Impactos da participação dos movimentos sociais do campo em cursos superiores formais no Brasil José Jonas Duarte da Costa1 Introdução Os anos 90 do século XX pareciam indicar um fechamento de século inglório às utopias que o permearam no seu transcurso. Anunciava-se a vitória e a eternização da economia de mercado e o capitalismo liberal como a forma mais avançada de organização social em que a humanidade alcançara. A queda do muro de Berlim e o desmanche melancólico da experiência socialista na União Soviética e no Leste Europeu produziram um sentimento generalizado que o liberalismo econômico e político haviam vencido definitivamente a luta contra o socialismo. Essa visão triunfalista do sistema capitalista foi logo questionada com as severas contradições internas do próprio sistema e pelo surgimento, cada vez mais forte, de contestação a ordem capitalista neoliberal dominante. Dentre esse movimento se destacam a assunção ao poder de governos de características democrático-populares na América Latina, frontalmente contra a lógica neoliberal. Por outro lado, as mobilizações sociais, de caráter universal, ampla, de contestação à lógica e à ordem capitalista e suas seqüelas espalhadas pelo mundo somaram-se em grandes forças de persistirem em busca de alternativas ao sistema, anunciando que “outro mundo é possível” No desenrolar desse processo, assiste-se no Brasil, desde final dos anos 90, uma crescente mobilização popular-educacional, de viés claramente anticapitalista e sob os preceitos objetivos de uma visão socialista, procurando negar o consenso hegemônico formado no início dos anos 90, quando da derrota da experiência socialista soviética e do Leste europeu. Os movimentos sociais do campo, no Brasil, organizaram, ainda nos anos 90, no desabrochar do novo século, intensa mobilização na área de educação. Novos paradigmas foram lançados, a partir de novos fazeres pedagógicos, transformando os sujeitos históricos da luta por reforma agrária neste país, também em sujeitos de um novo processo de educação. Este, pensado a partir de uma perspectiva emancipatória e transformadora. 1 Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB – Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Economia pela UFPB (1996). Doutor em História Econômica pela USP – Universidade de São Paulo (2003). Coordenador do Projeto de Formação de Educadores do Campo na UFPB (CNPq/UFPB). Líder do GEPALC – Grupo de Estudos e Pesquisas da América Latina (PPGH/UFPB/CNPq). Esse artigo procura identificar o sentido desse movimento por uma nova educação levado adiante pelos movimentos sociais do campo, em especial o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Analisamos suas bases teóricas, sua prática pedagógica e os impactos no universo acadêmico brasileiro hoje, a partir da análise de uma experiência concreta: o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo, o História PEC/MSC, na Universidade Federal da Paraíba. Observaremos a construção teórica do projeto de Educação do Campo, terminologia utilizada para designar essa concepção de educação e, ao mesmo tempo, de prática política; e os “conflitos” gerados na confrontação com a educação “tradicional” praticada nas universidades brasileiras. Esses dois universos do saber se relacionam com fontes primárias diferenciadas na produção do conhecimento. A tradição universitária firma-se na pesquisa científica e na ciência como pilares de sua produção de conhecimento, enquanto a Educação nos movimentos sociais jorra dos saberes populares, da vivência e da prática laboral do cotidiano. No caso do MST, sob uma perspectiva transformadora, emancipatória, revolucionária. Com o desmanche da experiência soviética e a aparente vitória da chamada economia de mercado e os ideais liberais na sociedade brasileira dos anos 90 do século XX a Universidade passou a condição de produtora de mão-de-obra qualificada para fazer girar o moinho do sistema vitorioso. Cursos, turmas e teorias passaram a ser criadas em função de atender o mercado e sua expansão indefinida. O pensamento hegemônico no meio universitário respaldara então, a vitória do capitalismo liberal. Quebrara-se o que se firmara como rica tradição da universidade brasileira. Espaço da criticidade e criatividade, mesmo sob a hegemonia histórica de uma instituição elitista e integrada aos descaminhos sociais do país. Acentuara-se a parte voltada ao elitismo social brasileiro, historicamente avessa a um papel social ativo, instrumento de transformação da realidade de desigualdades e injustiças sociais. Este é o ambiente que o PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária e os movimentos sociais do campo vão encontrar em seus pleitos por ingresso nas instituições de ensino superior do país. O conhecimento como mercadoria, a Universidade como fornecedora dessa mercadoria. Nada mais. Para o MST esse não seria o sentido da Educação. O MST não aceitara a ideia do fim da história e tentaria alterá-la. Pelo menos no embate das idéias, no universo educacional. Educar para Libertar O jargão acima é por demais conhecido. Até gasto. No entanto é o móvel e o sentido que busca em suas propostas pedagógicas o MST. É o princípio que norteia a Educação do Campo. A crítica pertinente e contundente a estrutura socioeconômica brasileira, especialmente à realidade do campo e à educação praticada, anos a fio, junto aos povos do campo está na origem desse movimento, conforme observa Roseli Caldart: Esta crítica nunca foi à educação em si mesma porque seu objeto é a realidade dos trabalhadores do campo, o que necessariamente a remete ao trabalho e ao embate entre projetos de campo que têm conseqüências sobre a realidade educacional e o projeto de país. Ou seja, precisamos considerar na análise que há uma perspectiva de totalidade na constituição originária da Educação do campo (Caldart, 2009: 40). Contrariando as elaborações teóricas correntes ...tratou-se primeiro de uma crítica prática: lutas sociais pelo direito à educação, configuradas desde a realidade da luta pela terra, pelo trabalho, pela igualdade social, por condições de uma vida digna de seres humanos no lugar em que ela aconteça (idem). A Educação do Campo emerge como uma construção na luta contestadora. Definindo-se seus parâmetros, suas diretrizes político-ideológicas. No contexto da luta por Reforma Agrária, e mais claramente por uma transformação da ocupação das terras no Brasil. Para isso uma Educação que indicasse um olhar dos “de baixo”, utilizando-se do conceito de Eduard Palmer Thompson. Um conceito de Educação que necessariamente subverte a ordem educacional em vigor, onde o “campo” apenas recebia a educação produzida nos ares urbanos e os “de baixo” apenas reproduziam os ensinamentos elaborados e reelaborados pelos dominantes. A lógica é outra. É fundamental considerar para compreensão da constituição histórica da Educação do campo o seu vínculo de origem com as lutas por educação nas áreas de reforma agrária e como, especialmente neste vínculo, a Educação do campo não nasceu como uma crítica apenas de denúncia: já surgiu como contraponto de práticas, construção de alternativas, de políticas, ou seja, como crítica projetiva de transformações. Uma crítica prática que se fez teórica ou se constituiu também como confronto de ideias, de concepções, quando pelo ‘batismo’ (nome) assumiu o contraponto: Educação do Campo não é Educação rural, com todas as implicações e desdobramentos disso em relação a paradigmas que não dizem respeito e nem se definem somente no âmbito da educação (ibidem). Na luta por Reforma Agrária se pautou como um dos pontos fundamentais, a educação. Compreendendo a Educação como instrumento fundamental de conquista da cidadania. Os assentamentos rurais espalhados Brasil afora careciam de assistência técnica, de moradias, de infraestrutura e de escolas. Mais do que uma simples escola, comuns na má qualidade da educação pública brasileira, os movimentos sociais descobriram que necessitavam de uma escola que respondesse as necessidades camponesas, que incluísse a realidade camponesa e dos assentamentos na realidade do ensino. Do universo rural no universo dos livros. Sem preconceitos ou discriminação. Sem a visão de uma educação no campo como extensão da educação urbana. Os movimentos sociais do campo buscaram uma educação do campo que contextualizasse o seu universo. Capaz de emancipar o campo e os camponeses. O PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária surgiu na perspectiva de institucionalizar esse processo de construção educativa. Procura atender às mobilizações populares dos movimentos sociais do campo por uma reforma agrária condizente com as necessidades dos camponeses, trabalhadores rurais e no geral, do campo brasileiro. Com o PRONERA se estruturou uma condição própria de produzir-se educação voltada às contradições socioeconômicas e culturais da realidade rural brasileira. É essa a essência da Educação do Campo. Uma educação contextualizada na realidade camponesa, valorizando a cultura e os saberes do campo, vinculando-se aos trabalhadores e trabalhadoras “pobres do campo”. Mais do que aos trabalhadores “pobres do campo” diríamos que, aos trabalhadores do campo que reagiram e reagem às condições de vida ao que o sistema o submeteu. Portanto, uma Educação do Campo como expressão da luta de uma população que busca se organizar e se estruturar para enfrentar os desafios da luta de classes desencadeada na relação com a terra no Brasil. A Educação do Campo indica outra visão de uso da terra, da água e do meio ambiente. E, sobretudo, outra relação de produção, que envolve novas relações: objetivas e subjetivas; sob novos mecanismos, métodos e formas de se fazer a produção material e a cultural. Uma produção cultural endógena, não na perspectiva de isolada, mas na perspectiva de uma produção de dentro para fora. Da comunidade em que se vive para o mundo em que se insere. Uma produção cultural desde onde se vive. Portanto, uma forma de produção de conhecimento organizada e classista. É outra perspectiva de Educação. Certamente por isso cria tensões, incompreensões e tentativas de negações do processo. “Na sua origem, o ‘do’ da Educação do campo tem a ver com esse protagonismo: não é ‘para’ e nem mesmo ‘com’: é dos trabalhadores, educação do campo, dos camponeses, pedagogia do oprimido... Um ‘do’ que não é dado, mas que precisa ser construído pelo processo de formação dos sujeitos coletivos, sujeitos que lutam para tomar parte da dinâmica social, para se constituir como sujeitos políticos, capazes de influir na agenda política da sociedade” (idem, 41). O fazer pedagógico do processo de Educação do Campo tem produzido simultaneamente uma elaboração teórica, capaz de subsidiar e responder às demandas dessa prática educativa. Esse conceito de construção do conhecimento parte de uma gama de produção acadêmica e histórica na perspectiva de uma vinculação entre a educação formal e o processo de enfrentamento político-ideológico. Em outras palavras, reforça-se um vinculo entre a educação formal e a luta de classes. A educação, de fato, se realiza a partir de uma práxis entre a elaboração teórica e a realidade objetiva com suas contradições e seus movimentos próprios, obedecendo finalidades e objetivos permeados por valores que podem visar apenas a mera manutenção e reprodução das relações existentes, ou podem vincular-se aos sujeitos sociais interessados em transformar determinadas realidades. Fica claro o recorte classista, popular e de opção socialista dado ao projeto de Educação do Campo. Em seu formato teórico, a Educação do campo, desenvolvida no âmbito do MST envolve três movimentos pedagógicos. O que chamamos de Pedagogia Socialista encontrado em teóricos como Pistrak e mesmo pensadores latino-americanos como José Martí e Che Guevara, que associam atividade laboral e atividade educacional como parte de um mesmo processo de construção do homem novo, na perspectiva de formação coletiva para a transformação social, sensivelmente sobre a influência gramsciana e a visão da necessidade de se construir uma hegemonia política e ideológica das classes trabalhadoras; a Pedagogia do Oprimido, organizada e teorizada pelo educador brasileiro Paulo Freire e um processo pedagógico em construção, denominado “provisoriamente” de Pedagogia do Movimento. Por outra parte surgem novos e diversos conceitos elaborados para designar o que seria a Educação do Campo, muitos desses, sem nenhum vinculo ao conceito original estruturado neste artigo, com o caráter classista e emancipatório aqui atribuído. Nessa percepção, há uma situação de complementaridade entre os diversos movimentos pedagógicos desenvolvidos ao longo do século XX na perspectiva de situar no debate pedagógico as questões políticas e ideológicas, do processo de questionamento da ordem capitalista e da emancipação das classes trabalhadoras. A pedagogia Socialista, a Pedagogia do Oprimido e a Pedagogia do Movimento compõem partes do mesmo processo educacional. Para Antônio Gramsci, a educação não é apenas o espaço formal de aquisição de conhecimento sobre o mundo e o ambiente em que se está inserido, para nele atuar como atores passivos, integrando-se ao mundo dado. A educação, na perspectiva gramsciana deve ser vista como um processo permanente de formação política, capaz de elevar o nível de consciência política das classes trabalhadoras, formando-os sob novos padrões intelectuais e culturais; habilitando-os à condição de sujeitos ativos do processo histórico e das transformações sociais. Sob essa perspectiva as massas trabalhadoras construiriam sua hegemonia na sociedade. A revolução social seria fruto da hegemonia das idéias, dos saberes, de uma cultura proletária, emancipatória. De uma tomada de consciência da condição, possibilidades e tarefas do proletariado na sociedade capitalista. Essa a base do que convencionamos aqui, de Pedagogia Socialista. O educador Paulo Freire construiu sua Pedagogia do Oprimido sob a perspectiva que a educação necessariamente deve ser um instrumento de libertação, de emancipação de classe. Paulo Freire, no entanto, compreendia que há um saber, uma cultura popular carregada de conhecimento que, numa relação dialógica com os saberes e a produção científica deve produzir um instrumento de emancipação das classes trabalhadoras. Esse processo educativo deveria ser o mecanismo utilizado pelas classes trabalhadoras, oprimidas de alguma forma, como instrumento de libertação. A Pedagogia do Oprimido é a relação entre o saber popular com o científico intermediado por um processo de tomada de consciência do mundo onde os trabalhadores estão inseridos. Nesse processo, libertar-se-iam os oprimidos, da condição de sujeição; e os opressores da necessidade de oprimir outrem. “A libertação, por isso, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se”. (Freire, 1987: 35) Certamente as origens religiosas do pensamento de Paulo Freire em algum momento se cruzam com as origens religiosas e, diria, idealista, no pensamento do MST. Não deixa de ser uma crença religiosa a ideia de um sujeito opressor em busca de libertar-se dessa opressão. Por outro lado, Freire vislumbra o individuo oprimido como detentor do processo histórico, claramente na origem e na formatação da concepção educativa do MST. O que denominamos de Pedagogia do Movimento é a experiência educativa atual do MST, alinhavada em forma de teoria na busca de formatar o processo desenvolvido pelas escolas formais nos assentamentos dirigidos pelo Movimento e por todo o universo da educação formal e de formação de quadros, processos informais desenvolvidos pelo Movimento. Trata-se de uma busca por uma educação crítica e criativa. Viva e pulsante, capaz de fazer emergir a vida das massas trabalhadoras, a sua realidade, prenhe de contradições. A Pedagogia do Movimento incorpora as outras experiências pedagógicas e desenvolve-se a partir da militância política organizada, política e ideologicamente engajados no processo de transformação social. Valoriza o coletivo. Compreende o processo educativo como uma relação entre os saberes, em diversos níveis e práticas, com a organização militante, disciplinada e definida ideologicamente. Central no processo da Pedagogia do Movimento é a chamada Pedagogia da Alternância. Trata-se de uma forma de se processar o conhecimento atendendo a concepção dialética e materialista de que a realidade objetiva, em última instancia define o subjetivo, a formação da consciência. Nessa perspectiva, o MST exige, condiciona a realização de seus cursos formais à Pedagogia da Alternância. De forma sintética, pode-se dizer que é a busca da integração entre a comunidade e os saberes sociais, coletivos, promovidos na vida comunitária com os saberes e a cultura acadêmica, científica, formal adquirida nas instâncias da educação formal. Na Pedagogia da Alternância, os cursos de graduação, por exemplo, são realizados em dois momentos de um mesmo período. No primeiro momento o educando cumpre o chamado Tempo Escola, quando ele participa, assiste às aulas, é avaliado por seu conhecimento acadêmico-formal; enfim é o momento em que o militante organizado do Movimento “vive” a Universidade ou a instituição de ensino que está participando. No segundo momento, no Tempo Comunidade, o educando hipoteticamente “transformado” pelo universo acadêmico volta à sua comunidade e aos seus afazeres políticos de um militante organizado e sob as diretrizes e orientações de um Movimento com características organizativas de unidade e centralidade de ação. Com concepções políticas e ideológicas claramente definidas. O encontro desse processo pedagógico sob os delineamentos da Educação do campo com o universo acadêmico frio e distante da realidade em que está submerso a universidade brasileira após a hegemonia neoliberal dos anos 90 causou grande impacto. A seguir descrevemos uma experiência particular, mas com elementos universais e transversais comuns aos processos que se sucederam Brasil afora. O curso de História oferecido na Universidade Federal da Paraíba encerra todo o processo analisado acima. A experiência do Curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPB No início dos anos 2000, mais um território é alcançado pelo PRONERA – O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Os cursos de nível superior. Em parceria com os movimentos sociais do campo e algumas universidades, se iniciam alguns cursos de formação superior. Inicialmente cursos de Pedagogia e Agronomia. Em 2004, a UFPB aprovou a criação do curso de História para os Movimentos Sociais do Campo. O Curso foi aprovado pela Resolução CONSEPE 016/2004 e regulamentado pela Resolução 029/2004. O curso de História para os Movimentos Sociais do Campo da UFPB se utilizou da prerrogativa da existência de resoluções anteriores que abrem vagas especiais para professores das redes municipais e estaduais cursarem o nível superior, através do Programa Estudante Convênio. O MST, movimento social demandante originário pelo curso, já havia procurado anteriormente, duas instituições públicas federais de ensino superior, para absorver o curso de História, porém, sem êxito nas duas tentativas. Na UFPB, o Departamento de História aprovou o curso e encaminhou uma solicitação ao PRONERA: que não houvesse bolsas ou qualquer outro tipo de remuneração aos professores desse Departamento que se envolvesse com o curso. Naquele período, era permitido o pagamento, em forma de bolsas, a professores e coordenadores do curso. É importante destacar esse aspecto porque evidencia uma predisposição do Departamento de História em realizar o curso como compromisso com os setores sociais, naturalmente excluídos, da Universidade. Internamente, o Departamento de História organizou uma Comissão com três professores, responsável pela elaboração do Projeto, que incluía, além do Projeto Político Pedagógico, a parte financeira e o Plano de Trabalho para os quatro anos do Curso. Essa Comissão trabalhou em parceria com o MST (Movimento demandante), seguindo as diretrizes apontadas pela Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA. Em assembléia departamental decidiu-se aprovar o Projeto Pedagógico oriundo da Comissão Departamental que construiu Projeto em parceria com os movimentos sociais. O curso aprovado seria exatamente igual ao curso oferecido convencionalmente, extensivamente, há anos, pela UFPB. Apenas definiu-se que seriam direcionados para temáticas específicas, de interesses dos movimentos sociais, os componentes curriculares optativos Aprovado pela Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA, o curso ficou aguardando sua tramitação e aprovação nas devidas instâncias da Universidade. Internamente desenvolveu-se em paralelo uma espécie de batalha de idéias. Sua aprovação deveu-se ao empenho da direção da Universidade que não mediu esforços para superar mal-entendidos, divergências contrariedades que acorreram ao longo do processo. O novo, de fato, foi a Universidade ter realizado uma parceria com movimentos sociais, não institucionais, para desenvolver atividades de ensino, em nível de graduação. Situação até então impensável para diversos setores da sociedade e da academia no Brasil. Movimentos sociais organizados que representavam setores sociais claramente excluídos da vida universitária. Na expressão de Éric Hobsbawm, que representavam “os de baixo”. Criara-se uma perspectiva realmente democrática para universidade, onde o curso aprovado saíra das discussões e da demanda de um setor específico organizado da sociedade, que clamava adentrar aos muros da instituição e que, de outra forma, suas possibilidades de ingresso numa instituição federal de ensino superior seriam realmente muito poucas. Analisando em retrospectiva percebe-se que a realização desses cursos de nível superior significou grande conquista para os lutadores pela Reforma Agrária no Brasil, mas também para as universidades brasileiras, em geral, distante de cumprir com seu papel social. A Universidade assim cumpriu seu papel social. Inovou. Ousou. Voltou-se à realidade na qual se insere. Foi buscar o Brasil real, com seus dilemas sociais, suas disparidades econômicas, suas atribulações políticas e sua diversidade étnica e cultural. O curso de História nasceu com essas características e sob essa delineação política. Talvez Darci Ribeiro dissesse: neste momento, neste episódio tivemos a “Universidade Necessária” (1969) para o Brasil. Essa história, porém, carrega os sinais e as cicatrizes das grandes conquistas. Narrar detalhes e acontecimentos que aparentemente são pontuais ou ocasionais, tornam-se importantes como termômetro para avaliarmos as reais condições da Universidade que temos e do alcance que teve a realização desse curso de História para os movimentos sociais do campo. Compreendendo a Universidade como a expressão das contradições naturais da própria sociedade é possível entender a “batalha” que se travou internamente para aprovar o curso. No campo das idéias e do aparato jurídico institucional se ergueram barreiras e obstáculos que mereceu o exercício da construção de uma unidade política capaz de superá-los. Assim como a sociedade brasileira, a Universidade nos anos 90 passara por uma espécie de revisão paradigmática. De centro da contestação ao sistema, assumira majoritariamente, a condição de correia de transmissão do processo de hegemonização do pensamento neoliberal. A formação de profissionais acríticos para um mercado concentrador, metabolizador de um processo social excludente, dentro de uma concepção produtivista e alienada das responsabilidades sociais. Promover um curso superior para assentados da Reforma Agrária, militantes sociais, sujeitos históricos envolvidos na luta por reforma agrária e por reformas sociais profundas no país, advindos de movimentos sociais estigmatizados pela mídia e por setores economicamente dominantes da sociedade brasileira, significava realmente ousar. A UFPB assumiu o risco. Caso a experiência se tornasse um fracasso, perderíamos a credibilidade e naufragaríamos sob as acusações comuns de sobrepor a ideologia à ciência. Como se trata de um curso de caráter nacional, o mês de setembro de 2004 marcou a chegada dos candidatos concorrentes a 60 vagas, assentados da Reforma Agrária, oriundo de 23 estados brasileiros na Universidade para um curso intensivo de preparação para o Vestibular que realizaram, disputando as vagas entre si, os assentados, para selecionar os aprovados a ingressar na UFPB. No dia 04 de outubro de 2004, os 60 educandos aprovados no vestibular especial para quem fosse dos movimentos sociais do campo e assentados da reforma agrária participaram da solenidade de abertura do semestre letivo e assistiram a aula inaugural do curso, sob os aplausos entusiasmados e emocionados dos que lutaram por seus ingressos no ensino superior e os olhares assustados e temerosos dos que vêem na universidade apenas um instrumento de reprodução da sociedade desigual que erguemos no Brasil. Importante destacar que, em paralelo ao curso, a professora Regina Behar, à época, subchefe do Departamento de História, elaborou um Projeto para o PROLICEN – Programas de Licenciaturas da UFPB, com o objetivo justamente de registrar aspectos da participação dos assentados da reforma agrária, oriundos dos movimentos sociais do campo na UFPB. Esse trabalho resultou no documentário: “Bandeiras Vermelhas”, bastante representativo do significado e impacto causados na instituição, do ingresso de camponeses oriundos das camadas sociais mais baixas desse país. De fato, presenciamos naquela experiência, a concretização de paradigmas apontados como princípios norteadores da Educação do Campo. Podemos ousar e dizer que o curso de História para os movimentos sociais do campo na UFPB “de uma educação dos e não para os sujeitos do campo. Feita sim através de políticas públicas, mas construídas com os próprios sujeitos dos direitos que a exigem (...) Basta também dessa visão estreita de educação como preparação de mão-de-obra e a serviço do mercado.” (Caldart, 2004, p. 151) A História sob julgamento O CONSEPE – Conselho Superior de Ensino e Pesquisa – aprovara, na ocasião da votação da Resolução 016/2004, um item indicando o curso como provisório e que em torno da metade de seu desenvolvimento deveria se proceder, por parte do Departamento que aprovara originalmente o curso, uma avaliação para finalmente, a partir dessa avaliação, definir se o curso deveria ter continuidade ou não. A avaliação realizada em 2006, por professores e estudantes envolvidos no curso foi plenamente favorável a sua continuidade. A estrutura curricular do Projeto Político Pedagógico adotado para o curso de História PEC/MSC (Programa Estudante Convênio – Movimentos Sociais do Campo) tornou-se a posterior espelho para as mudanças na estrutura curricular do curso de História extensivo, como passamos a denominar o curso de História “convencional” da UFPB. A única diferença é que o curso para os movimentos sociais do campo é oferecido para esse público específico e sob a Pedagogia da Alternância, elemento fundamental para o bom andamento do curso. A pedagogia da Alternância é a essência da Educação do Campo, pois nela se integra a prática e a teoria, os saberes científicos e os saberes populares. O enriquecimento da vida acadêmica é levado a comunidade e a prática comunitária é estudada e teorizada nos bancos da academia. Em junho de 2008 a UFPB gradua a 1ª Turma de História para os movimentos sociais do campo, atendendo assentados da reforma agrária de 23 estados. Com o diploma de licenciados em historia pela Universidade Federal da Paraíba, se formaram naquela ocasião 55 dos 58 que cursaram e conseguiram aprovação em todos os Componentes Curriculares oferecidos pelo curso. 03 alunos não conseguiram realizar o TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, a monografia exigida como trabalho final, no prazo mínimo determinado pela instituição. No entanto, 01 concluiu no semestre seguinte, ou seja, o 2008.2 e outros dois estão matriculados regularmente na instituição, dentro dos prazos legais para a realização e defesa de suas monografias de conclusão de curso. As monografias de conclusão de curso da 1ª Turma de História PEC/MSC versam sobre os mais diversos temas históricos, porém, a grande maioria narra a história da conquista dos assentamentos ou das lutas travadas pelos assentados para construir uma reforma agrária digna em nosso país. No geral, são monografias de um bom nível, refletindo o excelente nível dessa turma, que alcançou o índice de desistência mais baixo da história da UFPB, de 3,3%. Com um CRE – Coeficiente de Rendimento Escolar médio da Turma de 8,65, considerado muito bom. Por fim, registrar que a 1ª Turma de História para os movimentos sociais do campo – Turma Apolônio de Carvalho – obteve um índice de retenção de apenas 5,2%, considerado ótimo nas instâncias responsáveis pela “medição” da qualidade de ensino na UFPB. Com esse retrospecto tornou-se impossível para os opositores aos cursos oferecidos aos assentados da reforma agrária, vinculados aos movimentos sociais do campo, na instituição, levantarem-se contra a abertura de novos cursos ou novas turmas para esse público. Todos os argumentos contrários foram vencidos e, na pratica, a UFPB viveu e vive uma experiência exitosa em todos os sentidos, com todas as adversidades e dificuldades apresentadas, mas uma experiência vitoriosa. Em virtude do êxito da experiência com a turma Apolônio de Carvalho, ainda em 2008, abriu-se a 2ª Turma de História para os movimentos sociais do campo. Turma que ganhou o nome do líder cubano Fidel Castro. Turma composta por assentados oriundos de 19 estados participantes da luta por reforma agrária. Essa turma cursará, em 2010, o quinto e o sexto semestres letivos, já caminhando para a parte final do curso. Na turma Fidel Castro ingressaram também 60 alunos, hoje conta com 56 matriculados. Para a UFPB a experiência se converteu em desafio vencido. O intercambio com os movimentos sociais, com os saberes populares e a troca de experiências com instituições que não vivem o mundo acadêmico enriqueceram bastante o cotidiano da instituição, mas, sobretudo, ampliaram o horizonte da compreensão da construção do conhecimento. O conhecimento não produzido em um laboratório fechado, hermético como por vezes se imagina a universidade, mas se produziu um conhecimento dialógico, em intercambio permanente e intenso com um setor social especial da sociedade brasileira, depositário das injustiças sociais e ao mesmo tempo da esperança de milhões e milhões que lutam por um futuro de dignidade em nosso país. A troca dos saberes acadêmicos com os saberes populares, elaborados e organizados política e socialmente, produzidos externamente aos muros da universidade é o diferencial desses cursos. E é realmente a condição idealizada para uma universidade viva, interativa, ativa em sua atribuição de ente transformador da sociedade. Referência Bibliográficas: ARROYO, Miguel Gonzalez; MOLINA, Mônica Castagna (Orgs); CALDART, Roseli Salete. Por uma Educação do Campo. 2ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004. CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Expressão Popular, São Paulo, 2004. CARDOSO. Ciro Flamarion. 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