noites por Depois de Galland, as Mil e uma noites conheceram outros tradutores. Em Mamede Mustafa Jarouche, publicada pela editora Globo de São Paulo. língua francesa, Mardrus, cuja tradução foi Para a tradução dos dois primeiros publicada entre 1899 e1904; René Khawan, volumes do livro – de uma série projetada na década de 60; André Miquel e Jamel em cinco tomos –, Jarouche utilizou como Eddine Bencheikh, na década de 90. Em in- fonte principal o conjunto dos três manus- critos do ramo sírio “Arabe 3609-3611”, da adaptações ao adotar a convenção interna- Biblioteca Nacional de Paris; como tam- cional; por outro lado, tal procedimento bém manuscritos do ramo egípcio antigo não deixa de exigir que o leitor se atente às para fins de cotejo e indicação de varian- pronúncias detalhadamente descritas no pri- tes de interesse para a história das modi- meiro volume do livro. Às páginas finais, o ficações operadas no livro. Juntos, os dois tradutor acrescentou anexos contendo tex- volumes somam 356 noites, das quais 282 tos que serviram de fonte para as histórias pertencem ao ramo sírio e 74 ao manuscri- do original, traduções de passagens do livro to “Bodleian Oriental 551” – constante do que apresentam mais de uma redação e his- ramo egípcio antigo –, que detém a ver- tórias que chegaram a fazer parte de algum são mais antiga e completa da “História manuscrito isolado das noites, mas que não de Qamaruzzamān e seus filhos Amjad e foram incorporadas ao cânone. As ad”, inconclusa no ramo sírio: todos os Os três próximos volumes a serem manuscritos deste ramo encerram-se na 11ª publicados irão conter somente histórias noite da história de Qamaruzzamān, cor- pertencentes ao ramo egípcio tardio e, do respondente a 282ª noite do livro, como se mesmo modo que os anteriores, também referiu anteriormente. possuirão textos anexos, cujos elementos c Cada um dos volumes traz detalhada servem de comparação para o leitor in- introdução, na qual Jarouche discorre sobre teressado na história da constituição do a história do livro, seus manuscritos, sua livro. Com semelhante trabalho, a edição divisão em ramos e onde também, sagaz- brasileira proporcionará aos leitores não mente, repudia a crença dos críticos de que somente o núcleo mais antigo, preservado as Mil e uma noites sejam literatura oral no ramo sírio e em parte do egípcio antigo, – na medida em que é comumente pensada mas também a variedade de histórias que como fruto de uma caótica espontaneidade foram agregadas pelo ramo egípcio tardio, – lançando luz à hipótese de que o percurso em finais do século XVIII, com o afinco de do livro tenha sido da elaboração escrita à atingir as mil e uma noites de narrativas. apropriação pela esfera da oralidade, e não A inédita tradução comentada e di- o contrário. Além das esclarecedoras in- reta dos manuscritos árabes das Mil e uma troduções, Jarouche apresenta ao longo do noites para a língua portuguesa significa livro centenas de notas que apontam para para a cultura e pesquisa literária no Bra- os aspectos lingüísticos e históricos, como sil uma singular contribuição, visto que, também explicam o cotejo entre manus- embora se trate de uma obra concebida critos e edições árabes. Mais um elemento como uma das mais importantes da litera- relevante da tradução brasileira é a trans- tura mundial, até então, inexistia enquanto crição dos nomes árabes que, primando uma tradução direta. O primoroso trabalho pela fidelidade ao original, evitou possíveis de Jarouche, agraciado com três grandes 251 RESENHAS prêmios de tradução – APCA (Associação histórias vem conduzindo, noite após noite Paulista dos Críticos de Arte), Paulo Rónai, ao longo dos tempos, ao deleite e à felici- ambos de 2005, e Jabuti, de 2006 –, figu- dade quem sobre ela se debruça. ra mais um importante passo no caminho das traduções diretas do original no Brasil. Fica, pois, o convite à leitura do Livro das mil e uma noites, obra cuja excelência das 252 * MESTRANDA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADULÍNGUA, LITERATURA E CULTURA ÁRABE DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. AÇÃO EM