10 • P2 • Quinta-feira 21 Fevereiro 2008
Cultura
Igreja Anglicana gostou, católicos nem por isso
Bíblia em registo de manga
já vendeu 30 mil exemplares
Um britânico de origem nigeriana fez uma banda desenhada japonesa
sobre a Bíblia. Podia ser uma mistura incompatível, mas é um êxito editorial
mais reflexivos e meditativos, como
o Sermão da Montanha. Quanto
a Jesus, é apresentado na sua
condição divina, mas não isenta de
um temperamento irascível, logo
demasiado humano. “Vejo-o como o
super-herói original. É por isso que
o represento de perfil e em poses
heróicas”, explicou o artista em
várias entrevistas à imprensa anglosaxónica.
Tais opções não granjearam
ao livro muita popularidade
entre os meios católicos mais
conservadores, que criticam a
linguagem excessivamente coloquial
dos diálogos (“Sansão, meu querido,
qual é o segredo da tua força
não humana?”, pergunta Dalila)
e a abundância de situações de
violência.
Para os apreciadores de banda
desenhada, e em especial os fãs de
mangas, esta versão da Bíblia tem
texto a mais, em contraste com
o estilo graficamente despojado
Carlos Pessoa
a Um “samurai desconhecido”
que chega à cidade para “agitar as
coisas”, um “tipo duro” à procura da
revolução e da revolta, um “fulano
rijo”. Podia ser o retrato impressivo
de um candidato a Rambo mas é o
perfil de Jesus na banda desenhada
The Manga Bible: From Génesis to
Revelation que já vendeu mais de 30
mil exemplares no Reino Unido e
começou a atacar o mercado norteamericano (primeira edição de 15 mil
exemplares).
É difícil dizer o que há de mais
singular nesta obra: a adaptação da
Bíblia à banda desenhada de acordo
com os cânones das mangas (BD
japonesa)? O facto de o seu autor
ser um britânico de 42 anos nascido
em Leicester de pais anglicanos
de origem nigeriana? Ter sido
vivamente saudada pelo arcebispo
de Cantuária como um “caminho
único para transmitir a força e a
frescura da Bíblia”? Ou Jesus Cristo
ser apresentado como um superherói chegado à Terra para salvar o
planeta, um pouco à semelhança de
Superman? Seja qual for a resposta,
incontestável é o impacto que a obra
está a registar – recorde de vendas no
mercado britânico –, ao ponto de ter
sido objecto de uma nota de leitura
na edição dominical do New York
Times do passado dia 11.
Ajinbayo Akinsiku, que assina
como Siku, conseguiu a proeza
de compactar as Escrituras numa
manga que privilegia a acção
– Abraão foge a cavalo de uma
explosão para salvar Lot, por
exemplo – e evita os momentos
Siku conseguiu a
proeza de compactar as
Escrituras numa manga
que privilegia a acção e
evita os momentos mais
reflexivos e meditativos,
como o Sermão da
Montanha. Jesus é um
“super-herói”
e eminentemente visual que
caracteriza a maioria das obras deste
género.
A uns e a outros Siku contrapõe
a dificuldade e complexidade de
condensar os textos sagrados numa
banda desenhada de 224 páginas
sem perder o rigor e o essencial da
mensagem bíblica. Como The Manga
Bible: From Génesis to Revelation
tem como público-alvo os jovens
entre os 15 e os 25 anos, o artista
britânico optou pela inclusão a
espaços de excertos de versículos
para uma melhor compreensão e
conhecimento do texto.
Desde o passado Outono, esta
é a segunda obra que explora o
mesmo tema. Em Outubro já tinha
sido publicada uma Manga Bible –
composta por 96 páginas de mangas
realizadas por criadores japoneses,
ilustrando alguns dos melhores e
mais conhecidos episódios bíblicos
– como entretexto de uma edição
tradicional da Bíblia de mais de mil
páginas.
Encorajado pela receptividade
do público, Siku prepara agora
uma outra manga de 300 páginas
centrada no Novo Testamento e
na vida de Jesus. Paralelamente,
trabalha em duas novelas gráficas
e continua a desenvolver projectos
para televisão. Como se tudo isto
não bastasse, acabou de se formar
em Teologia pela London School
of Theology, última referência de
uma já longa carreira que começou
no design gráfico, passando pela
publicidade e pela colaboração em
publicações de referência dos comics
britânicos, como 2000 AD, e em
editoras como a Marvel.
Crítica de Música
Você já foi a casa de Olívia? Não? Então vá!
Olívia Byington
A Vida é Perto
mmmmn
Lisboa, Teatro Mundial, às 21h30
14 de Fevereiro
Sala quase cheia
Repetiu a 15, 16 e 17 e está em cena de
hoje a domingo, à mesma hora
Antes do espectáculo, Olívia
Byington tinha-nos dito que queria
protagonizar em palco a história
da sua vida “mas dentro da escala
humana, recuperando uma
linguagem que está muito perdida
hoje em dia, que é o falar próximo,
sem artifícios.” Mas é preciso vêla em palco para perceber até que
ponto ela leva o desafio. Mais do
que assistir a um espectáculo, o
público fica com a ideia de ter
entrado na casa de Olívia, como seu
convidado. Mesmo que nem sequer
lhe dirija a palavra (o que é possível,
pois a noção de proximidade é
absoluta), há uma envolvência de
encontro que nunca tínhamos visto
em nenhum outro espectáculo. A
começar pela conversa. O público é
levado, já se disse, a entrar primeiro
pelo camarim da cantora e só daí
ao pequeno auditório onde ela já
está, num palco feito sala, a falar
à vontade sobre coisas que vê,
por exemplo, no MySpace ou no
YouTube. Como um pianista africano
que ela ali conheceu e nos dá a
ouvir. Da primeira vez julgou que ele
cantava um “la-la-la” bem ritmado.
E copiou-o de ouvido, sem partitura.
Só depois percebeu o engano: ele
cantava num dialecto dos Camarões.
E assim vai Olívia falando, até a
Olivia Byington
sala estar cheia ou apenas composta,
discorrendo depois sobre outras
histórias, outras canções. À sua
volta, livros e papéis pelo chão,
uma secretária de madeira com
um computador, uma cadeira, um
banco alto. Panos de vários padrões
postos na vertical, lado a lado, criam
um cenário de falsa tenda de circo,
sugerindo uma exposição de papéis
de parede. No centro, à vontade na
fala e no canto, ela começa com Mãe
da manhã, de Gilberto Gil, passando
de imediato a Tom Jobim (Fotografia,
Anos dourados, a belíssima Modinha).
Depois expõe dois temas que fez com
Tiago Torres da Silva para o seu mais
recente disco (Por dentro das canções
e Areias do Leblon) e, entre histórias,
assina uma arrasadora versão de
Muito romântico, de Caetano Veloso,
um coral feito blues. Vem depois
Geraldo Carneiro, Gismonti, Cacaso
(a lista completa das canções consta
de um pequeno cartão de visita
gratuito para o público e acessível
logo no camarim). Mais canções
e mais histórias, os filhos (três), o
casamento, entretanto desfeito, os
vários discos gravados. Lady Jane,
em réplica aos Stones; De que callada
manera, de Milanés e Guillén; ou os
tesouros de Dama do Encantado, de
Menina fricote a Uva de caminhão.
Quando chega o encore, um dueto
virtual (mas real no disco) com Seu
Jorge em Na ponta dos pés, ninguém
dera pelo passar do tempo. Por isso,
parafraseando Caymmi, só apetece
dizer, à saída: você já foi a casa de
Olívia? Não? Então vá! Há-de dar o
tempo por muito bem ganho.
Nuno Pacheco
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