História geral
dos
roubos e assassínios
Piratas
dos mais notáveis
do
Capitão Charles Johnson
Nuno Batalha
TRADUZIDO DO INGLÊS POR
Cavalo de Ferro Editores
UMA EDIÇÃO DA
LISBOA — MMV
Autor: Charles Johnson
Tradução: Nuno Batalha
Revisão: César Charrua
Paginação: Gabinete Gráfico Cavalo de Ferro
Capa: Miss Sushie
Todos os direitos para publicação em língua portuguesa reservados por:
© Cavalo de Ferro Editores, Lda.
Travessa dos Fiéis de Deus, 113, 1200-188 Lisboa · www.cavalodeferro.com
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qualquer processo sem a autorização prévia e por escrito do editor,
com excepção de excertos breves usados para apresentação e crítica da obra.
A Vida de Mary Read
E
agora prestes a principiar
uma história cheia de viravoltas e
aventuras surpreendentes; refiro-me aos casos de Mary Read e Anne Bonny, ou
Bonn, que se tratam dos nomes verdadeiros destas duas piratas. Os bizarros incidentes de suas
vidas errantes são tais que poderão alguns ser
tentados a crer que toda a narrativa mais não é
do que uma novela ou romance de ficção, mas
dado que todos estes factos são corroborados
por diversos milhares de testemunhas, e refiro-me aqui ao povo da Jamaica, que esteve presente nos seus julgamentos e ouviu as histórias das
suas vidas aquando da descoberta do seu sexo; a
verdade destes relatos não poderá por isso ser
mais contestada do que o facto de terem existido
no mundo homens como Roberts e Barba
Negra, também piratas.
Mary Read nasceu em Inglaterra, sua mãe
casara jovem com um homem que fazia do mar
STAMOS
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História Geral dos Piratas
a sua profissão e que, embarcando numa viagem
pouco depois do casamento, a deixou de esperanças, com uma criança que veio a nascer rapaz.
Quanto ao marido, se naufragou ou pereceu na
viagem, Mary Read não sabia dizer; mas fosse
como fosse, ele não mais regressou. Não obstante,
a mãe, que era jovem e de ânimo leve, sofreu um
incidente que frequentemente acontece a mulheres jovens que não tomam cuidados; e em breve se
viu novamente de esperanças e sem marido para
dar paternidade à criança, mas como ou de quem,
ninguém sabia senão ela, pois que a sua reputação
era séria entre os vizinhos. Sentindo o seu fardo
crescer, e com o propósito de esconder a sua vergonha, ela despede-se formalmente dos conhecidos de seu marido, informando que estava de partida para ir viver com alguns seus amigos, no
campo, e assim abandonou a cidade, levando consigo o seu jovem filho, na altura não tendo ainda
um ano de idade. Pouco tempo depois da partida,
o seu filho morreu mas, em recompensa, a
Providência teve a boa fortuna de lhe dar uma
rapariga em seu lugar, que nasceu em segurança
no retiro campestre da mãe, e esta rapariga é a
nossa Mary Read.
Aqui viveu a mãe três ou quatro anos, até
que o pouco dinheiro que tinha se gastou; e foi
então que considerou regressar a Londres, e considerando que a mãe de seu marido gozava de
favoráveis circunstâncias, não teve dúvidas em
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A Vida de Mary Read
persuadi-la a prover a subsistência da criança,
desde que conseguisse fazê-la passar pela mesma,
se bem que transformar uma rapariga num rapaz
parecia uma tarefa assaz complicada, e enganar
uma velha experiente, de todo em todo impossível. Apesar disso, a mulher atreveu-se a vestir a
filha de rapaz, levando-a então para a cidade e
apresentando-a à sogra como se tratasse do filho
do marido; e a velha teria acolhido a criança e tê-la-ia criado, mas a mãe pretendeu que lhe daria
um tremendo desgosto separar-se assim do filho,
pelo que as duas concordaram que a criança viveria com a mãe e a suposta avó conceder-lhe-ia
uma coroa por semana para seu sustento.
Assim logrou a mãe satisfazer seus propósitos, criando a filha como rapaz, e quando a criança atingiu suficiente maturidade, a mãe achou
por bem incluí-la no segredo do seu nascimento
e incitá-la a esconder o seu sexo. Aconteceu então
que a avó morreu, pelo que a subsistência que
por esses meios se obtinha cessou, lançando mãe
e filha em circunstâncias cada vez mais exíguas;
pelo que a mãe foi então obrigada a pôr a filha ao
serviço de uma dama francesa, na qualidade de
lacaio, tendo então treze anos de idade. Mas Mary
Read não perdurou muito tempo neste lugar,
pois, tomando-se de uma personalidade ousada e
forte, e de mentalidade errante e inquieta, empregou-se ao serviço de um navio de guerra, onde
serviu durante algum tempo, abandonando-o
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História Geral dos Piratas
depois e partindo para a Flandres, onde empunhou armas num regimento de infantaria na
qualidade de cadete. E ainda que, em todas as
suas acções, se comportasse com grande bravura,
não conseguia apesar disso obter posto mais elevado, pois que as promoções eram geralmente
vendidas e compradas; assim sendo, Mary abandonou esse serviço e empregou-se num regimento a cavalo. Aqui, comportou-se tão competentemente em todos os serviços que depressa granjeou a estima de todos os oficiais, mas sendo o
seu camarada, um tal de Fleming, um jovem
atraente, ela apaixonou-se por ele e, a partir dessa
altura, veio a negligenciar cada vez mais os seus
deveres, pelo que parece ser impossível servir
Marte e Vénus ao mesmo tempo: suas armas e
equipamento, que anteriormente eram sempre
mantidos na mais impecável ordem, eram agora
sobejamente negligenciados. Mas é verdade que,
sempre que colocavam o seu camarada numa
companhia, ela costumava acompanhá-lo sem a
isso ser ordenada, e corria frequentemente sérios
riscos apenas para estar perto dele. Enquanto
isso, os outros soldados, nem suspeitando da
causa secreta que a impelia a este comportamento, imaginaram-na louca, e nem sequer o seu
companheiro era capaz de explicar esta estranha
alteração de comportamentos, mas o amor é
engenhoso, e estando os dois deitados numa
mesma tenda à noite, constantemente juntos, ela
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A Vida de Mary Read
divisou uma forma de o fazer descobrir o seu
sexo sem dar a aparência de que a revelação do
segredo havia sido propositada.
O soldado muito se surpreendeu com o que
descobriu e muito se alegrou, pois imaginou
agora que teria uma amante só para si, coisa
muito pouco usual num aquartelamento, pois
que raramente há sequer uma dessas damas de
companhia que seja fiel e verdadeira a uma tropa
ou companhia; pelo que o soldado em nada mais
pensou senão na gratificação de suas paixões,
usando de muito pouca cerimónia. Contudo,
veio a achar-se gravemente enganado, pois ela
veio a revelar-se reservada e modesta, resistindo
a todas as tentações dele mas simultaneamente
apresentando-se-lhe de tal modo prestável e insinuante em suas atitudes que ele mudou completamente os seus desígnios, e, longe de pensar em
fazer dela amante, desejava-a agora para esposa.
Este era o mais elevado desejo do coração
dela, pelo que, em pouco tempo, os dois trocaram promessas e, mal acabada a campanha e
marchado o regimento para o quartel de Inverno,
o casal providenciou roupas femininas para ela,
pagando-as com o dinheiro que haviam ganho
ambos, e casaram-se publicamente.
A história do casamento dos dois soldados
causou naturalmente grande celeuma, pelo que
foram vários os oficiais impelidos pela curiosidade a assistir à cerimónia, concordando entre si
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História Geral dos Piratas
que cada um deles deveria apresentar uma
pequena oferenda à noiva que ajudasse à manutenção do lar, em consideração ao facto de ela ter
sido um camarada soldado. Assim estabelecido, o
casal depressa manifestou o desejo de abandonar
o serviço militar e de se estabelecer no mundo; a
aventura do seu amor e casamento granjeara-lhes
tantos favores que facilmente obtiveram a dispensa, abrindo de imediato uma estalagem ou
casa de pasto com o nome de «Os Três Cavalos»,
perto do castelo de Breda, onde depressa fizeram
bom negócio, com vários dos oficiais constantemente comendo no seu estabelecimento.
Mas esta felicidade não foi duradoura, pois
que o marido morreu pouco tempo depois e,
estando concluída a Paz de Ryswick, deixou de
haver em Breda o mesmo número de oficiais
que anteriormente, pelo que a viúva, vendo
decair o seu negócio, foi forçada a abandoná-lo
e, vendo a sua subsistência esgotar-se gradualmente, mais uma vez assumiu vestes masculinas
e se aventurou pela Holanda, onde se empregou
num regimento de infantaria aquartelado numa
das cidades fronteiriças. Contudo, não se demorou muito tempo por estas paragens, pois não
havia esperança de receber promoções em
tempo de paz, pelo que resolveu procurar fortuna de outro modo e, retirando-se do regimento,
foi embarcar a bordo de um navio com destino
às Índias Ocidentais.
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História Geral dos Piratas
Aconteceu então que este navio foi capturado por piratas ingleses, e sendo Mary Read a
única pessoa inglesa a bordo, os piratas levaram-na consigo e, após pilhar o navio, deixaram-no
seguir viagem. Depois de seguir esta actividade
de pirataria durante algum tempo, foi emitida a
proclamação do Rei e publicada em todas as partes das Índias Ocidentais, oferecendo o perdão
aos piratas que se rendessem voluntariamente
dentro de um prazo de tempo mencionado no
documento. A tripulação de Mary Read aproveitou os benefícios desta proclamação e rendeu-se,
entregando-se a uma vida pacífica em terra.
Contudo, começando o dinheiro a escassear, e
ouvindo dizer que o Capitão Woodes Rogers,
Governador da ilha de Providence, estava equipando uns poucos de corsários para que partissem em investidas contra os espanhóis, ela, na
companhia de vários outros, embarcou para essa
ilha com vista a integrar os navios corsários, decidida a fazer fortuna de um modo ou de outro.
Mas ainda mal haviam estes navios largado
o porto e logo as tripulações de alguns deles, que
haviam sido perdoadas, se rebelaram contra os
capitães e voltaram às antigas judiarias. Entre
esta gente, encontrava-se Mary Read. É verdade,
declarou ela bastas vezes, que a vida de pirata era
coisa que sempre a repugnara e à qual se entregara apenas porque a isso fora obrigada, tanto
desta vez como da anterior, mantendo sempre o
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A Vida de Mary Read
desejo de a abandonar assim que se apresentasse
a oportunidade adequada; e contudo, algumas
das provas contra ela, apresentadas no julgamento por homens obrigados a testemunhar, que
haviam navegado com ela, testemunharam sob
juramento que, em alturas de acção, nenhum
deles era mais resoluto ou disposto a empreender
maiores riscos do que ela e Anne Bonny; e particularmente na ocasião em que os piratas foram
atacados e capturados, quando o Capitão Barnet
se aproximou, nenhum dos piratas se manteve
sobre o convés à excepção de Mary Read, Anne
Bonny e um outro, ao que Mary Read ordenou à
tripulação no porão que subissem e lutassem
como homens, e verificando que eles não se moviam dos seus lugares, disparou suas armas contra eles para dentro do porão, matando um e
ferindo vários outros.
Esta foi uma das provas apresentadas contra
si, que ela negou; e que, sendo verdade ou não,
pelo menos uma coisa é certa: bravura não lhe
faltava, nem era ela menos extraordinária por se
manter fiel à sua modéstia e a suas noções de virtude. O seu sexo não era sequer suspeitado por
pessoa nenhuma a bordo até Anne Bonny, que
não era de todo tão reservada como Mary Read
no que tocava à castidade, desenvolver por ela
uma especial afeição; e em suma, tomando-a por
um belo rapaz e, por razões que só ela saberá, lhe
revelou o seu sexo. Mary Read, percebendo a
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História Geral dos Piratas
situação em que estava sendo colocada, e muito
sensível da sua incapacidade de corresponder à
intenção de Anne Bonny, viu-se forçada a chegar
a um entendimento com ela, pelo que, para grande desilusão de Anne Bonny, lhe revelou que também ela era uma mulher; contudo, esta intimidade tanto perturbou o Capitão Rackam, que era o
amante e galanteador de Anne Bonny, que ele se
entregou a um ciúme furioso e afirmou à amásia
que iria cortar o pescoço do seu novo amante, de
modo que, com vista a apaziguá-lo, ela lhe desvendou também o segredo.
O Capitão Rackam (pois que assim era considerado pela tripulação) escondeu este segredo
a toda a tripulação do navio; mas não obstante
toda a astúcia e comedimento de Mary Read, o
amor conseguiu ainda assim encontrar uma
forma de penetrar o disfarce, impedindo-a de
esquecer o seu sexo.
Durante a viagem, os piratas tomaram um
grande número de navios pertencentes à Jamaica
e a outras partes das Índias Ocidentais, que viajavam com a Inglaterra como destino ou ponto de
partida; e sempre que encontravam um bom
artista ou qualquer outra pessoa com habilidades
que fossem úteis à companhia, era seu costume
mantê-los a bordo à força. Entre estes veio para
bordo um jovem dotado dos modos mais encantadores, ou pelo menos assim se afigurou aos
olhos de Mary Read, que se tomou de tais afectos
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A Vida de Mary Read
por sua pessoa e presença que não mais conseguiu ter sossego, nem de dia nem de noite. Mas
como nada há de mais ardiloso que o amor, não
foi difícil a esta mulher, que já tinha prática de
semelhantes artimanhas, divisar uma forma de
revelar o seu sexo: a princípio, insinuou-se junto
dele e imiscuiu-se nos seus afectos, entretendo
com ele uma conversa que repetidamente maldizia a vida de pirata, coisa a que também ele era
completamente adverso, pelo que os dois se tornaram companheiros de messe e camaradas inseparáveis. Quando ela verificou que ele nutria por
si uma boa amizade, permitiu que fosse feita a
descoberta, por descuidadamente lhe revelar os
seios, que eram muito brancos.
O jovem homem, que era feito de carne e
sangue, viu sua curiosidade e desejo tão inflamados por esta visão que não mais parou de a
importunar, até que ela confessasse o que era.
Agora começa a cena de amor: como ele nutria já
por ela afecto e amizade, derivado ao seu suposto carácter, agora esses sentimentos foram transformados em enamoramento e desejo; e a paixão
dela não era menos violenta do que a dele, e talvez ela a tenha exprimido por virtude de uma
das mais generosas acções que alguma vez o
amor inspirou. Aconteceu que este jovem se
envolveu numa querela com um dos piratas e
estando nesse momento o navio ancorado perto
de uma das ilhas, os dois homens acordaram ir a
13
História Geral dos Piratas
terra para lutar, como é costume entre os piratas.
Mary Read viu-se tomada pelas maiores inquietações e ansiedades por causa do futuro do
amante, mas não podia permitir que ele recusasse o desafio, pois era incapaz de encarar a ideia
de o ver marcado como cobarde; por outro lado,
o caso assustava-a, pois cuidava que o pirata
seria provavelmente demasiado feroz para o seu
amado. Quando o amor penetra o peito de um
ser humano que tenha em si centelhas de generosidade, ele agita o coração e incita-o às acções
mais nobres; neste dilema, revelou Mary Read
que tinha maiores cuidados pela vida do seu
amante do que pela sua própria; pois tomou
então a decisão de principiar ela própria uma
contenda com este pirata e, desafiando-o a lutar
em terra, marcou com ele um confronto duas
horas antes do que havia sido marcado com o
seu amante, altura em que ela enfrentou o pirata
com espada e pistola e o matou ali mesmo.
É verdade que já antes ela lutara, ao ver-se
insultada por alguns destes homens, mas desta
vez, o confronto deveu-se exclusivamente à causa
do amante, encontrando-se ela como que entre
ele e a morte, como se fosse incapaz de viver sem
ele. Se ele não tivesse por ela qualquer consideração antes desse incidente, esta acção tê-lo-ia ligado a ela para sempre; mas não havia entre eles
ocasião para laços de obrigação: a inclinação que
ele nutria por ela era suficiente. Por fim, eles ofe-
14
A Vida de Mary Read
receram um ao outro promessas solenes, que
Mary Read considerou iguais às de um casamento celebrado em boa consciência, como se tivesse
sido presidido por um padre numa igreja; e devia-se isto ao seu ventre inchado, por virtude do qual
rogou mais tarde que lhe salvassem a vida.
Durante o julgamento, Mary Read jurou
nunca ter cometido adultério ou fornicação com
homem algum e confiou na justiça do tribunal
perante o qual estava sendo julgada para que distinguisse a natureza de seus crimes; tendo o seu
marido, como ela lhe chamava, sido absolvido,
com vários outros, e sendo perguntado a Mary
qual deles era esse homem, ela recusou-se a
dizer, mas afiançou que se tratava de um homem
honesto sem qualquer inclinação para práticas
de piratarias e que ambos haviam já decidido
deixar os piratas à primeira oportunidade e aplicar-se a um modo de sustento honesto.
Ainda que muitos tivessem indubitavelmente compaixão por esta mulher, o tribunal não conseguiu deixar de a considerar culpada; pois que,
entre outras coisas, uma das testemunhas contra
ela depôs que, tendo sido capturado por Rackam
e detido durante algum tempo a bordo, aconteceu
entrar em conversa com Mary Read a quem,
tomando-a por um jovem rapaz, ele perguntou
com que prazer é que se entregava ela a tais
empresas, em que sua a vida estava constantemente em risco, pelo fogo ou pela espada; e não
15
História Geral dos Piratas
só, mas tendo também a certeza de que morreria
de uma morte infame se fosse capturada viva?
Respondeu ela que, quanto à forca, não a considerava grande provação, pois que, se não fosse por
isso, qualquer sujeito fraco e cobarde se tornaria
pirata e infestaria de tal modo os mares que os
homens de coragem ver-se-iam obrigados a passar fome: e que, se fosse a pena deixada à consideração dos piratas, ninguém escolheria um castigo
menor do que a morte, pois era o medo dela que
ia mantendo honestos alguns cobardes patifes; e
que muitos dos que agora andam pelas ruas enganando viúvas e órfãos e oprimindo os seus pobres
vizinhos, que não têm dinheiro para obter justiça,
partiriam para roubar no mar, e o oceano de tal
modo se encheria de vilões, tal como na terra, que
mercador algum se atreveria a zarpar do porto;
pelo que, dentro de pouco tempo, a pirataria deixaria de ter qualquer proveito.
Mas encontrando-se então de esperanças,
como já foi observado, a execução desta pirata
foi suspensa, e é possível que ela encontrasse perdão, se não tivesse sido tomada por uma febre
violenta pouco depois do julgamento, da qual
veio a morrer na prisão.
16
A Vida do Capitão Evans
J
EVANS era homem do País de Gales e
havia anteriormente servido como comandante de uma chalupa de Nevis, mas tendo
perdido o seu emprego nessa embarcação, viajou
durante algum tempo como piloto em navios da
Jamaica, até o acaso o levar à companhia de três
ou quatro dos seus camaradas; e não sendo os
salários tão generosos como antigamente e os
empregos ocasionais e intermitentes, devido ao
grande número de marinheiros, o pequeno grupo
decidiu embarcar para além-mar em busca de
aventura. Assim, zarparam a remos de Port Royal,
na Jamaica, no fim de Setembro de 1722 numa
canoa; e chegando à costa norte da ilha, foram a
terra durante a noite, arrombaram uma casa ou
duas e roubaram de lá dinheiro e tudo o que
puderam encontrar que fosse transportável,
levando esse espólio para bordo da canoa.
Como primeira iniciativa, esta investida não
havia sido má, mas este tipo de roubo não lhes
OHN
17
História Geral dos Piratas
agradava, porque os bandidos tinham vontade de
sair para o mar; contudo, não possuindo outra
embarcação que não a sua pobre canoa, ficaram
impedidos de realizar o seu louvável propósito.
Apesar disso, mantiveram sempre cuidada vigia e
foram percorrendo a ilha, na esperança de que a
providência lhes enviasse uma qualquer pobre
embarcação como sacrifício; e volvidos poucos
dias, o seu desejo foi concedido; pois em Dunns
Hole, os homens foram encontrar fundeada uma
pequena chalupa pertencente às Bermudas.
Usando da maior ousadia, os homens subiram a
bordo e Evans informou os tripulantes desta
embarcação de que era ele o capitão do navio,
informação que todos desconheciam. Assim,
depois de tomadas as disposições necessárias a
bordo e ordenadas todas as coisas, os homens
foram a terra a uma pequena aldeia para bebidas
e repouso, aí permanecendo o resto do dia numa
taverna, onde deixaram três pistolas como pagamento antes de se irem embora. O povo daquela
casa ficou admirado dos alegres convidados que
haviam recebido, mas também sobejamente
satisfeitos, desejando que esta companhia regressasse noutra ocasião, coisa que veio a suceder
demasiado cedo para seu contento; pois, a meio
da noite, todos os tripulantes voltaram a terra,
dispararam tiros de espingarda contra a casa e
pilharam dela tudo o que conseguiram carregar
para bordo da chalupa.
18
A Vida do Capitão Evans
No dia seguinte, a embarcação levantou ferro.
A chalupa estava agora aparelhada com 4 canhões
e chamava-se Scowerer. Partiram com rumo à
Española, onde, na costa norte dessa ilha, abordaram uma chalupa espanhola, que veio a revelar-se um espólio extraordinariamente rico, pois,
tendo caído nas mãos de uma companhia tão
pouco numerosa, rendeu mais de 150 libras a
cada homem.
Prosseguindo as suas actividades e rumando
às Ilhas de Barlavento, o Scowerer encontrou um
navio da Nova Inglaterra com destino à Jamaica,
de 120 toneladas, chamado Dove, chefiado por
Capitão Diamond, ao largo de Porto Rico. Para
além de saquearem este navio, os piratas engrossaram a sua tripulação ao retirar desta embarcação o piloto e dois ou três outros homens; ao
cabo destas acções, libertaram a presa e foram
fundear numa das ilhas para recolher água doce e
bens vitais, permanecendo em terra durante
algum tempo.
O próximo navio que tomaram foi o Lucretia
and Catherine, comandado pelo Capitão Mills, de
200 toneladas de capacidade de carga. Esta
embarcação, encontraram-na nas proximidades
da ilha de La Désirade, ao dia décimo primeiro de
Janeiro. Ao tomar este navio, os piratas principiaram a tomar em suas mãos a aplicação da justiça,
questionando os homens no que dizia respeito ao
trato que o respectivo capitão lhes dava, coisa que
19
História Geral dos Piratas
é costume fazer-se entre os piratas; mas o capitão,
ouvindo esta conversa, pôs um fim a estas inquirições e ocupou-se com o saque do navio, dizendo-lhes: «Que interesse temos em fazer de reformadores? O dinheiro é o que nós queremos.»
E dirigindo-se aos prisioneiros, perguntou-lhes:
«O vosso capitão dá-vos vitualhas suficientes?»
E respondendo eles na afirmativa: «Pois então,
também vos devia dar trabalhos suficientes.»
Após tomar este prémio, os malfeitores
rumaram à pequena ilha de Avis com o propósito de reparar o navio e levaram o Lucretia consigo, para virar de querena o Scowerer a coberto do
outro; mas encontrando aqui uma chalupa, os
piratas deram-lhe caça até à noite, altura em que
se aproximaram finalmente à distância de um
tiro. Contudo, receando perder a companhia do
Lucretia, que era embarcação de navegação bem
mais lenta e pesada, deixaram seguir a presa e
nunca mais a viram. Esta perseguição foi deixá-los a sotavento do porto onde tinham tencionado fundear, pelo que foram obrigados a procurar
outro retiro; e não sendo a ilha de Ruby demasiado distante, rumaram a esse destino e aí fundearam. Contudo, no dia seguinte, chegando aí
uma chalupa holandesa que entrou, por assim
dizer, directamente no covil dos malfeitores, eles
não conseguiram impedir-se de cometer as suas
habituais proezas, pelo que a tomaram como
prémio, pilharam-na do que quiseram e acaba-
20
História Geral dos Piratas
ram dividindo um espólio que rendeu 50 libras a
cada homem.
Este navio, verificaram eles, revelou-se bem
mais apropriado para seus desígnios do que o
Lucretia, muito mais capaz de assistir às reparações
do costado da chalupa pirata, pois, tendo o convés
consideravelmente mais baixo, era consequentemente mais capaz de levantar o fundo para fora da
água; pelo que o Lucretia foi libertado e a chalupa
holandesa retida no seu lugar. Contudo, não cuidando ser conveniente permanecer naquele lugar,
por medo de serem descobertos, os piratas voltaram a sua atenção para outras paragens, decidindo
rumar à costa da Jamaica, onde tomaram um
negociante de açúcar, e chegando em seguida à
Grande Caimã, situada a cerca de trinta léguas a
sotavento da Jamaica, com a intenção de aí reparar
o navio. No entanto, deu-se nessa ocasião o incidente que veio a pôr fim às piratarias desta companhia, que até então haviam tido tanto sucesso.
O contramestre dos piratas, sujeito ruidoso
e intratável, ouvindo várias vezes censuras do
capitão a propósito do seu comportamento,
achou-se maltratado, pelo que não só devolveu
ao capitão as censuras e insultos como o desafiou
para um duelo na próxima terra onde aportassem, à pistola e à espada, tal como ditam os costumes destes foras-da-lei.
Assim, quando a chalupa chegou a terra,
conforme mencionado, o capitão logo propôs o
22
A Vida do Capitão Evans
duelo; contudo, nesta ocasião, o contramestre
cobardemente recusou-se a lutar ou a ir sequer a
terra, apesar de ter sido proposta sua o desafio do
duelo. Assim, vendo o Capitão Evans que nada
havia a fazer com este homem, pegou em sua
bengala e zurziu-o com severas bengaladas; mas
o contramestre, não suportando tal humilhação,
sacou da sua pistola e disparou um tiro na cabeça de Evans, que imediatamente caiu morto.
O contramestre saltou imediatamente borda
fora e nadou em direcção a terra; mas o bote do
navio foi expeditamente tripulado e lançado em
sua perseguição, para que o resgatasse e o trouxesse novamente a bordo.
A morte do capitão naquelas circunstâncias
inflamou de tal modo a tripulação que todos
resolveram que o criminoso deveria morrer ao
cabo das mais intensas torturas. Contudo,
enquanto consideravam o castigo mais adequado, o artilheiro, arrebatado pela fúria, descarregou a sua pistola contra o prisioneiro, baleando-o no corpo mas não o matando de imediato; pelo
que o deliquente, em palavras deveras comovedoras, lhes rogou apenas uma semana para a sua
penitência. Mas um outro homem aproximou-se
então do infeliz e lhe disse que iria arrepender-se
e condenar-se à perdição imediatamente; e sem
mais, desfechou-lhe um tiro na cabeça.
Deveria ter feito notar que, quando os piratas concederam a liberdade ao Lucretia and
23
História Geral dos Piratas
Catherine, o piloto desta embarcação foi mantido à força entre eles, e este era agora o único a
bordo com entendimento nas artes da navegação, pelo que os malfeitores pretenderam fazer
dele capitão da chalupa, no lugar do falecido
Capitão Evans. Contudo, este piloto desejava
simplesmente ser dispensado dessa honra, pelo
que, por fim, terminantemente recusou o cargo;
ao que a companhia concordou então em separar-se, deixando o piloto na posse da embarcação. Assim sendo, os piratas desembarcaram nas
Caimãs, levando consigo cerca de 9000 libras
para repartir por trinta pessoas; e estando o
clima de feição, o piloto e um rapaz conduziram
a chalupa até Port Royal, na Jamaica.
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