V Encontro Nacional da Anppas
4 a 7 de outubro de 2010
Florianópolis - SC – Brasil
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Conflitos ambientais: uma proposta de bases teóricas
para a discussão
Lorena C. Fleury (UFRGS)
Bióloga, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
[email protected]
Resumo
Esse artigo pretende analisar as contribuições de duas abordagens sociológicas contemporâneas,
a saber, as contribuições à sociologia simétrica oferecidas pelo perspectivismo ameríndio, que
tem sua formulação central proposta por Eduardo Viveiros de Castro, e a crítica epistemológica
apresentada acerca do pós-colonialismo, centralmente analisada a partir das pesquisas de Homi
K. Bhabha, para a construção dos conflitos ambientais como objeto epistêmico. Considera-se que
é de apenas algumas décadas para o presente que os conflitos ambientais têm sido identificados
como temas concernentes às pesquisas em ciências sociais. No cenário nacional, a
problematização sociológica do componente ambiental dos processos conflitivos tem como
referência inicial os trabalhos de Fuks (2001), e Acserald (2004), entre outros. Desde então,
diferentes abordagens sociológicas têm sido propostas, com vistas a verificar a abrangência e
possíveis nuances dessa temática como objeto de investigação. Tendo em vista a trajetória de
análise do tema dos conflitos ambientais, a presente pesquisa se propõe a experimentar um
referencial analítico propriamente formulado atento às especificidades de tais conflitos. Para tanto,
parte da hipótese de que os conflitos ambientais são característicos de contextos de modernidade
híbrida e emergem no embate entre distintas epistemologias, explicitando questionamentos sobre
as articulações entre Natureza e Cultura. Para sustentar e discutir essa hipótese, pretende-se –
foco central da presente comunicação – investigar aproximações e distanciamentos entre o
perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002) e a crítica pós-colonial (Bhabha,1998).
Entende-se que, ainda que tais abordagens lancem mão de explicitações de perspectivas plurais
mediante categorias distintas ao enfatizarem a distinção do lugar de enunciação como assunção
de possibilidade de agência, podem, conjugadas, oferecer ferramentas ricas e inovadoras à
análise de conflitos ambientais.
Palavras chave
Conflitos ambientais, perspectivismo ameríndio, crítica pós-colonial
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Introdução
É de apenas algumas décadas para o presente que os conflitos ambientais têm sido
construídos como objeto epistêmico, e identificados como temas concernentes às pesquisas em
ciências sociais. De fato, com a proeminência da questão ambiental no debate público, expressa
de forma mais contundente a partir da década de 1970, e a consequente expectativa por
interpretações sociológicas, considera-se que houve uma renovação no debate sociológico nas
últimas décadas, conformando o que Mattedi (2003) chama uma guinada ambiental na sociologia.
Segundo este autor, os problemas ambientais se converteram em um componente essencial da
dinâmica de reprodução social, econômica e política, ampliando os horizontes da análise
sociológica. Para abarcar essas novas perspectivas de análise, Mattedi (2003) considera que a
reformulação teórica necessária à sociologia “abrange também a redefinição dos marcos de
referência que definem os próprios contornos do objeto de estudo: a capacidade da sociedade
moderna de agir sobre si mesma” (MATTEDI, 2003, p.03). Para tanto, os procedimentos
empregados para a caracterização das relações sociedade-natureza suscitaram muitas
controvérsias, permitindo a diferenciação de estratégias de recepção epistemológica que variam,
nas palavras do autor, da redefinição do estatuto disciplinar (como nos trabalhos de Caton e
Dunlap, 1980) ao movimento de acomodação à tradição disciplinar (incluindo aqui trabalhos de
Buttel, 1987, a Hannigan, 1997).
No cenário nacional, a problematização sociológica do componente ambiental dos
processos conflitivos tem como referência inicial o trabalho de Fuks (2001), em que foram
analisadas as circunstâncias em que os litígios no estado do Rio de Janeiro eram publicamente
declarados como “ambientais”, ressaltando o processo de formulação da apropriação do ambiente
enquanto um “problema”. Desde então, diferentes abordagens sociológicas têm sido propostas,
com vistas a verificar a abrangência e possíveis nuances dessa temática como objeto de
investigação.
Ilustrativamente, podem ser citados os trabalhos de Pellow (2006), que articulam os
conflitos ambientais às teorias sociais e conceitos que dizem respeito às desigualdades sociais; as
pesquisas de Brandenburg (2005), que associam os conflitos ambientais à configuração de novas
ruralidades contemporâneas; a proposta de Acserald & Leroy (2006), de identificar e “espacializar”
os conflitos através da construção de mapas dos conflitos ambientais, a abordagem de Lopes et al
(2004; LOPES, 2006), que sugere a interpretação da contemporânea relevância da questão
ambiental nas dinâmicas sociais como um processo de ambientalização dos conflitos sociais,
dentre outros. No entanto, admite-se que tais pesquisas possuem caráter eminentemente
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empírico, buscando descrever e explicar situações de conflito ambiental desvelando suas
conexões com as dinâmicas mais abrangentes da formação social (CARNEIRO; BARROS, 2006).
Zhouri e Laschefski (2010), em análise recentemente publicada acerca do campo dos
conflitos ambientais, destacam que este se encontra caracterizado pela diversidade e pela
heterogeneidade dos atores e “dos seus modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro”. Em
seu esforço para, a partir dos processos empíricos, identificar especificidades e características
desses conflitos, os autores elaboram uma tipologia dos conflitos analisados, organizando-os em
conflitos ambientais distributivos, conflitos ambientais espaciais e conflitos ambientais territoriais.
Contudo, ressaltam que tal categorização atende a fins heurísticos, e que em geral se observa
uma dinâmica dialética entre conflitos ambientais territoriais, espaciais e distributivos, sendo que
em muitos casos os vários tipos coexistem e alguns podem até mesmo provocar consequências
que pertencem a um outro tipo.
Os conflitos ambientais revelam em geral, segundo os autores, modos diferenciados de
existência que colocam em questão o conceito de desenvolvimento, e expressam a luta por
autonomia de grupos que resistem ao modelo de sociedade moderna. Ainda, para os objetivos
deste trabalho convém destacar que Zhouri e Laschefski (2010) concluem, em resumo, que o
questionamento do modelo de desenvolvimento hegemônico frequentemente vinculado à “[...] luta
de grupos não inseridos, ou apenas parcialmente inseridos, no sistema urbano-industrialcapitalista contra a desterritorialização” conduz a refletir sobre o processo de colonialidade do
pensamento moderno. Portanto, segundo os autores, “a análise dos conflitos ambientais
apresenta-se, pois, como um grande desafio, que remete, inclusive, aos fundamentos da
produção do conhecimento na academia contemporânea” (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010, p.26).
Tendo em vista a trajetória de análise do tema, a presente pesquisa se propõe a refletir
teoricamente acerca dos conflitos ambientais, com vistas a experimentar um referencial analítico
propriamente formulado atento às especificidades de tais conflitos. Para tanto, parte da hipótese
de que os conflitos ambientais são característicos de contextos de modernidade híbrida e
emergem no embate entre distintas epistemologias, explicitando questionamentos sobre as
articulações entre Natureza e Cultura. Para sustentar e discutir essa hipótese, pretende-se – foco
central da presente comunicação – investigar aproximações e distanciamentos entre dois
arcabouços teóricos contemporâneos: as contribuições à sociologia simétrica oferecidas pelo
perspectivismo ameríndio, que tem sua formulação central proposta por Eduardo Viveiros de
Castro (2002), e a crítica epistemológica apresentada acerca do pós-colonialismo, centralmente
analisada a partir das pesquisas de Homi K. Bhabha (1998).
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A escolha destes referenciais emerge da proposição de que ambas, ao enfatizarem a
distinção do lugar de enunciação como possibilidade de agência, explicitando as disputas em
torno da definição da narrativa dominante, podem conjugadas oferecer ferramentas ricas e
inovadoras à análise de conflitos ambientais. Para se discutir essa hipótese, as seções seguintes
irão apresentar, respectivamente, as noções chave e contribuições do perspectivismo ameríndio
para a análise de conflitos; e os elementos constitutivos da crítica pós-colonial, em relação ao
binômio dualista desenvolvimento e ambiente. Em seguida, será apresentada uma releitura dos
conflitos ambientais sob a ótica dos referenciais discutidos, encerrando-se com breves conclusões
e propostas de pesquisas.
“Um ponto de vista não é senão diferença”: perspectivismo ameríndio e disputas
por agência
O perspectivismo ameríndio pode ser sinteticamente definido, nas palavras do principal
autor de sua formulação teórica, como:
A concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é
habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e nãohumanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Os pressupostos e
consequências dessa ideia são irredutíveis [...] ao nosso conceito corrente de
relativismo, que à primeira vista parecem evocar. [...] Tal resistência do
perspectivismo ameríndio aos termos de nossos debates epistemológicos põe sob
suspeita a robustez e a transportabilidade das partições ontológicas que os
alimentam. Em particular, [...] a distinção clássica entre Natureza e Cultura não
pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias
não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002, p.347-8),
Desse modo, ao dissociar Natureza e Cultura, são reembaralhadas as duas séries
paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob esses rótulos: universal e particular, objetivo e
subjetivo, físico e moral, fato e valor, entre outras tantas. Assim, o perspectivismo ameríndio pode
ser entendido como uma postura filosófica, imanente das cosmologias indígenas dos povos
amazônicos, que oferece categorias, conceitos e princípios situados no exterior da cosmologia
ocidental. Admitindo-se a postura simétrica postulada por autores como Bruno Latour (1991), Tim
Ingold (1992), Manuela Carneiro da Cunha (2009) e o próprio Viveiros de Castro (2002), entre
outros, o perspectivismo ameríndio pode ser considerado, em sua originalidade, como arcabouço
passível de utilização para dessubstancializar as categorias de Natureza e Cultura/Sociedade,
centrais à concepção de desenvolvimento na modernidade, e em muitos casos localizadas no
cerne dos debates acerca da questão ambiental.
Para a compreensão da centralidade de sua proposta, o esclarecimento de alguns termos
parece interessante, a começar pelas noções de humanidade e sujeito. No perspectivismo
ameríndio, a condição original comum aos humanos e aos animais não é a animalidade, mas a
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humanidade. As narrativas míticas mostram menos a cultura se distinguindo da natureza (como
no caso da interpretação ocidental, em que “éramos animais, e com a evolução, fomos nos
distinguindo dos animais-natureza e tornando-nos humanos-culturais”) que a natureza se
afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou
mantidos pelos humanos.
Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre
alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo sido outrora
‘completamente’ animais, permanecemos ‘no fundo’ animais –, o pensamento
indígena conclui ao contrário que, tendo sido outrora humanos, os animais e os
outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo nãoevidente (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.336).
Em suma, o que a análise das etnografias revela é que para os ameríndios o referencial
comum a todos os seres da natureza é a humanidade enquanto condição. Nesse sentido,
destaca-se que as palavras indígenas que se costumam traduzir por ‘ser humano’ não denotam a
humanidade como espécie natural, mas a condição social de pessoa. Portanto, elas indicam a
posição social de sujeito, são um marcador enunciativo, não um nome:
Longe de manifestarem um afunilamento semântico do nome comum ao próprio
(tomando ‘gente’ como o nome da tribo), essas palavras fazem o oposto, indo do
substantivo para o perspectivo (usando ‘gente’ como a expressão pronominal “a
gente”) (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.370).
Essa noção do que é ser sujeito está estreitamente associada às contribuições à análise
dos conflitos sobre a qual nos interessa debruçar. Prosseguindo às implicações dessa noção,
verificamos que dizer que os animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas; é atribuir aos
não-humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de agência que facultam a
ocupação da posição enunciativa do sujeito. E é sujeito quem é capaz de um ponto de vista, ou,
melhor: “Todo ser a que se atribui um ponto de vista será então sujeito, ou, ali onde estiver o
ponto de vista, também estará a posição de sujeito [...]; será sujeito quem se encontrar ativado ou
‘agenciado’ pelo ponto de vista” (p.373).
Assim, continua o autor, um ponto de vista não é uma opinião subjetiva: o mundo real das
diferentes espécies depende de seus pontos de vista porque “o mundo” é composto das diferentes
espécies. Mais: segundo Viveiros de Castro (2002), no perspectivismo ameríndio o mundo é o
espaço abstrato de divergência entre as espécies enquanto pontos de vista; “não há pontos de
vista sobre as coisas – as coisas e os seres é que são os pontos de vista” (DELEUZE, 1969, p.
203). Sobre esse aspecto, o autor acrescenta:
As perspectivas são forças em luta, mais que “visões de mundo”, vistas ou
expressões parciais de um “mundo” unificado sob um ponto de vista qualquer [...].
Digo forças em luta porque um dos grandes problemas prático-metafísicos
indígenas consiste em ser capturado por uma perspectiva não-humana, isto é,
deixar-se fascinar por uma perspectiva alheia e assim perder a própria
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humanidade, em proveito da humanidade dos outros – da humanidade tal como
experimentada por uma outra espécie. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 121).
Nesse contexto, a verdadeira inquietação ameríndia reside acerca das aparências, que
enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual o ponto de vista dominante, isto é, que
mundo está em vigor quando se interage com outrem: “Tudo é perigoso; sobretudo quando tudo é
gente, e nós talvez não sejamos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.397).
Ainda que para a compreensão adequada da formulação perspectivista seria necessário
apresentar inúmeros outros aspectos, em cada um deles se detendo com muito mais
profundidade do que o até agora realizado, para os objetivos aqui propostos para a análise dos
conflitos ambientais, temos a partir dessa breve explanação já os elementos chave: humanos e
não-humanos concorrem pontos de vista dos quais são o mundo; ao exercerem o ponto de vista
dominante, vivenciam a experiência de ser sujeito, isto é, manifestam agência. Ademais – e
portanto – esse é o propósito de constantes divergências, ou conflitos, pela expressão de mundo
dos quais são os sujeitos, isto é, dos quais exercem o lugar de enunciação. Com base nessa
formulação, passamos para a análise da crítica pós-colonial.
Diferença como enunciação: o lugar da crítica pós-colonial
A noção de “pós-colonial” tal como vem sendo definida por historiadores culturais, críticos
literários, filósofos e sociólogos, não significa “pós-independência” ou “após o colonialismo”, nem
tampouco é uma forma de “pós-modernismo com política”, mas, de acordo com Spivak (1995), é o
exame de estratégias de subversão dos efeitos materiais e discursivos do processo de
colonização. Segundo Homi K. Bhabha, um dos principais teóricos acerca dos estudos póscoloniais, a crítica pós-colonial:
É testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural
envolvidas na competição pela autoridade política e social dentro da ordem do
mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial
dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das “minorias” dentro das divisões
geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos
ideológicos da modernidade que tentam dar uma “normalidade” hegemônica ao
desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças,
comunidades, povos. Elas formulam suas revisões críticas em torno de questões de
diferença cultural, autoridade social e discriminação política afim de revelar os
momentos antagônicos e ambivalentes no interior das “racionalizações” da
modernidade. (BHABHA, 1998, p.239).
Nota-se, portanto, que essa formulação crítica tem como centralidade questionar o
discurso unívoco e homogeneizante da modernidade ocidental, e o faz ao interpelar o discurso
hegemônico ao competir pela autoridade política e social.
Possui, portanto, entre seus fundamentos, a noção de que a modernidade está vinculada à
construção histórica de uma posição específica de enunciação. E, nesse sentido, as culturas de
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contra-modernidade pós-colonial podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em
desacordo a ela, mas de toda forma “põem em campo o hibridismo cultural de suas condições
fronteiriças para ‘traduzir’, e portanto reinscrever, o imaginário social da modernidade” (BHABHA,
1998, p. 26).
Emergem como conceitos chave, assim, as noções de hibridismo e diferença cultural. O
hibridismo expressa-se na manifestação de lugares de enunciação que atuam como inscrição e
intervenção, “na renomeação da modernidade para que se dê o processo da agência ativa da
tradução” (p.334). Seria esse lugar de enunciação híbrido, então, o local da agência pós-colonial:
sem uma transformação do lugar de enunciação, os conteúdos do discurso podem ocultar o fato
de que “as estruturas hegemônicas do poder possam ser mantidas em uma posição de autoridade
através de uma mudança de vocabulário na posição de autoridade”.
Complementar a esse argumento está o conceito de diferença cultural, que, segundo
Bhabha (1998), concentra-se no problema da ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de
dominar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma produzida apenas no momento
da diferenciação. E, continua o autor, é a própria autoridade da cultura como conhecimento da
verdade referencial que está em questão no conceito e no momento da enunciação.
Nesse sentido, “a enunciação da diferença cultural problematiza a divisão binária de
passado e presente, tradição e modernidade, no nível d representação cultural e de sua
interpelação legítima” (p.64). No caso dos conflitos, segundo o autor o que é teoricamente
inovador e politicamente crucial é se passar além das narrativas das subjetividades originárias e
se pensar os processos que emergem na articulação das diferenças culturais. Transpondo essa
argumentação para os processos empíricos, pode-se considerar que, durante as interpelações
conflitivas, os grupos sociais ao mesmo tempo “desafiam as fronteiras do discurso e modificam
sutilmente seus termos, estabelecendo um outro espaço especificamente colonial de negociação
da autoridade cultural”
Relendo os conflitos ambientais, a partir de Viveiros de Castro e Bhabha
O que os breves apontamentos acerca das formulações teorias apresentadas podem nos
revelar são algumas importantes congruências em seus questionamentos da possibilidades de
agência. Em ambos os referenciais discutidos, percebe-se uma associação entre a possibilidade
de ser sujeito e o local de enunciação – seja para demarcar uma diferença cultural, seja uma
diferença de perspectiva.
Nota-se também que a noção de conflito permeia a elaboração de ambos os referenciais:
no perspectivismo ameríndio, o conflito instaura-se nas disputas pela definição do sujeito
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pertencente ao ponto de vista dominante; na crítica pós-colonial, o lócus do conflito são as
negociações entre pretensões concorrentes que emergem nos interstícios das diferenças.
Contudo, em ambos os casos são os marcadores enunciativos como emblemas da capacidade de
agência – negligenciada pelo projeto moderno – que estão em pauta.
Após reflexão acerca das abordagens discutidas, percebe-se que o interessante é explorar
a fluidez dos sujeitos em conflito. A noção de “comunidade concebida como projeto”, que emerge
da leitura dos textos, ilustra a interpelação cosmopolítica discutida pelos referenciais. Entende-se,
portanto, que o aprofundamento de tais abordagens e categorias precisa ser realizado mediante
análises empíricas, capazes de preencher e confrontar as categorias apresentadas.
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