III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTOR DO TRABALHO: Sandra Regina Vaz da Silva Manifestações culturais juvenis identidades em movimento e cotidiano: espaço de resistência e RESUMO: Com base na teoria da cotidianidade, buscamos refletir sobre as manifestações culturais da juventude e suas diversas linguagens artísticas, com subsídio em pesquisa realizada sobre o movimento hip hop na cidade de Campinas. Pretendemos apresentar os significados que este movimento proporcionou na vida cotidiana dos jovens militantes, o papel da arte e da cultura como mediação e possibilidades plausíveis de transformações, e as formas de sociabilidades criadas por estes na sociedade. Palavras-Chave: cotidiano - hip hop – identidades I - Desenvolvimento Cotidiano é o espaço em que se constitui a vida de todos os homens, e nele contém os enigmas e revelações, valores e histórias. Em sua origem latina, quot dies, refere-se ao dia de todos os dias e de todos os homens em qualquer época histórica. O cotidiano em sentido geral e aparente é entendido como o lugar do dia-a-dia, da rotina e da monotonia, como um campo de ritualidades, confianças e certezas que a realidade é somente o que aparenta ser. No entanto, é no cotidiano em que a realidade se revela e sugere que façamos deste uma viagem com perspectivas de surpresas, alusões sugestivas e insinuações indiciosas (Pais, 2003). Pela via do cotidiano, buscamos refletir sobre as manifestações culturais da juventude e suas diversas linguagens artísticas, considerando a importância da mídia alternativa como instrumento de difusão da arte nos espaços sociais que ocupam. Consideramos a mídia alternativa como um circuito que atua dentro e fora de uma rede social devido sua ligação com outros grupos e movimentos sociais, sendo seus principais veículos de comunicação a Internet, as rádios comunitárias, os jornais e as revistas de baixa circulação. Neste sentido, destacamos as manifestações culturais de jovens que utilizam as vias alternativas de comunicação, seja como forma de resistência às estruturas informativas predominantes, seja por falta de opção, ou até mesmo escolha política, pois esta promove uma importante interlocução entre os movimentos sociais, culturais e populares. No tocante a cultura de massa, concordamos com Chauí (1993) quando afirma que está permeada pelo controle dominante, ao ocultamento das diferenças sociais, conflitos e contradições, fato este que reduz a sociedade em uma imensa organização funcional, e por isso, as “práticas populares se relacionam com as expressões dos meios de massa, aproximando-se ou distanciando-se delas, incorporando-as com modificações ou recusandoas” (Chauí, 1993, p.28). A cultura de massa se diferencia através da estrutura da comunicação de massa, que sob critérios estabelecidos indica o que deve ser visto e ouvido, gerando uma ilusão de pertencimento. E, portanto, reproduzi-la seria considerar um processo de regulação, controle e predeterminações sobre a comunicação e a sociedade em geral. Por meio da mídia alternativa, os sujeitos se destacam em seu grupo, região de moradia e até mesmo na cidade em geral, pois embora não apareçam na grande imprensa, fazem parte dos referenciais imaginários de muitos jovens, e também de adultos, através do processo de popularidade que vão adquirindo ao retratar a realidade, a visão dos pequenos grupos, ou somente proporcionar momento de lazer e diversão. E assim, são considerados focos de resistência ao pensamento único, uma vez que a cultura de massa não propõe o estímulo ao pensamento crítico e a construção do conhecimento. Neste contexto, afirmamos que os meios de comunicação alternativos são formas e opções principalmente das classes populares, de poderem expressar e manifestarem sua arte, pensamento e visão de mundo, e compartilharem suas ações entre os sujeitos, grupos, coletivos e movimentos, mostrando que, embora o cotidiano esteja permeado por um sistema de correlação de forças, o local representa imenso poder de transformação e ruptura. E é por meio deste que criamos nosso sentimento de pertencimento e também construímos e reconstruímos nossas identidades em busca de direitos, autonomia e liberdade. Propomos construir tais reflexões com base nos estudos sobre o movimento hip hop na cidade de Campinas1 e por meio de seus seguidores buscamos conhecer as razões que motivaram os jovens a apreciarem e se integrarem ao movimento. Seu desenvolvimento corresponde à pesquisa de campo mediada pelo contato direto com esses jovens, e os dados apresentados partiram de um estudo quantitativo e qualitativo que proporcionou conhecer o perfil desses jovens, a dinâmica deste movimento e suas respectivas visões de mundo. O hip hop nasceu dos guetos norte-americanos na década de 70, através de imigrantes jamaicanos e influenciaram gerações no mundo todo, através dos quatro elementos que o compõe: break (expressão corporal, dança), graffiti (pintura), DJ (discotequeiro) e MC (mestre de cerimônia, cantor) que realiza sua arte através do ritmo e poesia, caracterizado pelo rap, ou seja, o canto falado. Este chegou ao Brasil na década de 80, especificamente na cidade de São Paulo e rapidamente ganhou a adesão de jovens moradores das regiões periféricas da cidade que, sob um contexto de dominação e desigualdade, encontraram no hip hop uma identidade cultural, e possibilidades de expressões e manifestações contra o preconceito que sofriam com base em sua classe social, etnia e assim por diante. Mas, a relação juventude e música é histórica. Apontada por muitos pesquisadores como a descoberta de um grande potencial, esta relação ganhou visibilidade no Brasil especialmente após a década de 70, dentre as quais pela expansão e diversificação de estilos, popularização da aparelhagem eletrônica e incentivo do movimento punk sob o lema de fazer sua música, seu estilo, e não se acomodar na postura do espectador vazio, referindo-se a cultura de massa e estimulando uma forma de produção de arte alternativa neste contexto (Dayrell, 2002). Após a década de 70 houve um crescimento da juventude urbana de baixa renda no mercado de trabalho, e com isso o aumento no consumo juvenil como moda e lazer, e a produção de espaços próprios de diversão na periferia das grandes metrópoles, como os bailes e sons. 1 Pesquisa desenvolvida no ano de 2003 em cumprimento às exigências de conclusão do curso de Serviço Social na UNISAL – Americana, cuja temática foi retomada no mestrado em 2009. A juventude então passou a ganhar visibilidade social principalmente por intermédio dos grupos culturais existentes, abrindo-se uma diversidade de movimentos, tendências e ritmos como os punks e suas diferentes variações, os darks, heavy metal, reggae, hip hop e outros mais, que, decorrente do aparecimento desses grupos juvenis, principalmente de setores populares com atuações e “linguagens variadas no plano da cultura, lazer, do cotidiano, da vida comunitária, da vida estudantil, vieram a público colocar as questões que os afetam e os preocupam” (Abramo, 2005, p.27). Grupos culturais, como principalmente o hip hop, geraram processo de identificação com milhares de jovens em meio à situação semelhante de preconceito, pobreza e exclusão, e começaram a produzir diálogos com outros movimentos sociais a fim de expressar e reivindicar espaços específicos de discussão e pautas também específicas. Embora haja uma tendência de estigmatização em relação às manifestações culturais juvenis da periferia, Herschmann e Galvão (2008) esclarecem certa ambigüidade neste processo, uma vez que “ao mesmo tempo em que reitera certa imagem proscrita desses jovens, oferece a eles visibilidade e abre a oportunidade de serem reconhecidos como atores sociais com direitos” (p.203), na medida em que vão ganhando visibilidade, vão reivindicando cidadania e ascendendo de seu real território para a sociedade em geral, a partir de um renovado discurso permeado pela esfera cultural. A sensação que se tem, examinando o contexto atual, é que esses atores sociais parecem sentir a necessidade imperiosa de se manifestarem e se posicionarem diante da realidade sociopolítica na qual estão inseridos, atuam como importantes referências ou formadores de opinião para segmentos sociais oriundos das periferias e favelas. Ao mesmo tempo, “sua voz” passa a reverberar e pautar de algum modo o debate social atual (Herschmann e Galvão, 2008, p. 206). Desta forma, o discurso passa a ter visibilidade tanto na voz de certos marginais midiáticos como de célebres lideranças, que aos poucos vão se distanciando de discursos como exclusão e repressão e ao contrário de reforçarem o enclausuramento, expandem essas fronteiras do universo cultural, ganham visibilidade e crescentemente tornam-se cada vez mais alvos do mercado de consumo. É neste percurso também que os estilos de vida vão ganhando a preferência dos jovens, organizando e orientando diferentes práticas em relação à vestimenta, bebida, comida, religião, e no plano das subjetividades, os gostos, sensibilidades e valores. Consideramos assim, o cotidiano como uma porta de entrada para percebermos tais realidades de maneira espontânea e não moldada. E por lá, traçamos uma rota de conhecimento pela lógica da descoberta, onde a realidade se insinua e se revela (Pais, 2003). Buscamos refletir sobre as experiências daqueles jovens que buscam se expressarem através da arte, de uma manifestação cultural que tem imensa importância no cotidiano e no espaço social que ocupam, sendo este o lugar da eficácia, das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil e dos movimentos sociais, pois, é através da aparente repetição e imobilidade da vida cotidiana que encontramos ações com significados tão importantes que dão condições de transformar o impossível em possível, uma vez que, no espaço da contradição há também o espaço da criação e da mudança, e nesta o espaço da aprendizagem, da troca de experiência e também do lazer desses jovens. Conscientização, protesto, expressão e diversão foram os significados mais destacados entre os jovens entrevistados, visto que, ao mesmo tempo em que estão se divertindo, estão aprendendo, expressando e manifestando seus sentimentos, visão de mundo, angústias e ganhando visibilidade. Consideramos tais fatos também como processo constituinte da formação de identidades, pois na medida em que se expressam, constroem e reconstroem suas identidades e compartilham suas experiências. A identidade é categoria histórica, construída no movimento da história, “ao longo da caminhada da própria classe, que ao produzir a sua existência, a sua vida material, produz a história humana2” (Martinelli, 2009, p.35) e continua produzindo constantemente. Portanto, apontamos a identidade, enquanto categoria sócio-histórica em constante movimento, na qual se desenvolve perante determinações políticas, sociais, econômicas, históricas e culturais, num terreno de diferenças e de relações sociais antagônicas (Martinelli, 2009), cuja realidade é dialética e resulta do movimento, da territorialidade e da expressão dos sujeitos que se constituem e suas relações. É no cotidiano que as identidades se constroem, pois é neste que os sujeitos vivem e se revelam, visto que o cotidiano é insuprimível e ineliminável, dado espaço de produção e reprodução do ser social que se distingue pelas estruturas da vida cotidiana e seus grupos, classes sociais e assim por diante. (Netto, 2010). Assim, Iamamoto (2004) afirma que não é somente o processo de reprodução das relações sociais submetido ao trabalho e seus meios materiais de produção, mas a “reprodução das forças produtivas sociais do trabalho e das relações de produção na sua globalidade envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relações de poder e os antagonismos de classes” (p.09). E neste sentido, envolve também reproduções tanto materiais como espirituais, ou ainda formas de consciência social, jurídica, religiosa, artística, filosófica e científica, onde por meio dessas, os “homens tomam consciência das mudanças ocorridas nas condições materiais de produção, pensam e se posicionam perante a vida em sociedade” (Iamamoto, 2004, p.09). Utilizamos os estudos de Heller3, que mostram-nos uma riqueza categorial da pesquisa lukacsiana sobre a ontologia do ser social e sobre a cotidianidade, pois resgata e reelabora importantes categorias histórico – sistemáticas. Neste sentido, é fundamental compreendermos em primeiro lugar, que a vida cotidiana é em grande medida heterogênea, e se constitui de partes orgânicas relativas à organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e descanso, da atividade social e sistematizada, do intercâmbio e purificação. Posteriormente, além de heterogênea a vida cotidiana é igualmente hierárquica, e se modifica de acordo com as transformações das estruturas econômicos-sociais. Essa relação se desenvolve a fim de apontar “uma explicitação „normal‟ da produção e da reprodução, não apenas no „campo da produção‟ em sentido estrito, mas também no que se refere às formas de intercâmbio” (Heller, 2008, p.32). Pela via heterogênea e hierárquica a cotidianidade se expõe de forma “normal” e “espontânea”, onde esferas heterogêneas relativas à organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e descanso, da atividade social e sistematizada, do intercâmbio e purificação vão se mantendo constantemente em movimentos simultâneos. 2 Martinelli (2009) em seu estudo sobre a identidade do Serviço Social ao longo de seu processo histórico retrata a construção e o desenvolvimento da identidade da classe trabalhadora, dado pela relação capital-trabalho diante da Revolução Industrial no final do século XVIII na Inglaterra. 3 Agnes Heller, filósofa da “escola da Budapeste” e fiel discípula de G. Lukács até o início da década de 70, quando posteriormente sua evolução a conduziu para um progressivo afastamento das posições lukacsianas e até mesmo do marxismo (Netto, 2010). Portanto, é na cotidianidade que se insere o contexto dos indivíduos desde seu nascimento, e seu desenvolvimento com relação às habilidades e amadurecimento, que, em conjunto com símbolos condutas, representações sociais e territorialidade, desencadeiam assimilações quanto às formas do intercâmbio ou comunicação social e manipulação das coisas. O contexto dos indivíduos é o principal meio relevante para sua interação social e amadurecimento com relação à cotidianidade, no qual é representado por grupos constituídos pela família, escola, comunidade e outros mais, onde o indivíduo apreende normas e costumes e cria condições autônomas de vivências no mundo da sociedade em geral, podendo também ser capaz de promover a transformação deste mesmo ambiente. Por isso, “a vida cotidiana é a vida do individuo” (Heller, 2008), onde este simultaneamente pode ser destacado enquanto ser particular e ser genérico, pois se expressa enquanto ser individual e ser coletivo na medida em que manifesta a consciência do nós, dada por sua integração em tribos, grupos, classe social, nação e humanidade. Conforme Heller (2008, p.36-37) destaca: Todo homem sempre teve uma relação consciente com [...] a comunidade; nela se formou sua “consciência de Nós”, além de configurar-se também sua própria “consciência do Eu”. Nela explicitou-se a teleologia do humano-genérico, cuja colocação jamais se orienta para o “Eu”, mas sempre para o “Nós”. [...] contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico que funciona consciente e inconscientemente no homem. Observa-se que o individuo é um ser singular com particularidades e também com genericidade-humana, no qual ambos se tornam conscientes relativamente. Este indivíduo dotado de particularidade e genericidade atua em suas “objetivações cotidianas como um homem por inteiro – mas sempre no âmbito da singularidade” (Netto, 2010, p.69). E, portanto, o alcance a consciência-humano genérica só se desenvolve a partir da superação de sua singularidade, com vistas a uma objetivação duradoura. Desta forma, tomamos como subsídio os resultados da pesquisa apresentada, para destacarmos algumas experiências e refletirmos sobre a cotidianidade desses jovens na perspectiva ora apresentada. Grande parte dos sujeitos entrevistados relataram trabalhar4 com oficinas de hip hop, no qual multiplicam o conhecimento para jovens, adultos e crianças. Essas oficinas são desenvolvidas com base nos quatro elementos do hip hop (rap, break, grafitti e DJ) e a junção de objetivos corporais, arte-visuais, domínio e coordenação motora, estimulo a criatividade e muito mais. Eis o relato de uma jovem dançarina de break que menciona o trabalho em que realiza com intermédio do hip hop, a partir de oficinas educativas para adolescentes em um projeto social: 4 O sentido da categoria trabalho ora apresentado neste estudo estão expressos em Antunes (2002) quando faz menção ao trabalho em caráter mais abstrato, mostrando-nos os significados e sentidos deste ao indivíduo e a sociedade, e também a categoria trabalho quando inserida no sistema metabólico social do capital, o desdobramento e trajetória dessa categoria e do indivíduo trabalhador enquanto “classe-que-vive-do-trabalho”. Desta maneira, destacamos que na pesquisa contém experiências de trabalhos que não estão incorporadas ao plano econômico, mas compreende inúmeros sentidos e significados para quem o executa, bem como para quem o vivencia, assim como há experiência de jovens que conquistaram uma forma de sobrevivência, ou seja, um trabalho por meio dos elementos do hip hop, principalmente na área social e na área da educação. "Ministro palestra e oficinas que trabalha o indivíduo como um todo, visando disciplina, trabalho em grupo, respeito, etc. Uma forma de reintegrar à sociedade." Também houve jovens que relataram apoiar outros movimentos sociais e, junto à militância do próprio hip hop realizam palestras em escolas, instituições e encontros diversos, trabalhos em rádios comunitárias e compromisso com letras musicais com mensagens políticas e de contestações para as pessoas. Conforme relato dos jovens que destacaram participação política em espaços públicos realçamos: "Faço muitas atividades, até sou representante de usuários na Assistência Social, o CMAS"; "[...] já trabalhei em várias entidades de liberdade assistida e crianças em situação de risco[...]e atualmente trampo num projeto em parceria com a Secretaria da Educação, nas escolas." Esses jovens, de acordo com a concepção lukacsiana são sujeitos portadores de suas particularidades e singularidades ao mesmo tempo em que são também portadores de genericidades. Por meio do movimento hip hop, suas representações e significados, podemos verificar a possibilidade da superação das singularidades desses sujeitos, e o alcance ao gênero-humano, na medida em que relatam a preocupação dos mesmos em transmitir informações de interesse social e coletivo, como nas mensagens musicais, na apropriação dos mesmos nos espaços públicos enquanto sujeitos de direitos, e na multiplicação do conhecimento através da incorporação de formas de protagonismos e consciência coletiva. Um compromisso que objetiva dar visibilidade a sua expressão e também ao seu grupo em geral, e através desta, incentivar outras pessoas que se identificam ou que vivenciam as mesmas condições sociais e econômicas a buscarem seu espaço. Contudo, voltemos ainda à estrutura da vida cotidiana na qual a ótica lukacsiana considera que, além da heterogeneidade, existem outras duas determinantes sobre a cotidianidade: a imediaticidade e a superficialidade extensiva. A primeira, a imediaticidade, corresponde a uma relação direta que os indivíduos possuem entre o pensamento e a ação, onde a conduta imediata e o espontaneísmo são fundamentais perante sua reprodução na cotidianidade. (Netto, 2010). Nesta perspectiva, o homem é compreendido como o ser que dá resposta, que sempre responde quando é interpelado. Na segunda, o indivíduo se mobiliza e responde através do somatório dos fenômenos heterogeneidade e imediaticidade, considerando a situação e as relações vinculadas. Destacamos a idéia de Amaral (2008, p.256) sobre os espaços cotidianos e suas possibilidades para assim compreendermos: [...] quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai, pouco a pouco, substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. Portanto, mesmo nas respostas mais imediatas existem certas referências à consciência desses indivíduos, que pouco a pouco vão incorporando o conhecimento sobre determinada situação, cuja intencionalidade é o ponto de partida para a ação. Estes são considerados por Lukács os componentes ontológico-estruturais da vida cotidiana, que por considerar a vida cotidiana insuprimível, destaca como sendo componentes de um “padrão de comportamento que apresenta modos típicos de realização, assentados em características específicas que cristalizam uma modalidade de ser do ser social no cotidiano, figurada especialmente num pensamento e numa prática peculiares” (Netto, 2010, p.68). Podemos também perceber o espaço cotidiano e cultural como um local de alienação e ao mesmo tempo um ritual de conscientização que podem ser transformados por meio da arte, contribuindo para um espaço de encontro e ao mesmo tempo simultaneidade. Neste, descobrimos “a existência do Outro e os discursos que revelam lutas por reconhecimento social [...] permitindo apreender novos processos de organização e mobilização social compreendidos como possibilidades de libertação do sujeito” (Oliveira, 2008, p.273). Através de suas manifestações culturais, jovens expressam sua existência, sua criatividade, temporalidade, onde transitando entre a fronteira da diversidade e da adversidade, criam formas de lutas, resistências e sobrevivências no movimento de suas identidades. Baptista (1995) nos lembra também Lukács, sobre os fatos elementares da vida cotidiana no qual enfatiza que a ação social motiva forças, tendências, objetividades, no qual ficam explícitos a reificação, o fetichismo e a alienação, “porém esse caráter da práxis contraditoriamente no todo ou em partes, permanece incompreensível para quem o produz [e parafraseando Marx destaca a frase] os homens não sabem que fazem mas fazem” (p.115). E podemos perceber pelas inúmeras experiências cotidianas, como a dos jovens do hip hop e seu compromisso com a conduta e a expressão social em busca do reconhecimento e visibilidade individual e coletiva, conforme a ótica lukacsiana vai nos mostrar, ao referir sobre as três maneiras privilegiadas de objetivação em que os processos homogeneizadores5 superam a cotidianidade e promovem objetivações duradouras, sendo esses o trabalho criador, a arte e a ciência. O reflexo artístico e o reflexo científico são vistos como rompimento da tendência espontânea do pensamento cotidiano voltada para o Eu individual – particular, embora não rompem definitivamente com a cotidianidade, já que esta é insuprimível, mas permitem que os indivíduos se assumam como seres humano-genéricos. E neste percurso, há uma dialética de tensões onde ao retornar a cotidianidade, este indivíduo “comporta-se cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo tempo, percebe a cotidianidade diferencialmente: pode concebê-la como espaço compulsório de humanização (de enriquecimento e ampliação do ser social)” (Netto, 2010, p.70). Essa dialética de tensões cotidianidade / suspensão é denominada como a dialética da processualidade da constituição e desenvolvimento do ser social (Netto, 2010). Neste sentido, a arte tem em sua essência possibilidades de promover autoconsciência e memória da humanidade, onde “toda obra significativa volta à cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros” (Heller, 2008, p.43). No caso do movimento hip hop este processo é ainda muito mais significante, já que sua relação está intimamente articulada com a vida e a comunidade, e neste sentido, ao mesmo tempo em que esses jovens artistas buscam sua própria voz, ajudam a expressar a voz dos outros, como num encontro. Esta relação ganha ainda mais sentido através da percepção dos jovens, conforme relatado, onde destacaram a importância que há no hip hop em possuir uma função conscientizadora que possibilita “resgatar o jovem sem perspectivas”, conforme conseguimos perceber nas palavras dos próprios jovens que através deste canalizam 5 O termo homogeneização é designado por Heller (2008) como sendo o processo de superação do pensamento espontâneo do homem individual pela consciência do homem genérico. Este é um processo que não é realizado arbitrariamente, mas na medida em que a particularidade individual se dissipe na atividade humano-genérica pela qual os indivíduos escolhem conscientes e autonomamente, ou seja, enquanto indivíduos. também suas esperanças e apostas no movimento, e incorporam o compromisso e responsabilidade em sua multiplicação: “As letras de Rap falam a minha realidade e o movimento hip hop me deu chance de ser alguém” (relato de jovem entrevistado). “Me identifiquei pelo fato de ser preto, pobre e de periferia. Através do hip hop senti que isso não é defeito” (relato de um jovem entrevistado). "A minha vida mudou porque eu era um desandado e agora graças ao rap e o movimento hip hop, subi um degrau para melhor” (relato de um jovem entrevistado). É a partir deste processo que Amaral (2008) vai destacar o sentido da percepção: A percepção é um exercício de confronto entre diferentes sistemas e significados. Essas tensões produzem a necessidade da criação de um campo poético no qual a visão de mundo particular de cada um pode se tornar questionável. Com a criação desse campo poético, o indivíduo pode tornar sua visão singular de mundo em potencialidade. A dignidade de cada pessoa baseia-se, entre outras coisas, no fato de que só ela vê o mundo como ela vê. Podemos perceber que até mesmo nas três formas privilegiadas de objetivação, o pensamento cotidiano não está separado, já que seus indivíduos possuem vida cotidiana com suas particularidades individuais, que se mantém suspensa durante sua produção, mas ainda assim intervém na própria objetivação por meio de determinadas mediações, como é o caso da arte. Portanto, destacamos a arte como importante e possibilitadora forma do homem transcender a uma elevação em separado do cotidiano, mas que nele retorna, dessa vez com um enriquecimento ainda maior, que podemos considerar nas palavras de Heller, como sendo uma atividade individual que se constitui como parte da práxis, da ação total da humanidade. A arte expressa e promove valores no qual adotamos enquanto artistas, pesquisadores, indivíduos e membros de uma comunidade, pois coloca em destaque a existência humana, as possibilidades de transformações, as pequenas verdades, ordens ou desordens cotidianas. Está continuamente se movimentando e dando materialidade a sua paisagem ou espaço do cotidiano, e passa a representar um lugar real, provocando e promovendo encontros, contaminando o outro ao encontrá-la e dando sentido poético a estes. É também por meio da arte que se expressa a ação criativa dos sujeitos. “Apropriações, manifestações, encontros e festas, que fazem parte da construção do humano, revelam-se a partir [de suas práticas,] onde o sujeito retrata e reinventa o cotidiano e nos possibilita [inclusive] uma reflexão sobre a vida urbana (Oliveira, 2008, p.271), e as diferentes formas do viver nas cidades, local este que tem papel difusor de costumes, hábitos e comportamentos, e ao mesmo tempo sobrevivência, resistência e luta por uma vida melhor, por um mundo melhor. Sob este contexto, o hip hop evidencia a ação daqueles sujeitos que não são passivos e meros espectadores ou consumidores alienados. Estes, através de suas expressões participam ativamente e manifestam suas contestações e sentimentos, revelando que “o sentido político da ação pode estar na perspectiva crítica e contestadora de sua criação” (Oliveira, 2008, p.273). Concordamos assim com Pais (2003) quando afirma que o tempo é o que fazemos dele e o espaço um lugar praticado, e desta prática se expressa o que fazemos deste, como uma folha em branco que vai adquirindo sentido na medida em que os sujeitos vão assinando-a. E nessas tramas constitutivas estão os jovens em busca de liberdade, autonomia e direitos, expressos pelo contexto cultural e social em que vivem, movimentando-se em suas identidades. É neste processo em curso que os jovens transitam e traçam fronteiras socioculturais e também espaciais, pois ultrapassam o contexto local e regional na medida em que se apropriam e intervém no espaço, o qual está além do seu deslocamento de um ponto a outro. Essas são as alternativas de resistências encontradas pelos jovens que produzem outros processos de subjetivação, em busca de autonomia, de liberdade e de condições de vida mais humanas, que por meio de suas expressões artísticas e manifestações culturais como o hip hop, puderam reforçar a idéia de pertencimento e posicionamento no mundo por meio da articulação do estilo musical e estilo de vida. E, enfim, afirmamos ser o espaço urbano não apenas estrutura social, mas sim espaço humano em seu conjunto, com trajetórias, resistências, significados e transformações com importantes mediações como a arte e a cultura, que dão condições dos indivíduos se reconhecerem enquanto gênero-humano. II - Bibliografia ABRAMO, Helena W. Diferentes paradigmas nas políticas de juventude. In: FREITAS, Maria V. (Org.). Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. 2 ed. São Paulo: Ação Educativa, 2005. AMARAL, Lilian. Mediações: Arte Contemporânea, Cotidiano Urbano e Transformações. 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