ANTÓNIO CAMPOS :: LUGARES PERDIDOS Por Rodrigo Francisco Vanguardas Estéticas no Cinema, Cine Clube de Viseu, 2010 / 2011 António Campos foi um cineasta amador, não profissional, desconhecido em grande medida pela dificuldade de acesso aos seus filmes, apenas exibidos em circuitos restritos. Nas raras oportunidades em que os seus filmes foram vistos, conquistou um merecido culto. Analisando atentamente vários aspectos do seu trabalho, podemos considerar a obra de António Campos precursora de algumas tendências do cinema português, e marcada por uma forte personalidade autoral. A Almadraba Atuneira, exibido nesta sessão, representa de forma particular o contributo de Campos para a história do cinema português do séc. XX. “Estou numa margem e o cinema está noutra de um rio bastante largo, talvez não o Nilo, talvez o Tejo na sua desembocadura”1 Índice sessão 13.01.2011 1. O DOCUMENTÁRIO 2. ANTÓNIO CAMPOS E ALMADRABA ATUNEIRA 3. CAMPOS E O CINEMA PORTUGUÊS 1 António Campos, in Público, 01.12.1995. 1. O DOCUMENTÁRIO Falar de documentário é falar de uma “província marginal”, como dizia Christian Metz. O cinema, como sabemos, é estudado maioritariamente através dos seus filmes de ficção de longa-metragem. É a face mais visível da produção, da economia, da crítica, da distribuição e exibição cinematográfica. Falar de documentário, como de outras áreas menos “visíveis”, é falar de uma província marginal, como refere Metz. Esta edição Vanguardas e estéticas no cinema não contempla qualquer sessão específica para aprofundar a génese do documentário e a sua evolução. De forma breve, diremos apenas que uma das razões históricas que leva o documentário a ocupar este lugar de invisibilidade deve-se ao facto de ter oscilado, durante muitos anos, entre o filme de propaganda e de denúncia social, conduzindo à desvalorização do seu valor intrínseco. Só posteriormente alguns exemplos maiores foram devidamente reconhecidos, como nos casos do cinema alemão e soviético. Nesta edição, onde o documentário é destacado de forma particular, o que nos importa é o facto de esta invisibilidade não impedir o documentário de ocupar uma posição polémica e central na história, teoria, estética e critica do cinema. E a polémica resulta da sua proposta de representação ou apropriação da realidade. “Creative treatment of actuality” John Grierson, anos 30 O pai do documentário enquanto conceito audiovisual, John Grierson, usou o termo pela primeira vez em 1926. Grierson escreveu: "sendo um relato visual da vida quotidiana dos jovens polinésios tem valor documental”. Citar o escocês Grierson é reconhecer, em primeiro lugar, a sua figura fascinante no contexto da realização e produção: fez um único documentário (Drifters, 1929, sobre a vida dos pescadores de arenque na Escócia), importante ao ponto de se tornar precursor do movimento documentarista britânico, produziu Robert Flaherty no Canadá, Alberto Cavalcanti e Joris Ivens no Reino Unido, e lançou as bases do National Film Board of Canada, sendo responsável pelo convite a Norman McLaren para integrar a organização. Mas Grierson tem, ainda, uma das primeiras definições centrais para o documentário: o tratamento criativo da actualidade. A sua visão reconhece o lado criativo da mensagem, e expõe a tensão clássica entre “tratamento criativo” e “actualidade”. “Tratamento criativo” sugere liberdade de ficção, ao passo que “actualidade” remete para as responsabilidades do jornalista ou do historiador. Este ponto é um debate também, por sinal central para a definição de algumas estéticas no cinema, e um dos aspectos mais interessantes da sua história. É por isso que dedicamos três sessões do programa Vanguardas e estéticas no cinema a autores que pensaram de forma exemplar o lugar do documentário. No âmbito de um programa como este, onde se privilegia a perspectiva do autor, parece-nos que as noções de documentário em causa nas obras de António Campos, Joris Ivens ou Pedro Costa são das mais ricas e profícuas que este programa poderia apresentar. Sem querer chegar a qualquer definição, com estes autores vamos certamente perceber melhor uma demarcação do campo do documentário. Com o neo-realismo italiano deixou de ser possível identificar recursos típicos do filme de ficção e recursos associados ao documentário. Pelo contrário, verifica-se uma interferência constante e reconhecem-se os procedimentos narrativos e formais como específicos do cinema, e não de um ou outro género. Isto é, partimos para uma abordagem ao documentário não como género particular, mas como um campo vasto de possibilidades criativas. “O documentário é uma construção discursiva subjectiva, ideológica, produzida por sistemas significantes equivalentes aos encontrados no cinema de ficção” Bill Nichols Nichols, autor incontornável no estudo da representação da realidade pela imagem, tem vindo a reflectir sobre o excesso de crença no documentário como representação do real, evidenciando o documentário como matéria própria com autonomia, em que os objectos reais estão ausentes. Para ele são várias as equivalências entre a ficção e o documentário que nos devem levar a não os olhar como áreas estanques ou organizados por géneros. 2. ANTÓNIO CAMPOS E A “ALMADRABA ATUNEIRA” Nascido em Leiria, em 1922, António Campos construiu um percurso quase sempre nãoprofissional no cinema, com os seus meios, únicos, aproximado aos lugares e povos. Filmografia seleccionada: 1957 . O RIO LIZ 1958 . UM TESOIRO 1959 . UM SENHOR 1961 . A ALMADRABA ATUNEIRA 1965 . A INVENÇÃO DO AMOR 1971 . VILARINHO DAS FURNAS 1974 . FALAMOS DE RIO DE ONOR 1975 . GENTE DA PRAIA DA VIEIRA 1977 . EX-VOTOS PORTUGUESES 1978 . HISTÓRIAS SELVAGENS 1979 . TI MISÉRIA UM CONTO TRADICIONAL PORTUGUÊS 1992 . TERRA FRIA 1993 . TREMONHA DE CRISTAL Começou muito jovem, em 1957, revelando o instinto e a determinação que sempre o definiram. A sua obra cinematográfica inicia-se com O rio Lis, 1957, que ele define posteriormente como um ensaio experimental. O primeiro dos filmes que ele próprio classifica de “etnocinema” é Um tesoiro, 1958, a partir do conto homónimo de José Loureiro Botas, escritor natural da Praia da Vieira, localidade costeira no concelho da Marinha Grande onde Campos passa grande parte da sua vida. As suas escolhas de textos literários, quando opta por essa fonte, recaem sempre sobre autores com um forte vínculo comunitário (Botas, Torga e Ferreira de Castro, entre outros). Prossegue o investimento na sua carreira com as poupanças do ordenado ganho na secretaria da escola comercial de Leiria, até 1961, ano em celebra um contrato de colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian. Os “Anos Gulbenkian” (designação que traduz a importância da Gulbenkian para o cinema português numa fase em que não existia produção independente de cinema em Portugal), não tiveram, para António Campos, o mesmo efeito e significado que para outros cineastas. Significou a possibilidade de contactar com o meio, o acesso a material e equipamento, e experiência regular, mas sempre se manteve distante de grupos ou movimentos estéticos em voga – da sua geração, todos os cineastas aproveitavam a Gulbenkian para encontros e projectos comuns. Pelo contrário, os seus anos Gulbenkian significam a afirmação de um carácter solitário, e a dificuldade em lidar com a organização institucional. António Campos dizia querer esquecer essa passagem por Lisboa. “Casas grandes não têm rosto e eu costumo dar-me com pessoas. Ali as coisas eram muito impessoais, anónimas. Não me senti muito bem na Gulbenkian, entendo que fui maltratado. E o meu erro foi tentar enfrentar um império daqueles. É melhor esquecer”.2 Nos anos 80, apenas realizou À descoberta de Leiria, e no final da década inicia a preparação de Terra Fria, filme que virá a terminar em 1992, perseguido por Campos desde os anos 60. Esta adaptação do romance de Ferreira de Castro, filmado nas Terras do Barroso, foi a sua única produção com meios, equipas técnicas, actores profissionais e distribuição comercial. Veio a estrear em 1995, nas salas de cinema, onde por uma vez um filme seu pode ser visto. Por todas as razões de ordem artística, profissional, enquadramento cultural e histórico, o seu percurso no cinema é pouco ortodoxo, bem sintetizado pelo cineasta em entrevista: “Estou numa margem e o cinema está noutra de um rio bastante largo, talvez não o Nilo, talvez o Tejo na sua desembocadura”. Restava pouco tempo de vida a António Campos, entretanto atingido por doença prolongada da qual viria a falecer em Março de 1999. Conseguiu, até lá, realizar um último projecto documental, A tremonha de cristal, e deixar por fazer, por exemplo, Rosa, a partir de uma obra homónima de Mário Cláudio, e O malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, que a concretizarem-se teriam dado nova expressão ao capítulo ficcional da sua obra. 2 António Campos, entrevista a Manuel Costa e Silva e A. Loja Neves, Leiria, 1997, in Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2000, p137). A Almadraba Atuneira 1961 “Com Almadraba encontrei o meu caminho no cinema” António Campos Vamos destacar no trabalho do António Campos os seus lugares perdidos e a morte que frequentemente atravessa os seus filmes. A morte de alguma actividade humana e a imediata passagem a outro estádio de desenvolvimento. Associados a ela, a perda de tradições, hábitos, e características que o longo tempo em que existiram e se consolidaram de nada valeu ante uma poderosa imposição, venha ela do natural ou humano. Campos tem um conjunto vasto e notável de documentários, mas por uma questão cronológica, e porque o próprio afirma tratar-se da obra que o coloquou na rota do documentário, abordamos o trabalho cinematográfico feito em A Almadraba Atuneira. A convite de um amigo, o realizador passa uma temporada em 1960 numa pequena casa da ilha de Abóbora, em frente a Conceição de Tavira, no Algarve. Fascinado pelos pescadores e faina marítima, o cineasta volta para encontrar as mesmas gentes um ano depois, em 1961, e filmar a última saída dos pescadores ao atum, antes da destruição do arraial por uma violenta tempestade. Situado no início do percurso documental do cineasta, detectamos em A Almadraba Atuneira o início da presença de ensaios de planificação narrativa, de encenação e ficção que sempre completam a narrativa de Campos, mesmo nos seus filmes mais puramente etnográficos. Antes de analisar com mais detalhe os aspectos plásticos, formais, narrativos, e o hibridismo documentário – ficção, chamamos a atenção para a presença de dois temas recorrentes da obra de António Campos neste filme. 1. A água. Como elemento aglutinador e metáfora do ciclo de vida e morte. Em alguns filmes, o início dá-se com um fio de água, ondas, etc. Destacam-se: Vilarinho das furnas, Falamos de rio de onor, Gente da Praia da Vieira, A Invenção do amor. Além do vínculo natural à Praia da Vieira, há uma curiosa explicação dada pelo realizador para esta atracção pela água: “(…) aquela caravela que construíram pelos anos 40, para as festividades que o Salazar quis fazer para a Exposição do Mundo Português, e que ruiu no dia do lançamento à água. Ainda hoje tenho nos meus ouvidos os gritos das pessoas. Eu não apanhei com ela por acaso porque com o meu avô ficámos mais longe. (…) Os canhões todos lá dentro, aquelas coisas todas, os mastros, e depois o barco a virar, é uma imagem que eu ainda hoje tenho na memória e ainda sinto pânico ao pensar naquela imagem”.3 2. O rural. A ruralidade não é matéria de contemplação mas de tensão ou conflito. O Natural não é filmado pacificamente. A visão de António Campos das comunidades e tradições é tudo menos bucólica. 3 António Campos, entrevista a Manuel Costa e Silva e A. Loja Neves, Leiria, 1997, in Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2000, p137). “O real não conta histórias” Christian Metz a) Razões para a escolha de um esquema narrativo A escolha de um esquema clássico em A Almadraba Atuneira, com princípio, meio e fim, acentua o esforço dos homens ao longo da narrativa, começando por uma apresentação da comunidade até uma quase mecanização de grupo como resolução da árdua tarefa da pesca. A introdução deste documentário tem cinco minutos, começando no bairro dos pescadores, o desembarque de homens, mulheres e bebés. O desenvolvimento do filme dá-se no desembarque, numa manhã em que os pescadores saem das casas. Um toque de corneta, que reúne todos os envolvidos na faina, desencadeia simultaneamente a acção do filme e o som de excertos da Sagração da Primavera de Stravinsky, que vem acompanhar todos os processos a decorrer: a retirada das redes das casas, colocação dos troncos de madeira na areia, descida do barco ao mar, verificação das redes estendidas no areal. b) Mise-en-scène António Campos aproveita a organização da faina para sugerir uma mecanização no desenvolvimento do filme. Ensaia coreografias baseadas no herói do filme, o grupo de pescadores e seus barcos, através de uma mise-en-scène pouco típica de um cineasta amador e que consegue cristalizar os métodos e organização de trabalho que são resultantes de uma comunidade piscatória de raízes profundas. Por vezes, o trabalho parece ser feito a várias mãos, como de um corpo só se tratasse. Para atingir essa ideia, o cineasta toma opções de construção narrativa e vinca as relações sociais e comunitárias dos seus actores: em todo o filme, nunca veremos um homem ou mulher a trabalhar só, prevalecendo os planos de grupo de pessoas e até de barcos (veremos um personagem isolado, mas essa análise será feita à frente). A montagem também favorece essa ideia de organização de grupo, com maior ou menor ritmo em função do interesse narrativo. A rapidez, o ritmo do corte esconde mais do que mostra, e leva o olhar a associar os conceitos em lugar de se ficar pelas formas e objectos. A ligação entre planos faz-se por um tipo de raccord particular, definido por Manuela Penafria como raccord por analogia: “porque os planos são muito iguais entre si, há um mesmo preenchimento do ecrã, um mesmo equilíbrio de composição”.4 A mise-en-scène em A Almadraba Atuneira é muito particular e reflecte, em resumo, dois aspectos: um cineasta que conhece muito bem os hábitos sociais (característica transversal no trabalho de Campos, que neste caso viveu antecipadamente seis meses na ilha da Abóbora); a importância que o realizador atribui ao grupo e à comunidade, talvez aqui como em nenhum outro filme: depois do cerco do conjunto de barcos ao atum, a Almadraba volta triunfante à costa. Todo o esforço colectivo foi compensado. 4 Manuela Penafria, in O paradigma do documentário – António Campos, cineasta, 2009, p41. c) Força expressiva dos planos A Almadraba Atuneira evidencia um investimento plástico, um cuidado e uma composição invulgares. O filme atrai a atenção pela ideia clara do papel da imagem e do cinema, apesar das precárias condições de produção, se nos lembrarmos que todo o documentário foi filmado com uma câmara de 16mm emprestada. Paulo Rocha, cineasta profundamente conhecedor do trabalho de Campos, fala de uma razão para a força expressiva dos planos deste cineasta, como de Pedro Costa em O Quarto da Vanda, 2000, ou Fernando Lopes em Uma abelha na chuva, 1971: a câmara e a fotografia eram garantidas pelo próprio realizador, “reagindo à luz, ao espaço, aos corpos dos actores, sem passar pelas mãos de um camaramen profissional mais apegado a formas do cinema industrial mais ou menos impessoais”.5 Um exemplo vivo desta força expressiva é a transformação dos objectos em símbolos graças aos enquadramentos. Ferramentas, arpões, ou outros objectos tornam-se extensões naturais dos pescadores. d) Ficção e documentário Podemos analisar com detalhe uma cena do filme com a Casa do Guarda em fundo. O protagonista de A Almadraba Atuneira é o grupo, o que colide com este personagem isolado que vemos no plano. De forma subtil, António Campos abordava desde os anos 50 os temas da delação e da perseguição, como nesta cena, sensivelmente a meio do filme. Temas como este eram abordados de forma cuidadosa pois António Campos era muito cioso da sua liberdade de filmar. Não hesitou em guardar, auto-censurar, A invenção do amor, depois de algumas projecções, para apenas em Abril de 74 o voltar a exibir. No entanto, esta aparição da figura do Guarda desenha um óbvio contraste entre o trabalho comunitário e o seu isolamento. O Guarda passeia só, toda a aldeia se envolve em tarefas de grupo. O Guarda aparece num plano isolado, enquanto todo o filme é construído com planos de grupo. O contraste é extensivo à banda sonora: a comunidade tem Stravinsky como música de fundo, com o Guarda é introduzido um elemento sonoro desfasado, o rebentamento das ondas que não vemos na imagem. O tratamento do som das ondas, realizado apenas em 1974 por Alexandre Gonçalves e António Campos, associa uma conotação negativa ou trágica ao guarda. Também um signo pouco habitual na filmografia de Campos vem apoiar essa conotação do guarda: o fade out, silencioso e negro que conclui o plano. Com estas opções, co-existem no mesmo plano o registo de ficção e documentário. De forma exemplar, a ficção como dispositivo narrativo ao serviço do etnocinema de Campos tem por finalidade encontrar as complexidades humanas. As encenações e ficções encontradas despertam o tratamento de novas realidades. Por isso, nos filmes de António Campos a curiosidade permanece. Não assistimos à cristalização de conhecimento sobre os grupos, mas à procura da melhor versão e expressão para a realidade. 5 Paulo Rocha, “Um Tesoiro”, in Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2000, p44). Dentro do seu trabalho documental, várias variantes são testadas, desde o desenvolvimento das personagens e subjectividades, montagem de continuidade ou sequências de montagem, invocação de espaço fora da imagem. Trabalhando com estas diferentes qualidades cada realidade, António Campos propõe no seu cinema uma observação ilimitada. 3. CAMPOS E O CINEMA PORTUGUÊS António Campos, sendo marginal em relação ao cinema português, não deixa de ser influente na nossa cinematografia. O cineasta afirma, e parece ser rigorosamente verdade, não se identificar com aquilo que os outros escrevem ou filmam. Não fez parte, em qualquer fase da vida e carreira, de qualquer grupo ou movimento estético do cinema português. Refere que os seus anos Gulbenkian são para esquecer. Por outro lado, a dificuldade de acesso aos seus filmes adensa o desconhecimento. A história do cinema novo português já estava feita quando António Campos é revelado em exibições regulares. A primeira retrospectiva nacional surge apenas em 2000, pela Cinemateca Portuguesa, após a sua morte. Alguns contributos, como Alves Costa, cineclubista, Paulo Rocha, Fernando Lopes e Manoel de Oliveira, cineastas, festivais como La Rochelle, reconheceram António Campos como o responsável, nos anos 50, pelo único momento de algum brilho do cinema português. Em plena década de profunda crise de criação e produção, Um tesoiro, 1958, O Senhor, 1959, de António Campos e O pintor e a cidade, 1956, de Manoel Oliveira, são as jóias da coroa do nosso cinema que a elas deve o não desaparecimento total. O tesoiro, quando visionado em Carcassone, suscitou a um espectador francês o seguinte comentário que Campos guardou na memória e relatou em entrevista: "Aprendemos mais nestes vinte minutos que em dez anos a ver as mulheres da Nazaré e o Fado". Muito além do discurso oficial de certa forma condescendente, do epíteto intuitivo e marginal, o hibridismo ficção / documentário do cinema de António Campos, os aspectos formais, narrativos e plásticos, confirmam o seu cinema como um dos percursos mais originais e inspirados da arte cinematográfica em Portugal. O princípio orientador dos seus documentários não é, como para Vertov, devolver um quadro objectivo do real, sem intervenção autoral, mas reconstruir o real, tornando-o único. No fundo, a sua obra confirma a ideia de que nenhum dos autores dos nossos melhores documentários foi primordialmente um documentarista. Uma tendência presente desde Douro, faina fluvial, 1931, onde sob a capa de documentário se fazia uma ficção sobre a vida e os habitantes do Porto, e num caso mais recente, No quarto da Vanda, 2000, de Pedro Costa. Como refere José Manuel Costa, “por muito que se tenha empenhado no terreno do documentário, por muito que tenha gostado de fazê-lo e por muito que o tenha feito bem, Campos entregou-se ao género quando foi arrastado para ele, em alturas em que lhe recusam apoios às suas ficções. Prova disso é que nos anos 60 o seu grande investimento foi A invenção do amor, mesmo que gostemos imenso de A almadraba atuneira”6. 6 José Manuel Costa, “Filmes selvagens”, in Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2000, p50). Outro aspecto interessante e totalmente actual diz respeito à falta de sentido que Campos encontrava na exibição dos seus filmes no circuito comercial. E, por isso, ter privilegiado uma relação próxima com circuitos alternativos e mais artísticos de distribuição, como João Botelho (veja-se a projecção de Filme do Desassossego, 2010, em teatros, encontros, cine clubes), ou Pedro Costa (regularmente exibido em Museus, Centros e Bienais de Arte Contemporânea de todo o mundo, mas ausente do circuito comercial português). Embora sem os meios destes, António Campos cedo percebeu o desfasamento português entre a criação cinematográfica de autor e o sistema oficial de exibição.