EDUCACIONAL
Lira dos Vinte Anos
Roteiro de Leitura
Carlos Rogério D. Barreiros
Álvares de Azevedo
REVOLUÇÃO E DESCONSOLO
O mal-do-século, espécie de postura romântica frente ao mundo, ou simplesmente um modo de viver típico de alguns homens do
século XIX, tem origem na Revolução Francesa, na Revolução Industrial Inglesa e no Liberalismo.
O ideário político, econômico e social da revolução de 1789 alterava radicalmente a relação do homem com o mundo em que vivia;
se antes, no que se chamou Antigo Regime, a monarquia e a nobreza tinham em suas mãos as rédeas que conduziam o homem a seu
destino, dando, a poucos, privilégios quaisquer que fossem, a burguesia, após a Revolução Francesa, fez que a individualidade,
como nunca antes, estivesse em primeiro lugar. Não era mais a nobreza do sangue que ditava em que classe social o homem seria
encaixado, mas unicamente o esforço que ele dedicasse ao trabalho. Nunca antes a tríade Igualdade, Liberdade e Fraternidade se fez
valer tanto na história da humanidade: a individualidade era o pilar sobre o qual se sustentava o Liberalismo. Não eram apenas as
relações sociais que se alteravam, mas a ciência do homem sobre o mundo, que poderia ser enxergado sob inúmeras óticas
particulares.
Ora, se todos eram livres e iguais em direito, a cada homem foi dado o privilégio de analisar a realidade segundo o critério particular
que mais lhe conviesse. O mergulho dos homens na própria individualidade fez que a expressão artística do tempo se manifestasse
de inúmeras maneiras, daí o caráter multifacetado do Romantismo, movimento literário da época. Qualquer expressão, idealista ou
pessimista, seria autêntica, ligada que estava à subjetividade intrínseca do artista.
No entanto, não demorou muito para que o Liberalismo, concebido pelos novos detentores do poder, se mostrasse contraditório e
opressor. Se agora era livre ao homem o acesso à realização material segundo seu esforço particular, a competitividade e a hegemonia
burguesa tornavam mentiroso ao menos o terceiro pilar dos ideais revolucionários. Solitário e oprimido, o artista só encontraria na
sua subjetividade interior a verdadeira liberdade: é o mal-do-século, o tédio de viver, que enamorava-se pela morte por ser ela uma
possibilidade de desligamento do mundo material e de expansão máxima da subjetividade do artista. Livre de formalismos, a sua
única preocupação é expressar na obra o sentimento individual; ainda que movido por estímulos exteriores, é sob o crivo da
subjetividade que deve surgir a obra de arte.
No Brasil, os ideais liberalistas eram ainda mais contraditórios: os filhos das elites dominantes que voltavam dos estudos na Europa,
sobretudo na França, embebidos das idéias revolucionárias deparavam-se com um país ainda escravista — diametralmente oposto
ao que se aventava no Velho Mundo; depois da Independência política, em 1822, tentaram os jovens intelectuais brasileiros criar
uma literatura autenticamente nacional, predispostos a, antes de tudo, desatar o quanto antes os nós que ligavam Brasil a Portugal.
Finalmente, em 1836, com o lançamento de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, funda-se o Romantismo
Brasileiro. Envaidecidos por serem — ou por pensarem ser — a primeira geração de escritores verdadeiramente nacionais, os
românticos buscam no índio as raízes do Brasil, à moda dos autores europeus que encontravam na Idade Média a ascendência de
seus povos. No entanto, a influência dos autores que mergulhavam na própria subjetividade, desiludidos pela propagação de ideais
que se fizeram falsos, se fez também presente em terras brasileiras: forma-se a segunda geração romântica no Brasil, que tem sua
maior expressão em Álvares de Azevedo.
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LIRA DOS VINTE ANOS
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ÁLVARES DE AZEVEDO E A BINOMIA DA LIRA DOS VINTE ANOS
Nascido a 12 de setembro de 1831, em São Paulo, Manuel Antônio Álvares de Azevedo era filho de família paulista abastada, que se
transferiu para o Rio de Janeiro em 1833. É lá que inicia e conclui brilhantemente seus estudos fundamentais. Em 1848, retorna a São
Paulo, matriculado na Faculdade de Direito, desencantado e tedioso. A 25 de abril, falece no Rio de Janeiro, vítima de tuberculose.
Nunca teve, em vida, uma obra publicada: Lira dos Vinte Anos vem a lume pela primeira vez em 1853, organizada pelo amigo e primo
Domingos Jacy Monteiro. Além de poemas, escreveu prosa narrativa — Noite na Taverna — drama — Macário — e narrativas em
verso — O Conde Lopo e Poema do Frade.
A Lira dos Vinte Anos, segundo o próprio autor, tem sua unidade fundada numa binomia: duas almas que moram nas cavernas
de um cérebro pouco ou mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. Se a Lira tem
como temas principais, de um lado, a idealização da mulher, o amor platônico, a paixão pela morte e o tédio de viver, de outro, tem
a ironia, o humor e a capacidade de rir de si próprio e dos temas românticos.
Pálida Inocência
Cette image du ciel – innocente e beauté!1
Lamartine
O título do poema e a citação de Lamartine — poeta romântico francês — já adiantam o tema sobre o qual versará o texto: a mulher
inocente e pueril, ligada ao céu.
Por que, pálida inocência,
Os teus olhos em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse
Que num beijo t’embalasse3
Desmaiada no sentir!
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida2 afinas,
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Quem te amasse! E um momento
Respirando o teu alento4
Recendesse5 os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheia de amor e de Deus!
Inocência! Quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! Quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
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–
“Esta imagem do céu — inocência e beleza”
Mórbido, sensual
Aconchegar no peito
Hálito, respiração, inspiração
Ter cheiro agradável e intenso, cheirar agradavelmente
A musa pálida e inocente dorme e o eu vela seu sono, observando-lhe os movimentos. A languidez é mórbida e sensual a um só
tempo, fazendo da mulher que está deitada imagem platônica do amor. A atmosfera sonolenta faz devanear o eu, envolto pelas
imagens sensuais ligadas à mulher: os lábios, a pureza infantil, a palidez; acordá-la, beijá-la, sentir-lhe o hálito. A referência final a
Deus ata as duas pontas do poema: como que acordado de um sonho e ciente de ser intocável a musa, o eu a faz quase santa. Análise
semelhante cabe ao poema abaixo, sem título, cuja citação já se trata de devaneio:
Dreams! Dreams! Dreams!
W. Cowper1
Quando à noite no leito perfumado
Lânguida fronte no sonhar reclinas,
No vapor da ilusão por que te orvalha2
Pranto de amor as pálpebras divinas?
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1 – “Sonhos! Sonhos! Sonhos!”, W. Cowper (1731–1800),
poeta inglês.
2 – Molha, umedece
LIRA DOS VINTE ANOS
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Observando mais uma vez a face lânguida da musa que dorme,
o eu pergunta a ela por que as lágrimas enchem-lhe os olhos.
São notáveis as inversões e a metrificação regular, princípios
formais que evidenciam a idealização da mulher.
E, quando eu te contemplo adormecida
Solto o cabelo no suave leito,
Por que um suspiro tépido3 ressona4
E desmaia suavíssimo em teu peito?
3 – Morno, frouxo, fraco
4 – Respirar com regularidade, dormindo
O suave ressonar da musa parece angelical quando comparado
ao ronco barulhento da lavadeira de É Ela! É Ela! É Ela! É
Ela!:
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi — minha fada aérea e pura —
Minha lavadeira na janela!
Dessas águas furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Irônico, como que rindo da própria condição, o eu tem por
musa uma lavadeira que ele chama de fada aérea e pura e por
quem suspira de amor.
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
O ronco mavioso e puro destoa do ressonar tépido do texto
analisado anteriormente: é a binomia da Lira dos Vinte Anos,
colocando de um lado a musa pálida, idealizada; do outro, na
segunda parte do livro, a lavadeira cuja feição tornar-se-á
cômica aos olhos do leitor.
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
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A semelhança do segundo verso com tantos outros da Lira
— Era mais bela! O seio palpitando... — confima a hipótese
de ironia. A surpresa que se esconde nos seios da lavadeira,
revelada depois de uma atmosfera de mistério e suspense,
recheada de imagens que ironizam o eu romântico — São
versos dela... que amanhã de certo / Ela me enviará cheios de
flores... — encerra o poema:
Oh! De certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! – repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol1 de roupa suja!
Mas se Werther2 morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, — eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! É ela! Meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz3 que o céu revela...
É ela! É ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela! –
1 – Lista
2 – Personagem de Goethe
3 – as musas de Dante e Petrarca
A sátira às imagens românticas não pára na revelação quase
grotesca de que o papel não guardava versos, mas uma lista
de roupas sujas: o beijo é comparado ao beijo de Otelo; o amor
é comparado ao de Werther; a lavadeira é comparada às musas
clássicas de Petrarca e de Dante, respectivamente. Se o eu é
capaz de cantar tão docemente sua musa, pode também
escarniçá-la. É a cisão binômica da Lira dos Vinte Anos. É
notável, também, que a lavadeira, mulher de origem humilde, é
satirizada, o que não acontece com as musas da primeira parte,
santificadas pelo eu. Os autores e o estilo clássico, alvos da
mesma ironia, na primeira parte podem ser um mote muito bem
glosado:
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LIRA DOS VINTE ANOS
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Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
Era a virgem do mar, na escuma1fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada2
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era mais bela! O seio palpitando3...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando4...
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando,
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
1 – espuma
2 – o despontar da manhã
3 – bater o coração, pulsar
4 – deslizando
Se é o soneto a forma poética clássica por excelência, a
metrificação regular, as rimas e as inversões sintáticas
confirmam que as imagens da musa estarão, mais uma vez,
atadas ao ideal. Pálida, ela está próxima da morte pelo espaço
que ocupa — sobre o leito de flores reclinada — e pela
comparação que se faz entre ela e a lua embalsamada pela
noite. As palavras virgem e anjo, na segunda estrofe, enfatizamlhe a pureza, e a praia da noite e da alvorada é onírica. A
sensação de deparar-se com a musa acordada não é descrita
com o mesmo tom: ela se ri do eu, firmando a impossibilidade
de realização amorosa. É de se notar que a morte, tema que
será explorado adiante, é ligada, no último verso, ao sonho e à
alegria. O devaneio pode chegar ao extremo, como se apresenta
em A T…
A T...
No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus.
Propércio
A citação ao poeta latino nascido no primeiro século antes de
Cristo dá, novamente, aura clássica ao texto e, como será
observado, a musa é idêntica às estudadas acima: lânguida,
envolta pelas nuvens e pela noite, virginal, pálida. O título é
misterioso e caro aos românticos: esconde-se a identidade da
amada.
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Amoroso palor1 meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas2,
Convulsivo3 tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejo
E nos meus olhos desmaiando passa
A imagem voluptuosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão erguer a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando4
Os alvacentos5 véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir6 sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh’alma enamorada
Delicioso veneno.
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– palidez
– em que há dor
– em que há convulsão, agitação violenta, desordenada
– perder a cor, empalidecer
– esbranquiçados
– espalhar
As circunstâncias em que o eu se coloca são febris, insones,
convulsivas: é o sofrimento amoroso que toma o corpo e o
universo do poema, fazendo-o espasmódico e sonolento,
como que cambaleante de amor — repare a cadência sonora
dos versos, com a tonicidade: A imagem voluptuosa da
ventura... Eu sinto-a de paixão erguer a brisa. A imagem da
musa é voluptuosa e noturna, pálida — descorando os
alvacentos véus — quase cadavérica, — Eu sinto-a (...)
embalsamar a noite e o céu sem nuvens — imergindo o eu
ainda mais na escuridão, na febre noturna, no delírio, que o
envenena de amor.
Estrela de mistério, em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa.
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O languor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh’alma!
LIRA DOS VINTE ANOS
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O veneno que entorpecia faz efeito: o eu está enlouquecido,
tomado pelo fogo dos olhos da mulher, pela tez rósea, viva,
que se opõe às nuvens, sonhos e vaporosidades da primeira
estrofe: o devaneio, carnal que se tornou, parece ter de fato
materializado a imagem da musa diante do eu ávido de amor.
Ah! Vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh’alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as vibrações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tua alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!
Os quatro primeiros versos são construídos com verbos no
modo imperativo: são as súplicas à pálida virgem; é por ela
que o eu morre, são os lábios dela a fibra que pode atar as duas
almas. A alma feminina é infantil, logo pura e, portanto, sua
fronte emite a luz divina, e é aos seus pés que se manifestam as
vibrações do paraíso. Mais: ela é a última esperança de que
haja amor digno da devoção do eu, até a morte — E a teus pés,
de joelhos.
A ambientação é sempre, como se pode observar, enfumaçada
e tomada pela embriaguez, pela febre, como se o poema
expressasse os devaneios amorosos do eu, sempre habitados
pela musa intangível cujas formas, ao mesmo tempo lascivas e
pueris, o tomam de sobressalto à noite. Em A Cantiga do
Sertanejo e Na Minha Terra o ambiente é a pátria, ainda que
tomada pela visão idílica do poeta, em que figura, novamente,
a musa:
A Cantiga do Sertanejo
Love me ande leave me not
Shakespeare, O Mercador de Veneza1
Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!
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Se tu viesses comigo
Das serras ao desabrigo
Aprender o que é amar
— Ouvi-lo no frio vento,
Das aves no sentimento,
Nas águas e no luar!
— Ouvi-lo nessa viola,
Onde a modinha espanhola
Sabe carpir2 e gemer
Que pelas horas perdidas
Tem cantigas doloridas,
Muito amor! Muito doer!
Pobre amor! O sertanejo
Tem apenas seu desejo
E as noites belas do val3!
Só — o ponche adamascado,
O trabuco prateado
E o ferro de seu punhal!
1 – “Ame-me e não me deixe”, William Shakespeare
2 – lamentar-se
3 – Vale
A donzela é convocada a ser a companheira do eu, a aprender
com ele o que é amar, ouvir com ele a cantiga do sertanejo,
que canta a dor amorosa. Os versos são redondilhas maiores,
forma poética popular. Ao longo do texto, o sertão — tomado
aqui como interior — torna-se cenário dos convites
enamorados do eu:
E na caverna sombria
Tem ali mais harmonia
E mais fogo o suspirar!
Mais fervoroso o desejo
Vai sobre os lábios num beijo
Enlouquecer, desmaiar!
E da noite nas ternuras
A paixão tem mais venturas
E fala com mais ardor!
E os perfumes, o luar,
E as aves a suspirar,
Tudo canta e diz amor!
O amor no sertão é mais autêntico; os suspiros são mais
fogosos; o desejo, mais fervoroso. Enfim, é no sertão que se
realiza o amor. A cor local é também tema de Na Minha Terra,
mas é segundo a subjetividade do eu que se observam os tons
locais:
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LIRA DOS VINTE ANOS
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Não é mais bela, não, a argêntea praia
Que beija o mar do sul,
Onde o eterno perfume a flor desmaia
E o céu é sempre azul;
(...)
Mais formoso não é: não doire embora
O verão tropical
Com seus rubores a alvacenta aurora
Na montanha natal,
Nem tão doirada se levante a lua
Pela noite do céu,
Mas venha triste, pensativa — e nua
Do prateado véu —
Que me importa? Se as tardes purpurinas
E as auroras dali
Não deram luz às diáfanas cortinas
Do leito onde eu nasci?
Se adormeço tranqüilo no teu seio
E perfuma-se a flor
Que Deus abriu no peito do poeta,
Gotejante de amor?
Minha terra sombria, és sempre bela,
Inda pálida a vida
Como o sono inocente da donzela
No deserto dormida!
No italiano céu nem mais suaves
São da noite os amores,
Nem tem mais fogo o cântico das aves
Nem o vale mais flores!
No trecho acima, retirado da segunda parte do poema, o poeta
compara sua terra a outras. Ainda que nela a lua não se levante
tão dourada como o faz em outras paragens, será sempre mais
bela, equivalente à donzela que adormeceu no deserto. Até
mesmo a Itália — cantada no poema seguinte da Lira dos
Vinte Anos — não tem os amores da terra natal. Curioso é
observar que os tons típicos não são, como na primeira fase
do romantismo brasileiro, que teve seu ápice em Golçalves
Dias, o motivo poético, mas cenários pelos quais a
subjetividade do eu transita.
A paixão pela morte surge como alternativa para o eu que
não se encaixa no mundo:
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Lembrança de Morrer
No more! O never more!
Shelley1
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento2.
1 – “Não mais! Oh nunca mais!”, Shelley, poeta romântico
inglês
2 – Morte
Já que se considera matéria impura, o eu afirma que não quer
lágrimas pela sua morte: a alegria não se deve calar por ela.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento3 caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre4 de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante5
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia6
3 – poeirento
4 – som produzido pelo sino
5 – que vaga sem destino
A vida é dolorosa, entediante, longo pesadelo que não vale
a pena ser vivido: o poeirento caminheiro que abandona o
tédio do deserto é a imagem que o eu faz de si, e a única
saudade que leva da vida é a ilusão amorosa.
Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas…
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
Àquela saudade é atada uma outra: a da mãe, fiel em velar o
filho à noite, quando se aproximava a morte.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei… que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo…
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
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LIRA DOS VINTE ANOS
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Se ainda há vida no peito, é graças à virgem dos sonhos do eu,
que nunca o beijou. A morte surge como plano superior de
realização amorosa: é depois dela que o sonho do beijo será
realizado com a mulher que é virgem e filha do céu. À paixão
pela morte e à impossibilidade de realização amorosa alia-se o
tédio de viver, que pode ser observado no mesmo texto: há
poucos motivos para saudades.
Em Namoro a Cavalo, o ambiente é o Rio de Janeiro, mas a
abordagem é irônica:
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela1!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela…
1 – engano
O cavaleiro apaixonado, herói tão caro aos românticos, é na
verdade um trapalhão: a amada — comparada a Dulcinéia,
musa de Dom Quixote — mora em uma rua distante e apenas
vê-la custa abusos financeiros:
Todo meu ordenado2 vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito… mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento…
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda Comédia — em casamento.
2 – salário
Dedicado e apaixonado, o amante escreve versos furtados,
envia flores e promete até casamento. Mas está fadado ao
insucesso: suja-se de lama no caminho, a amada fecha-lhe a
janela, o cavalo o derruba, rasga-lhe a calça.
Ontem tinha chovido… que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis3 encheu de lama…
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Roncinante4 erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada…
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Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas5 na janela…
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada
Arripia-se, pula e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada…
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode6
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!…
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–
–
–
–
elegantes
o cavalo de Dom Quixote
nariz
a trapalhada por que passou o cavaleiro
Álvares de Azevedo é sarcástico com as imagens românticas:
deixa de lado a mulher ideal, o tédio de viver, as praias e os
ambientes fumaçentos para rir deles.
ÁLVARES DE AZEVEDO
E O ROMANTISMO BRASILEIRO
Já que se observam na Lira dos Vinte Anos duas facetas de um
mesmo autor, é preciso analisá-las cuidadosamente: ao mesmo
tempo, a subjetividade romântica se manifesta idealizante —
pretendendo a morte como desligamento do mundo que não
permite expressão — e realista — leia-se pessimista e irônica.
A praia, a embriaguez, o sonho, o delírio e a demência são o
ambiente do eu que busca a mulher ideal, tornando o texto
difuso, como se a forma fosse tomada pela imprecisão
intrínseca ao devaneio. A pátria, o quarto obscuro e lutulento
são o ambiente do eu que está ciente do mundo que pouco ou
nada lhe oferece; o escárnio da condição em que se encontra
torna ácidas as ironias, fazendo da mulher do povo uma
rameira e do cavaleiro romântico um pateta.
Seria injusto afirmar que Álvares de Azevedo, ao contrário
dos poetas da geração anterior, não colaborou com a formação
da literatura de fato nacional: as aflições do eu eram
autenticamente brasileiras. Note-se que aqui aventavam-se as
idéias liberais, principalmente nos meios freqüentados pelo
poeta, e a escravidão só foi abolida em 1888, sem que os poemas
caíssem na mera descrição ou cópia dos motivos importados
da Europa, o que faz de Álvares de Azevedo o grande nome
do ultra-romantismo brasileiro.
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Anota Ções:
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