A HISTÓRIA DA ESCOLARIZAÇÃO DA INFÂNCIA EM MINAS GERAIS:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA PESQUISA
Paula Cristina David Guimarães
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Palavras-chave: Maria Lacerda de Moura, Infância, Educação.
Resumo
O presente trabalho descreve e inicia a análise do projeto científico de educação da infância
formulado e apresentado por Maria Lacerda de Moura à Secretaria do Interior do Estado de
Minas Gerais no ano de 1919. Em um requerimento de uma lauda, a professora da cidade de
Barbacena expõe seus objetivos para realizar estudos de psicologia experimental aplicados à
pedagogia e solicita autorização do Estado para aplicá-los nas escolas da sua cidade. Ao
analisarmos o documento e a trajetória de Maria Lacerda até àquele momento é possível
perceber a apropriação que ela faz de um discurso científico, carregado de “saber” e de
“verdade” sobre a educação da infância. Ao mesmo tempo, é possível associá-la a duas
imagens: a de intelectual e reformadora social, imagens que se entrecruzam e se completam
em um contexto de luta pelas causas educacionais daquele momento.
Introdução
No Brasil do início do século XX acentuou-se um processo que já se desenvolvia
desde o final do século XIX no país e no mundo: o estudo científico da infância. Tal estudo,
desenvolvido no interior de saberes especializados, sobretudo os advindos da medicina, sendo
estes de base fisiológica e psicológica, tinham por objetivo investigar os processos de
crescimento, desenvolvimento e, também, educação da criança. Neste último, o interesse das
investigações era o de obter uma melhor caracterização do aluno, identificando suas
semelhanças e diferenças para adaptar técnicas de ensino que se queriam mais eficientes e
também para criar tempos e espaços mais específicos e mais condizentes com o futuro
adulto/cidadão que se queria formar para a nascente República.
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A escola, que vinha sendo paulatinamente reconhecida como instituição capaz de
instruir e educar a infância, foi considerada o espaço por excelência para a realização dos
estudos científicos. A escolha desse espaço se justificava pela existência de uma quantidade e
diversidade significativa de crianças em um mesmo lugar, e se apoiava na demanda de um
conhecimento aprofundado sobre elas, que fornecesse as bases de uma educação eficiente,
que promoveria ganhos tanto para o trabalho do professor quanto para a formação do aluno e
da sociedade na qual ele estivesse inserido.
Assim como na Europa, no Brasil desenvolveu-se uma profunda confiança na
contribuição da educação aliada à ciência na resolução dos problemas nacionais. Nesse
contexto, ganharam destaque, por exemplo, as teorias higienistas, eugenistas e sanitaristas nas
escolas, que se traduziam em projetos de mensuração das condições físicas e mentais dos
alunos e das condições de sua educação. Fazem parte desses projetos os testes mentais ou
testes de inteligência, investigações de cunho psicológico centrados na mensuração individual
das funções cognitivas superiores, muito difundidos na escola brasileira i . Os testes foram
vislumbrados como parte dos estudos científicos sobre a infância a partir do momento em que
forneciam informações sobre o desenvolvimento da inteligência dos alunos, favorecendo a
criação de escalas métricas da inteligência, que iam da normalidade à anormalidadeii.
Esse processo de classificação da inteligência infantil era justificado, pelos estudos da
área de psicologia, por favorecer a criação de classes homogêneas, ou seja, por propiciar,
através de critérios “científicos”, a seleção e o agrupamento de crianças que estariam em um
mesmo nível mental em salas de aula específicas, o que facilitaria a melhoria da marcha do
ensino, dando a ele o mesmo ritmo.
No entanto, essa classificação e separação de alunos geravam, também, consequências
para a educação, como, por exemplo, a segregação e estigmatização dos alunos dentro do
próprio espaço escolar, excluindo supostas inferioridades mentais que, muitas vezes, eram
determinadas pela condição social desses sujeitos e não pela baixa inteligência.
Em Minas Gerais, a inserção, o estudo e a difusão dos testes de inteligência nas
escolas estão situados, de acordo com os estudos históricos em educação, na década de 1930,
sobretudo através da atuação de Helena Antipoff, psicóloga Russa que veio para Minas Gerais
no ano de 1929 para dirigir o recém-criado Laboratório de Psicologia da Escola de
Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonteiii.
A vinda de Antipoff para a Belo Horizonte se insere no contexto de interesse do
governo estadual pela inserção dos estudos científicos da psicologia na educação do Estado.
Esse movimento de valorização, sobretudo dos testes de inteligência, já era marcado no
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principal periódico educacional do Estado, a Revista do Ensino que, no ano de1925, noticiava
o uso dos testes nas escolas em outros países e a importância desse recurso para a efetiva
educação e, consequentemente, civilização do país: “os americanos do norte, sujeitos que
compõem um país de civilização requintada, acabam de adotar nas suas casas de ensino, os
testes” (VIANNA, Francisco Mello. Os métodos novos no ensino primário: a experiência dos
testes. Revista do Ensino n. 1, março de 1925, p. 16).
O trabalho de Helena Antipoff na Escola de Aperfeiçoamento envolvia a formação de
professores já atuantes e provenientes dos mais diversos municípios do Estado de Minas
Gerais, o interesse do Estado era o de promover a formação de gestores para a implantação da
reforma empreendida em 1927, cujas bases se apoiavam no movimento da escola nova.
Antipof também esteve à frente da direção do Laboratório de Psicologia da Escola, lugar em
que desenvolvia estudos, pesquisas e experiências com os alunos das escolas da capital. Tal
laboratório teve, na sua implantação e direção, importantes estudiosos europeus como
Theodore Simón, médico e professor da Universidade de Paris e diretor da colônia de
Alienados e Anormais de Perry-Vandeuse e auxiliar direto de Binet na organização das
primeiras escalas de medida da inteligência humana; Jeanne Milde, professora da academia de
Belas Artes de Bruxelas; Léon Walther, do Instituto Jean Jacques Rousseau de Genebra;
Artus Perelet, deste mesmo instituto e, por fim, a própria Helena Antipoff, cujo trabalho
anterior também se vinculava ao Instituto Jean Jacques Rousseau de Genebra, onde trabalhou
como assistente de Claparède (PEIXOTO, 2003).
O contexto acima e a riqueza de materiais produzidos na época e atualmente
disponíveis para a pesquisa, têm favorecido estudos diversos sobre a relação entre psicologia
e educação em Minas Gerais. Ao mesmo tempo, têm, também, direcionado esses estudos a
identificar a década de 1930 como o período em que esses estudos chegaram ao Estado e a
pessoa de Helena Antipoff como a pioneira desse trabalhoiv.
Entretanto, uma nova fonte histórica, inédita até o momento, foi descoberta e coloca
em questão o período e o personagem até agora colocados como precursores dos estudos e
experimentos da psicologia experimental aplicados à pedagogia. Trata-se de um requerimento
de 1919, escrito por Maria Lacerda de Moura, professora da Escola Normal Municipal de
Barbacena, em que a mesma solicita permissão da Secretaria do Interior do Estado de Minas
Gerais para realizar testes de psicologia experimental aplicados à pedagogia nas escolas da
cidadev.
O documento em questão apresenta informações importantes sobre o processo de
escolarização da infância em Barbacena e em Minas Gerais, pois traz a proposta de um
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projeto educacional específico, fundado nos primeiros debates e estudos sobres a psicologia
experimental aplicada à educação no Brasil.
Nesse sentido o objetivo principal do trabalho foi o de descrever e iniciar a análise do
projeto científico de educação da infância formulado por Maria Lacerda de Moura e exposto
no seu requerimento, identificando seus objetivos, suas justificativas, bem como os
fundamentos teóricos do seu projeto.
Essa investigação pretende contribuir com estudos históricos sobre a infância no Brasil
que, de acordo com Sarmento e Gouvêa (2009), ainda está por ser estudada, sobretudo
enquanto categoria social, constituída por sujeitos historicamente situados. Segundo os
autores, no processo histórico de conformação das distinções entre os campos disciplinares, “a
criança foi tomada como objeto por excelência de uma psicologia do desenvolvimento que
pouco dialogou com as ciências como a sociologia, a antropologia e a história” (SARMENTO
e GOUVÊA, 2009, p. 7).
Ainda é preciso ressaltar que o trabalho aqui exposto permite lançar luzes iniciais
sobre as questões da psicologia aplicada à educação dez anos antes da chegada de Helena
Antipoff a Minas Gerais, o que nos possibilitará saber como essa questão foi vista por
educadores, pela sociedade e pelo Estado mineiro naquele momento.
Tendo em vista que o trabalho se volta para a ivestigação de um projeto científico
aplicado à educação e, consequentemente, dos discursos e práticas que o perpassaram, as
análises que serão empreendidas se apoiam nas chamadas ferramentas foucaultianas,
principalmente aquelas que nos ajudam a compreender as relações de poder, a produção de
saber e de verdade existentes na sociedade.
Outra perspectiva de análise parte da identificação de Maria Lacerda de Moura
enquanto intelectual e reformadora social de seu tempo.
Maria Lacerda de Moura e seu projeto científico para a educação da infância
Imagem III: Requerimento enviado por Maria Lacerda de Moura
à Secretaria do Interior de Minas Gerais
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Fonte: Fundo da Instrução Pública de Minas Gerais. Arquivo Público Mineiro
O requerimento em questão, fonte de análise deste trabalho, apresenta-se em uma
única página, redigida à mão, pela própria requerente Maria Lacerda de Moura. A letra é
legível, com todas as correções gramaticais e estéticas, o que indica certa formalidade na
escrita do texto que seria encaminhado ao órgão responsável pela organização e fiscalização
do ensino em todas as escolas do Estado de Minas Gerais, incluído as localizadas na cidade de
Barbacena e região.
O documento também é assinado, o que possibilitou a identificação da professora
requerente e sua ocupação social e política naquele momento, bem como a sua trajetória
anterior e posterior ao momento da escrita do requerimento. Trata-se de Maria Lacerda de
Moura, professora da cadeira de Pedagogia e Higiene da Escola Normal Municipal da cidade
de Barbacena. Formada na mesma Escola Normal, em 1904, Maria Lacerda iniciou seu
trabalho docente em 1908. Além de lecionar, também se dedicava à direção do Pedagogiumvi.
Também nesse período, inicia a sua participação na Liga Barbacenense de Alfabetização,
sendo uma de suas fundadoras e principais colaboradorasvii.
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Para além dos muros da instituição escolar, Maria Lacerda também atuava em causas
sociais que, segundo ela, estavam diretamente associadas à educação. Fundou um Lactárioviii
e uma vila para abrigar pessoas pobres na sua cidade. Escreveu artigos sobre os problemas
educacionais para diversos jornais de Barbacena e região, lugares em que também proferiu
inúmeras palestras. Foi a partir dessa trajetória que a professora teve a possibilidade de
escrever e publicar o seu primeiro livro com o título “Em torno da educação”, em 1918. Um
ano depois, em 1919, publica seu segundo livro, intitulado “Renovação”, nele a professora
resignifica a educação dada à mulher naquele período histórico, demonstrando a importância
de uma formação científica para aquela que seria a principal personagem na missão de educar
a infância para a sociedade, seja na condição de mãe ou professora.
Como é possível perceber, Maria Lacerda se colocava enquanto militante das
educacionais, da mulher e das minorias desfavorecidas da sociedade. Contudo, suas ideias
foram hostilizadas na sua cidade, sendo consideradas impróprias naquela época, sobretudo
quando direcionadas para as ideias feministas, espíritas e para o anticlericalismo ix. É nesse
contexto que, no ano de 1921, Maria Lacerda de Moura se muda de Barbacena São Paulo,
lugar onde busca encontrar maior espaço e apoio para os seus ideais, participando de
movimentos feministas e sindicalistas diversos (LEITE, 1984).
A conquista desse espaço em São Paulo veio através dos vários convites que recebeu
para realizar palestras e para publicar seus artigos em jornais, bem como para continuar a
publicar seus livrosx, o que gerou um amplo conhecimento de sua atuação não só no Brasil,
mas também em outros países como Argentina, Uruguai e Espanhaxi.
Nesse momento, se destacou, também, pela sua ideologia libertária, o que a levou a
fixar moradia em uma comunidade anarquista em Guararema (SP) entre os anos de 1928 e
1937, período durante o qual desenvolveu intensa produção intelectualxii.
Apesar de ter tido uma atuação significativa na cidade de Barbacena, sobretudo no que
diz respeito à educação da infância, não há estudos suficientes que explorem essa fase da
educadora. Quase toda a produção que se tem sobre as ações de Maria Lacerda de Moura
explora o período de sua vivência em São Paulo, especificamente da sua condição de
feminista e anarquista. Sobressaem-se, nesse sentido, os estudos de gênero, seguidos dos
estudos sociais e políticos sobre Maria Lacerda de Moura.
É nessa fase, ainda pouco explorada de Maria Lacerda de Moura, que se situa este
trabalho, período em que, de forma direta e indiretamente, a professora atuou em prol da
educação da infância, seja através da sua atuação enquanto formadora de professores na
Escola Normal de Barbacena seja nos seus estudos e projeto de aplicação da psicologia
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experimental à pedagogia ou, ainda, nas suas diversas publicações sobre o assunto e reformas
sociais que empreendeu na sua cidade em benefício das crianças menos favorecidas, a saber, o
lactárioxiii.
No requerimento escrito pela professora e encaminhado à Secretaria do Interior de
Minas Gerais, é possível identificar, claramente, um projeto científico para a educação da
infância em Minas Gerais. Nas primeiras linhas do documento, Maria Lacerda de Moura
solicita ao Diretor da Instrução pública, permissão para aplicar testes de psicologia
experimental aplicados à pedagogia nas escolas isoladas, no Colégio Imaculada Conceiçãoxiv,
na Escola Normal Municipalxv e no Grupo Escolar de Barbacena. Ao realizar este pedido é
possível perceber que a prática experimental ainda não era algo realizado nas escolas da
cidade mineira naquele momento, sendo necessária toda uma formalidade de solicitação ao
órgão maior que geria a educação para que isso viesse a acontecer.
A justificativa utilizada pela requerente para que seu pedido fosse aceito foi a de que
o Brasil não poderia mais tardar em desenvolver tais estudos, que já vinham acontecendo na
Europa e na América do Norte, países considerados civilizados. Nesses países ela cita a
atuação de vários estudiosos das causas educacionais vinculadas às ciências, sobretudo às de
base psicológica como Binet, Simon, Claparède, Mosso, Sikorski, Godin, Hall, Mlle. Goteiko
e outrosxvi. Para Maria Lacerda, as pesquisas que vinham sendo realizadas pelos estudiosos
acima seriam as bases da educação do futuro, uma educação de base científica. Para ela,
Brasil não poderia ficar atrás nesse projeto que tinham por fim tornar eficaz a marcha pela
civilização do país.
Sabe-se que, no período em questão, os estudiosos e conhecedores dos procedimentos
ditos científicos aplicados à educação, como os citados pela própria Maria Lacerda: Binet,
Simon, Claparède, entre outros, eram vistos como possuidores de “discursos de verdade”
sobre a educação (FOUCAUT, 1979). Isto se dava, sobretudo, por serem representantes de
instituições notadamente reconhecidas, que exerciam certo domínio sobre as relações de
verdade e poder no meio educacional. E Maria Lacerda? Qual o seu lugar nesse contexto?
Assim como as personalidades citadas acima, a professora mineira defendia as “verdades
científicas”, pois acreditava na realização dos testes, nas observações e registros psicológicos
dos escolares como garantia de melhoria da educação da infância e de sua condição social.
É interessante salientar que Maria Lacerda de Moura possuía uma formação que, à
primeira vista, não fora suficiente para lhe dar toda essa base de conhecimentos sobre os
estudos científicos aplicados à educação. Ao analisar o currículo do curso em que se formou
professora não foi possível identificar nenhum direcionamento nesse sentido. Assim, se torna
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possível pensar na sua ação autodidata nesses estudos. Ainda é preciso considerar a
contemporaneidade desses estudos com a sua proposta de aplicação dos experimentos, grande
parte das publicações dos estudiosos citados por ela estavam situadas no período entre 1911 e
1918 e no contexto dos países europeus e da América do Norte.
A professora continua em seu requerimento informando que pretende desenvolver um
trabalho, de duas ou três horas por semana, “no máximo”, nas instituições escolhidas. Ainda
acentua que esse tempo de trabalho proposto por ela não prejudicará a aprendizagem dos
alunos e que, através dele, poderia conseguir aquilo que era o seu maior objetivo: “trazer
luzes para o magno problema nada explorado no Brasil (não me consta que, aqui, alguém
tenha feito um estudo experimental)”xvii. Ainda na defesa do seu projeto, a requerente afirma
estar certa de que auxiliará no “estudo científico da criança patrícia”, e que, caso ela
conseguisse o que queria, Minas Gerais teria a primazia da ideia.
Tem-se aqui, novamente, a ideia de que os estudos de psicologia experimental
aplicados à pedagogia, já tão difundidos junto à Escola Nova no Brasil e em outros países,
ainda não eram realizados nas escolas de Minas Gerais. Tal fato era visto por Maria Lacerda
de Moura como oportunidade de tornar o seu Estado pioneiro nesses estudos estando ela à
frente desse trabalho.
Mesmo não sendo alvo de análise neste trabalho é preciso ressaltar que outros
documentos acompanham o requerimento de Maria Lacerda de Moura. Trata-se dos pareceres
que foram dados ao seu pedido para realizar experimentos de psicologia experimental
aplicados à pedagogia. Estes, emitidos pela Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais,
são tanto positivos quanto negativos e espelham o posicionamento do setor educacional e
político de Minas sobre as questões científicas aplicadas à educação naquele momento.xviii.
Nos pareceres encontram-se informações importantes sobre as questões científicas
aplicadas à educação no estado de Minas Gerais e as discussões travadas sobre o assunto por
governantes e educadores naquele momento histórico. Podemos citar como exemplo o parecer
de número 4, em que o inspetor regional de ensino, Alceu de Souza Novaes, responsável pela
fiscalização da escola onde trabalhava a professora, elabora um relatório de 12 páginas
enumerando os pontos positivos e negativos dos experimentos da psicologia aplicados à
pedagogia. Para isso, demonstra amplo conhecimento teórico sobre o assunto, citando e
analisando resultados dos estudos sobre o tema que vinham sendo desenvolvidos na Europa
sobre os diversos testes que poderiam ser aplicados sobre o corpo e a mente do aluno para a
melhoria do ensino e da aprendizagem nas escolas. Além disso, discorre sobre o trabalho da
requerente na Escola Normal Municipal de Barbacena, ressaltando sua “brilhante” atuação
8
como professora e também como escritora da área de educação no país, para enfim, dar um
parecer positivo à solicitação.
Em contrapartida, outro parecer, o de número 5, faz sérias críticas à experimentação de
cunho psicológico aplicado à educação. No documento são enfatizadas as consequências que
tais experimentos trariam à vida do educador, sendo “mais um fardo” da sua luta diária.
Ressaltava, ainda, que deveriam ser vistos como “inimigos da educação” todos aqueles que
deitassem peso no já “pesado fardo” do professor, que tinha como principal função mante
uma relação “viva e concreta” com a criança e não “abstrata e analítica”, como a dos
psicólogosxix.
Nos pareceres citados acima é possível identificar as “relações de poder”
(FOUCAULT, 1979) existentes no embate travado entre a educadora mineira e a Secretaria
do Interior durante o período em que seu requerimento esteve em processo de análise, sendo
este alvo de aceitação e refutações. Mesmo o requerimento tendo sido aceito no final de 1920
o mesmo sofreu diferentes formas de análise de diferentes instâncias dentro da Secretaria do
Interior, sendo seu conteúdo alvo de constantes análises.
Algumas considerações
A partir da breve análise do requerimento de Maria Lacerda bem como de sua
trajetória na cidade Barbacena sinaliza para o entendimento da sua atuação a partir três eixos
que, por sua vez, colocam a professora dentro de três categorias de análise:
1º eixo - Psicologia científica. Neste eixo, em que os estudos da psicologia aplicados
à educação são colocados em cena por Maria Lacerda de Moura através do seu requerimento,
é possível identificar a sua atuação enquanto intelectual, tendo suas ideias divulgadas,
debatidas e reconhecidas no âmbito social de seu tempo (FARIA FILHO, 2009). Isso se deve
não somente em relação ao requerimento, amplamente debatido pela Secretaria do Interior,
mas também às várias publicações de Maria Lacerda de Moura que remetem ao seu interesse
constante pela pesquisa educacional de cunho científico.
2º eixo - Educação republicana. Neste eixo parte-se do pressuposto de que, no
período em que Maria Lacerda atuou em Barbacena, a mesma esteve imersa em discursos
ações de cunho nacionalista, sobretudo àqueles voltados para a formação da infância enquanto
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futuro cidadão que iria compor uma nação civilizada. Aqui, a professora se destaca como
reformadora social, a partir do momento em que atua em causas filantrópicas, como na
construção do Lactário e de moradias para pessoas pobres na sua cidade, e apoia causas
nacionais, como na participação na Campanha Barbacenense contra o analfabetismo.
3º eixo - Educação libertária. Já neste eixo revela-se um rompimento de Maria
Lacerda com o discurso republicano. Nesse momento, se sobressaem as influências do
espiritismo, do feminismo e do anarquismo na sua luta pela escola laica e pela igualdade e
liberdade na educação de meninas e meninas. O papel de educadora se sobressai nesse
terceiro eixo, pois as causas educacionais são defendidas, independente de qualquer forma
política, religiosa ou social.
Dentro desse contexto, a hipótese desse trabalho é a de que o projeto científico para a
educação da infância, formulado por Maria Lacerda de Moura, foi constituído a partir de suas
vivências múltiplas: educadora, intelectual, reformadora social, espírita e libertária.
Os três eixos de análise, bem como as diferentes faces de Maria Lacerda apontadas
acima, são norteadores iniciais para uma investigação mais ampla, mas que, nesse momento,
ajudam a identificar a sua posição enquanto pessoa que se propunha a produzir
conhecimentos científicos sobre a infância.
As relações de “poder”, “saber” e “verdade” identificadas no interior do requerimento
e dos seus pareceres, bem como a sua atuação em diferentes vertentes, produz variados
discursos que se dispersam, mas que, ao final, compõem um plano de projeto que é
justamente o de caracterizar a infância para, depois, poder lidar com ela, seja delimitando seu
alcance, seja definindo medidas para atuar sobre ela.
REFERÊNCIAS
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i
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julgamento, a compreensão, a imaginação e o raciocínio do indivíduo (GOULD, 1990).
ii
Dentro das categorias criadas dentro desse intervalo podemos citar: idiota, imbecil, débil mental, fronteiriço,
retardado, inteligente, esperto, supranormal, etc. (MONARCHA, 2009).
iii
Responsável por formar professores da rede pública de ensino do Estado de Minas Gerais, a Escola de
Aperfeiçoamento de Professores, criada pela Reforma do Ensino de Minas no ano de 1927, foi responsável por
propagar discursos científicos direcionados à educação da infância, mormente os discursos médico e da
psicologia. Dirigidos para a prática docente e as formas de educação da infância, tais discursos buscavam
legitimar os métodos científicos aplicados à educação na escola mineira, disseminando as “modernas” ideias
educacionais produzidas na época, embasadas, principalmente pelo movimento da escola nova (PRATES, 2000).
13
iv São exemplos desses estudos: CAMPOS, 1992a, 1992b, 2003; GOULARD, 1985; VIEIRA, 2008, entre
outros.
v
O ineditismo da fonte pode está relacionado à sua localização dentro do Arquivo Público Mineiro. O mesmo se
encontra em meio a uma documentação volumosa e não especificada na catalogação do Fundo da Instrução
Pública, o que pode ter dificultado o acesso de pesquisadores que já realizaram trabalhos sobre Maria Lacerda de
Moura.
vi
Assim como o que funcionou no Rio de Janeiro, sob a direção de Manuel Bonfim, o Pedagogium de
Barbacena se constituía em um espaço de pesquisas e divulgação de estudos psicológicos no meio educacional
(LOURENÇO FILHO, 1955, MONARCHA, 1999).
vii
A Liga Barbacenense de Combate ao Analfabetismo foi primeira a se organizar no Brasil em apoio ao projeto
nacional da LBCA (Liga Brasileira de Combate ao Analfabetismo).
viii
Instituição de assistência ao lactante pobre, a quem é feita a distribuição gratuita de leite.
ix
Filha de pai espírita e maçom, Maria Lacerda de Moura inicia uma trajetória de combate à influência da Igreja
católica sobre o ensino e as relações familiares e sociais na sua cidade, se tornando assumidamente anticlerical
(LEITE, 2005).
x
Na produção escrita de Maria Lacerda destacam-se: “Em torno da Educação” (1918), “Renovação” (1919), “A
fraternidade na escola” (1922), “A mulher hodierna e o seu papel na sociedade” (1923), “A mulher é uma
degenerada?” (1924), “Lições da Pedagogia” (1925), “Religião do amor e da beleza” (1926), “De Amundsen a
Del Prete” (1928), “Civilização, tronco de escravos” (1931), “Amai-vos e não vos multipliqueis” (1932),
“Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me, denuncio” (1933), “Han Ryner e o amor no plural”
(1933), “Clero e Fascismo, horda de embrutecedores” (1933), “Fascismo – filho dileto da Igreja e do Capital”
(1933) e “O Silêncio” (1944), além de diversos artigos publicados em jornais nacionais e estrangeiros.
xi
Maria Lacerda de Moura realizou palestras em vários países da América do Sul, entre eles Argentina e
Uruguai. Também teve sua literatura reconhecida e artigos publicados na Espanha.
xii
Em 1937, com o advento do Estado Novo, Maria Lacerda é perseguida e se refugia em Barbacena. No entanto,
a população da sua cidade a hostiliza novamente, fazendo com que ela se mudasse novamente, agora para o Rio
de Janeiro, local em que viveu até a sua morte, em 1945, aos 57 anos de idade (LEITE, 1984).
xiii
Cabe frisar que o período posterior a 1921, que se destaca pelo envolvimento mais nítido de Maria Lacerda
com o feminismo e o anarquismo em São Paulo, não será investigado. Contudo, as fontes produzidas por ela
durante esse período poderão ser consultadas em função dos interesses da atual pesquisa, como, por exemplo, as
quatro teses defendidas por ela no I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado no Rio de Janeiro no
ano de 1922.
xiv Colégio de ordem religiosa, fundado no ano de 1895.
xv Fundada em 1893, a Escola Normal de Barbacena era de administração municipal e equiparada à Escola
Normal da capital mineira.
xvi
Dentro desse elenco de estudiosos destacados pela professora, alguns são mais conhecidos, como Alfred Binet
(1857-1911), psicólogo e pedagogo francês conhecido como o inventor dos testes de inteligência; Théodore
Simon (1872-1961), psicólogo colaborador de Binet na primeira escala de medida de inteligência e seu sucessor;
Édouard Claparède (1873-1940), psicólogo suíço que se dedicou aos estudos do desenvolvimento infantil; e
outros não tão conhecidos na literatura brasileira atual como Angelo Mosso (1846-1910), médico italiano
interessado nos estudos experimentais dos fenômenos fisiológicos; Paul Godin (1857-1935), médico militar
francês, fundador da ciência do crescimento da criança; Stanley Hall (1844-1924), pioneiro, nos Estados Unidos,
no estudo do desenvolvimento da criança e da psicologia educacional; Sikorsky (1842-1919), psiquiatra e
professor na Universidade de Kiev, especialista em patologia mental em crianças e fundador de uma instituição
para crianças com retardo mental. Com relação à Mlle. Goteiko, ainda não foram encontradas informações.
xvii
A fala da professora ainda precisa ser analisada tendo em vista que, já no ano de 1914, foi inaugurado o
laboratório de psicologia da Escola Normal Caetano de Campos, em São Paulo. A princípio, é possível
considerar que é improvável que Maria Lacerda desconhecesse a existência e as ações desenvolvidas no
laboratório, haja vista que era estudiosa do assunto e acompanhava as pesquisas de Ugo Pizzoli (1863-1934),
médico psicologista responsável por implantar tal laboratório na Escola Normal Caetano de Campo, tornando
real o sonho do diretor da referida instituição, Oscar Thompson: tornar a pedagogia científica. Assim, é preciso
analisar o projeto da professora mineira, identificando, dentre outras hipóteses, se sua proposta era diferenciada
e, por isso considerada por sua autora como pioneira.
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Cronologia da documentação: 11 de Maio de 1919: Requerimento enviado pela professora de Barbacena à
Secretaria do Interior; 28 de junho de 1919: 1º parecer expedido pela Secretaria do Interior; 26 de julho de
1919: 2º parecer expedido pela Secretaria do Interior; 03 de outubro de 1919: 3º parecer expedido pela
Secretaria do Interior de Minas Gerais; 14 de janeiro de 1920: 4º parecer expedido pelo Inspetor Regional da
cidade de Barbacena; 07 de novembro de 1920: 5º parecer expedido pela Secretaria do Interior; 09 de
novembro de 1920: 6º e último parecer expedido pela Secretaria do Interior.
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A pesquisa e análise de toda a documentação estão sendo realizadas através do meu projeto de doutorado
intitulado: Maria Lacerda de Moura e o estudo científico da criança patrícia (1908-1921).
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a historia da escolarizacao da infancia em minas gerais