DA QUESTÃO DO MÉTODO À BUSCA DO RIGOR: A ABORDAGEM CLÍNICA E A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NA PESQUISA PSICANALÍTICA Tânia Maria José Aiello Vaisberg1 É muito comum a idéia segundo a qual a psicologia clínica corresponde a um campo de aplicação de conhecimentos que seriam produzidos em algum outro lugar. Deste modo, mesmo num Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo encontramos, ainda hoje, pesquisadores e docentes que entendem caber ao Departamento de Psicologia Clínica um trabalho que, segundo o jargão acadêmico, é denominado extensão, consistindo na oferta de serviços de atendimento da universidade pública à comunidade carente. Evidentemente, tal modo de pensar está diretamente relacionado a uma visão de ciência que, marcada pela visão de que o conhecimento se dá sempre numa relação sujeito-objeto, separa pesquisa e aplicação. Entretanto, considero fundamental lembrar que, se existe algum sentido na existência de programas de pós- graduação “strictu sensu” em psicologia clínica, é exatamente porque têm como objetivo o desenvolvimento de um tipo particular e rigoroso de pesquisa, que não se confunde, em momento algum, com o que habitualmente é conhecido como aprimoramento, aperfeiçoamento ou especialização. Assim, considerando a legitimidade e especificidade da pesquisa clínica, muito facilmente chega-se à necessidade de problematização da questão do método, que tem início com a seguinte pergunta: existe um método investigativo clínico? Ou, diversamente, far-se-ia, neste campo, uso de um método mais geral, compartilhado com outros domínios da atividade científica? Os pesquisadores têm respondido diferentemente a estas perguntas. Encontramos um bom exemplo das posições passíveis de serem assumidas neste debate no livro Investigação e Psicanálise (1993), organizado por Maria Emília Lino da Silva. De um lado encontramos, nesta obra, escritos, como o da própria organizadora, que advogam a favor da existência de um método clínico psicanalítico que, de modo rigoroso e fundamentado, 1 Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do Ser e Fazer: Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social, membro efetivo do de Estudos Winnicottianos de São Paulo. NEW - Núcleo 36 produz conhecimento sobre o homem. Deparamo-nos, também, com outras perspectivas, que consideram a clínica como campo fértil de sugestão de hipóteses que serão abordadas, em termos investigativos, a partir de uma visão claramente positivista. Minha experiência como pesquisadora me tem levado a assumir com convicção a idéia de que existe um método clínico que pode, com rigor e fundamentação, gerar conhecimento sobre o humano. Este método não se confunde, em momento algum, com o método científico positivista, porque este último não pode, jamais, abordar o humano enquanto tal, mas apenas se puder objetificá-lo. Ora, a objetificação, operação necessária à ciência positivista, é, em sua essência desumanização! Assim sendo, seu valor é muitíssimo discutível no campo das ciências humanas. Pode ser útil dedicar algum esforço para rememorar, ainda que rapidamente, a origem da idéia de fazer uso de um método positivista de pesquisa no campo da ciência psicológica. Suas raízes remontam ao estabelecimento cartesiano de uma dicotomia fundamental, segundo a qual existiriam dois – e apenas dois – modos de existir: a existência da coisa pensante e a existência da coisa extensa. Historicamente, a busca do método adequado, do melhor caminho, para chegar ao conhecimento, surgiu exatamente no contexto do pensamento dualista que, ao postular que o cogito está radical e ontologicamente separado da existência extensa, torna necessária a pergunta de como o sujeito do conhecimento se apropria da realidade, que lhe é heterogênea e exterior. Como poderiam as coisas do mundo chegar à consciência, vejam bem, não do homem concreto – pois estamos nos movendo no campo de uma certa filosofia – mas do sujeito cognoscente? O pensamento ocidental encontrou a resposta a essa questão no conceito de representação, que é compreendida como operação pela qual as coisas são convertidas em idéias sobre as coisas. Nesta linha, conhecimento seria a representação ideal do mundo. A assunção desta visão do conhecimento coloca, conseqüentemente, a questão da busca do método adequado para obtenção de conhecimento confiável, daquele conhecimento que seria a mais exata e precisa cópia das coisas (Galimberti, 1999). Abordando muito didaticamente as características principais do conhecimento que é concebido como representação do mundo, Chauí (1974) afirma que, segundo tal visão, sujeito e objeto mantém, entre si, relações de exterioridade. Cabe ao sujeito a atividade de reprodução ideal do mundo pela representação, mediante a qual o objeto exterior é convertido em algo homogêneo 37 ao sujeito, em idéia. Esta conversão poderia, pois, ser bem ou mal realizada, gerando conhecimento verdadeiro ou falso. A noção de método surge, então, historicamente, no pensamento ocidental, na qualidade de instrumento capaz de operar a reprodução, a qual, lembremos, é obrigatória dada a separação ontológica vigente entre sujeito e objeto do conhecimento. Como instrumento, o método será sempre, sob esta ótica, um conjunto de regras que visam garantir uma correspondência confiável entre o mundo real e o conhecimento do mundo – conhecimento que nada mais seria senão conjunto de representações. Nesta linha de pensamento, o pesquisador deve definir o seu método anteriormente à consecução da pesquisa, em termos de um planejamento muito bem estabelecido. Dir-se-á que o conhecimento foi alcançado na medida em que se puder chegar a uma representação objetiva, tornada possível porque, pelo uso correto do método, o sujeito terá superado, numa visão totalizadora, aquelas visões parciais que são as únicas possíveis ao homem concreto. O método adequado será, portanto, aquele que puder garantir a cópia fiel da existência extensa. Cabe, entretanto, perguntar se cabe manter a visão do conhecimento como reprodução ideal quando nos dedicamos ao estudo do fenômeno humano. Se quiser manter esta visão – que provavelmente é aquela do senso comum, quando nos pede, por exemplo, que nos atenhamos aos “fatos”, ou que sejamos “objetivos” - naturalmente deveremos considerar o fenômeno humano como “res extensa”, vale dizer, deveremos objetivar o acontecer humano. Esta tem sido a opção de uma certa psicologia, e mesmo de uma certa psicanálise metapsicológica (Bleger, 1963), que tornam o psíquico extenso no espaço, atribuindo-lhe funcionalidade análoga a de um aparato físico. Claro que se pode facilmente invocar justificativas que nos lembrem que o aparelho psíquico é metafórico. Entretanto, parece-nos fundamental lembrar que outras metáforas são possíveis2 e que nenhuma delas deixa de produzir efeitos... Entretanto, não é preciso ser psicanalista crítico da metapsicologia objetivante para perceber quão absurda e criticável é a idéia de uma reificação positivista do fenômeno Concordamos com Greenberg e Mitchell (1994) quando lembram que a tentativa freudiana de construir uma ciência respeitável é facilmente compreensível à luz da história da ciência. Entretanto, a compreensão não nos exime da crítica ao fisicalismo freudiano, nem nos impede, por outro lado, de reconhecer a importância da contribuição revolucionária que permite afirmar que toda conduta tem sentido, pertencendo inevitavelmente ao acontecer humano. 2 38 humano. Trata-se de uma visão inaceitável, tanto do ponto de vista da ética como do ponto de vista epistemológico. Chegamos, pois, a um impasse quando consideramos inaceitável a objetificação do fenômeno humano, operação pela qual é convertido em “res extensa” passível de ser, a partir daí, fielmente reproduzida pelo cogito a partir do uso de um método adequado? Estaríamos afirmando, então, que é impossível a produção de conhecimento relativo ao fenômeno humano? Entendo que se adotamos a concepção segundo a qual o conhecimento é, essencialmente, representação, podemos duvidar da possibilidade mesma de produção de conhecimento sobre o humano, até porque o humano coisificado é simulacro no qual fica perdido o essencialmente humano. Outra, entretanto, será nossa visão se formos capazes de conceber a produção de conhecimento como algo distinto da obtenção de uma cópia ideal do mundo das coisas. Se não estivermos comprometidos pela busca de conhecimento representacional, estaremos livres para repensar a epistemologia das ciências humanas, e neste repensar a reflexão ética precede o trabalho epistemológico. Aqui a questão do método deverá ser substituída pela questão do rigor, de modo que o projeto de construção de um conhecimento totalizante e universal será abandonado em favor de uma honestidade intelectual que se fará pela transparência máxima na elucidação dos pressupostos éticos, epistemológicos e antropológicos mediante os quais nos dirigimos ao campo de investigação. Podemos fazer uma concessão terminológica e designar a assunção desses pressupostos como “metodologia de pesquisa”? Esta é uma questão que está sendo respondida pela prática dos pesquisadores, em seu intercâmbio com os órgãos financiadores da pesquisa e com as instituições acadêmicas. O fundamental, entretanto, é não perder de vista que não se trata de listar umas tantas regras de “bem fazer”, mas de cultivar o exercício da comunicação e da transparência, considerando que rigor, em ciências humanas, conquista-se pela observância da coerência dos pressupostos e pela exposição aos olhares da comunidade científica. Este rigor nos permitirá chegar a um verdadeiro - que não se limita a retratar como “as coisas são”, mas que consiste na percepção de que a verdade e o bem não se dissociam na medida em que produção de conhecimento do humano só tem sentido quando transforma o viver em termos fundamentalmente éticos. Tendo em vista o respeito à necessidade de cultivo de uma transparência quanto aos nossos pressupostos de pesquisa, 39 temos partido, no Ser e Fazer: Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do IPUSP, de uma visão segundo a qual a psicanálise estuda o mesmo fenômeno que todas as demais ciências humanas, o ser humano, em seu acontecer concreto e inevitavelmente situado. Rejeitamos, assim, a noção disciplinar segundo a qual cada ciência examina um domínio particular da realidade, sobre o qual adquire direitos à maneira daqueles titulares das capitanias hereditárias do Brasil colonial... A complexidade do fenômeno humano, seu caráter inescapavelmente transbordante diante das categorias do intelecto, exige recortes capazes de iluminar, ainda que sempre de modo insuficiente, aspectos, qualidades e características. A psicologia – e vale considerar que considero, seguindo indicações de Bleger (1963), que a psicanálise é, até hoje, a mais completa psicologia existente – aborda o mesmo fenômeno que a história, que a sociologia ou que a antropologia, mas cumpre sua tarefa atendo-se à consideração do sentido emocional das condutas humanas. Faz-se, pois, psicologia do indivíduo e do coletivo3, fazse psicologia de condutas simbólicas, de atos e gestos, bem como de fenômenos que se expressam em termos corporais. Faz-se psicologia ao considerar o campo experiencial humano, em suas dimensões consciente e inconsciente. A abordagem psicanalítica – termo eventualmente preferível a método - ao se constituir como consideração do fenômeno humano enquanto experiência emocional, apresenta características que lhe são específicas. Para compreendermos estas características, é importante considerar, conforme esclarece Bleger (1963) com didatismo incomum, que o fenômeno humano acontece sempre como emergente do que denomina campos da conduta. A seu ver, é possível distinguirmos três campos: o ambiental, que é aquele visto desde uma perspectiva exterior à da pessoa concreta4, o campo psicológico, de caráter estritamente vivencial, e o campo da consciência, que, a rigor, é uma diferenciação do campo psicológico. Deste modo, não é difícil concluir aquilo que vale a pena designar como campo psicológico é exatamente o campo vivencial não consciente. Na medida em Entendo que coletivos humanos podem ser abordados em termos do que se poderia denominar "pessoalidades coletivas", vale dizer como singularidades transindividuais. Este termo nos parece mais adequado do que a expressão "sujeito coletivo", que temos usado em nossos trabalhos anteriores, na medida em que o termo sujeito não contempla dimensões propriamente existenciais da experiência vital de grupamentos humanos. 4 O sujeito concreto, para Bleger (1963) corresponde ao sujeito encarnado na pena de Merleau-Ponty (1945). 3 40 que a conduta humana pode ser abordada desde âmbitos individuais e coletivos, torna-se possível pensar em termos de campos psicológicos não conscientes relativos a fenômenos individuais ou coletivos, vale dizer, em termos de campos psicológicos relativos5. Consiste, pois, abordagem psicanalítica do fenômeno humano na transformação de campos psicológicos inconscientes. Entre nós, Herrmann (1979) tem sido enfático na conceituação do método psicanalítico enquanto ruptura do campo ou inconsciente relativo. Entendo que sua contribuição é preciosa, mas que o fato de partir da matriz clínica que tem na neurose o fenômeno privilegiado, levando-o a conceber o inconsciente como conjunto de regras lógico-emocionais, conduz a uma percepção, a meu ver problemática, segundo a qual a principal operação psicanalítica é uma ruptura6. Exercendo uma prática clínica atenta a fenômenos do chamado registro psicótico, e freqüentando os textos winnicottianos, tão sensíveis ao enlouquecimento e à despersonalização, permito-me sugerir que o termo transformação possa substituir, por sua maior abrangência, aquele da ruptura, contemplando mais precisamente o acontecer clínico que tem efeito mutativo nos casos não neuróticos (AielloVaisberg, 2002). O termo transformação também me parece preferível quando o que está em pauta é a transformação de campos psicológicos inconscientes relativos à conduta de coletivos humanos. De todo o modo, se o que está em pauta é o uso da abordagem psicanalítica, concebida como transformação de campo, variados podem ser os procedimentos clínicos capazes de alcançar este efeito. Em sua variedade, contudo, estarão sempre regidos pelos princípios epistemológicos, antropológicos e éticos constituintes da abordagem em questão. Deve, pois, ficar claro, que a psicanálise, não sendo aplicação de um certo número de regras da boa reprodução do real, tampouco consiste na aplicação de doutrinas à compreensão deste ou daquele fenômeno. A relação a manter entre a participação no acontecer clínico – esteja em pauta o atendimento de uma singularidade individual ou coletiva - e o corpo de teorias Entre nós, Fábio Herrmann cunho a expressão “inconsciente relativo”, na qual nos inspiramos para falar em “campo psicológico relativo”. Entretanto, é fundamental destacar que o inconsciente herrrmaniano é concebido como um conjunto de regras afetivoemocionais, enquanto no pensamento de Bleger o campo tem caráter eminentemente vivencial e sensível. 6 Evidentemente, o texto herrmanniano se refere à ruptura do campo e não, como chegam a pensar leitores bastante desatentos, à ruptura da relação. 5 41 já constituídas é peculiar. Trata-se, a meu ver, de uma relação de interlocução, que segue pelo melhor caminho quando o pesquisador pode fazer uso, no forte sentido winnicottiano do termo, do “objeto teoria”. Quando este uso ocorre, abandonam-se posições reverenciais, acríticas e submissas em favor do estabelecimento de um campo dialógico, crítico e reflexivo, que é fiel ao reconhecimento de que a produção de saber é tarefa compartilhada, é trabalho coletivo. Para finalizar, cumpre lembrar que a transformação do campo psicológico inconsciente é, simultaneamente, o "ser e fazer" do psicanalista, durante o acontecer clínico - que se vai concretizar a partir de suas intervenções verbais e gestuais, no sentido amplo da palavra gesto, mas também a atividade essencial do pesquisador psicanalítico, esteja este debruçado sobre o que aconteceu numa sessão ou estudando fenômenos humanos outros, que se dão na vida concreta de indivíduos e coletividades. Há, pois, um momento fundamental na pesquisa, que é aquele que temos denominado, no "Ser e Fazer": Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica social, como "apresentação do acontecer clínico"7. Esta é uma expressão precisa, que nos indica como se pode obter a transparência necessária ao rigor, desde uma perspectiva que considera a produção de conhecimento como empreitada coletiva. O termo "apresentação" é aqui tomado no sentido preciso que assume no interior da obra winnicottiana, vale dizer, como disponibilização de experiências humanas- sob forma de uma narrativa sui-generis, da qual o narrador figura como partícipe - de modo tal a permitir que o todo o grupo de pesquisadores possa aí "criar- encontrar" sentido. Este "criarencontrar" é um movimento que garante, simultaneamente, tanto o respeito à experiência relatada como a possibilidade desta vir a ser reapropriada, em seus próprios termos, pelos pesquisadorespsicanalistas envolvidos na pesquisa. Desta feita, penso que o "material" básico sobre o qual incide a investigação será sempre a apresentação compartilhada de um acontecer - que é clínico não apenas se ocorreu em um consultório, mas que é clínico porque será clinicamente abordado (Revault D'Allones, 1999). Esta feliz expressão aparece, pela primeira vez, em nossos trabalhos, no Relatório de Qualificação para Mestrado de Lígia Masagão Vitali, psicoterapeuta e pesquisadora responsável por Oficinas Psicoterapêuticas de Arranjos Florais. 7 42 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Marionetes em Consultas Terapêuticas: A Teoria dos Campos na Fundamentação de Enquadres Transicionais. In L. Barone (org) O Psicanalista: hoje e Amanhã. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2002. AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Uso do objeto "teoria": Descontrução e Mudança de Representações sociais de Estudantes de Psicologia sobre o Doente Mental. Interações IV (7), 77-98, 1999. CHAUÍ, M. O Problema do Método-Adequação. 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