NARRATIVAS DE UM JOVEM DO BAIRRO GUARAPES-NATAL/RN: “O HIP
HOP É MAIS QUE A ARTE PELA ARTE”
Edcelmo da Silva Bezerra – Jovem Narrador
Posse de Hip Hop Lelo Melodia do Guarapes – Natal/RN
Julimar da Silva Gonçalves – Doutoranda
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais - PPGCS/UFRN – Bolsista Capes
Palavras-chave: juventude periférica, periferias urbanas, movimento hip hop.
Não se escreve, nem se fala para se contar ou se exibir, mas sim para
se transformar, empreender novas coisas, dar sentido, e
definitivamente enfrentar o desafio do homem contemporâneo:
conhecer-se para se superar, para vencer suas resistências e talvez
acessar a uma boa vida, sem ilusões, sem falsas crenças.
Eugène Enriquez
O presente artigo assume a ótica de uma produção partilhada, de uma escrita
conjunta, que reúne esforços do jovem narrador, Edcelmo Bezerra, para escrever sobre
as experiências da sua vida no bairro Guarapes1, localizado na “periferia” urbana de
Natal-RN, e, de Julimar Gonçalves, que busca em sua trajetória de pesquisa de
doutorado, ultrapassar o binarismo – nós versus eles – para trazer à cena os jovens
sujeitos para além da relação da pesquisa.
Jacques Rancière (2005, p.58) fala de modo instigante sobre a capacidade
humana de “ficcionar” ao produzir histórias. O autor esclarece que “não se trata de dizer
que a “História” é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente
que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos
andamjuntas”. Jacques Rancière (2005) chama a atenção para os efeitos que os
1
Para
maiores
detalhes
sobre
o
bairro
Guarapes,
consultar
http://zpa4guarapes.blogspot.com.br/2011/11/o-inicio-guarapes.html. Acesso em 24 de outubro de 2012.
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enunciados provocam nas atitudes humanas, nas suas “capacidades de agir” sobre os
seus direitos de existência, abrindo brechas entre o “que se faz” e o “que se pode fazer”.
Vamos, seguindo a pista de Jacques Rancière, passando a palavra para o jovem
narrador Edcelmo da Silva Bezerra que conta um pouco da sua história no bairro
Guarapes e no movimento hip hop:
Sou Dj e Mc, coordenador de uma organização Juvenil denominada Associação
Posse de Hip Hop Lelo Melodia, atuo como representante da Juventude Urbana, no
Conselho Estadual de Juventude do Rio Grande do Norte. Tenho vinte e sete anos e
minha trajetória de vida anda, lado a lado, com a militância política no movimento Hip
Hop, segmento de singularidade do nosso Brasil.
Edcelmo dar seguimento a sua apresentação: Resido na cidade de Natal – RN,
atualmente no Bairro de Nossa Senhora da Apresentação – Zona Norte-, e também no
bairro Guarapes, meu bairro de “origem” na Zona Oeste da cidade.
Ainda sobre as questões de seu bairro, Edcelmo narra: Cresci bem no meio, para
ser mais exato, nas entranhas de uma guerra não declarada entre o Estado e a sociedade,
desde moleque “criança”, não entendia por que tudo para a minha família e para as
famílias ao meu redor era mil vezes mais complicado e complexo... Quero dizer! O meu
mundo não passava da rua lá de casa, e do bairro onde eu moro: o único projeto de vida
que vinha em minha mente; sabe qual era? Crescer rápido e conseguir um trabalho para
colaborar com a renda familiar. O tempo passou e cada vez mais aumentavam as
perguntas geradoras e frustrações em minha mente. Pensava coisas do tipo: Por que
morre tanta gente aqui? Principalmente os jovens que cresceram junto a minha infância?
Todos que eu conheço, por que não vejo ninguém na Universidade? Por que a polícia
age de forma tão truculenta e maldosa com nós jovens daqui do bairro? Esse posto de
saúde que nunca está funcionando? E a escola é o lugar mais chato do mundo!
Edcelmo continua a levantar questões: Por que tudo isso? Nosso narrador, a este
ponto, parece encontrar uma resposta a suas inquietações: Foi o despertador do senso, o
olhar, a percepção crítica e motivadora que me fez sair do campo de jovens “obsoletos
sociais” para a atualidade, e ser protagonista desse fenômeno que tem um nome: O
movimento Hip Hop!
Como se pode depreender, Edcelmo conclui esse trecho da narrativa exaltando o
movimento hip hop. Quanto a este último, o compreendemos como uma manifestação
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juvenil de caráter global e local2 que vem ganhando, nos últimos trinta anos, destaque
na realidade brasileira. É composto por um conjunto cultural e artístico que inclui o rap,
a música, o grafite, a expressão estética visual, o MCs, o mestre de cerimônia e o breakdance (b-boys) a dança hip hop. A música do hip hop é composta pela apropriação
musical, um tipo de remontagem originando novas músicas, realizada por um discjockey (DJ) que em uma mesa de múltiplos canais, cria o fundo musical desejado para
as letras denominado sampling.
Conforme a perspectiva adotada por nossa pesquisa, depreendemos que essa arte
que não é só a “arte pela arte”, mas é sim a arte como meio de atingir os objetivos
sociais da juventude urbana. Esse movimento, essa proposta chamou atenção de vários
jovens do bairro Guarapes. Frente a essa perspectiva, Edcelmo apresenta uma “análise”
sobre o movimento hip hop bastante significativa para nós. Segundo nosso narrador:
Vimos que através dessa ferramenta extraordinária criamos um meio de ecoar nosso
grito bem alto para o bairro e para toda cidade, saindo do isolamento para nos tornamos
referência em ações com a juventude, dar visibilidade não só ao que acontecia de
negativo no bairro, pois o negativo a mídia se encarregava de disseminar e contribuir
para a nossa estigmatização. Muitos são os nossos desafios.
Conforme a argumentação de Edcelmo, feita a acima, são muitas as questões que
os jovens da “periferia” têm a enfrentar. Nessa mesma ótica, prossegue nosso narrador:
A sociedade brasileira do século XXI tem acompanhado as fragilidades das iniciativas
sociais governamentais, ao mesmo tempo em que a economia avança demonstrando
indicadores positivos em paralelo a essa “felicidade numérica” tão alardeada através dos
meios de comunicação de massa. Existe uma clara contradição que chamo de “caos das
ações sociais” para os jovens, porque estamos em um momento econômico considerado
bom, como nós do movimento hip hop, apesar de tudo, ainda estamos “bem na fita”,
mas isso até quando? No nível da política macro, não sabemos. Ainda temos muitas
crianças nas ruas e em situação de rua, jovens sendo exterminados e uma epidemia de
usuários de crack que se alastra com a velocidade da luz.
No que se refere à educação, Edcelmo elabora um exame bastante lúcido: No
Brasil, o ensino público é decadente e vemos escolas depredadas e as metodologias
pedagógicas nada atraentes, além de professores desmotivados e sem reconhecimento
2
Conforme Richard Sustherman (1998) na obra Vivendo a arte – O pensamento pragmatista e a estética
popular.
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profissional e salarial pelo poder público. Um panorama nada animador para
transformar um país no qual as desigualdades são muitas e múltiplas, e as injustiças
sempre estão voltadas para os que estão à margem, em condição de pobreza, e mais
vulneráveis socialmente.
Além do problema da educação no Brasil, nosso narrador destaca ainda as
principais ambigüidades a perseguir a juventude. Essa é tomada, por vezes, como
“solução” e, por outras, como “problema”. Vejamos como Edcelmo se posiciona: Há
décadas os jovens brasileiros das periferias urbanas são encarados, ora como um
problema, ora como o futuro, a luta é hoje dos jovens! Existe um discurso do governo
que os jovens precisam buscar afirmação para serem reconhecidos como atores
importantes para o desenvolvimento da nação. O que fazer?!
Nosso narrador, diante da questão posta por ele acima, parece apresentar
respostas muito contundentes. Ora, Edcelmo tem consciência que a única coisa efetiva a
fazer é “participar”. Segundo ele: Parte da juventude “periférica” tem saído da
invisibilidade para um cenário de prioridade à participação e incidência política, e, o
responsável por esses avanços é o mérito dos próprios jovens e de engajamentos em
coletivos e redes juvenis que cavam espaços sociais para a nossa voz e a nossa
participação.
Edcelmo segue com a mesma linha argumentativa: A luta para os jovens urbanos
das “periferias” representa a mudança de atitude na qual os jovens passem do lugar de
co-atores, para atores e sujeitos de direitos. Para chegamos a esse patamar enfrentamos
em nossa trajetória muitas barreiras, como a discriminação, o preconceito e a falta de
apoio técnico, político e financeiro.
Entretanto, contrapondo a essa realidade, estudiosos das ciências humanas, vem
compondo na ótica da co-produção, pesquisas que dão visibilidade ao nosso esforço de
produção coletiva através da cultura, da arte e da “política”. Neste sentido, Edcelmo dar
realce a uma importante produção acadêmica: Na obra Reinvenções do Sujeito Social
(2009), Norma Takeuti, ao curso de um trabalho de pesquisa-ação, apresenta a nossa
trajetória juvenil no Coletivo Associação Posse de Hip Hop Lelo Melodia do Guarapes.
Em sua pesquisa a autora apresenta que a vida na “periferia” comporta um “algo mais”,
revelando a existência de dinâmicas sociais outras acontecendo nas brechas do sistema
social. A autora revela as trajetórias do nosso coletivo jovem composto, na sua origem,
por mim e pelos jovens Eliênio, Amaury, Adriana, Fagner, Josinaldo, Shirlene e Pedro
5
Paulo. Atualmente, alguns deles saíram em busca de novas experiências e outros jovens
ocuparam espaço no coletivo. Participam da Posse os grupos D`Marco Bitt,
Lokomotiva, Thello Solo, Silvera Roots, Melodias Poroduções e Imagens, Grupo de
dança Infantil Detone Break; e o Grupo de grafiteiros FDG- Família do Giz.
Conforme Edcelmo: A Posse de Hip Hop Lelo Melodia do Guarapes, em NatalRN, foi constituída no ano de 2005 e busca, desde então, superar a escassez material e a
“acomodação” de muitos jovens, para deflagrar ações de natureza artística, política e
social, na e para a nossa “periferia”. Reunimos jovens da nossa comunidade,
trabalhamos os elementos do hip hop: rap, break, grafite, DJ e a atitude crítica; a partir
daí, cada jovem desenvolveu habilidades para uma área especifica da arte do Hip Hop.
Uns foram para música (rap), outro para dança (break), Dj, e grafite. Aconteceram
encontros nos finais de semana para discutir uma pauta de eventos locais.
Participávamos de encontro de intercâmbio, seminários e congressos em outras regiões
do País. Buscamos produzir eventos e mobilizar grupos do Nordeste como todo em prol
das lutas sociais e da visibilidade sobre os problemas que atravessam as periferias, em
destaque o nosso bairro Guarapes. No bairro era frequente a realização de debates e
palestras a partir de temas transversas: violência, trabalho, geração de renda para os
jovens, desenvolvimento local, mídia alternativa como meio de formação, além de
participarmos dos espaços de formação de políticas públicas para a juventude e para a
comunidade.
Como se pode notar, a “Posse”, de acordo com os jovens ativistas, é um lugar
que foi “tomado” pelos grupos e coletivos para fins tanto de organização política,
artística, cultural, objetivando o debate de temas pertinentes ao hip hop quanto para a
promoção de eventos, oficinas, atividades culturais e políticas, voltados para o
desenvolvimento da sua comunidade. A Posse de hip hop Lelo Melodia do bairro
Guarapes-Natal/RN – PHHLM anuncia seu objetivo para sua coletividade: “contribuir
na formação sócio-política da juventude, com base na educação de valores e autonomia
juvenil, através da arte-cultura, utilizando o Movimento Hip Hop como instrumento de
enfrentamento dos problemas locais”.
Edcelmo, neste ponto da narrativa, destaca algumas de suas principais ações: Em
Natal e no Brasil acompanhamos e iniciamos o debate e a implementação das políticas
de juventude, desde a criação dos conselhos e órgão governamentais Executivo como
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Secretárias e Coordenadorias que vem mostrando que se iniciam lutas por recursos e por
programas e projetos para a juventude.
Ele dar seguimento: Também acompanhamos a implantação da PEC - Projeto de
Emenda Constitucional Nº 65 -, onde a lei da PEC indica o Plano Nacional de
Juventude3 como conjunto de metas para o desenvolvimento das políticas públicas e o
estatuto de Juventude, e trás um olhar sobre os jovens como sujeitos de direitos para que
se possa criar um sistema de direitos dos jovens. Na busca de autonomia no contexto
atual que estamos inseridos, a sociedade é dura e violenta, não só no sentido da
mortandade juvenil, mas também em termos das escassas oportunidades de qualificação
para o jovem ingressar para o mundo produtivo e financeiro. Nós jovens vemos sempre
as oportunidades fugirem das nossas mãos. Lembro que certa vez li uma ideia em que
dizia o seguinte: “quando encontramos as respostas, mudam as perguntas”, isso me fez
refletir sobre em que local eu estou na sociedade contemporânea. Encontrar algo para
fazer e que possa vir a gerar grana, principalmente aos menos favorecidos, é o sonho de
muitos jovens. Reconhecemos que o pouco que temos conseguido teve grande
contribuição das Redes de Juventude espalhadas no País.
A este ponto, nosso narrador pondera: Os desafios são inúmeros. Atualmente
atravessamos um período de “desarticulação” das ações da Posse. Muitos jovens
seguiram novos caminhos: casaram, foram morar em outra cidade, trabalhar em outro
país, compor com outro grupo... Enfim... Enfrentamos um novo momento. Momento
para repensar ações nos desafiando a trazer jovens para formação de lideranças no
movimento. Momento de recuos, sem perder o desejo de transformação e a vontade de
colaborar com ela.
O relato do jovem Edcelmo reflete os impasses, contradições e possibilidades de
produções de subjetividades juvenis nas periferias urbanas. Por outro lado, reflete
também as dificuldades de produção de uma pesquisa engajada na qual pesquisadora e
sujeito da pesquisa dialogam na possibilidade de uma co-produção de experiências,
conhecimentos e saberes que intercabiam para produzir reflexividade sobre práticas e
abordagens teóricas. Ao nível da pesquisadora está posto o desafio de uma escuta
sensível que ao reconhecer e valorizar os saberes práticos, inspirados por Pierre
3
No ano de 2005 o governo federal instituiu a Política Nacional de Juventude (PNJ), que se destacou
como um marco na agenda juvenil. Para maiores detalhes sobre a Política Nacional de Juventude,
consultar http://www.juventude.gov.br/politica. Acesso em 24 de outubro de 2012.
7
Bourdieu (2004), também ultrapassa a militância e o voluntariado. Essa tensão segue
em aberto produzindo experimentações outras (noções deleuzeanas), para ambas as
partes.
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Referências:
BEZERRA, Edcelmo Silva. Entrevista concedida em maio 2010. Natal, RN.
BEZERRA, Edcelmo Silva. Entrevista concedida em agosto 2011. Natal, RN.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clinica do campo
cientifico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
1994.
ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patrícia. HIP HOP: a periferia
grita. Editora Fundação Perseu Abramo. Ano desconhecido.
PUNTEL, Luiz; CHAGURI, Fátima. O grito do Hip Hop. São Paulo: Ática, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica
Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005.
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte – O pensamento pragmatista e a estética
popular. São Paulo: Editora 34, 1998.
TAKEUTI, Norma M.; NIEWIADOMSKI, Christophe. Reinvenções do Sujeito Social:
teorias e práticas biográficas. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009.
Sítios Acessados:
POSSE
DE
HIP
HOP
LELO
MELODIA.
http://www.violacao.org/geracoesjovens/expostas/325/posse-de-hip-hop-lelo-melodia.
Acesso em 24 de outubro de 2012.
O GUARAPES. http://zpa4guarapes.blogspot.com.br/2011/11/o-inicio-guarapes.html.
Acesso em 24 de outubro de 2012.
POLÍTICA NACIONAL DA JUVENTUDE. http://www.juventude.gov.br/politica.
Acesso em 24 de outubro de 2012.
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