VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X A REORGANIZAÇÃO FAMILIAR EM FUNÇÃO DA DEFICIÊNCIA ADQUIRIDA POR POLICIAL MILITAR: A VISÃO DO CÔNJUGE ELIZA MAURA DE CASTILHO LOPES, Unesp – Campus de Bauru1 LUCIA PEREIRA LEITE, Unesp – Campus de Bauru2 Agência Financiadora: Fapesp INTRODUÇÃO A teoria Histórico-Cultural, que tem como uma de suas principais referências o russo L. S. Vigotski, apresenta uma concepção de homem como ser originado essencialmente nas relações sociais. Fundamentada no materialismo histórico dialético, delineado nas contribuições de Marx e Engels, propõe que o psiquismo humano seja entendido como uma estrutura orgânica e, simultaneamente, um reflexo psíquico da realidade, resultante de uma relação entre homem e a natureza (MARTINS, 2007). A atividade vital humana consiste no trabalho, e é por meio dela que o homem modifica sua existência. Observa-se também que o próprio desenvolvimento humano se dá nas relações sociais. Nessa direção Mennocchi e Leite (2010, p. 57), amparadas nos pressupostos de Leontiev relatam [...] “sua constituição se dá pela sua progressiva participação na trama da complexa rede de relações sociais em que desde o nascimento é envolvido". No decorrer desse processo, na consciência humana são estabelecidas relações entre os sentidos e os significados atribuídos a atividade. Como propõe Martins (2007), os significados são o resultado das apropriações feitas pelo homem de um sistema objetivado historicamente. Originalmente supra-individuais, estes serão convertidos em reflexo psíquico, adquirindo, portanto um sentido subjetivo e pessoal. Na relação entre apropriação e objetivação, incluindo os significados resultantes desta e seu papel fundamental na formação do psiquismo humano, evidencia-se a importância do trabalho. Destaca-se a linguagem neste processo, pois nas palavras de Vigotski (2001, p. 84), "a criação e o uso de signos é a atividade mais geral e fundamental do ser humano, a que diferencia em primeiro lugar o homem dos animais". A linguagem sistematiza signos, possibilitando a comunicação, a significação da realidade e a própria subjetivação. Para Smolka (2004), o signo, tendo sido produzido nas relações interpessoais, age nos sujeitos e ao mesmo tempo nas próprias relações. Nelas, a palavra se destaca como signo por excelência, expressando a relação social, e ao mesmo tempo, a vida interior. Por meio da linguagem, ocorre a passagem da representação para a significação. Em outras palavras, tudo o que se produziu nas relações sociais foi convencionalizado e acordado entre os indivíduos, deixando marcas na sociedade. Para Leme (2010), são as significações que voltam o indivíduo para o coletivo, sendo nelas 1 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru. Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem Limpa – Bauru – CEP 17.033-36. E-mail: [email protected] Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru. Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem Limpa – Bauru – CEP 17.033-36. E-mail: [email protected] 2201 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X que se fundamenta a consciência. No mesmo sentido, Smolka (2004, p. 45) afirma a significação enquanto "uma chave para se pensar a conversão das relações sociais em funções mentais". A autora ressalta a necessidade de analisar essas relações sociais enquanto uma trama de experiências, imagens e histórias, com outros indivíduos de distintas posições sociais. Nesta trama é a que está impressa o processo de significação, e a consequencial interpretação do sujeito e de sua realidade social. Sujeito desta pesquisa, o policial militar, seja pelas características rígidas de sua profissão ou pela alta exposição à situações de risco, vêm se tornando alvo frequente de pesquisas na área da psicologia e das ciências sociais nos últimos anos. Tais estudos envolvem diversos aspectos da profissão e da subjetividade dos policiais, como a pesquisa de Silva (2011), a respeito da identidade militar, Oliveira (2010), que aborda questões como a masculinidade, e Spode (2004), a respeito da saúde mental do policial. No entanto, observa-se no país uma escassez de estudos como sujeitos policiais militares com deficiência. No contraponto, supõe-se grande o número de policiais em condição de deficiência atualmente, principalmente no que tange à deficiência física. Em pesquisa realizada com policiais do Rio de Janeiro, Minayo, Assis e Oliveira (2011) constataram que as situações de confronto constantemente vividas por tais trabalhadores oferecem altos riscos à saúde dos mesmos, resultando muitas vezes em lesões e traumas. Foram ainda relatados casos de incapacidade temporária ou permanente, incluindo deformidades ou rigidez total nos membros inferiores ou superiores, paralisias, amputações, incapacidade para retenção de excreções, além da perda de órgãos internos como rim ou pulmão. A maior parte desses danos ocorre em função de ferimentos por arma de fogo ou fraturas (MINAYO, ASSIS E OLIVEIRA, 2011). O conceito de policial ideal socialmente difundido está bastante distante da visão existente em relação à deficiência. Como aponta Sousa (2009), o perfil policial está associado com a imagem do herói, ou seja, aquele que se distingue por feitos extraordinários, ou ainda que tem excelente desempenho em combates. Já o deficiente é distinto exatamente pela desvantagem que carrega aos olhos do grupo que o cerca. É possível dizer então que a personalidade do policial, formada em sua atividade, é díspar ao conceito de deficiência, uma vez que é representada simbolicamente na ideia de integridade física supervalorizada, ancorada numa suposta perfeição corporal. Considerando o a forte influência das características da Corporação Policial sobre a vida de seus membros, aliada a importância da atividade para a formação psíquica do indivíduo, julga-se possível que as significações relacionadas à deficiência possam estar permeadas de atributos da própria corporação e, consequentemente, ao papel de policial. Considera-se ainda que a aquisição de uma deficiência representará uma transformação importante na trajetória de vida de tais profissionais. Essa transformação pode trazer consigo um forte impacto para o psiquismo dos mesmos, advindo do abandono do trabalho e somado à possível estigmatização de suas condições atuais. Considerando o exposto, tem-se este estudo, que faz parte de uma pesquisa maior de pósgraduação, que procurou identificar o conjunto de significações da deficiência enquanto objeto corporificado, para os policiais afastados em função de deficiência adquirida em serviço e identificar o conjunto de significações da deficiência, enquanto objeto presumido, para os policiais da ativa, que, embora não se encontrem nesta condição, estão expostos à mesma em seu cotidiano laboral. Assim este texto procura retratar, pela análise do cônjuge, 2202 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X como a deficiência adquirida em função alterou fortemente o transcurso da vida pessoal e familiar de um policial militar que se encontrava na ativa. MÉTODO A participante da pesquisa, a ser identificada como Júlia, nome fictício, foi indicada por uma organização filantrópica, a Associação de Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo – APMDFESP, por seu esposo apresentar prejuízos intelectuais, comunicacionais e motores, em função de uma lesão cerebral provocada por bala. Tal associação cuida dos interesses dos policiais deficientes, oferecendo assistência jurídica, social, médica e psicológica, e possui membros por todo o Estado. Seu marido, Maurício, nome também fictício, é um desses associados. Este tem 35 anos, e é um soldado reformado em 2009 em função de uma lesão cerebral. O procedimento de coleta de dados utilizado foi a entrevista com a adoção do relato da história de vida. Esse método, amplamente utilizado em pesquisas na perspectiva HistóricoCultural, busca acessar por meio da narrativa as memórias do indivíduo, seguindo sua construção desse relato. Considerando os objetivos de desvelar as significações da deficiência para os policiais militares, considera-se pertinente acessar as memórias por intermédio do relato do próprio sujeito. Como já antes mencionado, a participante da pesquisa era a esposa do policial com deficiência, este sim, o personagem do qual se buscou apreender a história de vida. Considerou-se a óbvia distinção entre o relato a ser elaborado por Júlia em relação a uma possível narrativa de Maurício. No entanto, conforme afirmam Oliveira, Rego e Aquino (2006), as memórias relatadas nas narrativas autobiográficas são construções individuais, mas também coletivas e sociais. Mediante esta coletividade da construção de cada história de vida, justificou-se o uso deste mesmo instrumento, ainda que o narrador contasse a respeito da história de vida de outro indivíduo. Na escolha do instrumento, também se observou que, ao relatar acontecimentos da vida do marido, Júlia estaria também contando a sua própria história de vida, a partir de acontecimentos a serem escolhidos. A memória, enquanto função psicológica, é mediada por signos, produtos das relações históricas e sociais. Remete-se a algo que foi externo, e, como exposto por Vigotski (2000), o que é externo foi social, ou seja, fruto de uma relação entre pessoas. Sendo assim, pela identificação das impressões próprias do sujeito a respeito da realidade vivida, é possível apreender o reflexo psíquico desta e os significados a ela atribuídos, compreendendo o processo de significação. A entrevista realizada com Júlia ocorreu em data pré-agendada com a participante, em uma sala de reuniões privativa oferecida pela APMDFESP. A pesquisadora esclareceu os direitos da participante, que assinou um termo de consentimento livre e esclarecido. Sanadas as possíveis dúvidas a respeito da pesquisa, teve início a entrevista, que foi gravada em áudio para análise posterior. Informa-se ainda que este estudo tem parecer favorável do Comitê de Ética da Universidade em que é realizado. Após responder um questionário de identificação, Júlia foi solicitada a contar a história de seu esposo, Maurício, da maneira como preferisse, mencionando os acontecimentos mais importantes em sua opinião. A análise dos dados foi feita com base nos pressupostos de Vigotski (1995), para o qual a compreensão do ser humano deve sempre visar a análise da relação complexa estabelecida entre sujeito e sociedade, sendo que a observação de processos psicológicos simples 2203 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X fundamentais para a compreensão de processos complexos. Nas palavras de Zanella at al (2007, p. 28), esta tarefa consiste em mostrar “como a realidade social é recombinada e objetivada em cada pessoa que se apresenta, assim, como expressão e ao mesmo tempo fundamento dessa mesma realidade”. Isso implica que toda análise deve buscar as relações entre as partes que compõem o todo. Para Vigotski (1995), alguns princípios metodológicos condizem com os pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-cultural. O primeiro consiste na importância da análise do processo, e não apenas de objetos. O segundo princípio seria a busca pela gênese do fenômeno em sua dimensão histórica e social, evitando apenas sua descrição. Por fim, há de se considerar a importância do caráter explicativo da análise. Zanella at al (2007) reconhece na obra de Vigotski (1991) um quarto princípio fundamental para a análise metodológica, que consiste na análise de unidades, ao invés da análise de elementos. As unidades são os produtos da análise, e constituem componentes primários em relação às suas características e propriedades concretas. Para Aguiar e Ozella (2006), os significados representam estas unidades de análise, passíveis de expor as propriedades do todo, em sua gênese e determinação. Para os autores, os significados refletem e objetivam a consciência dos indivíduos em suas falas. Nas narrativas, estes podem ser identificados em núcleos, descritos como temas centrais ligados a ações e afetos que envolvem em sua construção, determinantes sociais e características subjetivas. Aguiar e Ozella (2006) afirmam que a identificação de tais núcleos no texto pode compreender algumas etapas para a análise dos dados: a) leitura flutuante e organização do material: após transcrição de todos os materiais gravados, essa etapa envolverá a leitura repetida dos mesmos, da qual surgirão os pré-indicadores. Estes consistem nos primeiros temas centrais na fala do participante, tendo evidente relação com o tema da pesquisa; b) aglutinação dos pré-indicadores: numa nova leitura do material, os pré-indicadores encontrados serão reunidos por semelhança ou contraposição, em temas mais amplos que os envolvam. Estes temas serão os indicadores, que orientarão a busca pelos núcleos de significação; c) construção e análise dos núcleos de significação: após uma releitura do material, a organização e análise dos indicadores possibilitarão a articulação dos temas, em busca de semelhanças e diferenças, além das transformações e contradições ocorrentes no processo de formação dos significados e dos sentidos. De cunho interpretativo, essa etapa possibilitará encontrar os núcleos de significação.; d) análise dos Núcleos: essa etapa consistirá na articulação entre os núcleos de significação, o que permitirá compreender o discurso do participante num nível totalitário e intimamente relacionado com sua formação psíquica e histórica, à luz do contexto sociohistórico, face aos pressupostos teóricos. Dessa maneira, subsidiado nos princípios da análise da Psicologia Histórico-Cultural, identificou-se núcleos de significação no discurso dos participantes, em especial os relacionados à deficiência e ao trabalho. RESULTADOS E DISCUSSÃO A entrevista teve duração de aproximadamente 45 minutos, nos quais a participante relatou a história de vida de seu marido. Conforme o previsto, esta história mesclou-se com a trajetória de seu próprio casamento e da vida de Júlia, antes e depois do acidente. Júlia iniciou a entrevista descrevendo o início da carreira militar de Maurício. Segundo a participante, o 2204 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X casal ainda namorava, quando ela descobriu que estava grávida. Maurício, que não trabalhava, foi instruído pela mãe a prestar um concurso público para ingressar na Polícia Militar, garantindo o sustento da nova família que se formava. A participante ressalta que após o ingresso, o marido permaneceu na Corporação de 1997 a 2009, quando aconteceu o acidente. Júlia relata que poucos meses antes do acidente ocorrer, o casal e os dois filhos pretendiam mudar-se para uma cidade do interior, onde Maurício buscaria outra profissão. Essa busca estava sendo motivada pela insatisfação de Júlia com o trabalho arriscado do marido, e também do mesmo, que reclamava do estresse causado pelas atividades profissionais. No entanto, antes que os planos fossem concretizados, o acidente ocorreu. Em uma perseguição policial de bandidos que fugiam de carro, ocorreu a troca de tiros, durante a qual Maurício foi baleado. O soldado, que dirigia a viatura, foi atingido por uma bala de fuzil que se alojou em seu crânio. A lesão resultou em danos nos lobos occipital, parietal e frontal, e teve como consequências extensos danos neurológicos. Após três anos do acidente, Maurício ainda apresenta sequelas cognitivas como a perda da capacidade de atenção e concentração, memória e fala, além de severos comprometimentos motores. A participante ressalta em seu relato os meses passados no hospital, acompanhando as internações do marido. Foram dois meses na Unidade de Terapia Intensiva - UTI, seguidos de meses entre dois hospitais: um hospital privado, onde Maurício foi atendido inicialmente e que ofereceu gratuitamente o atendimento de emergência e de terapia intensiva, e o Hospital da Polícia Militar, onde ocorreu o prosseguimento da internação. Quanto ao período de internação neste último hospital, Júlia manifestou-se bastante insatisfeita com o serviço oferecido. Após um ano do acidente, Maurício foi novamente operado para que o projétil fosse retirado de seu cérebro. A cirurgia foi oferecida pelo mesmo hospital privado no qual o policial havia sido atendido inicialmente. Júlia enfatiza em seu relato as transformações ocorridas na vida familiar em função do acidente ocorrido. Foi necessária a mudança de casa, já que na residência onde viviam havia escadas que Maurício já não poderia subir. O esposo requer atenção constante, em função de suas dificuldades de locomoção e da perda de memória. Além disso, cuidados como o banho e a troca de fraldas se fazem necessários. Júlia afirma que o papel que o marido exercia em sua família permanece o mesmo: ele continuaria exercendo a figura de pai de seus filhos, e também de seu esposo. No entanto, a participante evidencia que suas responsabilidades foram aumentadas após o acidente, e que já não pode contar com o apoio de Maurício. Em vários momentos da entrevista, observa-se que o relato da história da vida de Maurício se confunde com o relato da história da própria Júlia, e do impacto que o acidente provocou em sua trajetória. É possível afirmar que, embora o foco tenha sido o marido, o relato de Júlia permite identificar os significados que a mesma atribui a aquisição da deficiência e para a própria polícia militar. Para a identificação dos núcleos de análise, a entrevista foi transcritas as entrevistas e cada relato era lido repetidamente, a fim de definir os pré-indicadores. Para tanto, buscava-se nos relatos os temas centrais, identificados pela recorrência na fala; o destaque, dado pela entonação diferenciada; a subsequência de acontecimentos; os desvios na fala, ou seja, a interrupção ou a mudança abrupta de assunto durante o relato. Além desses critérios, dois temas centrais preestabelecidos que orientavam a busca pelos demais, considerando os objetivos da pesquisa: a Polícia Militar e a Deficiência. Assim, os pré-indicadores deveriam 2205 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X estar relacionados direta ou indiretamente a esses temas. Após a identificação dos préindicadores, estes foram agrupados em indicadores, pela semelhança ou pela proximidade dos temas. No relato de Júlia, foram identificados sete indicadores: 1) características negativas da PM para Júlia; 2) características negativas da PM para Maurício, atribuídas por Júlia; 3) novos papéis familiares; 4) percepção de Maurício acerca do acidente, na opinião de Júlia; 5) continuar a ser policial militar; 6) a luta contra a PM; 7) características positivas da PM para Júlia. O primeiro indicador, características negativas da PM para Júlia, permeou todo o relato da participante. Aparentemente, a profissão do marido era uma razão de preocupações para ela, principalmente em períodos nos quais se noticiaram atentados contra policiais militares. Júlia relata: “foi de 2005 pra 2006, teve aqueles atentados, né, eu entrei em depressão. Ele não ficava em casa, ele saía pra trabalhar, ele fazia bico. Eu entrei em parafuso. (…) Assim, eu não dormia, não dormia, uma loucura”. Pela fala da participante, percebe-se que os riscos que Maurício corria já haviam sido anunciados pelo marido: “Passou uma vez na televisão sobre uns policiais que tinham sido mortos, e tal, e ele falou assim 'quando a Polícia Militar ligar, alguém da Polícia bater na porta é que aconteceu alguma coisa comigo'. E aquilo ficou na minha cabeça. (…) Aí tocou na minha casa. Aí eu atendi, ela perguntou 'é a Júlia?', eu falei 'é'. Aí a soldado falou assim, 'ah, é a soldado V'.. A hora que falou 'soldado V.' eu pensei 'ah, é o Maurício'”. Em direta relação com o primeiro indicador, foram identificados temas na fala de Júlia que tinham relação com a suposta insatisfação do marido com sua profissão. Surge um novo indicador, características negativas da PM para Maurício, atribuídas por Júlia. Segundo a participante, o esposo ingressou na PM por motivos financeiros, e não de interesse profissional, “ele, assim, ele acabou entrando na Polícia Militar não porque ele queria, foi por necessidade”. Embora tenha continuado na profissão, por vezes o relato da participante indica descontentamento por parte do marido: “Ele (Maurício) não transparecia em nada, nada, nada, nunca. (...) e quando parecia que tava tudo tranquilo, ele chegava super cansado, ele falava assim 'chegar lá, cada dia uma coisa'. Ele começou a reclamar, né?”. Articulados, os dois primeiros indicadores apontam para uma insatisfação do casal em relação a profissão de Maurício, atribuindo um significado negativo à PM. Foi justamente este caráter negativo que motiva o início de um processo de mudança residencial, da capital do estado para o interior, e também profissional, interrompido pelo acidente. O terceiro indicador diz respeito aos novos papéis familiares de Júlia. Desde o ocorrer do acidente, a participante relata que a transformações de papéis lhe foi anunciada: “Tanto que os médicos só me prepararam pra isso. 'Olha, você vai ter que ser firme, se você for ficar com ele, o seu marido vai ficar com sequelas, sequelas severas. Ele não vai poder trabalhar, ele não pode ficar sozinho. Vai ter que ter uma pessoa com ele, ou você mesma 24 horas”'. Estas mudanças foram se concretizando com o decorrer dos anos desde a saída de Maurício do hospital. Júlia conta: “E eu sou pai e sou mãe, dona de casa, e tudo. (…) Que nem, eu preciso fazer 2206 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X tratamento, ainda não consegui parar pra me cuidar, pra fazer tratamento, porque ele depende muito de mim. Ele mesmo fala que nem a mãe dele cuidaria tão bem dele como eu cuido. Mas é uma coisa assim, como sabem que eu sempre vou estar fazendo, só tem eu. Ninguém nem se habilita pra perguntar se precisa”. Embora com pequena recorrência, os temas envolvidos no quarto indicador - percepção de Maurício acerca do acidente, na opinião de Júlia, foram enfatizados pela participante. Segundo a mesma, os lapsos de memória de Maurício o impossibilitam de tomar consciência da dimensão das sequelas do acidente. Em vários momentos, é ela quem o lembra do tiro levado, contando novamente todo o ocorrido. Para a mesma, são raras as ocasiões nas quais o marido percebe sua própria condição de maneira clara. “A última vez foi na Copa que ele se emocionou, de chorar, ele colocava a mão na cabeça, que não queria ficar daquele jeito, sabe? E eu falei 'ai, Maurício, por que você tá desse jeito?'. Aí ele mandou eu ir embora. Aí eu fiquei brava 'Ai, Maurício, você tá mandando eu ir embora?'. Fiquei pê da vida. 'Por que você tá mandando eu embora?'. E ele 'Ah, porque eu sou um inútil...'. Eu falei 'Ai, Maurício, até um pecado você falar isso'. Aí passou e ele nem lembra disso”. O quinto indicador, continuar a ser policial militar, reúne temas ligados às falas do marido da participante com relação a ainda ser policial ou ao desejo de tornar a exercer a profissão. Nas palavras de Júlia, “ele fala 'ah, eles podiam arrumar um cantinho lá pra mim, eu não ia mexer com ninguém, ficava só lá no administrativo, tal'. Porque é como dizem, tá no sangue, né? Polícia...”. Nesse momento, é possível observar uma contradição com relação ao segundo indicador, em cujo os trechos a participante evidencia insatisfação do marido com relação a PM. No sexto indicador, a luta contra a PM, reúnem-se temas que tiveram alta recorrência na fala de Júlia. Em diversos momentos de seu relato, ela menciona atitudes tomadas contrárias a Corporação, em favor de seu marido. Estas atitudes tem início na relação estabelecida entre a família e o Hospital da Polícia Militar. Em suas palavras, “acredito mais na falta da compreensão e profissionalismo do Hospital, que é um quartel. Porque é um quartel. O sistema com o paciente, o paciente morre (...)”. Segundo a mesma, “Eu fiz uma revolução lá no HPM, 'ah, ele tem que fazer, então vai fazer. Ah, não tem cama, então arruma cama, não tem fisio, arruma fisio'”. Essa insatisfação prossegue sendo direcionada à PM com relação a aposentadoria de Maurício. Quando foi oficialmente publicada sua reforma, ele automaticamente deveria ter sido promovido a cabo, o posto seguinte ao de soldado na ordem hierárquica. No entanto, essa promoção não ocorreu, e Júlia pretende abrir um processo judicial para que a Polícia finalmente lhe conceda a promoção e o aumento salarial. Para ela, “Só que se bandido derruba comando, um policial militar deficiente que tem a sua família, que deu a sua vida, também. Eu falo por ele, então é mais do que justo, né?”. O último dos indicadores, embora envolva temas de menor recorrência, também requer atenção, em função de sua disparidade com relação aos demais: características positivas da PM para Júlia. Em alguns momentos da entrevista, a participante chama a atenção para união dos policiais militares, distinguindo-os, no entanto do que ela chama de “comando”: “ outra, eles são bem unidos. Os policiais, quem tá na linha de frente, eu vejo muito isso”. Após a realização de novas leituras da entrevista e dos trechos referentes a cada indicador, os 2207 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X indicadores relacionados anteriormente foram articulados entre si, para a formulação do que seriam os núcleos de significado, unidades de análise para o presente trabalho. Estas unidades foram então analisadas, numa busca pela formação histórica e social dos significados relacionados à Polícia Militar e a própria deficiência. Foram identificados três núcleos de significação: transformações da trajetória familiar; a profissão como causa da deficiência; a dependência como consequência da deficiência. No núcleo transformações da trajetória familiar, podem ser analisados os significados relacionados à história familiar, permeada pelas peculiaridades do trabalho de Maurício. Pela construção do relato de Júlia, é possível notar que o risco era um dos significados atribuídos à profissão de policial. Este mesmo risco é um dos fatores que determinam o anseio pela nova trajetória familiar, na qual, tanto a figura de policial militar como do ambiente de trabalho supostamente sairiam de cena, dando lugar a tranquilidade atribuída ao interior. Esta etapa é enfatizada por Júlia, que parece ressaltar as possibilidades que foram cerceadas pela nova condição de Maurício. No segundo núcleo, a profissão como causa da deficiência, que está intimamente relacionado ao primeiro, observando-se uma reafirmação do caráter negativo dado à Polícia Militar. Para a participante, a profissão, com suas características negativas, levaria, desde o princípio a fatalidade – o que se pode inferir de suas falas: “ele acabou entrando na Polícia Militar não porque ele queria, foi por necessidade”, e “quando a Polícia Militar ligar, alguém da Polícia ligar, é que aconteceu alguma coisa comigo”. Apesar do caráter negativo da profissão, é possível observar que Maurício ainda se vê como policial, ou ainda deseja o ser, na opinião de Júlia. Com esta afirmação, a participante se contradiz com relação a suposta insatisfação de Maurício. Essa contradição no relato pode retratar uma contradição real da profissão do policial militar. Apesar de todos os perigos que a profissão pode trazer, ela ainda aparentemente é uma fonte de prazer, recursos e também de identificação para muitos militares. Ainda com relação ao segundo núcleo, observa-se um significado de poder e autoridade à figura do policial militar. Essa autoridade ainda parece ser percebida por Maurício como algo inerente a sua profissão, e consequentemente, a si mesmo: “Outro dia eu falei pra ele 'não, Maurício, não pode (ele queria dirigir o carro). Nós estamos atrasados, você tem terapia, a sua habilitação tá vencida'. E ele falou 'Ah, eu sou polícia!'”. Na sequência deste acontecimento, no entanto, a fala de Júlia parece indicar que para ela essa autoridade é questionável: “Aí eu falei 'Ah, e daí que você é polícia?' (risos). Aquela autoridade, né, errada, aí a gente dá risada”. Esse questionamento se repete em sua fala sobre o atendimento no Hospital da Policia Militar: “Eu tive que dar tipo uma revoluçãozinha lá, e não só em benefício dele. Só que as pessoas têm medo. 'Ah, falar com polícia'. Mas é um direito dele. Enfim... E eu sou pai e sou mãe, dona de casa, e tudo”. Na fala de Júlia, a polícia militar é associada a significados como a profissão que “está no sangue”, como ela afirma, ou como uma profissão de autoridade. No entanto, as contradições em sua fala parecem apontar para a desconstrução desses significados. No terceiro núcleo de significação, a dependência como consequência da deficiência, está envolvida as mudanças de papéis dos familiares após o acidente de Maurício. É a partir destas mudanças que a deficiência vai tendo seus significados finalmente delineados no relato de Júlia. Aparentemente, o que consequencia a aquisição da deficiência são transformações 2208 VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X negativas, já mencionadas nos outros núcleos, somadas a forte dependência que seu marido agora tem de si. Antes, havia um marido que era participativo e atuante na família, e agora o relato da participante parece apontar para mais um dependente, equiparando-o aos filhos. Em momentos da entrevista Júlia se contradiz, apontando para um marido ainda atuante. No entanto, é inegável sua manifestação de cansaço e sobrecarga com a nova condição de Maurício. Observa-se então que a deficiência tem seus significados fortemente associados com a consequência negativa. Ou seja, ela é resultado de uma profissão arriscada, e tem como consequências a dependência e a sobrecarga. Apesar do caráter de sobrecarga que a deficiência implica para Júlia, é possível perceber que a participante a vê como uma característica a ser compreendida, procurando buscar características positivas na condição de Maurício. Nas palavras da participante, “eu tô cansada, mas eu não sei o que seria de mim sem o R”. CONCLUSÕES De maneira geral, percebeu-se, pela análise dos núcleos de significação, que os significados atribuídos à Polícia Militar e à deficiência para Júlia ficaram evidentes na história de vida por ela relatada. a participante associa um forte caráter negativo e de culpabilização à Polícia Militar, pela condição atual do marido. Ao mesmo tempo, no entanto, seu relato deixa transparecer que a profissão possui muita importância na vida de Maurício, chegando a afirmar que ele não estaria aposentado, se fosse possível. Com relação à deficiência, identificam-se no relato significados de conotação negativa, apontando para a dependência da pessoa com deficiência, e incapacidade. Estes significados estão diretamente associados a condição restritiva de Maurício. No entanto, não determinam o afastamento de Júlia. Pelo contrário, essa condição é vista como mais uma característica do marido, e não como seu único fator constituinte. Observa-se que os significados identificados sofrem influência da história de vida da participante e de seu marido, permeadas pelas relações sociais estabelecidas com o trabalho, e entre si mesmos, dando novos contornos a esfera familiar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos. 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