UM OUTRO CORPO QUASE MEU Corpo e identidade no reality show America’s Next Top Model Edílson Brasil de Souza Júnior1 Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE Vestindo a identidade Onde “mora” a identidade? Ou ainda: em que partes do corpo, em quais objetos, falas e gestos “residem” a identidade quando “revelada” pela mídia, mais especificamente a mídia televisiva? Nos desenhos animados de super-heróis é comum que a verdadeira personalidade ou uma das personalidades dos superpoderosos nos seja apresentada por meio de uma capa, uma roupa colante ou um par de óculos, posto de lado enquanto o mundo é salvo. Em reality shows também é recorrente a associação de uma personalidade (ou uma nova personalidade) a uma mudança no corpo ou na vestimenta, como é o caso dos programas de transformação estético-corporal The Swan e Extreme Makeover (transmitidos no Brasil pelos canais Warner e Sony respectivamente), nos quais os concorrentes são submetidos a regimes, exercícios físicos, intervenções cirúrgicas e a um novo guarda-roupa, tudo em prol de uma “nova” vida, guiada por uma “nova” personalidade, guiada por um “novo” corpo, que se enquadre nas exigências sócio-estéticas atuais. Roupa, corpo e personalidade também são extremamente associados em outro reality, dessa vez American Idol (Sony), um dos programas de talentos mais visto no planeta. Em sua oitava temporada, frases como “Você tem que se firmar visualmente” e “Você está numa crise de identidade! Você se veste mal!” foram direcionadas, pela jurada Paula Abdul, a uma mesma aspirante a novo ídolo americano da música pop, Kristen McNamara, pelo simples fato da moça alterar seu estilo de roupa a cada nova apresentação. Outro jurado, Simon Crow, costuma repetir a frase “Nós não sabemos quem você é!”, toda vez que o “incidente” de Kristen se repete com outra pessoa ou quando um dos 1 Mestrando do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível – Capes; E-mail: [email protected]. candidatos não consegue manter um equilíbrio corporal no palco ou quando decide cantar uma música country depois de ter cantado um rock ou uma balada romântica. Em todos os casos mencionados parece haver uma sugestão de que a identidade, além da necessidade de ser firmada e reafirmada como algo fixo, ainda que performático [Você deve ser um cantor de rock, e não de country, mesmo ao cantar um country!], pode sim habitar um objeto referencial [Um óculos, uma nova roupa] ou uma parte especial do corpo tomada como referência [Novas pernas bem torneadas, um novo cabelo] para identificar uma pessoa ou um grupo. Sobre este último aspecto, a idéia de um corpo e cabelo transformados revelando, transformando e demarcando identidades está claramente presente no reality America’s Next Top Model, uma espécie de Big Brother formado por mulheres cujo sonho é se tornar a próxima grande modelo dos Estados Unidos. “Você quer chegar ao topo?”: é a pergunta feita na abertura do programa criado, em 2003, pela supermodelo Tyra Banks. O primeiro "ciclo" (como são denominadas as temporadas) estreou em 20 de maio de 2003 e foi um dos programas de maior audiência do UPN (canal que até então apresentava o programa). O reality original e suas versões, juntos, são exibidos em mais de 120 países em todo o planeta. Uma característica interessante de ANTM está na escolha de suas participantes. Partindo do princípio de que o mundo da moda é um mundo propício à aceitação de diferentes estilos corporais e de comportamento, o programa abre suas portas à participação de aspirantes a modelos de manequim PP e GG, heterossexuais, homossexuais, transexuais, feias, bonitas, altas, baixas, glamorosas, desajeitadas, nerds, patricinhas, punks, solteiras, casadas, com ou sem filhos e que até mesmo possuam alguma doença rara. O reality também não faz distinção de classes sociais ou de nacionalidades. Enfim, Tyra Banks e sua equipe estão de olhos mais ou menos fechados para beleza, feiúra, gordura, magreza e tanto outras características de suas meninas, mas extremamente atentos à imagem que elas podem proporcionar ao mundo, que não é somente o da moda. Por isso mesmo, as finalistas são submetidas, no segundo ou terceiro programa, a uma transformação na imagem, mais especificamente uma mudança capilar, que envolve cortes, apliques e todo tipo de estratégia estética que as torne exatamente aquilo que os potenciais clientes e o público esperam delas como modelo. Ou seja, é o instante de evolução, é o momento em que todas deixam de ser “mulheres comuns” e se assumem aptas a transmitir mensagens por meio de seus corpos “melhorados”. Mas o alcance do status de modelo necessita realmente dessa alteração corporal? E quais aspectos midiáticos, mercadológicos e culturais determinam que essa mudança comece pelos cabelos e, como mostrarei, “domine” subjetivamente o resto do corpo, gerando uma espécie de nova identidade, necessária à audiência? Para entender sobre o processo de mudança visual das candidatas é preciso primeiramente compreender que “a moral da mídia contemporânea é apenas mercadológica” (SODRÉ, 2002, p. 65) e que a “a cultura da televisão é também a cultura do mercado” (2008, p. 26). Quer dizer, se a equipe do reality, num primeiro instante, “ignora” a heterogeneidade dos diversos subgrupos femininos participantes, não demora muito para perceber o quanto uma homogeneização imagética é extremamente necessária à inserção das participantes no mercado televisivo, sob a forma de um grupo unificado, pelo menos, imageticamente. Tornar os corpos reconhecíveis para inseri-los nos vários mercados possíveis é a meta do programa. Esse artigo busca então compreender como a moral mercadológica televisiva está presente nesse processo de inserção midiática (midiatização) dos corpos em ANTM para então mostrar que mais do que contribuir para uma renovação no visual das concorrentes, os novos cabelos das participantes colaboram na construção de ícones imagéticos. O cabelo como código Em sua análise sobre as novelas latino-americanas, Barbero observa que para a maioria das pessoas a televisão representa ainda hoje “a situação primordial de reconhecimento” (2006, p. 295). Por isso, o autor recomenda que na TV, “nada de rostos2 misteriosos ou encantadores demais; os rostos da televisão serão próximos e amigáveis” (2006, p. 297). Apesar de Barbero fazer referência à teledramaturgia latino-america, posso comparar suas considerações à realidade de America’s Next Top Model, já que o gênero reality show, apesar de sua pretensão em mostrar o real, tem muito de ficção ao se utilizar de técnicas de edição, 2 O rosto, como aponta Kathia Castilho, “é o grande canal para expressão das emoções, facilmente identificáveis pelos receptores” (2004, p. 52). som e iluminação que dão, aos dramas exibidos, um ar novelesco. É o que ocorre, por exemplo, durante a transformação estética de Elina Ivanona, participante da 11ª temporada do programa. Ao receber a notícia de que será submetida a uma intervenção estética jamais vista em ANTM, a modelo tem seu drama acompanhado passo a passo por uma câmera que dá closes em suas lágrimas, acompanha o adeus aos lisos cabelos negros e continua lá até revelar o susto de Elina diante de seus volumosos e novos cabelos ruivos. Figura 1 - Imagem da transformação da candidata Elina Ivanova. A câmera também está atenta à opinião de Tyra ao ver a foto de Elina tirada no primeiro photoshoot, realizado após a transformação estética: “Acho que ficou bom. Toda garotinha pode olhar pra essa foto e se reconhecer nela”. O que pretendo demonstrar então nessa seção é como as transformações estéticas as quais as participantes de ANTM são submetidas estão relacionadas ao que Barbero intitulou por retórica do direito, dispositivo que organiza o espaço da televisão sobre o eixo da proximidade e da magia de ver e que gera um discurso que “produz seus efeitos a partir da mesma forma com que organiza as imagens: do jeito que permitir maior transparência, ou seja, em termos de simplicidade, clareza e economia narrativa” (2006, ps. 296 e 297). Dessa forma, mesmo revelando o drama de Elina diante de sua mudança, o discurso dramático se encerra quando outro discurso se impõe. O discurso de Tyra, que é o discurso do mercado, diz que para Elina aquela é a melhor imagem, que aqueles são os cabelos ideais para que ela, Elina, se veja e seja vista como uma modelo. Isso acontece, por exemplo, quando Banks afirma que toda garotinha pode se reconhecer na foto e quando a própria Elina comenta logo após a transformação traumática: “Eu não me reconheço. É a última coisa que esperaria do meu visual. Mas agora já superei e penso: ‘Meus Deus, é assim mesmo a minha aparência’. Tyra quis me deixar bem à vontade e conseguiu.” O discurso de Banks somado ao discurso de Elina fazem com que a nova imagem da candidata a top model seja reconhecida de fato como aquilo que se acredita ser uma modelo. Dessa maneira, vê-se de forma clara como o modo com o qual a televisão manipula – tanto no sentido técnico quanto no de operações de produção de sentido – está marcado, como afirma o pesquisador Adayr Tesh, “pela reiteração, pelo esforço de legibilidade, plasticidade, autoreferencialidade e permeabilidade no tecido social. Essa manipulação obedece a uma gramática do discurso midiático que precisa tornar-se cada vez mais familiar ao seu destinatário para ganhar legitimidade e interatividade” (2006, p. 74). Legitimidade e interatividade que são a chave para aproximar e amalgamar enunciador e enunciatário, principalmente quando o telespectador é colocado diante de imagens aparentemente reais de pessoas vivendo dramas aparentemente parecidos com os seus. Como é o caso das imagens produzidas pelos realities shows, os quais se valem de “situações e pessoas comuns, que são em desejos e ações muito semelhantes às pessoas com as quais nos relacionamos no cotidiano, com situações que estamos envolvidos no dia-a-dia” (ALEGRIA, 2006, p. 303). Daí que, mesmo conformada à nova imagem, Elina continue tendo outros dramas expostos como sua bissexualidade e sua relação conflituosa com a mãe. A câmera, sempre presente, divide então a imagem de Elina em duas: a moça que, a partir dos apliques, é reconhecida como modelo e a moça que, a partir de seus dramas, é reconhecida como pessoa normal. É a união dessas duas imagens, porém, que despertarão no telespectador a identificação necessária à manutenção da audiência; são as duas imagens que transformarão a televisão em um moderno espelho3 para o Narciso que está em casa enxerga-se da melhor forma. Vista dessa maneira, “[...] a televisão tem muito menos de instrumento de ócio e de diversão do que de cenário cotidiano das mais secretas perversões do social e também da constituição de imaginários coletivos, a partir dos quais as pessoas se reconhecem e representam o que têm direito de esperar e desejar” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 26). Esse reconhecimento narcísico da imagem televisiva por parte do telespectador, no entanto, só pode ser efetivado mediante a operação de um código. Isso porque, como menciona Stuart Hall em Da diáspora, “não há discurso inteligível sem a operação de um código” (2006, p. 370), o qual - continua Hall - produz reconhecimentos aparentemente naturais. Assim, “[...] certos códigos podem, é claro, ser tão amplamente distribuídos em uma cultura ou comunidade de linguagem específica, e serem aprendidos tão cedo, que aparentam não terem sido construídos [...] Nesse sentido, simples signos visuais parecem ter alcançado uma ‘quaseuniversalidade’ [...]” (Idem, p. 371). No caso de America’s Next Top Model, o código torna-se o cabelo que, modificado, dá início ao processo de midiatização do corpo. Ou seja, o corpo, quando modificado pelas intervenções estéticas, passa a ser um signo ícônico que referência o ser modelo, ainda que de forma arbitrária4. Não à toa, a ida ao salão é uma forma de exorcizar a mulher-comum e a mulher-catálogo em prol da mulher-modelo e da mulher-editorial, como podemos perceber na fala de Tyra Banks em relação à candidata Samantha Potter: “Samantha parece como qualquer garota caminhando no shopping com brincos de plástico. Temos que deixá-la mais 3 “[...] o "espelho" midiático, com todas as suas variadas técnicas de verossimilhança "naturalista" (a clonagem imagística do mundo, seja por imagens cinematográficas e televisivas, seja pela visualidade computacional das redes) é, em si mesmo, gerador de um novo tipo de controle moral, publicitário-mercadológico” (SODRÉ, 2002, p. 53). 4 “O signo televisivo é um signo complexo. Ele é constituído pela combinação de dois tipos de discurso, o visual e o auditivo. Além do mais é um signo icônico, na terminologia de Pierce [...] Este é um ponto que tem levado a grandes confusões e tem sido o terreno de uma intensa controvérsia no estudo da linguagem visual. Uma vez que o discurso visual traduz um mundo tridimensional em planos bidimensionais, ele não pode, é claro, ser o referente ou conceito que significa. O cão, no filme, pode latir, mas não consegue morder!” (HALL, 2003, p. 370); estilizada5. Eleve, eleve, querida, com cabelos curtos”. E também na fala da própria Samantha após o corte de seus cabelos: “Não me sinto mais como a garotinha Sam. Sinto-me como uma modelo!” (grifo meu). A luta do corpo para ser reconhecido, sob a ótica do mercado televisivo é, assim, a luta para ser aceito como um signo icônico e é também a busca por uma identidade que se constrói estrategicamente a partir da utilização “dos recursos da linguagem e da cultura para produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos” (SILVA, 2007, p. 109). E isso só é possível, em ANTM, a partir do instante em que as modelos renunciam à imagem da mulher comum e assumem uma postura condizente com as expectativas do mercado (que pretende lucrar por meio do corpo) e do telespectador (que pretende visualizar-se nesse corpo). Sob essa perspectiva, o corpo emerge “como lugar da construção de sentidos, espaço de investigação e criação de novas realidades, em conexão com diferentes meios e que se apresenta como aparelho produtor de linguagem” (MELLO, 2008, p. 141). Muniz Sodré resume bem essa situação midiática de corpo ícone ao mencionar que Ser “imagem” (signo icônico) pública significa tornar-se interpretante vivo ou núcleo politópico de uma determinada conjuntura de valores, significa tornar-se “médium”. Mas significa também se realizar como forma acabada e abstrata da relação humana mediada pelo mercado, ou seja, existir como indivíduo “irreal”, mero suporte para signos que se dispõem a representar uma realidade instituída exclusivamente como mercadoria (2002, p. 38). Por conta dessas ambigüidades e da impossibilidade de determinar e avaliar o poder de retificação das ambigüidades que a situação de ícone possui é que a imagem, no contexto das seqüências icônicas contíguas (fotografias justapostas) ou temporais (o cinema ou a televisão, por exemplo), ganha em impressividade, mas perde muitas vezes em clareza (BARTHES, 2005, p. 92). Por isso mesmo, há um esforço para que o corpo em ANTM, portador de traços 5 A prescrição moral, com pressuposições lógicas (aja de tal modo, porque é “moderno”, porque é o “melhor”, etc., segundo a lógica da inserção social na contemporaneidade), está de fato implícita no discurso midiático. Inexiste sanção externa ou explícita para a falha na observância dessa prescrição, mas fica implícita a vergonha (fato interno), conseqüente à autodesvalorização estética, à inadequação pessoal a um padrão. É o padrão identitário valorizado que vai permitir ao individuo atingir um optimum de reconhecimento social (SODRÉ, 2005, p. 53). convencionais e inteligíveis, faça-se reconhecível de forma absolutamente (e porque não dizer absurdamente, espetacularmente) clara. Se o corpo esteticamente alterado, revela-se então como um código (um ícone da passagem do corpo normal para o corpo idealizado), ele só pode ser visto claramente como corpo ideal se aquilo que o constitui for também entendido dentro da cultura, como aspectos corporais ideais. Ou seja, se é o corpo “o lugar em que os que fazem o mundo esperam ver representados os comportamentos promovidos ou exigidos por eles” (CANCLINI, 2008, p. 42), o corpo em ANTM precisará indubitavelmente “comportar-se” de acordo com essas exigências, que são exigências do mercado, mas também do telespectador que deseja ver na tela aquilo que lhe disseram sobre o que é ser uma modelo.6 “Espero que você incorpore o novo cabelo. Quero acreditar na foto!”, diz o diretor de cena Mr. Jay Manuel para Elina logo após a implantação dos apliques. O que se vê é que a transformação é necessária justamente para que o corpo se torne objeto referencial para o consumo de bens materiais e para a produção de bens simbólicos. E para que isso ocorra é preciso acreditar na imagem que o corpo produz a fim de se projetar naquilo que ele referência, seja um produto ou a própria imagem (no caso, o próprio corpo). Por isso, faz-se tão preciso aos corpos de ANTM serem identificados como pertencentes de fato a um grupo reconhecidamente superior, serem reconhecidos não mais como um corpo para passear no shopping, e sim como um corpo capaz de desfilar numa passarela. Porque “os corpos são o que são na cultura” (LOURO, 2008, p. 75), os corpos em ANTM são submetidos a uma espetacularização, que ganha força por meio de intervenções7 (que podem ser entendidas como um controle constante sobre o corpo) condizentes com as expectativas e os imaginários culturais. Parece-me então que, da mesma forma como David Le Bretton, Tyra parece perceber que o corpo é lugar de imaginários (2007) e se, como aponta Arlindo Machado, não vemos e ouvimos tudo o que se apresenta aos nossos sentidos, mas “vemos e ouvimos no interior de 6 “Toda sociedade ou cultura tende, com diversos graus de clausura, a impor suas classificações do mundo social, cultural, político. Essas classificações constituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta não ser nem unívoca nem incontestável” (HALL, 2007, p. 374); 7 “Não há corpo que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura; descrito nomeado e reconhecido na linguagem, através dos signos, dos dispositivos, das convenções e das tecnologias” (LOURO, 2008, p. 81). uma moldura [...] que filtra tudo aquilo que, em função dos modelos gnosiológicos, culturais e econômicos vigentes numa determinada época e lugar, conforma o estatuto da visibilidade e da audibilidade” (2007, p. 204), nada mais justo que Banks deseje para suas meninas um corpo, cujos imaginários despertados por ele, através da moldura televisiva, nos diga e nos mostre algo, dentro de aceitáveis contextos sócio-culturais (intimamente ligados ao imaginário cultural contemporâneo). Mensagens que trafeguem em via de mão-dupla entre nós e os corpos que nos falam, que coloquem, como já mencionei, “o receptor na condição híbrida de enunciador/enunciatário (remetente/destinatário), sem distinção” (GARCIA, 2005, ps. 13 e 14). Sem distinção, mas dentro de limites, pois, caso contrário, “as audiências poderiam simplesmente ler qualquer coisa que quisessem dentro das mensagens” (HALL, 2006, p. 376). A identificação entre o sujeito e a mensagem opera assim dentro de um contexto inteligível, no qual nenhuma imagem é estranha para o telespectador, pois se desenvolve sob domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. Enfim, nos identificamos porque reconhecemos e nos reconhecemos na imagem. Ou, como diz Roland Barthes, porque a identificação é “uma pura operação estrutural: sou aquele que ocupa o mesmo lugar que eu” (2003, p. 207). O autor continua: Toda rede amorosa é por mim devorada com o olhar, nela reconheço o lugar que seria o meu, se dela fizesse parte. Diviso não analogias, mas homologias: constato, por exemplo, que sou para X... o que Y... é para Z...; tudo o que dizem de Y... me atinge na carne viva, apesar de sua pessoa me ser indiferente, desconhecida mesmo (Idem, ps. 207 e 208). A imagem que não se contradiz No entanto, para que eu siga a trama de reconhecimento barthisiana, é preciso que eu veja nitidamente em Y características que sempre me disseram pertencentes a Y. É necessário que eu olhe a imagem de Y e perceba “que nenhum conhecimento pode contradizê-la, ajustá-la, sutilizá-la” (Idem, 212). Mas como essa imagem livre de contradições é gerada em America’s? Será que apenas os novos cabelos são suficientes para dizer aos telespectadores que aquelas moças, antes portadoras de uma imagem comum, refletem agora a imagem impossível de ser questionada? E que imagem indubitável é essa? Como ela se concretiza e se mostra? Para responder às perguntas, faz-se necessário um novo retorno ao corpo televisionado. “A gente se vê por aqui”, diz o slogan da Rede Globo de Televisão, fazendo jus à familiaridade apontada por Barbero e à tribalidade mencionada por Mafessoli, como se a TV fosse de fato um lugar de encontro, uma tribo na qual diferentes pessoas com os mesmos dramas e alegrias de vez em quando decidissem se “encontrar” para compartilhar experiências. Contudo, se o espaço televiso é visto por quem o faz e por quem o assiste como um lugar para ver e ser visto, como uma espécie de comunidade virtual, é comum então que opere nesse meio o narcisismo coletivo, o qual “enfatiza a estética, pois promove estilos particulares, um modo de vida, uma ideologia, uma maneira de vestir, um comportamento sexual, enfim, tudo o que é da ordem da paixão partilhada” (MAFESSOLI, 2005, p. 23). Está paixão está presente, por exemplo, na possibilidade apontada por Tyra Banks de uma menina qualquer se identificar com a nova imagem de Elina e também na vontade de Samantha e das demais concorrentes em abandonar o visual comum em prol de uma imagem mais fashionista. A paixão grupal, por evoluir por meio da aparência em ANTM, é a mesma contida nas revistas e programas de beleza, os quais associam bem-estar e felicidade à busca pelo corpo perfeito. As concorrentes de ANTM, semelhante às modelos nas revistas “oferecem às mulheres uma oportunidade de inspecionarem a si próprias em muitas situações diferentes. Permitem à mulher imaginar o que elas pareceriam, para os homens, numa determinada situação ou traje, sem com isso sem comprometerem” (BARNARD, 2003, p. 176, grifo meu). Isso explica o porquê de no reality o controle da relação corpo/roupa ser tão exigido, seja nas sessões fotográficas ou na apresentação individual das modelos diante dos jurados. Afinal, a roupa8 é, nas palavras de Giddens, “muito mais que um simples meio de 8 Para Giddens, a roupa é um regime, assim como o regime alimentar e o sexual. Sendo assim, além da motivação do seu uso se dar a partir de discursos organizados sócio e culturalmente, a roupa, da mesma forma como os demais regimes, tem uma importância central para a auto-identidade precisamente porque liga os hábitos a aspectos visíveis da aparência do corpo. Dessa forma, “a roupa é um meio de auto-exibição, mas também se relaciona diretamente à ocultação/revelação a respeito das biografias pessoais – liga as convenções a aspectos básicos da identidade” (2002, ps. 62 e 63); proteção do corpo – é manifestamente um meio de exibição simbólica, um modo de dar forma exterior às narrativas da auto-identidade” (2002, p. 62). Esse controle entre corpo e roupa tem a ver com a possibilidade do corpo em significar9, que é efetivada a partir da inclusão desse corpo num grupo considerado superior. E para ser aceito no grupo e daí referenciar-se como pertencente ao grupo é necessário adquirir um único ou um conjunto de valores diretamente operacionais úteis ao equilíbrio sensorial, produzido, nesse caso, por meio da imagem do corpo. Quer dizer, atento à heterogeneidade social refletida na heterogeneidade televisual, o reality “esforça-se” em firmar-se como tribo para diferentes subgrupos femininos. Esse esforço, contudo, é suprimido por outro esforço ainda maior de homogeneizar a heterogeneidade, a partir da tentativa de padronizar os diversos subgrupos aceitos em um único grupo imagético, o qual se formaliza a partir da significação individual, mas principalmente coletiva que o corpo adquire com a mudança capilar. Esse processo - se colocado sob o ponto de vista da aceitação das modelos em mudar para unir-se ao grupo - corresponde, segundo Mafessoli, ao deslizamento de uma lógica da identidade para uma lógica da identificação10. “Cada um entra num grupo conforme as circunstâncias ou os desejos. Prevalece uma espécie de acaso. Mas o valor, a admiração, o hobby e o gosto partilhados tornam-se cimento, vetores de ética” (2005, p. 23). Isso demonstra que o desejo/necessidade de mostrar-se realmente como uma modelo, em ANTM, relaciona-se a aspectos individualistas, mas também à preocupação do corpo midiatizado com o coletivo. Os valores grupais, no reality, associam-se então a marcas que os corpos precisam ter para serem identificados, pelos outros e por si, como corpos capazes de modelar11; para, em conjunto, serem percebido como um determinado grupo social coeso (na tentativa constante e vigiada em distanciar-se da imagem da mulher comum, elas devem realmente parecer e se 9 “O corpo, em conjunção com as roupas, é um constante articulador de significantes, e reveste-se de representações significativas de sua cultura de forma a interagir e representá-la em seus anseios, concepções, angústias e projeções” (CASTILHO, 2006, p.90). 10 11 Segundo Mafessoli, “a primeira é essencialmente individualista: a última muito mais coletiva” (2005, p. 22); Expressão utilizada no reality e que se remete à capacidade das concorrentes em saber se posicionar da melhor forma possível (física e subjetivamente), nas sessões fotográficas; sentir modelos12), com características próprias e que, por isso, pode afirmar e reafirmar uma determinada identidade fixa e facilmente reconhecível. É essa marcação, segundo Guacira Lopes Louro, que “poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como pertencendo à determinada identidade; que seja incluído em ou excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitos; que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar determinados postos; que tenha deveres ou privilégios; que seja, em síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado” (2008, ps. 83 e 84). À mudança estética, apoiada na “imposição” de marcas, revela assim a necessidade em demarcar uma fronteira clara, estabelecer enquadramentos sensoriais, dizer para o telespectador e até mesmo para as concorrentes sobre quem é o grupo que participa do reality, a partir de quê ele se define e a partir de quê ele se impõe. Essas delimitações grupais, nesse gênero televisivo, podem ser “espaciais, temporais, de gênero ou de qualquer outra natureza, desde que sirvam para delimitar um locus para onde são transplantados participantes que admitem, como parte das regras do jogo, adaptar-se às novas condições a que serão submetidos” (ALEGRIA, 2006, p. 307). Adaptações que, no caso de America’s Next Top Model, correspondem à realidade da própria cultura, a qual “determina, através do tipo de exposição, a evidência ou não de certos aspectos físicos ou algumas partes do corpo que podem, então ser assinaladas, reconstruídas ou anuladas através de elementos de decoração ou seleção ditados pela moda” (CASTILHO, 2006, p. 92). A inclusão de marcas conforma-se à necessidade da gramática do discurso midiático de gerar o senso de realidade necessário à audiência. Afinal, de acordo com Tesche, é justamente esse senso de responsabilidade com a “realidade”, “o que faz com que aquilo que é visto na tela lembre o comportamento de um grupo social real, efetivo” (Idem, p. 75). Esse esforço por adequar a imagem a padrões que a façam inteligível para audiência e para o mercado, em ANTM, se faz não somente através de intervenções estéticas, mas também, como mencionado anteriormente, a partir da coordenação da postura corporal das candidatas durante as 12 “[...] as identidades só podem ser lidas a contrapelo, isto é, não como aquilo que fixa o jogo da diferença em um ponto de origem e estabilidade, mas como aquilo que é construído na différance ou por meio dela, sendo constantemente desestabilizadas por aquilo que deixam de fora” (SILVA, 2007, p. 111). avaliações e até mesmo na indicação de roupas mais adequadas ao ser modelo. Na décima temporada, a concorrente Dominique Reighard freqüentemente era elogiada por suas fotos, mas criticada por suas roupas inadequadas ao visual de uma modelo. O que demonstra que “a ação da aparência coloca o ator sob o olhar apreciativo do outro e, principalmente, na tabela do preconceito que o fixa de antemão numa categoria social ou moral conforme o aspecto ou o detalhe da vestimenta, conforme também a forma do corpo ou do rosto” (LE BRETON, 2007, p. 78). Assim, a metamorfose das candidatas se dá em conformidade com as expectativas do outro13 (mediadas pelos contextos sócio-culturais captaneados e trabalhados pela mídia televisiva e pelo mercado publicitário e da moda, como mostrarei mais a frente); o outro que pode ser Tyra Banks, os jurados, mas principalmente o outro que detém os manejos do mercado da moda, o qual necessita que o outro, representado pelo telespectador (que é o consumidor em potencial), entenda o grupo de mulheres recrutado por Tyra como uma reunião de indivíduos que afirmam e reafirmam uma determinada identidade, adequada aos padrões da hedonista indústria do consumo publicitário e às expectativas de familiarização/identificação da audiência televisiva. O outro também está dentro do próprio grupo e é representado por cada uma das concorrentes colocadas uma de frente para outra, sob a vigilância constante do olhar. A imagem, posta dessa forma, só é decodificada (em seus mínimos detalhes) a partir do olhar do outro e de suas expectativas (as quais se revelam na elaboração de um ou mais códigos/marcas). A imagem visa então à dialética particular da carta de amor proposta por Roland Barthes: “ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada da vontade de significar o desejo)” (2003, p. 45). A roupa exerce, nesse contexto de vigilância do outro sobre o outro, um papel fundamental na consolidação da imagem das concorrentes como signo icônico e também da manutenção grupal de identidade, despertada pelo narcisismo coletivo. Isso porque, como aponta Mafessoli, “essa função-signo, ou emoção coletiva em relação a um signo, pode exprimir-se 13 “A constatação da presença do ‘outro’ faz com que o corpo se reconstrua, revestindo-se de características culturais e adquirindo, portanto, uma noção de identidade de sujeito no discurso. Assim, na sua máxima individualidade, o corpo reflete a identidade que viu nascer das entrelinhas do discurso do semelhante, na apreensão de valores e significados pertinentes a seu grupo e que se organizaram em seu ser, seu fazer e na sua estrutura, concepção e construção corpóreas” (CASTILHO, 2004, p. 56). graças a uma roupa, um comportamento, um gosto [...]” (2005, p. 25). A relação harmoniosa entre rosto/corpo/roupa é, assim, fundamental à familiaridade que a imagem precisa alcançar para a manutenção dos discursos televisivos. Por conta dessa necessidade de familiarização, as mudanças até aqui mencionadas, vale ressaltar, partem do rosto para o restante do corpo das candidatas. Afinal, é o rosto, de todas as partes do corpo humano, “aquela onde se condensam os valores mais elevados. Nele cristalizam-se os sentimentos de identidade, estabelece-se o reconhecimento do outro, fixamse qualidades da sedução [...]” (LE BRETON, 2007, ps. 70 e 71). Relembrando o já citado enunciado de Barbero de que “os rostos da televisão serão próximos, amigáveis” (2006, p. 297), fica fácil perceber o porquê das concorrentes de ANTM precisarem, a partir de seu, posicionar-se exatamente como aquilo que outras pessoas (vivendo sob o alcance dos discursos midiáticos) esperam que elas sejam: representações de algo que, mesmo possivelmente diferente de si mesmas, mesmo separadas da imagem da mulher comum, trazem um pouco (ou muito) daquilo que o telespectador, conscientemente ou não, gostaria de ser ou precisa ser. Assim, na base de toda representação ou de toda ação, há uma sensibilidade coletiva e uma colocação em comum extralógica que servem de fundamento à existência social. [...] Trata-se de uma ética no sentido forte do termo, ou seja, o que me permite, a partir de alguma coisa exterior, um reconhecimento de mim. Essa outra coisa exterior pode ser um outro eu, outrem, um outro outro,um outro como outro, um outro como totalmente outro: a alteridade ou a deidade. Em qualquer caso, isso é o que importa, reconhecemo-nos no outro, a partir de outro” (MAFESSOLI, 2005, p. 24). A imagem e seus conflitos Essa consolidação da imagem não é um processo livre de conflitos, porque afinal é conflituoso o processo de identificação14 e inquietantes são a ética produzida pelo movimento tribal (MAFESSOLI, 2005, p. 27), os mecanismos que gerenciam os diversos gêneros 14 Ao falar sobre identificação, Barthes afirma que “essa identificação generalizada, estendida a todos aqueles que rodeiam o outro e que dele se beneficiam como eu, é-me duas vezes dolorosa: desvaloriza-me a meus próprios olhos (vejo-me reduzido a tal personalidade), mas desvaloriza também meu outro, que se torna o objeto inerte, lançado de um lado para outro, num círculo de concorrentes. Cada um, idêntico ao outro, parece gritar: para mim! para mim!” (2003, p. 209); televisivos15 e o controle do signo imagético16. Aqui recorro à metáfora, mencionada por Barthes, do espelho dual que aprisiona: “sou cativo de um espelho que se desloca e que me capta em todos os lugares em que há uma estrutura dual” (2003, p. 208). O espelho e a estrutura dual de Barthes podem ser utilizados na compreensão da estrutura televisiva que é espelho porque se comporta como uma moldura por meio da qual vemos e nos vimos como se “houvesse um “acordo” ou um “contrato” firmado entre produtores e público estabelecendo as convenções de codificação e decodificação que deveriam reger a ilusão mimética (MACHADO, 2007, p. 203); e dual porque é campo de interesses, de disputa, de produção de bens simbólicos, de manutenção de ambigüidades, do novo e da tradição, do cotidiano e do prosaico, tudo envolvido no processo de espetacularização do corpo midiatizado17. Um exemplo desses conflitos pelo qual passam os corpos inseridos no universo da mídia está na forma como os homossexuais são mostrados nas novelas brasileiras. De forma instável (e porque não dizer cíclica), ora são revelados como pessoas comuns, ora como personagens estereotipados. (NUNAN, 2003, p. 101). Essa inconstância nos modos da televisão em revelar determinados grupos sociais tem a ver com “as idéias obsessivas de cada época que nada têm de pessoais” (MAFESSOLI, 2005, p. 11) e com o fato da TV constituir “o discurso que melhor expressa a compreensão do presente, a transformação do tempo extensivo da história no intensivo do instantâneo” (BARBERO, 2004, p. 35). Falando em história, essa apreensão da imagem pela televisão me faz recordar a crítica do historiador Peter Burke ao livro Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward W. Said. Ao mencionar a obra que contempla os relatos, carregados de representações estereotipadas do chamado “outro”, dos viajantes nos séculos XVII e XVIII acerca das cidades do Oriente (e também algumas do Ocidente, como a Itália), o autor nos diz que 15 “O regime escópico da mídia não é um conjunto integrado de teorias e práticas visuais. Pelo contrário, é um terreno em disputa, é um espaço de tensão e de acoplamentos de interesses diferenciados que atendem demandas de informação, entretenimento e publicidade” (TESH, 2006, p. 77); 16 “[...] como signo, a imagem comporta uma fraqueza, digamos uma dificuldade muito grande, que reside em seu caráter polissêmico. Uma imagem irradia sentidos diferentes, e nem sempre se sabe como dominar esses sentidos” (BARTHES, 2005, p. 92); 17 “O corpo também é, preso no espelho do social, objeto concreto de investimento coletivo, suporte de ações e de significações, motivo de reunião e de distinção pelas práticas e discursos que suscita” (LE BRETON, 2007, p. 77). “alguns viajantes haviam lido sobre o país antes de nele porem os pés, e, ao chegar, viram o que haviam aprendido a esperar” (2008, p. 86). De maneira semelhante, ao se apropriar de aspectos do imaginário sócio-cultural na construção de familiaridades imagéticas, a TV inscreve nos corpos midiatizados informações compatíveis com as experiências e expectativas daqueles que se põem a visualizar esses corpos. Dentro ainda desse processo, o sujeito humano, inserido no contexto midiatizado (os participantes de reality shows, por exemplo), “’veste-se’ semioticamente de televisão – isto é, incorpora o código televisivo, passando a reger-se por suas regras quanto a aparência, atitudes, opiniões” (SODRÉ, 2002, p. 37). O que revela ainda mais o quanto há de conflituoso nos processos midiáticos de ver, ver-se e ser visto: “o ‘espelho’ midiático não é simples cópia, reprodução ou reflexo, porque implica uma forma nova de vida, com um novo espaço e modo de interpelação coletiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros para a constituição das identidades pessoais” (Idem, p. 23). Mediante esses conflitos, as aspirantes à modelo, na procura por um corpo ajustável aos padrões midiáticos, “vestem-se” de códigos (marcas), a começar pelo rosto, o qual “convida” o restante do corpo a alterar-se para reconhecer-se e ser reconhecido e, a partir disso, significar e converter-se em signo. O rosto alterado das modelos precisa então transformar subjetivamente o corpo, por completo, numa marca de referência (num signo icônico), sem a qual a imagem corporal tende a não ser aceita e perder sua significação. Em um dos instantes do reality, ao quase ser eliminada do programa, a aspirante a top model Analeigh escuta humildemente de sua “tutora” Banks: “Precisa respirar, fazer perguntas, ligar esse rosto com o corpo e a foto. Não é só ser bonita pessoalmente, mas é transmitir isso na fotografia.” Partindo do conselho de Tyra, ressalto que o reality é o locus no qual esses corpos se esforçam por atingir a perfeição e que, mesmo influenciando o telespectador, esses corpos são, por sua vez, influenciados pela imagem (por imagens) da própria Tyra, ao vivo e em fotografias espalhadas por todas as paredes da Casa onde as concorrentes são confinadas durante semanas. Assim, não somente as falas de Tyra determinam aquilo que é adequado aos corpos, mas também sua onipresença administrada diariamente, por meio de exemplos imagéticos sobre como o corpo deve ser. É diante de umas dessas imagens gigantes (que tem um quê de Nossa Senhora) que a concorrente Stacy Ann Fequiere pede para que não lhe cortem os cabelos, mas lhe dêem longas madeixas como as de Naomi Campbell. Seu pedido, porém, não é realizado. Ao contrário, cortam-lhe quase que completamente as madeixas para que, na opinião da própria Tyra, o maxilar quadrado de Stacy se sobressaia nas fotos. Diante de seu sonho não realizado, a modelo tenta esconder a frustração - “Eu não esperava por isso, mas mostra todas as minhas feições, então eu não tenho escolha. Tenho que mostrá-las! – revelando assim que, se é necessário e desejável obedecer aos desígnios soberanos e quase divinos de Tyra sobre seu corpo, é porque, de fato, “a relação do corpo humano, frágil e precário, com o “corpo” tecnológico é ao mesmo tempo erótica e religiosa” (SODRÉ, 2005, p. 78). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEGRIA, João. Reality show: breve exercício de circunscrição do gênero narrativo. In: DUARTE, Elizabeth Bastos e CASTRO, Maria Lília Dias (org.). Televisão: Entre o Mercado e a Academia. Porto Alegre, Editora Sulina, 2006; BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo, Martins Fontes, 2003a; BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil LTDA, 2003b; BARTHES, Roland. Inéditos. Rio de Janeiro, São Paulo, Martins Fontes, 2005; BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008; BAUMAN, Zymunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2007; CANCLINI, Nestor Garcia. 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