revisão
Morte celular programada e peroxidação
lipídica no espermatozoide humano
Programed cell death and lipid peroxidation in human spermatozoa
Alessandro Schuffner1
Almir Antonio Urbanetz2
Newton Sergio de Carvalho2
Maria Theresa Costa Ramos de Oliveira2
Mariana Drechmer2
Thiago Placido3
Palavras-chave
Espermatozoides
Apoptose
Peroxidação de lipídeos
Keywords
Spermatozoa
Apoptosis
Lipid peroxidation
Resumo
O principal marcador bioquímico da apoptose precoce em células somáticas
é a translocação da fosfatidilserina para o folheto externo da membrana plasmática e fragmentação do DNA.
Essas características têm sido também descritas em espermatozoides e são observadas com maior frequência nos
ejaculados de homens inférteis. O espermatozoide humano tem uma alta concentração de ácidos graxos poliinsaturados em sua membrana e pouca proteção adequada com antioxidante. Ácidos graxos poli-insaturados são
necessários para eventos de fusão da membrana associados à fertilização. No entanto, a presença deles acarreta
uma vulnerabilidade para os danos peroxidativos. Sob várias condições de tensão oxidativa, o início da cascata
da peroxidação lipídica resulta em perda da fluidez e prejuízo da função espermática. No campo da reprodução
humana, principalmente nos aspectos referentes à infertilidade masculina, conhecer os mecanismos da apoptose
e da peroxidação lipídica é essencial. Na abordagem da infertilidade masculina, a avaliação da translocação da
fosfatidilserina (através da aderência à anexina V como marcador da apoptose) e a aferição da peroxidação lipídica
têm como objetivo tentar identificar os casos com mau prognóstico na criopreservação/descongelamento. A
identificação de tais casos poderia evitar desgastes psicológicos e econômicos nesses pacientes, bem como a
indicação de uma outra abordagem para o seu acompanhamento.
Abstract
Plasma membrane translocation of phosphatidylserine and DNA fragmentation
are considered the main biochemical markers of early apoptosis in somatic cells. These characteristics have been
also described in sperm cells and are commonly observed in ejaculated infertile men. The membrane of human
spermatozoa contains a high concentration of polyunsaturated fatty acids and inadequate antioxidative protection.
Although polyunsaturated fatty acids are required in membrane events associated with potential fertilization,
their appearance may increase the vulnerability to peroxidative damage. Under oxidative stress, lipid peroxidation
results in motility and sperm function damage. In the field of human reproduction, mainly in the area of male
infertility, it is essential to know the apoptosis mechanism and the effects of lipid peroxidation. In the study of
male infertility, the evaluation of plasma membrane phosphatidylserine translocation (assessed by annexin V
binding as a apoptosis marker) and spontaneous lipid peroxidation aim to identify the bad prognostic cases for
those that are submitted to cryopreservation process stress. This would prevent psychological and economic
losses in these patients and establish another evaluation method for their infertility.
1
2
3
Conceber Centro de Medicina Reprodutiva – Curitiba (PR), Brasil
Departamento de Tocoginecologia do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba (PR), Brasil
Embriologista da Conceber Centro de Medicina Reprodutiva – Curitiba (PR), Brasil
Schuffner A, Urbanetz AA, Carvalho NS, Oliveira MTCR, Drechmer M, Placido T
Introdução
A apoptose foi inicialmente descrita por Kerr et al.,1 que
identificaram um processo de morte celular distinto da necrose.
Uma característica que distingue as duas formas de morte celular é que a apoptose resulta de um processo fisiológico normal
na ontogenia, enquanto a necrose é caracterizada por edema
citoplasmático até o ponto de rotura celular e desintegração dos
constituintes celulares e nucleares. Adicionalmente, a necrose
em tecidos é acompanhada por inflamação marcante e retirada
de restos celulares. Os investigadores também sugeriram que a
apoptose exercia uma função vital na manutenção da homeostase
normal do tecido e durante o desenvolvimento embrionário.
A determinação de apoptose por aqueles autores era baseada
em critérios morfológicos. As células classificadas como apoptóticas tinham pronunciada condensação do núcleo celular.
Outra característica marcante da apoptose era a formação de
protuberâncias na membrana celular ou “bolhas” e subsequente
aparecimento dos corpos apoptóticos. Observou-se que os corpos
apoptóticos continham organelas celulares que pareciam estrutural e funcionalmente intactas. Outras células, em pouco tempo,
fagocitavam os produtos resultantes da apoptose.1
Atualmente, os critérios morfológicos são reconhecidos como
características de estágios tardios da apoptose. A apoptose precoce é, na atualidade, facilmente detectada por meio de análises
bioquímicas, cujas células seriam consideradas sadias se julgadas
por critério morfológico.
O principal marcador bioquímico durante a apoptose precoce
em células somáticas é a translocação da fosfatidilserina (FS) para
o folheto externo da membrana plasmática.2 Durante toda a
vida das células fisiologicamente normais, a exposição da FS no
Figura 1 - Translocação da fosfatidilserina para o folheto
externo da membrana plasmática durante a apoptose
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folheto externo da membrana plasmática é regulada por sistemas
enzimáticos dependentes de energia. A transferase aminofosfolipídica (TAF), que é uma enzima seletiva para aminofosfolipídios
como a FS e fosfatidiletanolamina (FE), direciona a FS para
a porção interna da membrana plasmática.3 Um fosfolipídio
escramblase facilita a migração de fosfolipídios em ambas as
direções. Acredita-se que a contribuição de um terceiro sistema
enzimático, denominado flopase,4 é responsável, ao menos, pela
manutenção da assimetria em células não apoptóticas.
A translocação da FS pode ocorrer através de vários mecanismos. Durante a apoptose, a TAF é inibida e a escramblase é
ativada, resultando em uma transferência da FS para o folheto
externo da membrana plasmática. Essas mudanças estimulam
a remoção de células apoptóticas por fagocitose,5,6 como exemplificado nas Figuras 1 e 2.
Existem algumas evidências de que a oxidação da FS ocorre
durante a apoptose e que essa modificação pode afetar adversamente
o reconhecimento da FS pela TAF e escramblase.3 A oxidação de
resíduos de cisteína por espécies de oxigênio reativo na TAF torna
inativa essa enzima.7 Dessa forma, a falha da TAF em catalisar a
internalização da FS pode ser devido a uma inabilidade da enzima
em reconhecer a FS oxidada, ou talvez, devido à inativação da
TAF por Espécies de Oxigênio Reativo (EOR). A oxidação da
FS, assim como de outros fosfolipídios, pode também aumentar
suas tendências em se translocar espontaneamente para a porção
externa da membrana plasmática.8
Apoptose nos espermatozoides
Durante o processo de criopreservação do sêmen, podem
ocorrer alterações no sistema enzimático, alterando, portanto,
Figura 2 - Translocação de fosfatidilserina para o folheto interno da
membrana plamástica dependente do trifostato de adenosina (ATP)
Morte celular programada e peroxidação lipídica no espermatozoide humano
a distribuição fosfolipídica da membrana plasmática dos espermatozoides. Em espermatozoides criopreservados de carneiro, a
interiorização da fosfatidilserina endógena é mantida em células
intactas, mas não em células danificadas.9 Os fosfolipídios, que
normalmente se localizam na porção interna da membrana
plasmática, movem-se para a porção externa durante a criopreservação/descongelamento.10,11Além disso, nesse sistema, a
atividade da translocase aminofosfolipídica, enzima responsável
pela interiorização da fosfatidilserina, está significativamente
reduzida em células intactas.
Tem sido mostrado que a aderência à anexina V, combinada com iodeto de propídio, é mais sensível para detectar a
deterioração das funções da membrana do que o corante vital
iodeto de propídio isolado.10 A membrana é normalmente
impermeável ao iodeto de propídio. No entanto, células mortas perdem sua capacidade de resistir ao influxo do propídio
resultando numa coloração intracelular. A anexina V, em combinação com 6-CFDA, que é convertido para 6-CF através da
enzima estearase nas células vivas, permite clara distinção, sob
microscópio epifluorescente, de células vivas normais, células
vivas com membrana alterada (translocação da fosfatidilserina)
e células necróticas (mortas) (Figuras 3 a 5). Foi observado que
a anexina V cora o espermatozoide como um todo (cabeça, peça
intermediária e flagelo) em mais de 90% das células anexina V+
numa lâmina.11 Dessa forma, postula-se que a fosfatidilserina
é translocada para o folheto externo da membrana celular. Em
outros sistemas celulares, esse fenômeno é considerado um sinal
precoce da morte celular programada.2
Em estudos realizados para acessar a integridade do espermatozoide humano por meio de avaliação da membrana plasmática
(anexina V) em amostras criopreservadas/descongeladas11-13 e
outras incubadas por vários períodos de tempo à 37o C,14 verificou-se que os espermatozoides de homens doadores de sêmen
sempre apresentavam melhores resultados, em relação a homens
subférteis, com respeito a esses marcadores de funcionalidade
da membrana plasmática e integridade de DNA.
Durante a apoptose, a liberação do citocromo C pela mitocôndria pode ser um evento chave na modificação oxidativa da
FS. Essa liberação ocorre concomitantemente com um grande
aumento intracelular na produção das EOR e liberação no citossol.
Essas EOR podem ser responsáveis diretas pela oxidação da FS.
Kagan et al. sugeriram que o citocromo C deve oxidar a FS na
face interna da membrana plasmática e causar um aumento na
translocação da FS oxidada.3
Um evento precoce na apoptose é a redução no potencial
da membrana mitocondrial (∆Ψm). Isto ocorre previamente à
conclusão da fragmentação do DNA intracelular em fragmentos
Figura 3 - Padrão de fluorescência observado em células
normais vivas
Figura 4 - Padrão de fluorescência observado em células vivas
com translocação da fosfatidilserina
Figura 5 - Padrão de fluorescência observado em células
necróticas
oligonucleossômicos.2 Acredita-se que ocorra a diminuição no
∆Ψm devido à formação de poros na membrana mitocondrial
interna durante transição da permeabilidade. A transição da
permeabilidade dos poros desestabiliza o ∆Ψm por facilitar
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Schuffner A, Urbanetz AA, Carvalho NS, Oliveira MTCR, Drechmer M, Placido T
o equilíbrio dos gradientes iônicos entre o citoplasma e a
matriz mitocondrial.
Os critérios para os achados morfológicos de apoptose em
células somáticas seriam de pouco uso para a avaliação dos espermatozoides ejaculados. Como resultado de uma espermatogênese
normal, o DNA espermático já está altamente condensado e
em uma forma inativa. Embora os espermatozoides apresentem
retenção citoplasmática, uma anomalia que poderia ser confundida com a formação de bolhas da membrana plasmática,
relativamente comum na espermatogênese, é considerada um
marcador de uma espermatogênese incompleta ou um indicador
para espermatozoides imaturos. A retenção citoplasmática é
composta de material celular desnecessário ou descartado não
utilizado durante a espermatogênese e é normalmente fagocitado
pelas células de Sertoli.2
Uma vez que os critérios morfológicos para demonstrar
apoptose em espermatozoides ejaculados são excluídos pela formação peculiar desse tipo celular, devem ser utilizados critérios
bioquímicos para sua avaliação.
A fragmentação do DNA, um importante produto terminal
da apoptose, foi encontrado em espermatozoides. Essa fragmentação poderia ter causas variadas e estar associada a altos níveis de
produção de EOR,15 à falta de proteção antioxidante, à infiltração
de leucócitos16 e à deficiência de protamina.17
Embora a sugestão de que o espermatozoide sofra apoptose
seja intrigante, nenhuma evidência foi demonstrada até o momento que indique que esse processo realmente ocorra. Estudos
recentes têm indicado que a translocação da FS ocorre durante
o processo de reação acrossômica.18 A aderência à anexina V em
espermatozoide ejaculado, poderia então, ser meramente um
indicativo de estágios precoces da reação acrossômica.
Peroxidação lipídica e o espermatozoide
Como qualquer célula que vive em condições aeróbicas, os
espermatozoides produzem EOR, a maior parte originada da
atividade metabólica normal. Os espermatozoides e o plasma
seminal contêm várias substâncias inibidoras das EOR, como
enzimas superóxido dismutase, catalase , o sistema glutationa
peroxidase/redutase e albumina.
O equilíbrio entre a geração e retirada das EOR, assim como
o momento e a localização da entrada em contato do espermatozoide com a EOR, determinam o efeito observado. Produção
excessiva de EOR que supere sua retirada parece estar relacionado
com infertilidade masculina.19
Aitken e Krausz,20 em artigo de revisão, assinalam que a
importância das EOR na motilidade espermática foi descrita
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pela primeira vez em 1943, quando foi observada uma queda
rápida da motilidade na presença de altas tensões de oxigênio.
Posteriormente, vários artigos têm confirmado que as espécies
de oxigênio reativo, incluindo o peróxido de hidrogênio, superóxido e óxido nítrico têm efeito deletério sobre o espermatozoide. Acredita-se que os danos induzidos pelas EOR se devam
à peroxidação de lipídeos.15,17
Relatos iniciais na geração de EOR pelo espermatozoide
sugeriam que os espermatozoides anormais geravam maior
quantidade de EOR que os normais. A presença de excesso
de citoplasma, ou retenção citoplasmática, é o maior determinante da geração de EOR pelo espermatozoide.21 Há uma
variação célula/célula significante na produção de EOR em
subtipos de espermatozoides humanos em diferentes estágios
de maturação, sendo que a maior produção de EOR ocorre em
espermatozoides com morfologia anormal da cabeça e retenção
citoplasmática, e a menor, em espermatozoides maduros e em
células germinativas imaturas.22
A retenção citoplasmática é um fenótipo celular associado à
imaturidade devido à liberação do espermatozoide do epitélio
germinativo, tendo sido sugerido que o defeito base possa estar
numa incapacidade das células de Sertoli em remover de forma
suficiente o citoplasma residual do espermatozoide, antes que
ele seja liberado desse epitélio.20
Embora quantidades excessivas de EOR causem problemas aos
espermatozoides, concentrações baixas e controladas das mesmas
EOR têm uma importante função na fisiologia espermática,
mais precisamente na aquisição do potencial de fertilização.23
As EOR envolvidas na hiperativação, capacitação espermática
e reação acrossômica in vitro podem variar dependendo das
condições experimentais, mas todos os dados convergem em
definir o processo como “oxidativo”.
Os espermatozóides, por si, parecem ser uma fonte de EOR,
mas contribuições de fluidos e células do trato genital feminino
também são possíveis, embora ainda não demonstradas.
O espermatozoide é uma célula altamente diferenciada. Sua
membrana plasmática sofre alteração lipídica e demonstra polaridade e mobilidade lateral de glicolipídios sobre sua superfície
durante o processo de capacitação espermática.24,25 A grande
quantidade de fosfolipídios poli-insaturados em sua membrana
plasmática tornam os espermatozoides mais vulneráveis à peroxidação de lipídeos. Quanto maior a temperatura e concentração
de oxigênio no meio, maior a taxa de peroxidação lipídica medida
através da produção de malonaldeído. Inversamente, quanto
maior a atividade das enzimas antioxidantes, menor a taxa de
peroxidação lipídica. O equilíbrio entre esses fatores determina
a taxa final de peroxidação lipídica in vitro.
Morte celular programada e peroxidação lipídica no espermatozoide humano
Várias doenças andrológicas, incluindo varicocele, infecções
e inflamações genitais sem infecção, têm sido associadas a um
aumento no risco de peroxidação lipídica. As mesmas doenças
induzem vários efeitos clínicos e biológicos, como as modificações na microcirculação, estase venosa e subsequente hipóxia,
ativação leucocitária e necrose celular, todos aumentando as EOR
no sêmen. E ainda, repetida centrifugação espermática pode
aumentar a geração de EOR, possivelmente devido à ativação
mecânica de sistemas celulares.26
Considerações finais
A infertilidade conjugal afeta aproximadamente 8 a 12% dos
casais em todo o mundo, acometendo, portanto, 50 a 80 milhões
de pessoas. É uma condição que acarreta sérios impactos ao casal,
do ponto de vista psicossocial, médico e econômico.
Estudos mais recentes evidenciam que o fator masculino é
responsável por 50% da infertilidade de casais em idade reprodutiva. Com isso, percebe-se a importância do correto manejo
do fator masculino para que se obtenha sucesso no tratamento da
infertilidade por essa causa, incluindo as técnicas de reprodução
assistidas, nas quais esses casais poderão ser submetidos.
Na abordagem da infertilidade humana, frequentemente se faz
necessário o congelamento do sêmen por vários motivos. A criopreservação pode acarretar vários danos estruturais e modificações
funcionais dos espermatozoides. A danificação da viabilidade, motilidade, velocidade e potencial de fertilização dos espermatozoides
devem-se parcialmente a distúrbios da integridade da membrana
plasmática. Sob diferentes cenários biológicos, distúrbios da função
da membrana estão associados à translocação da fosfatidilserina do
folheto interno para o externo da membrana que pode ser identificada
através da aderência da fosfatidilserina à anexina V. Essa alteração
de membrana é um dos eventos mais precoces de morte celular
programada, que se denomina apoptose.
Os espermatozoides humanos têm uma alta concentração de
ácidos graxos poli-insaturados em sua membrana e pouca proteção adequada com antioxidante. Ácidos graxos poli-insaturados
são necessários para eventos de fusão da membrana associados
à fertilização. No entanto, a presença deles acarreta uma vulnerabilidade para os danos peroxidativos. Sob várias condições
de tensão oxidativa, o início da cascata da peroxidação lipídica
resulta em perda da fluidez e prejuízo da função espermática.
Assim, na abordagem da infertilidade masculina, a avaliação
da translocação da fosfatidilserina (através da aderência à anexina V como marcador da apoptose) e a aferição da peroxidação
lipídica têm como objetivo tentar identificar os casos com mau
prognóstico na criopreservação/descongelamento. A identificação
de tais casos poderia evitar desgastes psicológicos e econômicos
nesses pacientes, bem como a indicação de uma outra abordagem
para o seu acompanhamento.
Leituras suplementares
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