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UMA BONECA DE PANO
Patrícia de Brito
“‘Mas o que você é, afinal, Emília?’
– e ela respondeu de queixinho empinado:
‘Sou a Independência ou morte!’
E é. Nem eu, seu pai, consigo dominá-la.”1
O trabalho desenvolvido em instituições de reabilitação é bastante complexo por
si só. Estão envolvidos num único espaço físico diversos olhares para um mesmo
sujeito. A questão que se levanta é: quais olhares são esses? No momento em que se
recebe uma criança para tratamento há necessidade de cuidados específicos para que se
atinja o “global” que é a proposta em si da reabilitação. Existe intenção de alcançar a
plenitude da recuperação do ser humano que ali está, porque algo não está bem. Para
isso, a equipe de reabilitação física é composta de médicos, fisioterapeutas, terapeutas
ocupacionais,
fonoaudiólogos,
psicólogos,
pedagogos,
artereabilitadores,
musicoterapeutas, dentistas, além de outros profissionais envolvidos nesse processo.
A proposta de atuação multidisciplinar, interdisciplinar, ou transdisciplinar é
outra questão que exige bastante flexibilidade da equipe que se propõe a tratar de um
sujeito. Poder transitar por diversos saberes e atuações, considerando o sujeito que está
ali, junto com sua família, e assim poder pensar conjuntamente tanto em equipe como
no sujeito que está2 no corpo. Essa sim parece ser uma proposta de atuação em direção
ao global. Porém o “enrosco” é sempre o mesmo: todos estão lá, mas vendo o quê? Ou
melhor, escutando o quê?
A psicanálise
pode colaborar com conceitos
que podem atravessar
transdisciplinarmente a prática terapêutica, entre outras leituras que também compõem
um método de trabalho. E é da potência da psicanálise para tal que esse texto tratará.
Segundo Pinho (2003), “(...) é possível estabelecer a posição ética que permite que a
1
2
Lobato, M. - Barca de Gleyre. - São Paulo: Brasiliense, 1972).
Na reabilitação física a dicotomia corpo-sujeito sempre aparece como se fossem duas
instâncias independentes.
2
constituição do sujeito seja levada em conta na direção do tratamento, qualquer que seja
a especialidade em questão.” 3
Há limites no trabalho institucional, principalmente se considerarmos as
instituições que se propõem também a tratar a saúde mental. Esses limites se relacionam
com as vertentes que envolvem qualquer instituição: procedimentos, finanças,
hierarquias etc. Na experiência que tive, ao trabalhar numa equipe com proposta de
atuação
multidisciplinar,
em
uma
instituição
de
reabilitação
física,
muito
costumeiramente os interesses clínicos divergiam dos interesses administrativos, ou
então as discussões clínicas ganhavam teor político, acabando, muitas vezes, o maior
interessado (o paciente) num outro lugar que não o central. Esse aspecto era algo
limitador para a proposta de fluência clínica e composição de um saber sobre as
possibilidades de atuação com um paciente.
Moura (2003), fala de uma estrutura piramidal institucional, em que aos seus
membros técnicos, cabe o lugar de um órgão da organização, que não pensa por si, pois
o pensar cabe ao topo da pirâmide, equipe da estratégia que justamente por ocupar o
lugar de pensar não ocupa o lugar de quem faz4. Ora, esse modelo de funcionamento
realmente pouco favorece a reflexão, dificultando a movimentação dos técnicos diante
da singularidade dos pacientes em nome da produtividade exigida ali. Esse modo de
“trabalhar” na organização também se estabelece com o paciente que entra nessa relação
como base da pirâmide, portanto tendo que responder desse lugar e assim colaborar com
o bom andamento das propostas institucionais. Sendo assim, espera-se dele que
corresponda a esse perfil, que não pense e aja conforme o que é dele esperado.
Pensando justamente neste modelo estruturado da pirâmide proposto por Moura,
é que a idéia deste trabalho surgiu, pois acredito que ao considerar aspectos
relacionados ao sujeito ali presente talvez se alcancem melhores resultados,
considerando a proposta da reabilitação. Indago se em função da surdez institucional,
inclusive pela dificuldade que ela apresenta de dialogar com outros saberes, mantendo
uma cultura “médica” de atuação, ela acaba por não ouvir o “sintoma” do sujeito. Em
3
Pinho, G. S, - A Psicanálise e a clínica interdisciplinar com crianças – In: Correio da APPOA
– nº. 120, dezembro de 2003.
4
Moura, Arthur Hipólito de Moura - A Psicoterapia institucional e o clube dos saberes –
Editora Hucitec – São Paulo, 2003.
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muitas situações, podemos considerar que há o sintoma prévio e auto-explicativo de
dificuldade com o “cognitivo”, situação essa em que a criança é colocada quando não se
consegue ter acesso a ela de forma a validar um trabalho proposto e assim manter sua
função de equipe reabilitadora.
O processo de reabilitação diante de quadros neurológicos é bastante
intensificado. Ora, ninguém solicita atendimento (ouça-se “ajuda” ou ainda “cura”) se a
questão é fácil ou pequena. O comprometimento neurológico implica em possíveis
dificuldades motoras (articulação, muscular e ortopédica), dificuldades de articulação da
fala, dificuldades visuais, auditivas, de pensamento e linguagem, entre outras que
podem aparecer com o desenvolvimento da criança. O que quero dizer é que para se
supor capaz de receber uma criança para tratamento de reabilitação neurológica é
necessário que se disponibilize de vários saberes.
Porém, em uma instituição de
reabilitação física, há alguns saberes que acabam por se sobressaírem: refiro-me a duas
vertentes: a do corpo isoladamente e à da resposta adequada à demanda suposta do
paciente.
Entre tantos aspectos possíveis, esta apresentação pretende possibilitar a reflexão
acerca do lugar ocupado pelo sujeito na escuta institucional, para que através da
mudança do olhar sobre um caso seja possível a emersão do sujeito desejante, validando
sua demanda e possibilitando o trabalho analítico.
Para realizar uma discussão a esse respeito, a elucidação através de um caso
segue-se, dando respaldo ao que me proponho desenvolver aqui.
LINHAS E AGULHAS...
A família que recebi para atendimento no consultório, era composta por um
casal e suas duas filhas, sendo que a mais velha, de sete anos, era ex-paciente de uma
instituição de reabilitação física. A família vinha justamente trazendo essa queixa: “os
terapeutas não conseguem trabalhar com minha filha, ela não permite.” Na verdade, o
caso recebido era de Emília, ex-paciente de reabilitação física, “desligada” de todas as
terapias na instituição, por falta de colaboração dela e de sua família.
4
Segundo os pais e os terapeutas que a atendiam, Emília, onde era tratada, às
vezes, não permitia que tocassem nela, ou melhor dizendo, não permitia que as coisas
ocorressem de outra maneira que não como ela havia estabelecido, incluindo aí seu
corpo. Mostrava recusa em “colaborar” com a fisioterapeuta, a fonoaudióloga e nas
atividades pedagógicas. Os pais não entendiam o que ocorria: eles a levavam às
terapias, pagavam os terapeutas e as consultas e estavam interessados no tratamento,
apesar de muitas vezes não conseguirem eles próprios levarem-na, mandando outras
pessoas: o motorista da empresa, o sócio, a secretária. Essa atitude parecia ter algum
efeito na equipe, que entendia isso como desinteresse e descompromisso.
Conheci Emília. Uma garotinha atrapalhada, fisicamente frágil com seu
desequilíbrio causado pela dificuldade que tinha em todo um lado de seu corpo, pois
apresentava o diagnóstico de Paralisia Cerebral tipo hemiparesia - à esquerda. Não era
possível entender claramente o que ela falava, pois havia muitas trocas ou omissões de
fonemas e também apresentava dificuldades visuais, que estavam relacionadas com a
abrangência e amplitude de seu campo e em sua capacidade de foco visual. Mostrava
dificuldade para contar até cinco.
Nos atendimentos comigo não era possível estabelecer nenhum acordo com ela,
que quando contrariada gritava, se auto-agredia e também tentava bater em quem
estivesse na sua frente, no caso, eu. Nada disso chamava mais a minha atenção do que
sua forma imperativa diante de tudo. Emília era capaz de articular-se muito bem quando
o que desejava era ser “cruel” com o outro. Para isso destituía a todos que a
interpelassem, ria dos infortúnios alheios, por mais trágicos que parecessem e mostrava
certo prazer quando alguém se submetia a ela. Eu, estava diante de uma bonequinha de
chumbo! Ou talvez de uma pequena Rainha, tamanha sua força e poder.
Considerando o efeito contratransferencial ali estabelecido, tive condições de
tentar buscar a compreensão para esses fenômenos todos que ali ocorriam. Parecia que
o que ela provocava na equipe que a atendia na instituição era um total mal-estar: como
alguém precisa de ajuda e não permite ser ajudada? Ao contrário, desprezava o que quer
que lhe fosse solicitado.
Mais que isso era a “maldade” que eu me sentia vítima vinda de uma criança,
como disse acima, frágil e de certa maneira fragmentada. Seus cabelos, sua aparência de
uma forma geral parecia de uma menina “remendada”: havia os pés, as mãos, as pernas,
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os olhos, cada parte parecia pertencer a um lugar. Era uma bonequinha de pano? De
chumbo? De quê?
Essa questões apareciam a todo momento diante desse caso.
À instituição e à equipe terapêutica que a atendia, parecia suscitar outras
questões, que punham em questionamento sua função e sua importância:
“Como essa família conseguia5 ser atendida aqui (na instituição) e mandava
outros trazerem sua filha? Ela não valorizava o tratamento, nem a equipe que atendia
sua filha.”
“Como era possível que essa família não soubesse o que deveria ser feito?” Agir
de acordo com o que era esperado, seguir orientações, comparecer aos atendimentos,
mostrar comprometimento e interesse.
E o que mais incomodava a todos: o sentimento contratransferencial emanado
dessa relação impositiva e tirânica que Emília proporcionava. Pois da forma como a
criança se posicionava na relação com o outro a única coisa que caberia ali, para tudo
correr bem, era este outro se posicionar como “vítima”, sendo que um terapeuta chegou
a dizer que era “insustentável” o atendimento de Emília, tamanha a “raiva” que sentia,
não sabia exatamente de quem e de que.
Nenhuma dessas observações podiam ser ditas para a família, pois nem para a
equipe elas eram claras ainda. A escuta parecia sempre se direcionar para a inadequação
dessa família havendo um desgaste de energia muito intenso nessa direção: a correção.
Além de tudo havia o choque de estar diante de uma família que não era a ideal.
Segundo Maria Rita Kehl:
“(...) há a dívida com a família perdida (ideal, família nuclear conjugal) que nos
deprime, nos faz lembrar que somos sempre insuficientes como pais, mães e educadores, já que
de saída estamos fora do modelo de família tal como deveria ser.” 6
5
Ter acesso a uma vaga numa instituição é algo bastante valorizado pelas famílias que precisam
de auxílio técnico e também pela equipe multidisciplinar.
6
Kehl, M.R. - Lugares do feminino e do masculino na família – A criança na
contemporaneidade e a Psicanálise – In: Comparato, M. C. M e Monteiro, D. S. F - Família e
Sociedade: Diálogos Interdisciplinares- Volume I. Casa do Psicólogo – SP. 2001.
6
Esta situação impedia a equipe de resolver o que mais evidente aparecia neste
caso para a instituição: o aspecto motor e as correções que teriam ou deveriam ser feitas
e a equipe era impedida. Nem ao menos podia ter acesso a esse “corpo doente” que
necessitava de “correção”.
Os pais contaram que quando havia atendimentos no setor de psicologia, eles
realmente não podiam comparecer e que também achavam desnecessário, pois o “lance”
era com a filha e não com eles.
Os médicos que seguiam o caso e os terapeutas, quando Emília ainda estava
“enquadrada” na instituição, tentavam explicar para os pais como tudo funcionava e
como eles deveriam se comportar com a filha, ou como a filha deveria se comportar ou
ainda, como os pais deveriam se comportar com a instituição. Era quase uma pedagogia
familiar! Parecia realmente insustentável para a instituição manter os atendimentos de
um paciente que o tempo todo devolvia como resposta a dificuldade de corresponder à
expectativa que se tinha desse paciente (e de qualquer outro).
A equipe não conseguia ouvir que essa família precisava de ajuda justamente
para poder ser ajudada no que queriam e no que essa mesma equipe também queria
trabalhar, porém, não havia entendimento mútuo, presas que estavam nas expectativas
idealizadas. Conversa de surdos...
No consultório, a família mostrava uma característica que a marcava: uma
dificuldade de responder aos acordos feitos: estavam sempre atrasados, desmarcavam os
atendimentos em cima da hora, não pagavam na data estabelecida. Quando estavam no
consultório ocupavam todos os espaços da sala de espera e esparramavam seus objetos
(brinquedos, atividades manuais, cadernos, lápis, dinheiro...) não conseguindo se
organizar, cumprir com sua parte.
Segundo Mannoni, “a criança é suporte daquilo que os pais não podem
enfrentar” 7. O que eles traziam dizia respeito à sua dinâmica e ao seu funcionamento
como casal parental e estrutura familiar.
ALINHAVANDO...
7
Mannoni, M. A criança, sua “doença e os outros” – Tradução de Mônica Seicman. São Paulo:
Via Lettera, 1999.
7
Nos atendimentos foi se mostrando a real demanda dessa família: o que
incomodava à equipe nem sequer havia sido percebido por essa família, pois sua queixa
era outra. Os pais sabiam que sua filha precisava de ajuda e ansiavam por ela, mas não
conseguiam entender o que os impediam de conseguir essa ajuda da instituição. Havia
algo que impedia o outro de se aproximar dessa criança, como se ela barrasse,
desprezasse, não considerasse ninguém, e os pais não percebiam isso.
Emília tratava a todos como uma soberana: ordenava e estabelecia tudo e assim
era feito. Mas, por quê?
Na história da família de Emília, a estruturação dos sujeitos ocorreu de forma
bastante singular, como, aliás com todos nós. Os papéis estavam confusos e
desorganizados, devo dizer, que nos atendimentos ao casal o significante organização
aparecia a todo momento, como algo inatingível e ao mesmo tempo desejado. Era algo
do que falavam, pediam auxílio e iam se apropriando lentamente, na medida em que
conseguiam se olhar em suas características, nas maneiras de lidar com as situações da
vida, na relação com as filhas e acerca deles próprios.
Sua mãe, vítima de maus-tratos, abuso sexual e abandono parental não conseguia
se supor senão numa condição de vítima. Emília, sua primeira filha, ocupou esse lugar
tirânico e imperativo e assim respondia a todos os outros, pois era assim que concebia
sua relação com o mundo, já que para a mãe, o outro era o tirano e a ela cabia o lugar de
vítima. Os pais não conseguiam promover interdições na filha, pois havia um fator que
apenas agravava a situação: a fragilidade física em que Emília estava metida. Era
impossível a esses pais, embebidos por essa trama familiar construída tão naturalmente
dessa forma, perceber que sua filha precisava de referenciais mais eficazes e que ela
ainda poderia ocupar outros lugares dentro da constelação familiar. O pai era aliado de
Emília, compactuava com ela na tirania em relação à figura materna. Estava muito
aconchegado nessa posição, mas nem sequer tinha consciência dessa dinâmica, que
passou a ficar cada vez mais evidente, a ponto de haver uma retomada de todo conteúdo
agressivo que permeava a relação conjugal e outros fatores que não poderiam ser
aprofundados nessa apresentação.
Então, qual era mesmo a demanda dessa família?
UMA BONECA QUE FALA!
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O que parecia ocorrer na equipe que recebeu essa família era a proposta de
corrigir as deformidades desse caso, ortopedicamente. Quero dizer com isso que a
demanda de atuação que a equipe apresenta é válida por um lado, mas poderia ser mais
abrangente se conseguisse também alcançar o sujeito que ali estava diante dessa equipe,
considerando a família e todas as questões ali existentes.
Então, há nesse sentido, um certo limite da instituição em olhar e receber esse
paciente. O que pode ocorrer em outro lugar que não neste lugar em que havia um certo
percurso a seguir? No consultório, haveria possibilidade de escuta, sem ter que
responder à demanda de tempo e produtividade que a instituição impunha.
Diante da forma como a instituição se configurava nesse caso, ficou
intensamente difícil para essa família permanecer ali, pois ela não se encaixava no perfil
institucional, o que obviamente causava certo desconforto nos técnicos já que eles
tinham que responder a partir do lugar que ocupavam.
Houve, associado a esse movimento uma dificuldade de manter uma
interlocução com a família e com a criança. O sintoma ali apresentado ganhou o
significado de “descaso” e inadequação. De um outro lugar, pode-se supor um tanto de
sofrimento que impedia essa família de funcionar e de alcançar a “melhora” para essa
criança, já que mesmo fora da instituição, eles buscavam ajuda e mantinham seus
atendimentos mesmo diante da proposta deles (os pais) também serem atendidos,
validando sua necessidade de rever e refletir algumas questões.
Era preciso compreender o fenômeno que impedia (e ainda impede de certa
forma) o manuseio e o tratamento dessa criança, para que se tentasse promover o
objetivo em si mesmo da reabilitação, que é o de re-habilitar uma criança de forma
plena, reconhecendo seu corpo e seu psiquismo, considerando a plenitude de um sujeito.
Talvez nesse sentido, o conceito de transferência que a Psicanálise nos oferece
pudesse ser aproveitado pela instituição para ao menos manter uma tentativa de alcançar
seu objetivo maior que era o de poder trabalhar com Emília. Considerando a
subjetividade dessa criança e de seus pais, a única maneira que eles poderiam
estabelecer uma relação era essa, produzindo esse efeito constratransferencial, que pude
sentir no consultório, ao conceber a transferência estabelecida. Ao receber
transferencialmente a carga que o caso suscita, sem considerar, sem conhecer a
9
transferência presente, a instituição reproduz o sempre aconteceu com eles, inclusive
com outros profissionais. A repetição se instaura e a possibilidade de êxito no trabalho
naufraga.
Sendo assim, talvez coubesse uma reflexão sobre esses conceitos de
transferência e contratransferência no âmbito institucional. Para que isso pudesse de
fato ocorrer seria preciso construir, gradativamente, um intervalo entre a demanda
imperativa da reabilitação e a escuta que o sujeito trás em seu corpo, sua história e sua
singularidade.
Moura (2003), diz que a instituição pode ser reinventada por todos que dela
participam, sem a visão ingênua de que não há hierarquia, mas assumindo a
possibilidade de escuta e demanda singular.
O que impedia de que os terapeutas conseguissem trabalhar com Emília era o
fato do outro não existir para ela como outro, apenas como uma extensão de seu desejo,
sem interdição, sem lei, apenas satisfação.
Ao receber essa família, o trabalho se desenvolveu no âmbito da compreensão de
tais fenômenos apresentados, junto com a proposta de olhar para eles, não de corrigi-los
ou “adequá-los”. Essa direção possibilitou aos pais a percepção parcial de sua dinâmica,
que refletia na filha. Puderam falar da agressividade presente nas relações ali
estabelecidas, da dificuldade de escuta entre eles mesmos e na história da relação do
casal e da relação com Emília, tanto com o pai como com a mãe. Conseguiram não
tomar o espaço analítico como local de terem apontadas suas “inadequações”, mas de
entender o que essa “desorganização” refletia.
Essa família, movimentando-se e implicando-se conseguiu começar a se olhar e
se reposicionar, o que teve um efeito direto no posicionamento de Emília com o outro.
Ora mais eficaz, ora menos, mas circulando.
Gradativamente, Emília começou a negociar algumas situações, atualmente
reconhecendo as letras do alfabeto, contando até 20 e incrivelmente, perguntando sobre
outras pessoas. Hoje está lidando melhor com a intervenção do outro em seu corpo e em
sua existência.
10
A possibilidade que a psicanálise oferece a partir de seus conceitos, pode
ampliar a contribuição da reabilitação para as peculiaridades da subjetividade, para que
a instituição não fique restrita a atender apenas aos que são “bem comportados” e
“adequados”. Para que em sua preocupação com a produtividade não se constituam
corpo robotizados, perigo de toda reabilitação (física, mental, social, educativa) de
engessar o sujeito, impondo expressões, considerando “inadequado” o que é o próprio
sintoma.
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Bibliografia
KEHL, M.R. - Lugares do feminino e do masculino na família – A criança na
contemporaneidade e a Psicanálise – In: Comparato, M. C. M e Monteiro, D. S.
F - Família e Sociedade: Diálogos Interdisciplinares - Volume I. Casa do
Psicólogo – SP. 2001.
MANNONI, M. A criança, sua “doença e os outros” – Tradução de Mônica Seicman.
São Paulo: Via Lettera, 1999.
MOURA, A. H. de - A Psicoterapia institucional e o clube dos saberes – Editora
Hucitec – São Paulo, 2003.
PINHO, G. S, - A Psicanálise e a clínica interdisciplinar com crianças – In: Correio
da APPOA – nº. 120, dezembro de 2003.
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UMA BONECA DE PANO Patrícia de Brito “`Mas o que você é, afinal