“GOSTAVA DE POLÍTICA EM 1966, HOJE DANÇA NO FRENETIC DANCING?
DAYS” – NEY MATOGROSSO & CIA DIANTE DOS EMBATES NO ÂMBITO
ARTÍSTICO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 1970.
Robson Pereira da Silva
Aluno do PPGHIS/UFG – Mestrando
Integrante do Grupo de Pesquisa Arte.com
[email protected]
CAPES
A presente comunicação trata especificamente das condições e embates da produção no
âmbito da arte musical/performática entre as décadas que estiveram sob a atuação do governo
ditatorial militar no Brasil (1964-1985), porém, enfatizando uma tensão, ou mesmo, um
determinado esgotamento nas dimensões de engajamento artístico que, por conseguinte
oportunizou uma crise propulsora dos chamados “patrulhamentos” de artistas sob artistas,
esquerda “ortodoxa” (“ideológicas”) versus contracultura (“festiva”), na década de 1970.
Destarte, traçaremos um panorama histórico sobre a trajetória artística do cantor Ney
Matogrosso, em 1976/1977, a fim de compreendermos como o artista construiu
historicamente o sua arte performática, desse modo, observaremos traços característicos de
sua identidade artística em um diálogo com o contexto que suas obras se inserem; juntamente
apresentaremos entrecruzamento com outros artistas que se encontraram no epicentro dos
debates referentes a esses patrulhamentos, como Caetano Veloso, Novos Baianos, Gal Costa,
Doces Bárbaros, etc. Neste balanço sobre o respectivo período da história do país, a Ditadura
Militar, apresenta abordagens referentes à cultura, como o caso do esgotamento de uma
perspectiva artística, a Contracultura e a questão da Indústria Cultural. Contanto,
angariaremos um repertório sobre o contexto da década de 1970, podendo-se assim elucidar
as nuances de como se caracterizou a atuação artística e cultural no referente período,
investigado em jornais/imprensa, entrevistas em programas de TV, material fonográfico, etc.
Portanto, elegemos Ney Matogrosso como um dos expoentes desta atuação artística devido a
sua performance e “cenicidade” audiovisual que significou transgressões corpórea e visual,
em um momento que o país estava sob as “garras” de uma repressão veemente atuante e
supressora das diversas esferas da sociedade brasileira, sobretudo, a cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Ney Matogrosso, Tigresa, Performance, Contracultura, Caetano
Veloso.
A partir da canção Tigresa composta por Caetano Veloso, em 1977, disposta no
álbum Bicho (1977), trabalho no qual o artista passou a si dimensionar entorno de um debate
que se cauterizou no formato de binômio de cunho patrulheiro (patrulhas ideológicas versus
patrulhas odara),1 porém confusamente, uma crise dissonante nos setores que configuram arte
e cultura no país do contexto ditatorial militar, diante da possibilidade de um processo de
1
Expressão e termo cunhado pelo cineasta Cacá Diegues na época.
1
reabertura política gradual que se concretizaria entre 1979-1985. A referida canção figura
questões difusas no bojo social, como também, questões invocadas pelos próprios agentes no
campo da produção e crítica cultural, questões estas que, inquirem sobre a memória e a
história do processo de resistência no país, estabelecendo polos de uma mesma luta, porém
desgastados e, em crise devido à mudança de formas, foco, e, principalmente, pela alteração
de flanco: a reabertura que exige espaço sob a resistência, para prefigurar, garantir espaço em
uma dinâmica de luta e construção de um projeto de redemocratização.
Tigresa foi uma canção que, na perspectiva de Marcos Napolitano (2010), se
encontra no registro de canções proponentes da abertura, como uma proposta performativa
que constituinte de uma “rede de recados” (WISNK, 1980) na emissão de novos ensejos,
desejos, na articulação de impulsos corporificados em procedimentos de linguagem, expostos
em dimensões eróticas, corpóreas que delineiam uma nova, ou, interrompida partilha sensível
(RANCIÉRE, 2009) no que tange os diálogos entre a profusão de violência, hierarquia,
trauma, liberdade que se desenha no contexto de abertura política. Deste modo, Tigresa como
de uma forma geral o disco Bicho de Caetano Veloso, performaticamente são um índice
figurativo da crise da arte e cultura no contexto de reabertura, na articulação da trama que alia
mal-estar e expectativa projetada no processo que começara dar seus primeiros passos e, que
se dispõe gradualmente, no contexto sócio histórico, inferindo, sobretudo no próprio campo
das artes. Na tentativa de se colocar como agente do debate, Caetano Veloso buscou também
um domínio diante do mesmo, como expressou posteriormente:
"Ele [Bicho] levou muitas anedotas. Tinha "Odara", criticada por
gente de outras profissões, humoristas, sociólogos, psicanalistas que
queriam ser de esquerda, que queriam ser bonitos como gente de
esquerda. O Henfil até me agrediu. No show Transversal do Tempo, a
Elis Regina, o Aldir Blanc e o Maurício Tapajós faziam uma piada, de
gosto duvidoso, com a letra de "Gente". Depois ela escreveu me
dizendo que não queria me agredir, que a culpa era do diretor do
show. Até joguei fora a carta. "Odara" é uma confissão de namoro
com as discotecas. Eu me sentia bem em me aproximar do movimento
Black Rio que surgia na época, quando começaram os grandes bailes
funk. Tinha voltado de uma excursão à África com Gil, onde tive
contato com a juju music da Nigéria. É um disco histórico, porque traz
pela primeira vez a juju music para o Brasil em Two naira fifty kobo,
que era o preço que a gente mais ouvia na Nigéria e o apelido do
motorista que nos acompanhava. Fiz a música pensando no motorista.
Tem "Um Índio", com uma levada reggae. Tem "Leãozinho",
deslumbrante. Uma vez fui cantar numa assembléia não sei de quê da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Ia fazer um número para
animar as pessoas, igual ao dessas cantoras que cantam para soldados
na guerra, e recebi um bilhete que levaria um porrada se cantasse
2
"Leãozinho". Na hora ia cantar, mas fiquei com medo. Não sabia
direito que manifestação era aquela. Foi um amigo que me pediu pra
ir. Tem "Tigresa", que cita na letra a discoteca Dancin’Days, uma
boate do Nélson Motta que eu adorava. Aliás, eu encontrava muitos
desses críticos de esquerda dançando nas discotecas." (VELOSO,
1991, s.n.) 2
Esta canção compõe uma visão sobre a experiência social da resistência, cindida
entre uma esquerda da palavra como expressão fortuita, quase ortodoxa, e, a esquerda
compositiva de uma cultura de resistência corporal que transita entre o trauma e o deslumbre
de uma liberdade prefigurada no campo político (NAPOLITANO, 2010). Esta música como
outras firmam também, um entrelugar do campo ideológico no embate com o regime
autoritário, como também, a firmação de uma discussão entorno da cisão estabelecida pelos
agentes, grupos, veículos, instituições que necessitaram estabelecer maneiras, critérios na
execução de uma memória que configurem as representações da resistência no processo de
luta e construção do processo de reabertura/redemocratização no Brasil.
É nesse cenário que incidem os patrulhamentos, reavaliação da atuação das
esquerdas no Brasil, juntamente com novos problemas que compõem a relação entre arte e
cultura na transição das décadas de 1970 e 1980, como a expressão performática da indagação
exposta na obra de Ney Matogrosso – Quem serão os sujeitos sociais que figuraram o Brasil
da redemocratização? O referido autor também interprete vocaliza e corporifica sujeitos
liminares como bandidos, índios, malandros como possíveis sujeitos sociais diante das
expectativas desse novo contexto.
O embate do que se convencionou por patrulhas ideológicas e odaras, na orientação
analítica de Silviano Santiago, se constituiu por procedimentos de auto referência de artistas,
seja por meio de suas obras, imprensa, ou pelas chancelas acadêmicas expostas em obras
como Patrulhas Ideológicas (1980), de Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto
Messeder que atribuem em um livro o caráter de embate e crise no setor da resistência cultural
do país, chancelando as percepções dos agentes do processo diante da cesura resultante dos
mais diversos fatores imbricados no contexto em que essas questões se colocavam, assim,
desenha-se lutas de representação. Destarte, apresenta-se o confronto de ideias do que se
buscava por engajamento no setor artístico.
2
Extraído do blog que apresenta material de imprensa e análises da obra do artista:
http://caetanoendetalle.blogspot.com.br/2012/11/1977-bicho.html - Acessado em: 05/10/2014 as 00h:35mn.
3
Como exemplo da busca de um lugar à luz na história da MPB no processo de
redemocratização nos atemos para Caetano Veloso & CIA, considerando a ênfase entre
compositor e interprete no campo da performance, em Tigresa (canção gravada por expoentes
de um segmento que privilegia a erótica como função política, como Gal Costa, Maria
Bethânia e Ney Matogrosso, no prazo de um ano, entre 1976-1977), estabelece-se um
posicionamento de caráter representacional e avaliativo no campo da atuação política,
colocando o movimento do corpo naquele momento figurado na Discoteca carioca Dancin
Days como um monumento sensível de uma opção de engajamento político, colocando em
dúvida as proposições estéticas do primeiro paradigma da resistência que apostou na
palavra/conteúdo como dispositivo de resposta as questões do contexto autoritário, tendo que
reordenar a sua proposta estética devido a interdição e o recrudescimento outorgado na
instauração do AI-5. Mas, sobretudo, inquire sobre as amarras e impossibilidades de atuação
dos projetos contestatórios diretos por meios coercitivos do contexto, como a censura.
Expressa-se isso nos seguintes versos: Ela me conta sem certeza tudo que viveu/Que gostava
de política/Em mil novecentos e sessenta e seis/E hoje dança no Frenetic Dancin’ Days...
(VELOSO, 1976).
Discussões estas que permearam temas rotulares como cultura politicamente
engajada versus cultura comercial alienada, arte versus anti-arte, engajamento partidário
versus desbunde. Esses debates caracterizaram embates pelas lutas dos movimentos em se
destacar hegemonicamente na memória sobre a resistência pela cultura no período da ditadura
militar no Brasil. Em nota em sua dissertação Thais Leão Vieira apresenta algumas das
proporções sobre a crise da atuação e, lutas de linguagem e distinção entre arte engajada e arte
autônoma:
“A concepção de Estevam e as de Vianinha e Gullar geraram intenso debate
no início da década de 1960. Ao se apropriarem do que é “popular” a fim de
conscientizar o “povo”, muitos artistas inverteram uma lógica que
fundamentava o jogo político-cultural até aquele momento. Decorrente
diretamente do lema de Carlos Estevam Martins Fora da arte política não há
arte popular (MARTINS, 1979, p. 67–79.), essa questão redefiniu o papel do
artista como agente social. A tentativa de distinguir arte engajada de outras
práticas culturais constituiu (nos anos 60) um espaço de lutas de
representações visualizado pelo debate entre arte engajada e arte autônoma e,
mais especificamente, em relação às práticas culturais clivadas ora como
engajadas, ora como alienadas. Glauber Rocha e Cacá Diegues,
representantes do Cinema Novo, os concretistas de São Paulo Haroldo e
Augusto de Campos e Décio Pignatari, os artistas plásticos Lygia Clark e
Hélio Oiticica são representantes dessa discussão com os cepecistas relativa
ao binômio forma–conteúdo. A divergência foi profundamente debatida nos
4
idos da década 60; depois, no momento de abertura política, em 1979, veio à
tona com o nome de “patrulhas ideológicas” e “patrulhas odaras”. A questão
se pautou na defesa e justificativa da ênfase dada à forma. (VIEIRA, 2005,
p.49).
Assim, com o conjunto desses (auto) referenciais artísticos e intelectuais poderemos
observar como se projeta o que Roger Chartier chamou de “lutas de representações” – “Nas
lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo
social: conflitos que são tão importantes quanto às lutas econômicas; são tão decisivos quanto
menos imediatamente materiais (CHARTIER,1990, p. 17)”. E em diálogo com o historiador
Carlos Alberto Vesentini, perceber como um fato ou determinada memória possui uma
dualidade, que atende determinados interesses e assume um poder de imposição a outras
perspectivas do mesmo marco e que estabelece um contraponto no que se refere à
interpretação.
Destarte, Tigresa como outras formas de clarividência do embate de ideias e formas
de engajamento, ou mesmo, a minimização do que se entendeu até então como revolucionário
a partir da dramatização da experiência da resistência, profere a iniciativa de galgar lugares no
processo histórico que se configurou durante o período de 1964-1979 e, o que se entenderia
como processo de redemocratização. Configura-se então lutas setorizadas, abrindo-se um
panorama antropológico no campo da cultura, minimizando o projeto político de cunho
sociológico cravado por uma esquerda que se delineava a partir nos anos de 1950
interrompido em 1964 e, agonizado concretamente em 1968.
Os estudiosos da cultura em diversas áreas das ciências humanas evidenciaram a
década de 1960 como um período de efervescência cultural de uma juventude “transviada”,
com certa tendência ao engajamento político ligado à esquerda, dividindo-se assim a década
em dois momentos, o antes e o Pós-1964, período em que eclode a ditadura civil militar no
Brasil, nesses pressupostos estabelece-se o paradigma de juventude e política dentro da esfera
cultural, que viria “pesar” sobre as gerações futuras, em consequências na cultura como um
todo. Essa tendência de atuação da esquerda anteriormente ao golpe civil militar de 1964 se
baseou em construir uma parcela da elite e classe média brasileira com inclinações de
esquerda, de modo que expressou determinado avanço da esquerda na cultura de massa,
caracterizando uma proposta mais intencionada na luta anti-imperialista do que a luta de
5
classes. Período esse, caracterizado por Roberto Schwarz como momento de “penetração” das
massas pela esquerda nacional:
“Durante esses anos, enquanto lamentava abundantemente o seu
confinamento e a sua impotência, a intelectualidade de esquerda foi
estudando, ensinando, editando, filmando, falando, etc., e sem perceber
contribuíra para a criação, no interior da pequena burguesia de uma geração
maciçamente anticapitalista.” (SCHWARZ, 2009, p.09)3
Nesse contexto entra em cena o movimento estético tradicionalmente batizado como
Tropicália,4 proponente de uma abertura e ampliação da estética cultural, principalmente no
quesito musical, suas tendências de engajamento político são pautados essencialmente na
questão estética. Portanto, abre outra via além da matriz populista nacional da música, para a
cultura de massa e consumo. Em suma, trouxe à tona a renovação do produto musical,
afirmando a cultura no mercado de bens de consumo, assim garantiu a redefinição da MPB.
Com a repressão e o exílio de alguns de seus representantes, a Tropicália se extingue devido
às ações do AI-5, mas vem para o Brasil, alguns referenciais da contracultura, somando as
ações estéticas deixadas pelo Tropicalismo, que se tornou um modelo para outros segmentos
musicais; como Secos & Molhados, que veio surgir entre 1972 e 1973.
A Tropicália deve ser investigada a partir das relações com as práticas contraculturais,
na medida em que ela se apropria desta, principalmente o que tange a estética, mas também
como estabelecimento de um campo e luta representacional, por vezes, supervalorizado por
seu agente, como apontamos Caetano Veloso, na definição do que é pós-tropicalista como um
mecanismo de obliteração de outros produtos artísticos de cunho estético contracultural.
Assim, fazer uma análise historiográfica a partir da performance junto a produção musical no
Brasil e revistar as proposições do chamado movimento Tropicalista, compreende-se a
3
O autor destaca nesse ensaio as contradições e ações da esquerda na cultura e na política nacional no contesto
da formação e instauração da ditadura civil militar no Brasil. Assim, podemos evidenciar que cultura nesse
processo histórico detinha a característica de apresentar um aprofundamento reflexivo das questões que
circundavam o país naquele momento, tendo a esquerda se fixado em questões ligadas a classe operário, a dita
“invasão” imperialista no processo econômico/cultural do país, reforma agrária, etc. Nesse contexto uma das
expressões que angariaram essas perspectivas são as incentivadas pelos Centros Populares de Cultura- os CPCs,
que levavam a cultura as camadas tidas como sujeitos propícios para a suposta revolução, que arte poderia
alavancar. Alteando assim, de alguma maneira a dinâmica da cultura, que explica o autor: “No Rio de Janeiro o
C.P.C(Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em portas de fábrica, sindicatos, grêmios
estudantis e, na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-revolucionário
descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa,
movimento operário, nacionalização de empresas americana, etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente.”
(p.21)
4
Cf.:NAPOLITANO, Marcos. A República das Bananas: O Tropicalismo no Panorama da MPB. In: ___.
Seguindo a Canção, Engajamento Político e Indústria Cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Ed Annablume,
2010, p. 208.
6
abertura e ampliação da prática artística no campo da cultura, principalmente no quesito
musical, nos esclarecerá sobre o saber histórico e reavaliar o tema do engajamento político da
cultura nacional. Com isto, pode-se observar que houve espaço para transgressão e
experimentalismo que está expresso em obras de grupos como “Dzi Croquetes” (teatro
musical) e “Secos & Molhados”, no início da década de 1970.
O grupo musical “Secos & Molhados” foi uma das expressões destacadas da
contracultura no Brasil, juntamente o impacto midiático e estético obtido entre 1972 e 1974,
de amplitude singular na dimensão das atitudes de transgressão e liberdade expressos na
postura andrógina de seus integrantes no palco. Há explicitas permanências e ressignificações
dessas conjunturas apresentadas na performance de Ney Matogrosso, compondo-se nas
décadas de 1970 e 1980. A performance segundo Antonio Herculano Lopes, é a conexão entre
arte e vida, e que pode se afirmar, pela intensidade do “gesto artístico só se consubstancia pela
experiência de uma pessoa que adentra o espaço e o traz à vida. Torna-o portanto expressivo
com sua presença na obra, com sua vivência da obra”5. Ou seja, a expressão do contexto,
unido às práticas e vivências do indivíduo e suas relações, ou até mesmo ao coletivo.
No caráter de expressão e representação das ações humanas e sociais, sobretudo, a
performance com ênfase na estética, se expressa como um ponto de referência das
manifestações da cultura, como documento, não exclusivo ao acesso do historiador, mas como
registro de contextos históricos, vem se alavancando nas últimas décadas no Brasil, mas ainda
assim é escasso, sob a perspectiva das contradições da afirmação da cultura regional sob a
nacional. Mas também, como no caso de Ney Matogrosso, se faz como um referencial para
expressar a alteração na dinâmica da cultura do país pós -1964 e o marco abalador da cultura
nacional, o AI-5, que desemboca na sensação de “vazio cultural”6 na década de 1970, e de
“década perdida” na década de 1980, por parte da intelectualidade ligada à esquerda nacional,
5
Cf.: LOPES, Antonio Herculano. Performance e história (ou como a onça, de um salto, foi ao Rio do princípio
do século e ainda voltou para contar a história). Fundação Casa de Rui Barbosa.
6
Essa interpretação sobre a situação cultural do país no início da década de 1970 emergiu a partir de um balanço
realizado pela revista Visão, organizada pelo intelectual de esquerda Zuenir Ventura que, observou sintomas de
fatores que estariam conduzindo o país a um chamado “vazio cultural”, caracterizado pela quantidade em
detrimento da qualidade da produção cultural daquele momento. Esse balanço se apresenta como uma queda das
pretensões do paradigma de ação político cultural da esquerda engajada, devido a supressão da criação artística
devido as conjunturas do quadro ditatorial sob a cultura no Brasil. Além da crítica a massificação da produção
cultural e a inserção da ideias contraculturais dentro das esferas do fazer artístico. Zuenir Ventura observa a
cultura daquele momento como um campo de consumo fácil e interrompido em seu caráter revolucionário pelo
AI-5, colocando da seguinte maneira: “O AI-5 paralisou tudo: Cinema Novo, teatro, música [...] a reação da
[atual] geração sem compromisso com 64 era natural.” (GASPARI, Elio; VENTURA, Zuenir; HOLLANDA,
Heloisa Buarque de. 70/80. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000,
p.45) A partir dessa colocação do autor explicita-se o descontentamento com a juventude pós-1964,
caracterizando de certa maneira a legitimação do paradigma da cultura e juventude de 1960.
7
que constituiu uma reapresentação de si como portadora de um legítimo engajamento político
social, pró-revolucionário antes do golpe. Tal interpretação subjugou como ineficaz a atuação
das proposições contraculturais, principalmente no que tange a vertente de contestação do
Desbunde, na qual Ney Matogrosso pode ser tido como uma referência. Outra crítica que essa
interpretação nos colocou foi a do fato cultura estar integrada ao projeto de modernização
industrial do país como uma maneira de incorporação e tentativa de apagamento das suas
“tendências artesanais primárias” em prol de uma integração massificadora com as tendências
industriais desenvolvidas, principalmente a americana. Dessa forma, nos contrapomos a esta
interpretação que determina e reduz o artista e suas proposições no âmbito da indústria7, de
modo que essas manifestações artísticas sejam caracterizadas como “alienadas e passivas8”
imbuídos eminentemente da reprodutibilidade maciça, recusando-se assim, a reconhecer as
estratégias de resistência dentro desse próprio mecanismo. Havendo na recente produção
historiográfica de estudiosos que vão à contramão dessa interpretação de “vazio cultural”,9 e a
partir destas, essa pesquisa seguirá.
Os elementos estéticos de transgressão de Ney Matogrosso no âmbito da Indústria
Cultural podem ser observados pela busca da liberdade sexual, o pleno exercício da
Indústria essa que, segundo Marcos Napolitano, contribuiu para a concretização da música popular. “Mas as
mediações tecnológica e mercadológica colocam desafios novos. A música popular é fruto de um cruzamento da
música ligeira com as músicas tradicionais, das danças de salão com as danças folclóricas. Até aí nenhuma
novidade, não fosse o momento histórico que propiciou este encontro, marcado pela expansão da
industrialização da cultura e pelo surgimento das sociedades de massa.” (NAPOLITANO, Marcos. História e
Música Popular: Um Mapa de Leituras e Questões. Revista de História, São Paulo, USP, nº 157, 2º semestre de
2007, p. 155). Sendo esse um dos paradoxos de determinada interpretações.
8
O problema de conceber e reduzir essas tendências ligadas à indústria cultural como alienadora de uma forma
inquestionável está na generalização contida na versão tradicional do termo que Umberto Eco faz a crítica no que
tange seus criadores, Adorno e Horkheimer. A Crítica se faz pelo “erro dos apocalípticos-aristocráticos [que] é
pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa
ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento industrial.” (ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados 6ª
ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 49).
9
Os estudos bibliográficos dessas perspectivas estão referenciadas e discutidas nos trabalhos de Cleiton Paixão
intitulado: Política cultural e democracia no Brasil: o trabalho artístico na década de 70, apresenta-se também
na qualificação de doutoramento de Luciano Carneiro Alves no que tange ao estudo sobre a cultura jovem na
década de 1980 por meio do rock no Brasil pela figura de Renato Russo, no qual o historiador faz o balanço de
como se construiu a memória de vazio cultural na década de 1970 e de como se constitui a ideia de década
perdida no decênio de 1980. Outra referência é a dissertação de Flavia Copio sobre história, gênero e poder no
cinema de Ana Carolina, na análise de três obras da cineasta, sendo importante para essa pesquisa a discussão de
vazio cultural e como contraponto as perspectiva de identidades plurais e redimensão do fazer artístico o que
tange a política na década de 1970. Assim enfatizamos os estudos do Prof. Ms. Luciano Carneio Alves o sentido
de evidenciar e observar a construção da juventude e o rock nos anos de 1980 elabora um diálogo com a
concepção de vazio cultural de Zuenir Ventura sobre a década de 1970, a fim de observar como essa memória
traz contra si e a próxima década, a qual se insere seu objeto de estudo, como uma carga de geração vazia,
alienada e perdida, sendo “o argumento básico é que em um ambiente sem liberdade política e produção cultural
de qualidade escassa, as novas gerações só poderiam produzir algo inferior ou de pouca relevância”. O
historiador coloca a atuação da juventude na cultura, como lutas de representações sociais das gerações da
década de 1970 e 1980, comparativas com o paradigma da juventude da década de 1960 que se constituiu acerca
da atuação na política por meio do engajamento político partidário, tendo como jovem ideal, aquele que se
enquadra no perfil de uma “juventude transviada”, baseada em diversos enfrentamentos políticos e intelectuais.
7
8
sexualidade, a criação de personagens ligados às camadas tidas como marginalizadas junto ao
projeto de sociedade que estava se delineando, como o caso da figura imagética do índio em
Mato Grosso.
Nesse sentido, a relevância dessa partilha estética se expressa pelo contexto em que o
fazer artístico e obra de Ney Matogrosso está inserido, que é o trágico cerceamento das
práticas políticas e culturais da repressora ditadura civil militar instaurada no Brasil em 1964
a 1985. Portanto o que se apresenta é um processo de resistência pertinente, tanto quanto a
luta da esquerda partidária engajada. Podendo assim vislumbrar um processo de luta pela
liderança e hegemonia na contestação e oposição contra a ditadura cerceadora do direito de
exercício a democracia, sendo essa uma luta no campo político por meio das manifestações
artísticas, assim tendemos mesmo no campo não tradicionalmente delineado pelos estudiosos
do regime militar, compreender o debate entre arte e política nos anos ditatoriais.
Concomitante a essa experiência histórica (ditadura militar), apresenta-se o contexto das
lutas pontuais de cunho contracultural de “maiorias silenciadas10”, iniciado nos EUA e
expandido para outras localidades do Ocidente, no qual a obra de Ney Matogrosso emite ecos,
como o movimento hippie, feministas, movimento de afirmação homoerótica já em atividade
no Brasil a partir do contexto da reabertura política (Grupos Somos/ Jornal Lampião da
Esquina11), entre outros movimentos de expressividade de lutas sociais, que Ney Matogrosso
10
Esses movimentos galgaram a luta por espaços de afirmação e luta contra a invisibilidade de sujeitos e de uma
cultura que até os anos finais da década de 1960 estavam relegados à clandestinidade, ocupando a fronteira do
mundo social, ou seja, lutavam pela visibilidade de seu modo de vida/ cultura, a gay, termo esse cunhado na
década de 1970, pois anteriormente estavam determinados pelas denominações de cunho religioso/moral,
científico/médico e jurídico. Uma das pautas destes movimentos de afirmação é balizada no combate contra a
patologia de sua cultura e a preferência sexual dissonante da cultura heteronormativas, tendência essa que se
reafirmaria a partir da dimensão epidêmica da AIDS que pesou sobre esses grupos na década de 1980, fazendo
com que esses movimentos de afirmação reestruturassem a pauta de lutas, pois a AIDS era outra demanda
devassadora que assegurou ainda mais o preconceito e as generalizações inundáveis sobre a cultura
homossexual, afirmando ataques de setores conservadores determinadores da ordem. “Os eventos ocorridos entre
os anos de 1960 e o início dos anos de 1970 conseguiram, então, inverter a imagem da homossexualidade como
algo negativo, algo negativo, ainda que restrito a seus militantes e simpatizantes. De qualquer forma, a questão
homossexual adquiriu visibilidade e demonstrou ter força política de organização e reinvindicação”. Cf.:
TROVÃO, Flávio Vilas-Bôas. O Exército Inútil de Robert Altman: cinema e política (1983). São Paulo:
Anadarco, 2012, p.120. Ver também: SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil
contemporâneo: representações, ambiguidades e paradoxos. Tese (Doutorado em História Social), Programa de
Pós-Graduação em História, Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011,
SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Nos tempos de Melinha Marchiotti: A situação do homossexual na
passagem do século XX para o XXI. Cadernos Espaço Feminino. v. 26, número 02. Uberlândia: UFU, 2013,
p.106.
11
Com o desejo de implodir com os espaços de enquadramentos dispostos pela sociedade brasileira esses grupos
a luz das tendências de afirmação gay advindas, sobretudo a partir das experiências contraculturais americanas e
o próprio contexto político que o Brasil estava vivendo (reabertura), no Brasil os grupos de afirmação
homoerótica, como movimento de luta social. Destacamos a atuação do jornal Lampião da Esquina que fora
porta-voz ativo dessas lutas. “Para tal empreitada, de seus onze idealizadores, nove cotizaram para montar uma
editora - Da Esquina- e enviaram cartas a “12 mil amigos e amigos homossexuais de todo o Brasil” para
9
não assume como luta expressamente engajada (militância), mas se apropria e as expressa
pela linguagem da performance.
Outro dado a ser relevado com as devidas elucidações, é o diálogo da prática
contracultural de Ney Matogrosso com a sua unicidade nos elementos estéticos em sua obra e
a ligação estabelecida por meio da performance em uma tríade autor/obra/público em um
trânsito dialógico com essas tendências da contracultura mundial, devido as temáticas
aparecidas nas proposições do artista, como: a questão do desejo, ecologia, pacifismo, etc.
A partir do processo de abertura política que se estabeleceu em 1979, ano da
revogação do AI-5, e apreciação da “extinção da censura” e concessão da anistia, possibilitouse novamente estabelecer a criticidade sobre a vida social do país. Pode-se considerar com a
retomada das contestações interrompidas no período de 1969 a 1974 ditas tradicionais, mas
com novas direções, com temáticas antes consideradas sem nenhum compromisso sério.
Nesse sentido, Caetano Veloso em entrevista realizada em 26 de outubro de 1979, concedida
a Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder, na qual é questionado sobre as
reflexões da esquerda marxista e se a contracultura tem alguma função política. Caetano
responde:
Eu não conheço a obra de Marx, mas duvido que seja tão pobre como se
representa no teatro, por aí eu duvido. Por exemplos, o orgasmo feminino é
uma coisa na qual penso ás vezes dez horas por dia. Não está em Marx, ele
não tem nada sobre isso, nunca escreveu sobre isso, mais é uma coisa que
me interessa. Por que isso é “não sério”? (HOLLANDA, 2000, p. 153).
Nessa mesma entrevista Caetano coloca que, o que incomodava de seu trabalho a
censura, nem era tanto suas atitudes comportamentais, mas sim, a tentativa de “cotidianizar a
política ou politizar o cotidiano (HOLLANDA, 2000, p.152)”.
arrecadar os fundos necessários e que foram responsáveis pela publicação de seus dois primeiros números. O
jornal, para além de seus editores contava com a presença de “grupos minoritários”, como negros, mulheres e
índios, em suas páginas, comumente por meio de entrevistasas (Marta Suplicy, Lecy Brandão, Norma Bengel,
Zezé Motta...). O jornal francamente homossexual e tendo junto a esse público seu principal filão – abria espaço
para outras “minorias”. (p.138). Assim, instados por esse novo fôlego , do núcleo do Lampião surgiu, em São
Paulo, o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual. Esse pioneiro grupo de lutas pelos direitos e expressão
dos homossexuais atuou inicialmente sob o título de Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, por
quase um ano. Somente após esses período e calorosas discussões, o novo nome foi escolhido, não apenas para
homenagear a publicação argentina voltada para os homossexuais que encerrara as suas atividades dois anos
antes, mas por seu caráter positivo: Somos. O grupo estava determinado a proceder com uma crítica profunda a
sociedade patriarcal heteronormativa na qual estava inserido. Seus integrantes participavam de debates,
encontros, seminários, congressos, além de utilizar o Lampião como espaço para divulgar acontecimentos e
ideias do grupo. (p.146-147). Cf: : SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil
contemporâneo: representações, ambiguidades e paradoxos. Tese (Doutorado em História Social), Programa de
Pós-Graduação em História, Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011,
p.138/146-147.
10
A censura na década de 197012 tem duas faces de atuação, a de conteúdos opositores
tidos como ameaça a política ditatorial, que geralmente se estendeu a imprensa, e aparecem
nesse mesmo período à renovação da censura dos ditos “bons costumes e moral da sociedade
Ocidental”, que reativou o antigo e legal ato da censura as diversões públicas que estava,
segundo Carlos Fico, extinto desde 1946. E com o processo de abertura, se limitou no que se
chamou de Intolerado/Interditado, que se abalam principalmente pelas influências da
contracultura que fez com se reativasse esse mecanismo de controle:
Já a censura de diversões públicas conheceu seu ápice no fim dos anos 70, na
abertura. Destacam-se nesse sentido, os conflitos entre setores conservadores
da sociedade de então e as mudanças em termos de comportamento
vivenciadas no período – o movimento hippie e a liberação das práticas
sexuais por exemplo. Assumindo orgulhosamente seu papel na sociedade
brasileira, a Divisão de Censura de Diversões Públicas “supunha expressar a
vontade da maioria da população, para que os atentados a moral e aos bons
costumes evitados.” (FICO, apud; ESTEVES, 2007, p. 87).
Esse momento da história nacional, no final década de 197013 (o processo de abertura),
14
é o momento que tendeu conquistar espaços, sobretudo o midiático, para disseminar as lutas
Sobre Cf. Tânia Pelegrini: “No que diz respeito sobretudo aos anos 70, o desenvolvimento do mercado de bens
culturais coincide com a elevação do padrão de vida das camadas médias (propiciada pelo clima do "milagre
brasileiro"). Além disso, esse desenvolvimento carregou-se com toda uma implicação ideológica que se
expressava na censura: esta, mal ou bem, representava o tipo de orientação que o Estado pretendia conferir à
cultura e acabou funcionando como uma espécie de emblema da época, por meio do qual seria possível
interpretar toda a produção cultural, como se interpreta um código cifrado, acessível apenas aos iniciados.
Entretanto, a censura não agiu de modo uniforme, o que significa que seus efeitos também não o foram; foi
seletiva: impedia um tipo de orientação, mas incentivava outro. Assim, textos específicos (de teatro, música,
literatura, cinema) foram censurados, mas não a produção geral desses bens, que cresceu e se solidificou,
amparada inclusive pelo interesse de um público ampliado nesse período. Além do mais, houve fases diferentes
na sua vigência: o golpe de 64 tentara constranger a criação artística, sem consegui-lo num primeiro momento,
porque ela vicejava forte entre uma intelectualidade preocupada com seus aspectos sociais, voltada para um
ideário de esquerda. Os mecanismos de estrangulamento cultural, então, constituíam ainda uma espécie de
movimento que procurava criar bases sólidas para o poder recém-instaurado. Pode-se afirmar que ainda havia
relativa flexibilidade e muitas contradições. O verdadeiro golpe para a cultura, sabe-se, veio definitivo com o AI5.” PELLEGRINE, Tânia. Aspectos da produção cultural brasileira contemporânea. Crítica Marxista. Campinas:
Unicamp, 1995, p.72-73.
13
“O horizonte político-cultural do final dos anos 70 introduzira inúmeras questões novas, geradas já nas novas
condições de produção, isto é, a consolidação do mercado de bens culturais, além do papel do Estado como
mecenas implícito ou explícito. Tais questões diziam respeito, sobretudo às posições divergentes no tocante às
relações entre os intelectuais e o poder, expressas nas discussões a respeito da "cooptação", termo então bastante
usado. No banco dos réus, aqueles intelectuais e produtores de cultura que acabavam optando por formulações
culturais "neutras", socialmente assépticas, buscando o "intimismo à sombra do poder", ou seja, não discutindo
mais os fundamentos desse poder à cuja sombra estavam livres para cultivar a própria "intimidade"(8).
Choveram bolsas, empregos, financiamentos e facilidades para publicações, de acordo como o beneplácito do
poder estatal aos que não se mostrassem "indesejáveis". Para estes, desemprego e censura, representada pela
impossibilidade de circulação de seu trabalho artístico ou teórico. Correndo paralela a essa discussão, surgem
algumas formas alternativas de produção cultural, como, por exemplo, a poesia dita marginal e os grupos
experimentais de teatro ou cinema, todos ainda procurando criar um circuito de produção que passasse ao largo
do já sólido mercado cultural e dos centros de poder.” (PELLEGRINE, Tânia. Aspectos da produção cultural
brasileira contemporânea. Crítica Marxista. Campinas: Unicamp, 1995, p.73).
12
11
pontuais. Entendemos, na perspectiva de Flávia Cópos, que essas lutas centralizadas se
fizeram necessárias para que se redimensionasse a atuação política dos agentes sociais do país
no processo de abertura política, o qual passou a revisitar os debates que ficaram presos nos
primeiros anos dessa década dentro das “gavetas vazias”, que afinal não estavam vazias, e
sim, suprimidas pelas medidas do contexto político da repressão. Repressão essa que, não
vetou a atuação artística, e sim determinou seleções de produtos culturais, e os adequou aos
seus moldes, assim como as políticas mercadológicas e econômicas do projeto modernizador
que estavam sendo traçados para o país. Abandonando também a pretensão de um projeto
cultural genuinamente nacional, como se pretendera na década anterior. Na década de 1970
não se negou a cultura estrangeira, mas tentou se inserir nela.
A partir desse balanço podemos notar que a noção de vazio cultural se construiu a
partir de uma intelectualidade da esquerda que não concebia uma via de contestação cultural
além do engajamento político e estético que reduziu a validade de outras formas de
transgressão e resistência. Descaracterizando a qualidade das produções ligadas a Indústria
Cultural, ou seja, outras concepções de arte ligadas a novas experimentações, significadas
como uma proposta transgressora de conceber as ações artísticas por meio da renovação que
se refere à forma e não somente ao conteúdo.
Destarte, não podemos considerar esse vazio de forma cristalizada, pois houve artistas
que continuaram a produzir arte no país, mesmo com a supressão e alguns engessamentos sob
a égide e intervenção da Indústria cultural, com formas de expressão que pudesse pela estética
15
pudesse ainda sim fazer com política se movimentasse de uma maneira mesmo que indireta
nas percepções dos agentes da sociedade brasileira daquele momento.
Exemplo de artistas como, o conjunto musical Secos & Molhados, Rita Lee & Tutti
Frutti, Gal Costa, Novos Baianos, Jards Macalé, Doces Bárbaros, Tom Zé, Gonzaguinha,
14
Caracterizando-se assim um momento de efervescência mesmo suprimida, em que: [...] configuram lutas
políticas que pressionavam contra os limites da legalidade. Havia ainda uma produção política e teórica em
ebulição no meio universitário e nos movimentos organizados. Some a isso uma influência de ideias práticas e
políticas inovadoras provenientes do cenário político internacional, além do surgimento dos chamados
“movimentos de diferença”. Um conjunto importante de atores que emerge, assim, na cena política, entre os
quais, mulheres, negros minorias sexuais, e movimentos sociais urbanos não partidários dos quais se originaram
os partidos como PT ou as Centrais Sindicais como a CUT, nos primeiros anos da década de 1980. Cf.: FICO,
apud; ESTEVES, Op. Cit., p.86.
15
O autor Herom Vargas propõe e apresenta, no artigo Categorias de análise do experimentalismo póstropicalista na MPB, as dimensões das categorias de análise da produção musical do país na década de 1970,
período pós-tropicalista. Demonstra que após a produção tropicalista se intensificou a renovação das linguagens
artístico-musicais, principalmente em seu caráter experimental. Momento em que a música acompanha as
tendências da indústria cultural, dentro do cenário da repressão e censura da ditadura militar. O autor cita
diversos artistas provenientes dessa proposta experimental como: Secos & Molhados e Novos Baianos.
VARGAS, Herom. Categorias de análise do experimentalismo pós-tropicalista na MPB. Revista Fronteiras estudos midiáticos; Vol. 14 Nº 1. janeiro/abril 2012. São Leopoldo: UNISINOS, 2012.
12
entre outros. Percebe-se também que embora importante tanto quanto a atuação da esquerda
de matriz formativa na década de 1950, o Desbunde16 e a Tropicália que são as expressões de
influência da contracultural no país, tiveram suas limitações, devido ao seu caráter de
transformação individual que muitas vezes era compreendido como alienação e “não
significavam perigo pelo que eram e sim, por aquilo que representavam” (NAPOLITANO,
2004, p.103-126). Agentes esses que, por vezes foram obliterados diante das disputas
memória entre o projeto cultural de alguns agentes da esquerda versus a matriz interpretativa
dos próprios agentes da Tropicália que, entretanto, abriu espaço para outras manifestações de
influências da Contracultura, mas legitimando as suas próprias ações, criando–se assim uma
hierarquia da consagração que dimensiona outros artistas a um segundo plano.
Contudo, o importante se faz em perceber o corpo e a atitude como um dispositivo
transgressor, político e estético que por meio da performance nesse período corresponde aos
preceitos de seu próprio conceito, que Jocken Gerz, expõe - a “performance é aquilo que não
foi nomeado, que carece de uma tradição, mesmo recente, que ainda não tem lugar nas
instituições. Uma espécie de matriz de todas as artes.” 17
A arte do Desbunde, na qual Ney Matogrosso e outros artistas estiveram envolvidos
representou transgressão e massificação da cultura nacional, sendo responsáveis
ressignificações de corpo, ou a corporificação entre cena e músicas no cenário artístico da
época fizeram da erótica uma função política. Destarte, essa reformulação estética iniciada no
final da década de 1960 simbolizou a busca de outros valores e formas de transgredir os
padrões ditos formais da sociedade cultural da década de 1970.
16
Nesse contexto de novos questionamentos, no início da década de 1970, surge a vanguarda do Desbunde, que
tratam da ruptura do sistema, que Marcos Alexandre Capellari afirma ser pela via do comportamento, a quebra
dos padrões ocidentais. Dois grupos são expressivos no Brasil, por essa vanguarda: Dzi Croquettes s e Secos &
Molhados. No panorama de Lucy Dias, em seu livro Anos 70: enquanto corria barca, afirma que o desbunde era
ligado a subjetividade: “Nesse andar da carruagem chegamos até 68,69 e, nos 70, tão instantaneamente como se
alguém girasse um botão no dial do tempo, a subjetividade entrou na moda. A partir daí só havia duas
possibilidades para os inconformados de então: fazer guerrilha urbana como uma resposta desesperada; ou
desbundar como uma saída para não pirar”. Cf.: DIAS, Lucy. Enquanto Corria a Barca. 2ª ed. São Paulo:
SENAC-SP, 2004. Por meio da quebra de tabus como a sexualidade, a virgindade, os representantes do desbunde
tratavam em sua arte das mais variadas formas, e uma delas é ambigüidade sexual e androgenia. Questões estas
que Capellari, argumenta: “As lésbicas eram vistas como símbolo, da mais extrema rebeldia, contra uma
opressiva socialização patriarcal, as mulheres que se recusavam a submeter-se ao macho; seu estilo de vida e sua
escolha amorosa na vanguarda da revolução sexual [...]. Mas não só para elas: o homossexualismo masculino,
até então escondido “no armário do sótão, passou a freqüentar as salas de jantar e, a ele associado à estética da
androgenia que, na segunda metade dos anos setenta deu origem a moda unissex: Assim a moda unissex firmouse como roupa da bissexualidade, quando a androginia lutou contra a oposição radical do sexo, propondo que
cada um assumisse sua porção contrária. In: CAPELLARI, Marcos Alexandre. O discurso da contracultura no
Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel. (Dissertação). São Paulo: USP/FFLCH, 2007, p.43.
17
Cf.:GERZ, apud GLUSBERG. Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 01.
13
A forma de transgressão de Ney Matogrosso se faz na busca de integração música,
dança, figurino e linguagem, que se projeta na apropriação da relação de seu fazer artístico
com as tendências da indústria cultural. Essa indústria que transforma o produto performático
em transgressor, ou até mesmo subversivo. O produto é o conjunto da obra embutido de uma
mensagem e reflexão transgressora, que oferece no espetáculo, o qual atinge as massas pelo
sensorial, tendo como concepção de recepção do público pela adesão ou espanto, pelas mais
diversas formas de se refletir politicamente a conexão que arte tem com a vida. O problema de
conceber essas tendências ligadas à indústria cultural está na generalização contida na versão
tradicional do termo que Umberto Eco crítica no que tange seus criadores. A crítica se faz
pelo “erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de massa seja
radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar uma
cultura subtraída ao condicionamento industrial” (ECO, 2001, p. 49).
Assim, podemos notar que a indústria cultural, pode ser uma via para o artista inserir
seu trabalho na circulação cultural, mas não necessariamente e automaticamente. Quando ele
se insere nesse universo, sua obra não necessariamente tende perder a criticidade estético
político:
Se não podemos menosprezar o poder dos grandes conglomerados de
comunicação e entretenimento na delimitação do gosto contemporâneo,
igualmente não podemos negar que as indústrias culturais proporcionaram
às artes plásticas, à literatura e à música uma repercussão mais extensa que
a alcançada pelas mais bem sucedidas campanhas de divulgação popular
originada pela boa vontade dos artistas. (CANCLINI,2003, p. 88.)
Ney Matogrosso atuou em um o contexto de afirmação e visibilidade de movimentos
de causas e sujeitos sociais, como o movimento homossexual, que a partir da segunda metade
da década de 1970, tiveram destaque no Brasil na luta para que pudessem trazer suas
demandas possíveis, buscando se retirar da zona de fronteira derivada das injunções advindas
da norma. Esse momento foi precípuo para que artistas pudessem trazer a tona no palco as
questões e sujeitos interditos, ou seja, oportunizou a transgressão performática, ao contrário
dos discursos moral/religioso/cientifico:
Novos discursos e práticas, porém, é algo deveras recente, uma vez que,
somente a partir dos anos de 1970/80, gradativamente, os movimentos
sociais foram se diversificando, à medida que o “borbulhar” da década
anterior se mantinha por meio dos movimentos feministas, étnicos, ecológico
e de liberação homossexual. [...] A produção discursiva sobre o
homoerotismo centra-se fundamentalmente, em seu significado moral.
Enquanto alguns assinalam o caráter desviante; a anormalidade ou a
14
inferioridade homossexual, outros proclamam sua normalidade, mas um
grande número de intelectuais e/ou homossexuais parece estar de acordo de
que se trata de “tipos” humanos ou demandas específicas e formas várias de
experiência/representação do desejo. (NETTO, 2011, p.14-15).
Nesse caldo de efervescência social, Bandido, Pecado são obras de Ney Matogrosso
que conferem a evidenciação do desejo/inversão o caráter de transgressão assumido pelo
erotismo, sobretudo o homoerótico, no processo de reabertura política brasileira, como arma
de combate às interdições impostas pelos meios e agentes estabelecedores da ordem
(normativas). Sobretudo pela nudez que é utilizada por Ney para garantir a transgressão:
A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto
é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que
revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se
sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses
canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade
significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes
à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. Há, ao
contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se derramam no renovar
da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem uma
na outra. Esse desapossamento é tão completo que no estado de nudez, que o
anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres humanos se
esconde, mais ainda se a ação erótica, que acaba de desapossá-los,
acompanha a nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um
sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência
sem gravidade da imolação. Na Antiguidade, a destituição (ou a destruição)
que funda o erotismo era bastante sensível para justificar uma aproximação
do ato de amor e do sacrifício. (BATTAILLE, 1988, p.14)
Corporifica-se assim, o erotismo uma das formas que Ney Matogrosso em suas obras
encontrou para atuar contra o sistema de interdição, seja ele em qualquer âmbito e aspecto. O
artista no palco tendeu a representar esses sujeitos (índios, gays, caipira, negros, etc.)
marginalizados pela ordem, mas com dispositivos essencialmente ativos voltados para
desordem como meio de luta por seus interesses.
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