EDUCACIONAL Lira dos Vinte Anos Roteiro de Leitura Carlos Rogério D. Barreiros Álvares de Azevedo REVOLUÇÃO E DESCONSOLO O mal-do-século, espécie de postura romântica frente ao mundo, ou simplesmente um modo de viver típico de alguns homens do século XIX, tem origem na Revolução Francesa, na Revolução Industrial Inglesa e no Liberalismo. O ideário político, econômico e social da revolução de 1789 alterava radicalmente a relação do homem com o mundo em que vivia; se antes, no que se chamou Antigo Regime, a monarquia e a nobreza tinham em suas mãos as rédeas que conduziam o homem a seu destino, dando, a poucos, privilégios quaisquer que fossem, a burguesia, após a Revolução Francesa, fez que a individualidade, como nunca antes, estivesse em primeiro lugar. Não era mais a nobreza do sangue que ditava em que classe social o homem seria encaixado, mas unicamente o esforço que ele dedicasse ao trabalho. Nunca antes a tríade Igualdade, Liberdade e Fraternidade se fez valer tanto na história da humanidade: a individualidade era o pilar sobre o qual se sustentava o Liberalismo. Não eram apenas as relações sociais que se alteravam, mas a ciência do homem sobre o mundo, que poderia ser enxergado sob inúmeras óticas particulares. Ora, se todos eram livres e iguais em direito, a cada homem foi dado o privilégio de analisar a realidade segundo o critério particular que mais lhe conviesse. O mergulho dos homens na própria individualidade fez que a expressão artística do tempo se manifestasse de inúmeras maneiras, daí o caráter multifacetado do Romantismo, movimento literário da época. Qualquer expressão, idealista ou pessimista, seria autêntica, ligada que estava à subjetividade intrínseca do artista. No entanto, não demorou muito para que o Liberalismo, concebido pelos novos detentores do poder, se mostrasse contraditório e opressor. Se agora era livre ao homem o acesso à realização material segundo seu esforço particular, a competitividade e a hegemonia burguesa tornavam mentiroso ao menos o terceiro pilar dos ideais revolucionários. Solitário e oprimido, o artista só encontraria na sua subjetividade interior a verdadeira liberdade: é o mal-do-século, o tédio de viver, que enamorava-se pela morte por ser ela uma possibilidade de desligamento do mundo material e de expansão máxima da subjetividade do artista. Livre de formalismos, a sua única preocupação é expressar na obra o sentimento individual; ainda que movido por estímulos exteriores, é sob o crivo da subjetividade que deve surgir a obra de arte. No Brasil, os ideais liberalistas eram ainda mais contraditórios: os filhos das elites dominantes que voltavam dos estudos na Europa, sobretudo na França, embebidos das idéias revolucionárias deparavam-se com um país ainda escravista — diametralmente oposto ao que se aventava no Velho Mundo; depois da Independência política, em 1822, tentaram os jovens intelectuais brasileiros criar uma literatura autenticamente nacional, predispostos a, antes de tudo, desatar o quanto antes os nós que ligavam Brasil a Portugal. Finalmente, em 1836, com o lançamento de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, funda-se o Romantismo Brasileiro. Envaidecidos por serem — ou por pensarem ser — a primeira geração de escritores verdadeiramente nacionais, os românticos buscam no índio as raízes do Brasil, à moda dos autores europeus que encontravam na Idade Média a ascendência de seus povos. No entanto, a influência dos autores que mergulhavam na própria subjetividade, desiludidos pela propagação de ideais que se fizeram falsos, se fez também presente em terras brasileiras: forma-se a segunda geração romântica no Brasil, que tem sua maior expressão em Álvares de Azevedo. LITOBR0301 1 2 LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL ÁLVARES DE AZEVEDO E A BINOMIA DA LIRA DOS VINTE ANOS Nascido a 12 de setembro de 1831, em São Paulo, Manuel Antônio Álvares de Azevedo era filho de família paulista abastada, que se transferiu para o Rio de Janeiro em 1833. É lá que inicia e conclui brilhantemente seus estudos fundamentais. Em 1848, retorna a São Paulo, matriculado na Faculdade de Direito, desencantado e tedioso. A 25 de abril, falece no Rio de Janeiro, vítima de tuberculose. Nunca teve, em vida, uma obra publicada: Lira dos Vinte Anos vem a lume pela primeira vez em 1853, organizada pelo amigo e primo Domingos Jacy Monteiro. Além de poemas, escreveu prosa narrativa — Noite na Taverna — drama — Macário — e narrativas em verso — O Conde Lopo e Poema do Frade. A Lira dos Vinte Anos, segundo o próprio autor, tem sua unidade fundada numa binomia: duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco ou mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. Se a Lira tem como temas principais, de um lado, a idealização da mulher, o amor platônico, a paixão pela morte e o tédio de viver, de outro, tem a ironia, o humor e a capacidade de rir de si próprio e dos temas românticos. Pálida Inocência Cette image du ciel – innocente e beauté!1 Lamartine O título do poema e a citação de Lamartine — poeta romântico francês — já adiantam o tema sobre o qual versará o texto: a mulher inocente e pueril, ligada ao céu. Por que, pálida inocência, Os teus olhos em dormência A medo lanças em mim? No aperto de minha mão Que sonho do coração Tremeu-te os seios assim? Quem te dera a esperança De tua alma de criança, Que perfuma teu dormir! Quem dos sonhos te acordasse Que num beijo t’embalasse3 Desmaiada no sentir! E tuas falas divinas Em que amor lânguida2 afinas, Em que lânguido sonhar? E dormindo sem receio Por que geme no teu seio Ansioso suspirar? Quem te amasse! E um momento Respirando o teu alento4 Recendesse5 os lábios seus! Quem lera, divina e bela, Teu romance de donzela Cheia de amor e de Deus! Inocência! Quem dissera De tua azul primavera As tuas brisas de amor! Oh! Quem teus lábios sentira E que trêmulo te abrira Dos sonhos a tua flor! 1 2 3 4 5 – – – – – “Esta imagem do céu — inocência e beleza” Mórbido, sensual Aconchegar no peito Hálito, respiração, inspiração Ter cheiro agradável e intenso, cheirar agradavelmente A musa pálida e inocente dorme e o eu vela seu sono, observando-lhe os movimentos. A languidez é mórbida e sensual a um só tempo, fazendo da mulher que está deitada imagem platônica do amor. A atmosfera sonolenta faz devanear o eu, envolto pelas imagens sensuais ligadas à mulher: os lábios, a pureza infantil, a palidez; acordá-la, beijá-la, sentir-lhe o hálito. A referência final a Deus ata as duas pontas do poema: como que acordado de um sonho e ciente de ser intocável a musa, o eu a faz quase santa. Análise semelhante cabe ao poema abaixo, sem título, cuja citação já se trata de devaneio: Dreams! Dreams! Dreams! W. Cowper1 Quando à noite no leito perfumado Lânguida fronte no sonhar reclinas, No vapor da ilusão por que te orvalha2 Pranto de amor as pálpebras divinas? LITOBR0301 1 – “Sonhos! Sonhos! Sonhos!”, W. Cowper (1731–1800), poeta inglês. 2 – Molha, umedece LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL Observando mais uma vez a face lânguida da musa que dorme, o eu pergunta a ela por que as lágrimas enchem-lhe os olhos. São notáveis as inversões e a metrificação regular, princípios formais que evidenciam a idealização da mulher. E, quando eu te contemplo adormecida Solto o cabelo no suave leito, Por que um suspiro tépido3 ressona4 E desmaia suavíssimo em teu peito? 3 – Morno, frouxo, fraco 4 – Respirar com regularidade, dormindo O suave ressonar da musa parece angelical quando comparado ao ronco barulhento da lavadeira de É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!: É ela! é ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe murmurou — é ela! Eu a vi — minha fada aérea e pura — Minha lavadeira na janela! Dessas águas furtadas onde eu moro Eu a vejo estendendo no telhado Os vestidos de chita, as saias brancas; Eu a vejo e suspiro enamorado! Irônico, como que rindo da própria condição, o eu tem por musa uma lavadeira que ele chama de fada aérea e pura e por quem suspira de amor. Esta noite eu ousei mais atrevido Nas telhas que estalavam nos meus passos Ir espiar seu venturoso sono, Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! Como dormia! Que profundo sono!... Tinha na mão o ferro do engomado... Como roncava maviosa e pura!... Quase caí na rua desmaiado! O ronco mavioso e puro destoa do ressonar tépido do texto analisado anteriormente: é a binomia da Lira dos Vinte Anos, colocando de um lado a musa pálida, idealizada; do outro, na segunda parte do livro, a lavadeira cuja feição tornar-se-á cômica aos olhos do leitor. Afastei a janela, entrei medroso: Palpitava-lhe o seio adormecido... Fui beijá-la... roubei do seio dela Um bilhete que estava ali metido... LITOBR0301 3 A semelhança do segundo verso com tantos outros da Lira — Era mais bela! O seio palpitando... — confima a hipótese de ironia. A surpresa que se esconde nos seios da lavadeira, revelada depois de uma atmosfera de mistério e suspense, recheada de imagens que ironizam o eu romântico — São versos dela... que amanhã de certo / Ela me enviará cheios de flores... — encerra o poema: Oh! De certo... (pensei) é doce página Onde a alma derramou gentis amores; São versos dela... que amanhã de certo Ela me enviará cheios de flores... Tremi de febre! Venturosa folha! Quem pousasse contigo neste seio! Como Otelo beijando a sua esposa, Eu beijei-a a tremer de devaneio... É ela! É ela! – repeti tremendo; Mas cantou nesse instante uma coruja... Abri cioso a página secreta... Oh! Meu Deus! Era um rol1 de roupa suja! Mas se Werther2 morreu por ver Carlota Dando pão com manteiga às criancinhas, Se achou-a assim mais bela, — eu mais te adoro Sonhando-te a lavar as camisinhas! É ela! É ela! Meu amor, minh’alma, A Laura, a Beatriz3 que o céu revela... É ela! É ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe suspirou — é ela! – 1 – Lista 2 – Personagem de Goethe 3 – as musas de Dante e Petrarca A sátira às imagens românticas não pára na revelação quase grotesca de que o papel não guardava versos, mas uma lista de roupas sujas: o beijo é comparado ao beijo de Otelo; o amor é comparado ao de Werther; a lavadeira é comparada às musas clássicas de Petrarca e de Dante, respectivamente. Se o eu é capaz de cantar tão docemente sua musa, pode também escarniçá-la. É a cisão binômica da Lira dos Vinte Anos. É notável, também, que a lavadeira, mulher de origem humilde, é satirizada, o que não acontece com as musas da primeira parte, santificadas pelo eu. Os autores e o estilo clássico, alvos da mesma ironia, na primeira parte podem ser um mote muito bem glosado: 4 LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL Pálida à luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar, na escuma1fria Pela maré das águas embalada! Era um anjo entre nuvens d’alvorada2 Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! O seio palpitando3... Negros olhos as pálpebras abrindo... Formas nuas no leito resvalando4... Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti — as noites eu velei chorando, Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo! 1 – espuma 2 – o despontar da manhã 3 – bater o coração, pulsar 4 – deslizando Se é o soneto a forma poética clássica por excelência, a metrificação regular, as rimas e as inversões sintáticas confirmam que as imagens da musa estarão, mais uma vez, atadas ao ideal. Pálida, ela está próxima da morte pelo espaço que ocupa — sobre o leito de flores reclinada — e pela comparação que se faz entre ela e a lua embalsamada pela noite. As palavras virgem e anjo, na segunda estrofe, enfatizamlhe a pureza, e a praia da noite e da alvorada é onírica. A sensação de deparar-se com a musa acordada não é descrita com o mesmo tom: ela se ri do eu, firmando a impossibilidade de realização amorosa. É de se notar que a morte, tema que será explorado adiante, é ligada, no último verso, ao sonho e à alegria. O devaneio pode chegar ao extremo, como se apresenta em A T… A T... No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus. Propércio A citação ao poeta latino nascido no primeiro século antes de Cristo dá, novamente, aura clássica ao texto e, como será observado, a musa é idêntica às estudadas acima: lânguida, envolta pelas nuvens e pela noite, virginal, pálida. O título é misterioso e caro aos românticos: esconde-se a identidade da amada. LITOBR0301 Amoroso palor1 meu rosto inunda, Mórbida languidez me banha os olhos, Ardem sem sono as pálpebras doridas2, Convulsivo3 tremor meu corpo vibra: Quanto sofro por ti! Nas longas noites Adoeço de amor e de desejo E nos meus olhos desmaiando passa A imagem voluptuosa da ventura... Eu sinto-a de paixão erguer a brisa, Embalsamar a noite e o céu sem nuvens, E ela mesma suave descorando4 Os alvacentos5 véus soltar do colo, Cheirosas flores desparzir6 sorrindo Da mágica cintura. Sinto na fronte pétalas de flores, Sinto-as nos lábios e de amor suspiro. Mas flores e perfumes embriagam, E no fogo da febre, e em meu delírio Embebem na minh’alma enamorada Delicioso veneno. 1 2 3 4 5 6 – palidez – em que há dor – em que há convulsão, agitação violenta, desordenada – perder a cor, empalidecer – esbranquiçados – espalhar As circunstâncias em que o eu se coloca são febris, insones, convulsivas: é o sofrimento amoroso que toma o corpo e o universo do poema, fazendo-o espasmódico e sonolento, como que cambaleante de amor — repare a cadência sonora dos versos, com a tonicidade: A imagem voluptuosa da ventura... Eu sinto-a de paixão erguer a brisa. A imagem da musa é voluptuosa e noturna, pálida — descorando os alvacentos véus — quase cadavérica, — Eu sinto-a (...) embalsamar a noite e o céu sem nuvens — imergindo o eu ainda mais na escuridão, na febre noturna, no delírio, que o envenena de amor. Estrela de mistério, em tua fronte Os céus revela, e mostra-me na terra, Como um anjo que dorme, a tua imagem E teus encantos onde amor estende Nessa morena tez a cor de rosa. Meu amor, minha vida, eu sofro tanto! O fogo de teus olhos me fascina, O languor de teus olhos me enlanguesce, Cada suspiro que te abala o seio Vem no meu peito enlouquecer minh’alma! LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL O veneno que entorpecia faz efeito: o eu está enlouquecido, tomado pelo fogo dos olhos da mulher, pela tez rósea, viva, que se opõe às nuvens, sonhos e vaporosidades da primeira estrofe: o devaneio, carnal que se tornou, parece ter de fato materializado a imagem da musa diante do eu ávido de amor. Ah! Vem, pálida virgem, se tens pena De quem morre por ti, e morre amando, Dá vida em teu alento à minha vida, Une nos lábios meus minh’alma à tua! Eu quero ao pé de ti sentir o mundo Na tua alma infantil; na tua fronte Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros Sentir as vibrações do paraíso; E a teus pés, de joelhos, crer ainda Que não mente o amor que um anjo inspira, Que eu posso na tua alma ser ditoso, Beijar-te nos cabelos soluçando E no teu seio ser feliz morrendo! Os quatro primeiros versos são construídos com verbos no modo imperativo: são as súplicas à pálida virgem; é por ela que o eu morre, são os lábios dela a fibra que pode atar as duas almas. A alma feminina é infantil, logo pura e, portanto, sua fronte emite a luz divina, e é aos seus pés que se manifestam as vibrações do paraíso. Mais: ela é a última esperança de que haja amor digno da devoção do eu, até a morte — E a teus pés, de joelhos. A ambientação é sempre, como se pode observar, enfumaçada e tomada pela embriaguez, pela febre, como se o poema expressasse os devaneios amorosos do eu, sempre habitados pela musa intangível cujas formas, ao mesmo tempo lascivas e pueris, o tomam de sobressalto à noite. Em A Cantiga do Sertanejo e Na Minha Terra o ambiente é a pátria, ainda que tomada pela visão idílica do poeta, em que figura, novamente, a musa: A Cantiga do Sertanejo Love me ande leave me not Shakespeare, O Mercador de Veneza1 Donzela! Se tu quiseras Ser a flor das primaveras Que tenho no coração! E se ouviras o desejo Do amoroso sertanejo Que descora de paixão! LITOBR0301 5 Se tu viesses comigo Das serras ao desabrigo Aprender o que é amar — Ouvi-lo no frio vento, Das aves no sentimento, Nas águas e no luar! — Ouvi-lo nessa viola, Onde a modinha espanhola Sabe carpir2 e gemer Que pelas horas perdidas Tem cantigas doloridas, Muito amor! Muito doer! Pobre amor! O sertanejo Tem apenas seu desejo E as noites belas do val3! Só — o ponche adamascado, O trabuco prateado E o ferro de seu punhal! 1 – “Ame-me e não me deixe”, William Shakespeare 2 – lamentar-se 3 – Vale A donzela é convocada a ser a companheira do eu, a aprender com ele o que é amar, ouvir com ele a cantiga do sertanejo, que canta a dor amorosa. Os versos são redondilhas maiores, forma poética popular. Ao longo do texto, o sertão — tomado aqui como interior — torna-se cenário dos convites enamorados do eu: E na caverna sombria Tem ali mais harmonia E mais fogo o suspirar! Mais fervoroso o desejo Vai sobre os lábios num beijo Enlouquecer, desmaiar! E da noite nas ternuras A paixão tem mais venturas E fala com mais ardor! E os perfumes, o luar, E as aves a suspirar, Tudo canta e diz amor! O amor no sertão é mais autêntico; os suspiros são mais fogosos; o desejo, mais fervoroso. Enfim, é no sertão que se realiza o amor. A cor local é também tema de Na Minha Terra, mas é segundo a subjetividade do eu que se observam os tons locais: 6 LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL Não é mais bela, não, a argêntea praia Que beija o mar do sul, Onde o eterno perfume a flor desmaia E o céu é sempre azul; (...) Mais formoso não é: não doire embora O verão tropical Com seus rubores a alvacenta aurora Na montanha natal, Nem tão doirada se levante a lua Pela noite do céu, Mas venha triste, pensativa — e nua Do prateado véu — Que me importa? Se as tardes purpurinas E as auroras dali Não deram luz às diáfanas cortinas Do leito onde eu nasci? Se adormeço tranqüilo no teu seio E perfuma-se a flor Que Deus abriu no peito do poeta, Gotejante de amor? Minha terra sombria, és sempre bela, Inda pálida a vida Como o sono inocente da donzela No deserto dormida! No italiano céu nem mais suaves São da noite os amores, Nem tem mais fogo o cântico das aves Nem o vale mais flores! No trecho acima, retirado da segunda parte do poema, o poeta compara sua terra a outras. Ainda que nela a lua não se levante tão dourada como o faz em outras paragens, será sempre mais bela, equivalente à donzela que adormeceu no deserto. Até mesmo a Itália — cantada no poema seguinte da Lira dos Vinte Anos — não tem os amores da terra natal. Curioso é observar que os tons típicos não são, como na primeira fase do romantismo brasileiro, que teve seu ápice em Golçalves Dias, o motivo poético, mas cenários pelos quais a subjetividade do eu transita. A paixão pela morte surge como alternativa para o eu que não se encaixa no mundo: LITOBR0301 Lembrança de Morrer No more! O never more! Shelley1 Quando em meu peito rebentar-se a fibra Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento2. 1 – “Não mais! Oh nunca mais!”, Shelley, poeta romântico inglês 2 – Morte Já que se considera matéria impura, o eu afirma que não quer lágrimas pela sua morte: a alegria não se deve calar por ela. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento3 caminheiro — Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre4 de um sineiro; Como o desterro de minh’alma errante5 Onde fogo insensato a consumia: Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia6 3 – poeirento 4 – som produzido pelo sino 5 – que vaga sem destino A vida é dolorosa, entediante, longo pesadelo que não vale a pena ser vivido: o poeirento caminheiro que abandona o tédio do deserto é a imagem que o eu faz de si, e a única saudade que leva da vida é a ilusão amorosa. Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas… De ti, ó minha mãe, pobre coitada Que por minha tristeza te definhas! Àquela saudade é atada uma outra: a da mãe, fiel em velar o filho à noite, quando se aproximava a morte. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda É pela virgem que sonhei… que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo… Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu, eu vou amar contigo! 7 LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL Se ainda há vida no peito, é graças à virgem dos sonhos do eu, que nunca o beijou. A morte surge como plano superior de realização amorosa: é depois dela que o sonho do beijo será realizado com a mulher que é virgem e filha do céu. À paixão pela morte e à impossibilidade de realização amorosa alia-se o tédio de viver, que pode ser observado no mesmo texto: há poucos motivos para saudades. Em Namoro a Cavalo, o ambiente é o Rio de Janeiro, mas a abordagem é irônica: Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça Que rege minha vida malfadada Pôs lá no fim da rua do Catete A minha Dulcinéia namorada. Alugo (três mil réis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela1!) Só para erguer meus olhos suspirando A minha namorada na janela… 1 – engano O cavaleiro apaixonado, herói tão caro aos românticos, é na verdade um trapalhão: a amada — comparada a Dulcinéia, musa de Dom Quixote — mora em uma rua distante e apenas vê-la custa abusos financeiros: Todo meu ordenado2 vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Algum verso bonito… mas furtado. Morro pela menina, junto dela Nem ouso suspirar de acanhamento… Se ela quisesse eu acabava a história Como toda Comédia — em casamento. 2 – salário Dedicado e apaixonado, o amante escreve versos furtados, envia flores e promete até casamento. Mas está fadado ao insucesso: suja-se de lama no caminho, a amada fecha-lhe a janela, o cavalo o derruba, rasga-lhe a calça. Ontem tinha chovido… que desgraça! Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Mas lá vai senão quando uma carroça Minhas roupas tafuis3 encheu de lama… Eu não desanimei. Se Dom Quixote No Roncinante4 erguendo a larga espada Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada… LITOBR0301 Mas eis que no passar pelo sobrado Onde habita nas lojas minha bela Por ver-me tão lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas5 na janela… O cavalo ignorante de namoros Entre dentes tomou a bofetada Arripia-se, pula e dá-me um tombo Com pernas para o ar, sobre a calçada… Dei ao diabo os namoros. Escovado Meu chapéu que sofrera no pagode6 Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstância agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!… 3 4 5 6 – – – – elegantes o cavalo de Dom Quixote nariz a trapalhada por que passou o cavaleiro Álvares de Azevedo é sarcástico com as imagens românticas: deixa de lado a mulher ideal, o tédio de viver, as praias e os ambientes fumaçentos para rir deles. ÁLVARES DE AZEVEDO E O ROMANTISMO BRASILEIRO Já que se observam na Lira dos Vinte Anos duas facetas de um mesmo autor, é preciso analisá-las cuidadosamente: ao mesmo tempo, a subjetividade romântica se manifesta idealizante — pretendendo a morte como desligamento do mundo que não permite expressão — e realista — leia-se pessimista e irônica. A praia, a embriaguez, o sonho, o delírio e a demência são o ambiente do eu que busca a mulher ideal, tornando o texto difuso, como se a forma fosse tomada pela imprecisão intrínseca ao devaneio. A pátria, o quarto obscuro e lutulento são o ambiente do eu que está ciente do mundo que pouco ou nada lhe oferece; o escárnio da condição em que se encontra torna ácidas as ironias, fazendo da mulher do povo uma rameira e do cavaleiro romântico um pateta. Seria injusto afirmar que Álvares de Azevedo, ao contrário dos poetas da geração anterior, não colaborou com a formação da literatura de fato nacional: as aflições do eu eram autenticamente brasileiras. Note-se que aqui aventavam-se as idéias liberais, principalmente nos meios freqüentados pelo poeta, e a escravidão só foi abolida em 1888, sem que os poemas caíssem na mera descrição ou cópia dos motivos importados da Europa, o que faz de Álvares de Azevedo o grande nome do ultra-romantismo brasileiro. 8 Anota Ções: LITOBR0301 LIRA DOS VINTE ANOS EDUCACIONAL