1001 Noites no Hotel Califórnia
Monica Baumgarten de Bolle
Economista, Diretora do IEPE/Casa das Garças e Professora da PUC-Rio
(Publicado no O Globo a Mais do dia 11/12/2012)
Realmente, as autoridades brasileiras não devem estar nada satisfeitas com os veículos
de comunicação britânicos. Depois de o semanário The Economist sugerir a demissão
do Ministro Guido Mantega na sua última edição para garantir a “retomada da
confiança” na equipe econômica, sem a qual a reeleição de Dilma ficaria
“comprometida”, veio a BBC. A BBC Brasil entrevistou uma professora e economista
da Universidade George Washington, em Washington DC, nos EUA, sobre as
perspectivas do País. A acadêmica de nome sugestivo, Scheherazade Rehman, disse que
o Brasil podia ser comparado aos hóspedes do inóspito hotel retratado na música do The
Eagles. Referindo-se ao grupo de economias emergentes, ela usou um trecho da canção,
“you can check out any time you like, but you can never leave” (“você pode assinar a
saída quantas vezes quiser, mas jamais poderá ir embora”) para afirmar que, do jeito que
a coisa vai, nosso país está fadado a ser emergente para todo o sempre. Não adianta
correr para a porta, tampouco tentar descobrir a saída. Somos prisioneiros aqui por
nossa própria conta. Bem-vindos ao Hotel Califórnia.
Xerazade é o nome da mítica princesa persa que teceu histórias e mais histórias
mirabolantes ao longo de 1001 noites para evitar a própria morte. Suas tramas
continham histórias dentro de histórias, personagens que apareciam repetidas vezes em
situações completamente diferentes, narradores pouco confiáveis, enfim, diversos
artifícios literários para subjugar o ouvinte, para prendê-lo à narrativa vertiginosa.
Aprisionar o sultão, mantê-lo embevecido e paralisado pelas histórias que se
desenrolavam, este era o desafio. Quão apropriado que uma Xerazade tenha falado
sobre a economia brasileira!
As autoridades brasileiras são como Xerazade. Ou quase. Contam histórias e mais
histórias, tentam explicar por que estamos presos à magia negra de um número: 0,6%. O
PIB cresceu 0,6% no terceiro trimestre. A inflação subiu 0,6% em novembro. Com isso,
se pressagia um resultado deplorável para 2012: um crescimento de apenas 1%,
acompanhado de uma inflação que ameaça ficar em quase 6%, ou uns 5,7%. Dizem que
estamos ainda sob os efeitos de certos encantamentos, sob o feitiço de um quadro global
hostil para a atividade – as incertezas sobre o “abismo fiscal” nos EUA, sobre a situação
europeia, sobre a desaceleração da China – e para a inflação, com os choques climáticos
que levaram uma elevação dos preços globais dos alimentos e que ainda não se
dissiparam. Contudo, essas histórias são cada vez menos convincentes. Outras histórias,
essas contadas inadvertidamente, fazem ainda menos sentido. Por isso emperram os
investimentos. Dilma e Cia. descobriram, sem querer, os segredos de Xerazade. Mas, ao
contrário da princesa, usam-nos contra si mesmos.
Há muitas histórias.
Há a história da ingerência nos mercados de câmbio: “Agiremos contra as investidas
dos mercados para valorizar o real, mas o câmbio é flutuante!”. Uma contradição em
termos. O empresário para, pois não sabe como evoluirá a cotação da moeda brasileira.
Há a história das desonerações em série: “Primeiro daremos benesses ao setor x, depois
ao setor y, depois ao setor z”, e por aí vai. O empresário que nada recebeu, espera. Há a
epopeia das tarifas de energia elétrica: “Se determinados políticos e partidos não
quiserem nos ajudar, usaremos o dinheiro do Tesouro para garantir a redução de 20% na
conta de luz”. Isso é sustentável?, perguntam-se os empresários, sobretudo os grandes
consumidores de energia. Para eles pouco importa que o governo consiga reduzir as
tarifas em 20% no ano que vem. O que interessa é que esta redução seja sustentável ao
longo dos próximos anos. Afinal, as decisões de investimento são tomadas dentro de um
horizonte de tempo relativamente longo. Se o governo não puder sustentar tarifas
menores por um período prolongado, seja porque isso pesará sobre as contas públicas,
seja porque causará danos aos investimentos das próprias companhias elétricas, o
empresário nada faz. Há a história do protecionismo: “Precisamos proteger o mercado
interno das investidas de empresas predadoras de outras nacionalidades. Para tanto,
temos de instituir regras de conteúdo local para salvaguardar a nossa produção”.
Aqueles que, como a Embraer, precisam importar o equivalente a 95% do que
exportam, ficam, no mínimo, desarvorados.
Há, por fim, a história que abarca todas as outras, a história-mãe que origina as
narrativas dentro de narrativas citadas aqui.
Trata-se da saga do intervencionismo sem rumo, do intervencionismo errático, daquele
que tenta qualquer coisa para quebrar o encanto nefasto do 0,6%. Só na última semana,
o governo: reduziu, novamente, o prazo sobre o qual incidia o IOF dos empréstimos
corporativos contraídos do exterior; desonerou a folha de pagamentos do setor de
construção civil; anunciou a prorrogação e a ampliação do Programa de Sustentação do
Investimento em R$ 100 bilhões com recursos provenientes tanto do BNDES, quanto da
liberação dos depósitos compulsórios – isso à revelia do Banco Central; comunicou,
sem consultar o Conselho Monetário Nacional, que a TJLP (a Taxa de Juros de Longo
Prazo) será reduzida de 5,5% para 5%; e anunciou o plano de concessão dos portos, sem
delinear claramente as regras. Não dá para enunciar tudo isso no mesmo fôlego. Não é à
toa que circulam rumores e especulações de que o ativismo vertiginoso do governo
tenha se tornado uma das travas ao investimento. É tanta coisa desconjuntada ao mesmo
tempo que só é possível mesmo parar. Parar para tentar obter algum vislumbre de como
isso se refletirá na economia, sobretudo nas perspectivas para a atividade no ano que
vem.
Vamos ficando, assim, com a nossa própria versão do Hotel Califórnia. Um lugar
soturno e desesperançado no meio do deserto de onde não se pode sair. A Scheherazade
de Washington, descoberta pela BBC, tem toda razão.
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