OUVINDO E IMAGINANDO HISTÓRIAS MARIBEL DA COSTA DAL BEM INTRODUÇÃO Na infância, costumamos ouvir histórias contadas por nossos pais, avós, tios e, posteriormente, na escola, por nossos professores de educação infantil e séries iniciais. Povoa-se o imaginário de personagens que protagonizam e poetizam grandes aventuras, clássicas ou não, e desenvolve-se o gosto pela leitura , pelo ouvir e pelo contar, assim como pelo recriar, de diferentes formas, seja através da oralidade, do desenho, da imitação, do teatro o que foi lido ou ouvido. Entretanto, com o passar dos anos, embora as narrativas façam parte de nosso cotidiano, elas são ignoradas na escola, especialmente a partir das séries finais do Ensino Fundamental onde se passa a ler e interpretar textos, muitas vezes, de forma solitária e individual, em que o educando deve responder ao professor aquilo que ele espera como assertiva correta. E o mundo do imaginário vai ficando cada vez mais distante, isolado da sala de aula. O professor já não conta mais histórias, já não as ouve mais de seus educandos (alegando, geralmente, que não há tempo, mas sim muitos conteúdos a serem ensinados). Assim, perde-se a beleza do ouvir, do falar e do imaginar. E isso fica ainda mais distante se considerarmos a realidade do Ensino Médio. Pressupõe-se, então, um educando ―pronto‖, ―acabado‖ que tem a obrigação de provar o domínio de pré- requisitos para essa etapa, assimilando uma enorme quantidade de saberes. O presente trabalho busca pesquisar os anseios de jovens de 3 turmas de Ensino Médio de uma escola pública estadual acerca do desenrolar de atividades que retomem as narrativas de forma criativa e lúdica, assim como conhecer as experiências anteriores com elas. Para isso, foi realizada uma pesquisa com 80 alunos e, após a análise dos resultados, aplicada uma metodologia diversificada que propiciou uma dinâmica participativa e interativa. Concluiu-se, assim, o quanto novas metodologias são eficientes e desejadas pelos adolescentes que as levam a sério, produzindo e elaborando conhecimentos significativos e qualificados. PESQUISA: AS NARRATIVAS AO LONGO DA INFÂNCIA E ESCOLARIZAÇÃO 1. Você gosta de ouvir histórias? Sim 69 Não 11 2. De quais histórias você mais gosta? Aventuras 67 Terror 78 Amor 71 Anedotas 59 Lendas 38 Vida real 61 3. Você costuma ouvir histórias reais contadas por quem? Pais 63 Professores 20 Avós 23 Amigos 71 4. Sobre o que falam essas histórias? O dia-a-dia 30 A vida das outras pessoas 22 Si mesmo 28 5. Você já narrou a sua história de vida para alguém? Sim 48 Não 32 6. Quando você era criança, quem/ que mais lhe contava histórias? Livros 63 Computador 20 Avós 15 Pais 55 Mídia 19 Professores 74 7. A partir da 5ª série do Ensino Fundamental, os seus professores contavam histórias? Sim 17 Não 63 8. No Ensino Médio, você ouve histórias contadas pelos professores? Sim 05 Não 75 9. Na sua opinião, seria interessante um trabalho em que a professora e vocês, colegas, contassem histórias, mesmo estando no Ensino Médio? Sim 65 Não 15 10. As histórias, quando contadas, contribuem para o imaginário de quem ouve? Sim 72 Não 08 PROPOSTAS METODOLÓGICAS Após o levantamento dos dados da pesquisa, quando se percebeu o desejo de ouvir, contar e imaginar histórias, nas aulas de produção textual, oportunizou-se essa prática de forma diferenciada e criativa. É relevante o momento da escuta. O silêncio também deve fazer parte da sala de aula. É no silêncio que se ouve o outro e a própria voz. Logo, no silêncio também há comunicação conforme as palavras de Paulo Freire: A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação.(FREIRE, 1984, p. 43) Em uma primeira etapa, já concluída, os educandos ouviram histórias contadas pela professora e, a partir daí, produziram diversos gêneros textuais em linguagem verbal e não-verbal onde deixaram fluir sua imaginação. 1ª PROPOSTA: TEXTO A CARTA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO Esta outra história é de dois namorados, ele chamado Haroldo e ela, por coincidência, Marta. Os dois brigaram feio, e Marta escreveu uma carta para Haroldo, rompendo definitivamente o namoro e ainda dizendo uma verdade que ele precisava ouvir. Ou, no caso, ler. Mas Marta se arrependeu do que tinha escrito e no dia seguinte fez plantão na calçada em frente do edifício de Haroldo, esperando o carteiro. Precisava interceptar a carta de qualquer jeito. Quando o carteiro apareceu, Marta fingiu que estava chegando ao edifício e perguntou: ―Alguma coisa para o 702? Eu levo.‖ Mas não tinha nada para o 702. No dia seguinte tinha, mas não a carta de Marta. No terceiro dia, o carteiro desconfiou, hesitou em entregar a correspondência a Marta, que foi obrigada a fazer uma encenação dramática. Não era do 702. Era a autora de uma carta para o 702. E queria a carta de volta. Precisava daquela carta. Era importantíssimo ter aquela carta. Não podia dizer por quê. Afinal, a carta era dela mesma, devia ter o direito de recuperá-la quando quisesse! O carteiro disse que o que ela estava querendo fazer era crime federal, mas mesmo assim olhou os envelopes do 702 para ver se entre eles estava a carta. Não estava. No dia seguinte – quando Marta ficou sabendo que o carteiro se chamava Jessé e, apesar de tão jovem, já era viúvo, além de colorado – também não. No outro dia também não, e o carteiro convidou Marta para, quem sabe, um chope. Na manhã depois do chope, a carta ainda não tinha chegado e Marta e Jessé combinaram ir ver Titanic juntos. No dia seguinte – nem sinal da carta – Jessé perguntou se Marta não queria conhecer sua casa. Era uma casa pobre, morava com a mãe, mas, se ela não se importasse... Marta disse que ia pensar. No dia seguinte, chegou a carta. Jessé deu a carta a Marta. Ela ficou olhando o envelope por um longo minuto. Depois a devolveu ao carteiro e disse: ―Entrega.‖ E, diante do espanto de Jessé, explicou que só queria ver se tinha posto o endereço certo. PROPOSTA: Narre o desfecho da história de Marta e Jessé. MODELO DE NARRATIVA A VIDA TEM DESSES AMORES Marta resolve entregar a carta para o carteiro Jessé que fica olhando para ela sem entender. Ele coloca a carta na caixa- correio do ex de Marta. Volta ao encontro dela e a convida para um suco com bolo na lanchonete. Ela logo aceita e abre um lindo sorriso de orelha a orelha. Marta e Jessé caminhando até a lanchonete. Ela pensando: ― Estou apaixonada ou confusa?‖ Na lanchonete, os dois sentados um de frente para o outro. Ela já o olhava com olhos diferentes. Começaram a conversar. Ele contou a Marta que tinha três filhos. Ela disse que amava crianças. Ele disse que sua mulher Lúcia também amava. Marta riu e falou: - Jessé, como você é engraçado! Querendo me fazer ciúmes com uma esposa imaginária. Jessé sorriu: - Não, não! Lúcia existe, somos casados há 20 anos. Marta levantou da mesa e saiu correndo. Jessé foi atrás. Quando a alcançou, perguntou o que estava acontecendo. Ela, chorando, abraçou-o. Continuou chorando em seu ombro. De repente, beijou-o. Ele correspondeu ao beijo. E assim Marta foi trabalhar com o carteiro e viraram amantes. 2ª PROPOSTA: TEXTO UMA VELA PARA DARIO DE DALTON TREVISAN Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo (utensílio para fumar). Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão (pequeno caminhão que transporta cadáveres). A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair. PROPOSTA: Deixe aflorar o seu sentimento de solidariedade humana e sobre esse tema escreva uma poesia. 3ª PROPOSTA: POEMA O BICHO DE MANUEL BANDEIRA Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. PROPOSTA PARA A TURMA A: Pinte um quadro imaginando a cena descrita pelo poeta Manuel Bandeira. PROPOSTA PARA A TURMA B: A partir de sua leitura da imagem, crie um poema, interpretando-a. Heróis Esquecidos Sofrimento, dor Virar na rua, opção? Não! Falta de oportunidade Provavelmente. Para o lado que olho Mais miséria Tão perto e tão distante Os dois extremos: Riqueza e pobreza. O que resta de dignidade Ninguém ajuda Olhados com desprezo eles são E se fosse você? Tantas noites passam em claro Pensando no que fizeram para merecer Rezando por um futuro melhor. Pois aquilo é desumano Lá, nas ruas, existem heróis Heróis da sobrevivência Esquecidos pela sociedade. CONCLUSÕES Os educandos gostam de ouvir histórias. Logo, essa prática é importante em sala de aula. Também comprovou-se através da pesquisa que tal metodologia, infelizmente, é esquecida com o passar dos anos. Espera-se que o educando atinja a sua maturidade como leitor, adquirindo o hábito de ler, o que o auxiliará em seu aprendizado, assim como em seu crescimento intelectual e humano. Quer-se um educando diferente (no bom sentido, é claro). Um educando que seja capaz de reconstruir a sociedade em que está inserido de modo digno e justo. Para tanto, é fundamental que a educação se renove, que a sala de aula faça a diferença na sua vida, proporcionando-lhe momentos de escuta, de criação, de elaboração de saberes, de práticas renovadoras. Como diz Paulo Freire: Uma das qualidades mais importantes do homem novo e da mulher nova é a certeza que têm de que não podem parar de caminhar e a certeza de que cedo o novo fica velho se não se renovar. A educação das crianças, dos jovens e dos adultos tem uma importância muito grande na formação do homem novo e da mulher nova. Ela tem de ser uma educação nova também, que estamos procurando pôr em prática de acordo com as nossas possibilidades. (FREIRE, 1984, p. 95) Os nossos educandos querem fazer parte do processo ensino- aprendizagem, embora, às vezes, acreditemos que não. Diante da certeza da importância de uma prática metodológica diferenciada e da crença de que mudanças na educação são viáveis, o professor pode obter sucesso e fazer-se lembrar como alguém que proporcionou momentos expressivos de saberes partilhados e aprendizagem considerável, pois como diz Selbach: A missão de todo professor é a de bem preparar as novas gerações para o mundo em que vivem e convivem, mas também para o mundo em que irão viver. Mas, como o mundo atual muda rapidamente, também a escola necessita estar em contínuo estado de atenção para se adaptar a essas mudanças e construir um ensino, tanto em conteúdo quanto em metodologia, coerente com a evolução dessas mudanças. (2010, p. 126) Jamais devemos menosprezar o imaginário de nosso educando, mas trabalhá-lo para que fluam trabalhos inovadores e singulares . Só assim, estaremos contribuindo para a diversidade artística, literária e cultural que permeia a nossa realidade contemporânea. É no prazer de sua leitura que o educando cria diferenciadas formas de expressão, sentindo-se parte do processo ensino- aprendizagem e não apenas um ser passivo e alienado. BIBLIOGRAFIA FALCETTA, Antônio; MOTHES, Lígia; AMORIM, Vanessa & MAGALHÃES, Vivian. Cem aulas sem tédio. 1ª edição. Rio Grande do Sul/Brasil: Editora Instituto Padre Reus, 2000. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam, 6ª edição. São Paulo/Brasil: Editora Cortez, 1984 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários á prática educativa. 25ª edição. São Paulo/Brasil: Editora Paz e Terra,1996. SELBACH, Simone (supervisão geral). Língua Portuguesa e didática. 1ª edição. Rio de Janeiro/ Brasil. Editora Vozes, 2010.