NO ESCURINHO DOS MUSEUS Ter uma obra de arte no acervo não significa que ela estará exposta ao público. Veja onde você terá que apurar bem o olhar para encontrá-la S omando apenas o acervo dos quatro maiores museus de São Paulo – Masp, MAC, MAM e Pinacoteca –, a cidade abriga mais de 30 mil obras artísticas, incluindo pinturas, esculturas, gravuras, mobiliário, louça, prataria e tapeçaria. O número, que pode encher de orgulho qualquer paulistano, não significa que haja necessariamente 30 mil obras expostas ao olhar de visitantes e apreciadores de arte. Isso porque ter uma peça no acervo não significa que ela está exposta: há muitas obras que passam anos na reserva técnica, o relicário dos museus. “Algumas pessoas dizem que a reserva é o porão, mas ela é o cofre do museu porque é o lugar mais valioso”, conta Eunice Sophia, coordenadora do Acervo e Desenvolvimento Cultural do Museu de Arte de São Paulo (MASP). “Ele é o cofre do Tio Patinhas”, brinca o chefe da Divisão Técnico-Científica do Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), Paulo Roberto Amaral Barbosa, ao se referir à sala da reserva técnica, cuja porta de aço com meio metro de largura é encontrada depois de transpormos um portão e dois seguranças e passarmos por um labirinto de corredores estreitos. Aliás, não chegamos à porta da reserva, mas sim à ante-sala do relicário. “Tudo isso não se dá por segurança necessariamente, mas por conservação”, explica Barbosa. Unidade Tripartida, de Max Bill: 500 quilos de aço exige logística para ser transportada 60 get ul io Janeiro 2008 Por Ana Paula de Deus artes plásticas artes plásticas Janeiro 2008 ge tulio 61 Se estão nos museus, mas o púportantes no acervo que poderiam blico não as pode ver, essas obras estar em exposição permanente, mas não há espaço para mostrar”, poderiam ser encaradas como escondidas? “Escondida não”, resconta Felipe Chaimovich, curaponde Eunice. “Às vezes a gente dor do museu. tem uma obra que, até por suas No MAM são realizadas de características, é difícil ser inserisete a oito exposições por ano. Destas, três são feitas com a coda em algum contexto”. Um exemplo do que explica leção própria, o que equivale a Eunice é uma escultura atribuída mostrar cerca de 200 obras do a Aleijadinho, São Francisco de acervo por ano. Se levarmos em Paula, datada de 1760-80. Atualconta o número de doações que mente, o MASP tem salas de exo museu recebeu em 2007, algo posição de obras brasileiras, sob o como 500 peças, e a quantidanome de Brasil Moderno, ao que de média de peças exibidas por mostra (200/ano), haveria um Eunice questiona: “Como é que crédito só este ano de 300 obras eu posso colocar um Aleijadinho que chegaram e ainda não foram dentro desse contexto?” Outro caso curioso da coleção expostas. Essa matemática artísdo MASP são as dezoito cadeiras tica, no entanto, só vale para as venezianas do século XVIII. Para exposições realizadas no espaço Meninos e Piões, de Portinari: atração no Oscar Americano serem mostradas ao público, físico do próprio museu. Segunconsidera Eunice, teria de haver do Chaimovich, em 2006 16% do acervo foi mostrado em uma única exposição na OCA. ou uma exposição de mobiliário e arte veneziana, e aí “Foi a maior quantidade de obras já colocadas em exentrariam apenas esses dois ou três exemplares da coposição”, diz o curador. leção, ou uma mostra com todas as cadeiras, o que não O MAC, devido à falta de espaço, ganhou o famoso é possível devido ao tamanho das peças: cada cadeira “prédio de Detran”, local onde funcionou o Departatem 2 metros de altura. “O museu é pequeno para o tamanho e a importância da coleção”, reflete a guardiã mento de Trânsito do Estado de São Paulo, no Ibirapuedo acervo. ra, do outro lado do prédio da Bienal. O local está sendo readequado para receber parte do acervo do museu, que manterá as atividades na Cidade Universitária da USP. A Um lugar ao sol abertura do novo espaço acontecerá em 2009. Assim como as cadeiras do MASP, algumas obras do MAC passam pelo mesmo contratemA insustentável po: a relação do tabeleza da arte manho da obra com Os materiais usao espaço do museu dos nas obras às vepor vezes dificulta a zes tornam a peça exposição de peças. frágil: papel que se A Unidade Tripartidesbota e precisa fida, do artista plásticar ao abrigo da luz, tinta que se derrete co Max Bill, é uma ou craqueja (solta lascas de resina), tecidos finos e oudelas: “Ela pesa 500 quilos, é necessária uma operação tras delicadezas que exigem a permanência da obra na e estratégia para transportá-la”, diz Barbosa. reserva técnica. É a situação do vestido desenhado por No Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) não é diferente: apenas 1.300 metros quadrados para Salvador Dalí entre 1949 e 1950. Costume do Ano 2045 uma coleção de 5 mil obras – composta em sua maioria não pode ficar muito tempo longe do ar climatizado e por exemplares de arte contemporânea. “Tem coisas imda umidade controlada do “cofre” do MASP, localizado no 3° subsolo do prédio: uma longa exposição comprometeria o jérsei de seda do vestido. No MAC há o caso similar e curioso de uma doação que chegou fechada numa caixa, estado em que ficou por algum tempo. Era uma peça, sem título, do paulista Nuno Ramos, formada por um tipo de resina que se “derrete”, solta pedaços da tinta e precisa passar, quase que freqüentemente, por um trabalho de recuperação. O número de exemplares de um mesmo artista também pode comprometer a exposição de suas obras, como os 573 trabalhos de Emiliano Di Cavalcanti da coleção do MAC. Dificilmente todas as peças serão mostradas em uma mesma exposição. Uma saída elaborada pelo museu foi a montagem de exposições itinerantes pelo Brasil. Aliás, o empréstimo de obras para outros locais é um dos motivos que levam as peças para longe das paredes dos museus. Eunice Sophia, do MASP, conta que algumas pessoas vêm do exterior para ver determinadas obras que às vezes não estão expostas. “Elas sabem que em todo museu do mundo não é sempre que você chegará lá e as obras estarão à mostra, a não ser no caso de museus tradicionais como o do Vaticano e o Louvre”, explica. O lado B dos museus Na contramão dos grandes museus da cidade, ficam os acervos que, apesar de pequenos, são gigantes pelas obras que abrigam. Um exemplo é o acervo do palácio do governo de São Paulo, formado pelas obras expostas nas paredes do Palácio dos Bandeirantes e do Horto Florestal, na capital, e do Palácio da Boa Vista, em Campos do Jordão. A coleção é formada por 3.500 peças adquiridas no início da década de 1970, quando o então secretário da Fazenda, Luís Arrobas Martins, realizou um garimpo das obras dos períodos barroco e moderno brasileiros disponíveis no mercado. “O acervo foi constituído com a intenção de montar um patrimônio público, aberto à visitação, para que essas obras pudessem ser apreciadas, não foi apenas a preocupação de decorar os palácios”, explica a diretora do acervo, Ana Cristina Carvalho. O número de exemplares de um mesmo artista pode comprometer a exposição de suas obras, como ocorre com os 573 trabalhos de Di Cavalcanti da coleção do MAC Obras de arte expostas nos corredores do Palácio dos Bandeirantes O “prédio de Detran”, no Ibirapuera, está sendo readequado para receber parte do acervo do MAM. A abertura do novo espaço acontecerá apenas em 2009. 62 get ul io Janeiro 2008 artes plásticas artes plásticas Janeiro 2008 ge tulio 63 Dependendo da época do ano – porque as obras circulam pelos três palácios –, nos corredores do Palácio dos Bandeirantes, por exemplo, podem ser encontradas peças como Maternidade, de Vicente Rego Monteiro, Operários, de Tarsila do Amaral, um São José de Botas, do Aleijadinho, e a Bailarina, de Victor Brecheret. O peculiar desse acervo é que a reserva técnica não é um salinha escondida na casamata de um prédio. Elas estão ali, entre os passantes, para contemplação de quem apenas tem tempo para olhá-las. “Os palácios, que tem as funções residenciais e administrativas, têm essa característica diferente do tradicional museu de arte. Aqui os espaços não são neutros”, diz Ana Cristina. Outra relíquia desse acervo é um conjunto de 64 pinturas cusquenhas do século XVIII, a segunda maior coleção fora do Peru. “Entre os anos 1960 e 1980 houve um resgate e um mergulho no nosso passado colonial, as famílias ricas consumiam tanto o mobiliário artístico brasileiro quanto pinturas cusquenhas, já que naquele período [século XVIII] não nos destacamos na pintura e, sim, na escultura”, explica a diretora. A coleção já foi exposta no país de origem e é reconhecida pelo governo peruano. No ano passado o número de visitantes quase dobrou em relação a 2006, chegando a 14.500 passantes por mês. De acordo com Ana Cristina, o aumento é resultado das exposições temáticas realizadas no ano passado: “Hoje a função museológica das obras é bastante mais reforçada”. Em frente ao Palácio dos Bandeirantes, em um parque de 75 mil metros quadrados, no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, fica a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, que possui em torno de 1.600 obras de arte. Segundo Claudia Vada Souza Ferreira, coordenadora do acervo, 98% da coleção está em exposição permanente. O conjunto foi montado inicialmente com peças da família Americano, em 1974, e mais tarde ganhou obras compradas em dois leilões de arte ocorridos na Suíça. Foi nessa leva que chegou a coleção de oito pinturas do holandês Frans Post, que esteve em Pernambuco durante a ocupação de Maurício de Nassau no século XVII. Além dessas telas, pode-se ver ali Meninos e Piões, de Portinari, e obras de Lasar Segall, Di Cavalcanti e a Pietá e Crucifixo, de Brecheret. Seja nos grandes museus ou garimpando preciosidades em acervos fora do circuito, o encontro com a arte é saudável, como afirma Ana Cristina Carvalho: “As obras de arte são como um bálsamo nessa vida agitada de São Paulo”. Eunice Sophia acrescenta: “Algumas obras podem ficar guardadas, mas pode ter certeza de que eu gostaria de pôr tudo em exposição”. Tudo bem, o que vale é a intenção. Por suas funções residenciais e administrativas, os espaços dos palácios não são neutros, o que os diferencia dos museus tradicionais, diz Ana Cristina Carvalho Os escondidinhos: São Francisco de Paula, Aleijadinho, no MASP; Bailarina, Victor Brecheret, no Palácio; Costume do ano 2045, de Salvador Dalí, no MASP São João de Botas, do Aleijadinho, vale uma visita ao acervo do Palácio dos Bandeirantes 64 get ul io Janeiro 2008 Janeiro 2008 ge tulio 65