O ENSINO PROFISSIONAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: UM ESTUDO SOBRE DUAS EXPERIÊNCIAS. Helena Ibiapina Lima Universidade Católica de Petrópolis PROEDES/UFRJ 1. O contexto histórico do período Este trabalho busca resgatar uma parcela da história do ensino profissional brasileiro no século XIX, mais especificamente em sua segunda metade, através do relato de experiências desenvolvidas com crianças carentes envolvendo meninas no Nordeste e meninos no Rio de Janeiro. Verificou-se a possibilidade de reconstrução dessa história a partir dos registros de ambas as experiências publicados em livros, capítulos de livros, artigos em revista e dissertações de mestrado, relacionado-os ao contexto, no período estudado, no que se refere à economia, à política monetária, à renda per capita, à concentração de renda, ao crescimento populacional e aos problemas de organização social. Para tanto, levou-se em conta a observação de Cardoso & Brignoli, ao ressaltar que “... o estudo da evolução das sociedades demonstra a existência de certos setores e elementos da realidade social, caracterizados por uma estabilidade e uma permanência relativas e extremamente variáveis. (...) A diferentes configurações estruturais pressupõem conjunturas diferenciais, características de diferentes sistemas; e o efeito cumulativo das variações conjunturais pode produzir mudanças estruturais, quer dizer, pode conduzir a novos estados de equilíbrio relativo qualitativamente diferentes” (1981, p. 58). Postan, por sua vez, esclarece que “não se pode alcançar uma generalização sociológica a partir de um único fato ou processo. A possibilidade de generalizar implica, pois, a comparação”(apud, Cardoso & Brignoli, 1981, p. 411). A atitude comparativa pode ser aplicada, com resultados significativos, em trabalhos monográficos. Um estudo de caso adquire densidade, desde que se tenha o cuidado de vinculá-lo a uma tipologia que possa demostrar suas singularidades, localizando as diferenças, buscando os fatores determinantes e fixando as regularidades manifestadas entre os processos observados (Cardoso & Brignoli, 1981). No sentido de recuperar a história é importante lembrar a opinião emitida por alguns dos seus cronistas. José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1835, traçou um diagnóstico sobre o Brasil, em que expressava um conceito pouco lisonjeiro sobre seus habitantes. Julgava-os preguiçosos, indolentes e ignorantes, atribuindo todo o problema ao clima e aos vícios coloniais. Segundo ele “a educação política e religiosa de mãos dadas com as leis e costumes, seus filhos”, transformariam em heróis de valor o desleixado brasileiro (Silva, 1998, p. 7). Para que tal acontecesse, afirmava, seria necessário que a heterogênea população do país fosse transformada em um conjunto homogêneo no sentido racial, cultural, legal e cívico. Numa percepção mais recente, um pensador como Caio Prado Junior observou que a sociedade brasileira, em princípios do sec. XIX, era constituída de pessoas que: vegetavam miseravelmente em locais afastados da civilização (índios, caboclos, escravos e brancos fugidos); se encostavam em algum senhor poderoso em troca de pequenos serviços, nas cidades e sobretudo no campo e finalmente vagavam ao léu de forma incômoda, nociva, ociosa, turbulenta e numerosa procurando formas de sobreviver e muitas vezes enveredando pelo crime. Estes desocupados constituíam, no campo, os bandos que se colocavam a serviço dos poderosos. Nas cidades eram mais perigosos, pois não encontravam quem os apoiasse na sua belicosidade (2000, p. 290-291). Complementando essa colocação, na ótica da geografia econômica, Celso Furtado (1998), assinala que na segunda metade do século XIX, a economia brasileira parecia haver alcançado uma significativa taxa de crescimento. Era constituída por três setores: o primeiro representado pela economia do açúcar, do algodão e pela zona de economia de subsistência do Nordeste; o segundo formado pela economia de subsistência do Sul e o terceiro, tendo como centro a economia cafeeira do Sudeste. Segundo o censo de 1872, a população do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe representava a terça parte do país, distribuindo-se no litoral onde exercia atividades ligadas à exportação, e no interior, às atividades de subsistência. Por essa época ficou clara a pressão demográfica sobre terras agricolamente aproveitáveis. Na região compreendida pelos Estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo observou-se a ocorrência de grandes movimentos demográficos em conseqüência da transferência de mão-de-obra das regiões de mais baixa produtividade de café, setor de subsistência, para outras de mais alta produtividade. O inverso teria ocorrido no Nordeste durante a mesma época (Ibid). Importa destacar ainda que, na região Sudeste, surgiram novos núcleos urbanos em conseqüência da instalação da rede ferroviária em 1852, da entrada de imigrantes europeus e do deslocamento do polo cafeeiro para o Vale do Paraíba (Marques, 1996). 2 Quanto à composição demográfica, verificou-se profunda transformação de 1798 a 1872. Os negros livres elevaram sua participação de 12,5% para 42,8%. Quanto aos negros escravizados, quando relacionados aos livres, alcançavam a cifra de 40% na primeira metade do século, diminuindo para 28% em 1872 e chegando aos 10% um ano antes da Abolição (Ibid). A renda per capita da população brasileira era estimada em torno de 50 dólares no início do século XIX, declinando na segunda metade do século, particularmente quando foram incluídos os escravos. Houve sempre, nas regiões referidas, uma tendência à concentração de renda influenciada pelas etapas de prosperidade impostas pelos produtos agrícolas de maior significado em ambas regiões – no Nordeste o açúcar e no Sudeste o café. Crescendo os lucros mais que os salários ou estabilizando os últimos, observou-se que a participação dos lucros tendeu para o aumento no total da renda territorial (Furtado, 2000). Entre 1880 e 1889, diminuiu a quantidade de circulação do papel-moeda, enquanto o movimento de importações e exportações crescia. Considerando que nesse período o sistema de escravidão foi substituído, permitindo a entrada no país de 200 mil imigrantes, julgou Celso Furtado (2000) que o sistema monetário brasileiro seria inadequado para uma nova perspectiva econômica baseada, então, em trabalho assalariado. O governo encontrava dificuldade para encaminhar, com firmeza, a solução do problema de mão-de-obra. Em conseqüência ampliou-se o conflito de interesses entre as regiões Sul e Nordeste do país. As necessidades de ação administrativa, no campo dos serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional e da organização bancária, por exemplo, entre as duas regiões, adquiriram dimensões significativamente diferenciadas. Para Celso Furtado (2000) o Governo Imperial, sob a liderança de políticos ligados principalmente aos interesses escravistas, foi incapaz de administrar esse problema. O fator decisivo para a estruturação da aprendizagem de ofícios, de acordo com Santos (2000), foi o Projeto de Lei sobre a Instrução Pública, em 1826, estabelecendo a organização do ensino público no país, em todos os níveis de escolarização. A Lei, aprovada em 1827, incluía conteúdos obrigatórios para meninos (desenho) e meninas (costura e bordado). O aumento da produção manufatureira na primeira metade do século XIX, junto a essa estruturação de ensino deram origem, por sua vez, à organização de sociedades civis objetivando amparar órfãos, bem como à oferta de aprendizagem das artes e ofícios. O Seminário de São Joaquim, cujo início dos trabalhos data de 1798, representou o primeiro abrigo de cunho profissionalizante preocupado em integrar o menor à sociedade, assim como às raízes de uma crença, ainda contemporânea, de que a profissionalização 3 poderia equacionar o problema. O menor parecia seguir uma trajetória de problema humano a social reconhecido, a partir do século XVIII, quando era visto como ato de caridade do poder público (Silva, 2001). A partir da segunda metade do século XIX, menores órfãos, pobres ou desvalidos1, eram utilizados como força de trabalho nos Arsenais de Guerra e da Marinha. A aprendizagem de um ofício era vista, mais um vez, como obra de caridade destinada a ampará-los. A partir de 1840 foram criadas ainda, pelos presidentes de províncias, as Casas de Educandos Artífices cujo objetivo era amparar os órfãos em vez de instruí-los profissionalmente. Essa instrução dar-se-ia nos Arsenais ou em oficinas particulares (Cunha, 1979). Em 1851, na Província do Pará, um colégio destinado a recolher meninas pobres e desvalidas, ensinava costura, bordado, confecção de flores, de enfeites e artes de recreação. Posteriormente, através de um regulamento de 1870, era previsto que: “ nos lugares onde não houver escola pública para meninas, nem particulares, o professor público que for casado poderá ensinar, mediante uma gratificação, a certo número de meninas fora das horas regulares, incumbindo sua mulher de ensinar-lhes a costurar (Moacyr, 1942, p. 9) Na Província do Amazonas, instituída em 1852, foi organizada ainda em 1873 uma instituição para menores desvalidos, principalmente de origem indígena, cujo currículo envolvia, para as meninas: costura, bordado, confecção de flores e enfeites; e para os meninos: música, oficina de alfaiate, sapateiro, carpinteiro, torneiro, charuteiro e de chapéus. O relatório de uma visita realizada por um observador estrangeiro a uma escola de meninas no Maranhão, em 1860, observava que: “Não tratam de educar estas infelizes meninas como colegiais, ainda que recebam a instrução elementar, leitura, escrita e cálculo, mas a lhes dar uma situação que lhes permita ganhar honradamente a vida. Ensinam-lhes muitos ofícios; (...) a música e o manejo de alguns instrumentos; enfim uma escola de desenho, anexa ao instituto, completa a educação delas. Uma disciplina perfeita e um asseio escrupuloso reinam em todo o estabelecimento. (...) Ficamos extremamente surpreendidos, porque a ordem e os cuidados minuciosos na casa não são virtudes brasileiras. É o efeito do trabalho dos escravos (...). Os dormitórios espaçosos eram frescos e bem arejados (...). No andar superior acha-se a enfermaria, grande e bela sala bem ventilada ... ” (Ibid, p. 11). No Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, em visitas realizadas pelos presidentes das Províncias às instituições denominadas Casa dos Educandos Artífices observou-se uma experiência tímida, com poucos resultados concretos e exclusivamente dirigida a crianças 1 Aquele que não tem valor, sem valia, desprotegido, desamparado, miserável etc. 4 carentes do sexo masculino, enfrentando sérios problemas de manutenção por falta de recursos financeiros (Moacyr, 1942). Em 1836, criou-se um colégio de artes mecânicas, no Rio de Janeiro, para órfãos do sexo masculino. Alguns parâmetros foram estabelecidos para seu funcionamento: não podia exceder de 100 o número de matriculados, bem como não poderia admitir escravos mesmo que seus proprietários se comprometessem a cobrir as despesas com educação. Dez anos depois, um relatório do Presidente do município da Corte declarava que “as artes mecânicas seriam de grande vantagem nas escolas com caráter de colégios nas cidades e vilas” (Ibid, p. 28). O relatório de um comissário do governo imperial (Antônio Gonçalves Dias), inspecionando escolas nas Províncias do Norte, na década de 1850, observava entretanto que “O aprendizado de ofícios mecânicos entre nós só não é humilhante em alguns estabelecimentos gerais ou provinciais: nos particulares os escravos aplicandose aos mesmos misteres, arredam as pessoas livres que teriam de ombrear com eles. Para os educandos artífices já não será pequeno embaraço, quando, vencida a primeira dificuldade, entrem na vida e a cada passo se encontrem com os escravos, que exercem todas ou a maior parte das profissões manuais” (Ibid, p. 47). O Imperial Liceu de Artes e Ofícios, criado na Corte em 1858, propunha além dos cursos profissionais e comerciais dirigidos ao sexo masculino, aulas para o sexo feminino. Em 1883 estavam matriculadas 537 meninas. O Congresso de Instrução, reunido na Corte no mesmo ano, sugeria a instituição de estabelecimentos de liceus de artes e ofícios, nos moldes da experiência do Rio de Janeiro, nas demais cidades onde houvesse alguma atividade industrial. Nesse mesmo Congresso, o Engenheiro André Rebouças – reportando-se à educação popular – declarava que seria importante “ dar um vasto edifício, com parque e jardim, para a seção do Liceu dedicado ao sexo feminino e à infância proporcionando os meios para criação de oficinas das artes mais adequadas à mulher” (Ibid, p. 31). Tornava-se clara, e de forma crescente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, principalmente com o fim do tráfico de escravos em 1850, seguido da Lei do Ventre Livre em 1871 e finalmente com a Abolição em 1888. Se as atividades manuais até então eram encaradas como degradação da existência, a partir do momento em que os homens livres passassem pelas “escolas do trabalho”, uma grande parcela da população sem profissão conhecida ou definida deveria ser retirada da vadiagem (Marques, 1996). Importa destacar, entretanto, que o atendimento e as condições dos abrigos existentes a essa época, considerando-se os índices demonstrados essa tese de Medicina defendida em 5 1855 (Ibid), eram muito abaixo do esperado, inclusive para a sobrevivência dos menores, como se pode visualizar no quadro 1 que apresenta o problema no município da Corte. Quadro 1 Dados sobre falecimento de menores atendidos em abrigos Cidade Anos de estudo Matriculados Ingressos Total Falecidos Rio de Janeiro 1852 - 1853 70 560 630 515 Rio de Janeiro 1853 – 1854 53 552 605 462 Rio de Janeiro 1854 -1855 76 528 604 275 Com índices de mortalidade variando de 82%, 76% e 45% percebe-se também, através dos dados de ingresso razoavelmente equilibrados, que a mortalidade teve um decréscimo de quase 50%, o que poderia indicar um crescimento na qualidade das condições dos abrigos ou uma diminuição na propagação de doenças na região (Silva, 2001). 2. As Casas de Caridade do Nordeste. A partir de 1862 – especificamente nas antigas províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí – foram instituídos, por um sacerdote o Padre Ibiapina, 22 colégios denominados Casas de Caridade, buscando um ideal de trabalho e fé, duplicando um apostolado pela religião e pela educação. Com tenacidade, o sacerdote organizou uma obra de assistência e educação, a fim de curar o operário e preparar para fins domésticos a mulher pobre dos sertões (Mariz, 1942, p. 4). O padre Ibiapina criou as Casas de Caridade sem qualquer ajuda do poder público, “numa região imensa, … longe dos centros eclesiásticos da época e de toda a vida organizada da sociedade brasileira do tempo” (Comblin, 1984, p.15). Percebeu que, juntando a energia dos camponeses espalhados pelo sertão, era possível ampliar-lhes as esperanças. As escolas, os hospitais edificados mostraram-se superiores aos que o governo construíra. O trabalho era sempre realizado em mutirão, contando com materiais locais e com a colaboração de todos (ibid, p. 13). As províncias onde foram instaladas as Casas representavam 7,07% do território brasileiro desenvolvendo, à época, um esforço educacional pouco representativo, já que as instituições existentes estavam localizadas nas capitais e/ou nos grandes centros e dificilmente preocupar-se-iam em oferecer ensino público dirigido ao sexo feminino (Mariz, 1942). Essas Instituições congregavam, em cada região, a comunidade cristã, representando pontos de referência, propiciando estrutura e consistência a esse povo privado de amparo por 6 parte de autoridades civis e eclesiásticas, mas capaz de fundar obras e instituições próprias, desenvolvendo-as com seus próprios recursos. Na construção dessas obras, e buscando tornálas produtivas, o Padre Ibiapina soube, como bem observa Comblin, “despertar vocações de centenas de moças” (1984, p. 13) que independente de votos religiosos dirigiram suas atividades para a educação do povo nordestino. As Casas de Caridade recebiam “quem quizesse aprender, além das internas, e acrescendo às letras as prendas e profissões compatíveis com o momento sertanejo”, desenvolvendo um trabalho pioneiro . Essa tarefa foi depois ampliada quando, “Ibiapina teve a preocupação de especializar algumas moças, formando mestras públicas como ele chamava, para facilitar-lhes estado, que queria dizer casamento, e resultava num belo serviço à sociedade e à instrução” (Mariz, 1942, p. 116). Mantinham-se à custa de donativos particulares e recebiam meninas desvalidas e as expostas, dos cinco aos nove anos, além de pensionistas de qualquer idade pagando uma pensão mensal no valor de 12 mil réis em média, como também mulheres para o trabalho2. A todas davam instrução elementar, e ensinavam “os trabalhos próprios do sexo e algumas indústrias, como a de fiar e tecer algodão”. O tratamento recebido não diferia pelo fato de ser órfã, pensionista ou trabalhadora ( Ibid, p. 283/293). O ensino visava facilitar o casamento que era então a chave do problema das mulheres (a instituição assegurava inclusive o dote para as órfãs); visava ainda à profissionalização e trabalhos remunerados. Elas aprendiam a ler, escrever, contar, cozinhar, fiar, tecer, costurar, bordar, fazer sapatos, plantar sementes em tempo certo e fazer chapéu de palha conforme o tipo, a necessidade, a determinação climática e social de cada zona. As meninas pobres do campo adequavam o conhecimento ao contexto de cada região (Ibid, p. 275). As auxiliares de serviços gerais (mulheres do trabalho), nas horas vagas, recebiam aulas de doutrina e leitura. Após uma permanência de cinco anos nas Casas de Caridade, poderiam optar entre a vida religiosa (irmãs de caridade) e o casamento, recebendo aí o mesmo tratamento atribuído às órfãs, incluindo o dote. A disciplina não era rígida se comparada aos padrões da época. Os castigos para meninas e moças ficavam, na maioria das vezes, circunscritos a penitências (jejum e silêncio), restrições de recreio e retirada de distintivos nos trajes (Ibid, p. 253). 2 “A instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos” (Mariz, 1942, p.257). 7 As aulas aconteciam diariamente, de segunda a sábado, no período de seis da manhã às cinco e meia da tarde, contando naturalmente com os intervalos das refeições3 e rezas. As tarefas de limpeza pessoal, corte de unhas e cabelos, assim como banhos eram desenvolvidas toda quinta-feira e domingo. “As suas 22 escolas domésticas, quase todas aos poucos desaparecidas e não substituídas, ainda honrariam qualquer administração pública. …” Não será justo considerar-se atrasada a pedagogia de Ibiapina. Ele não pensou em criar nos sertões a mulher culta e elegante. Seria insensato se fosse além do que estabeleceu nos seus cursos regionais. Não era possível instruir suas órfãs em datilografia, escrituração mercantil e inglês. Nem que se desse ao luxo de uma culinária de bolos açucarados em forma de bicho, de sobrado ou de estatueta” (Ibid, p. 272). Padre Ibiapina sempre esteve preocupado com a qualidade da educação das mulheres, incluindo a formação profissional, o que representava – para a época – uma posição de vanguarda. Em carta, datada de 20 de março de 1875, recomendava “ Convém que teçam muito, bom pano, redes, e pano de cor, e eu receberei tudo isso aqui para ir suprindo o que por outro meio não puder. Convém animar a escola preparando as órfãs para receber a doutrina escolar que a seu tempo estabelecerei lá mandando pessoa habilitada para isso” (Ibiapina, Santa Fé). Analisando o material escrito sobre essas instituições, pode-se inferir que o mais importante é o fato de que foram criadas num contexto de analfabetismo e superstição sertaneja. Para fazer frente a esses problemas, a instrução e a formação da mulher, oriundas do estrato pobre das populações, destacavam-se pela extensão, zelo e originalidade. Em 1878, no final do mês de dezembro, já muito doente, o Padre Ibiapina escreveu sobre os obstáculos enfrentados para manter funcionando algumas dessas Casas de Caridade. Eram reflexões sobre a seca de 1877, onde relatava as agruras causadas pela falta d’água, ocasião em que a roupa era lavada em outra cidade a três léguas de distância e a água para beber era carregada por duas léguas. Relatava também a precariedade de recursos financeiros que o impediam de comprar cargas d’água e alimentos. Padre Ibiapina pressentiu que a Casa de Caridade, enquanto instituição, poderia enfrentar situações críticas após sua morte. Lamentavelmente sua previsão se confirmou. Em 1893, dez anos após seu desaparecimento, a Casa de Santa Fé, a principal instituição educacional idealizada e fundada por ele – onde viveu seus últimos anos – encontrava-se em ruínas. 3 8 horas o almoço, 12 horas o jantar e 19, 30 h. a ceia. 8 Cabe registrar que no interior do Nordeste do Brasil, até 1851, só existia uma escola em Pernambuco voltada para o atendimento de meninas pobres, mas sem qualquer preocupação com o ensino profissional. A obra educacional do Padre Ibiapina, portanto, se destaca pelo fato de oferecer ensino gratuito ao sexo feminino, recebendo quem quisesse aprender leitura, escrita, ofícios domésticos, industriais e agrícolas; como também por procurar formar “mestras públicas”. 3. O Asilo dos Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro. O reconhecimento do valor social da criança, enquanto indivíduo diferenciado, começava a se esboçar, embora ainda estivesse, como aponta Marques (1996, p. 12) à sombra dos adultos, numa trajetória marcada "pela violência, repressão, abandono e por passagens em instituições que, por vezes, contribuíam para o sepultamento da própria infância". No Rio de Janeiro, no bojo da reordenação da visualização da infância ocorrida no Brasil surgiu, em 1874, o Asilo dos Meninos Desvalidos, instituição destinada a atender crianças carentes do sexo masculino, oferecendo educação e instrução profissional. Um Decreto de 1854 fornecera as bases para a reforma do ensino primário e secundário, mencionando explicitamente a criação dessas casas. O ensino compreendia instrução primária, álgebra elementar, geometria e mecânica aplicada às artes, escultura e desenho, música, artes tipográficas, encadernação; ofício de alfaiate, carpinteiro, marceneiro, torneiro, funileiro, ferreiro e sapateiro. Foi nesse estabelecimento onde, pela primeira vez a educação popular exerceu um duplo papel: ensino profissional aos deserdados e controle/disciplina dessa parcela da população. Pelo primeiro regulamento não seriam admitidos os que sofressem de moléstias contagiosas ou incuráveis, ou os que tivessem defeitos físicos. Todos deveriam estar vacinados contra varíola e se adquirissem, durante a permanência na instituição, doenças infecto-contagiosas, seriam tratados fora dela. Ainda pelo regulamento, recebiam um enxoval ao ingressar e ao concluir o ciclo de estudos; deveriam permanecer no Asilo, por três anos, trabalhando nas oficinas. Esse trabalho compulsório tinha um duplo objetivo: obrigar o asilado a fazer uma economia já que, metade do produto do trabalho era depositado na Caixa Econômica, para lhes ser entregue no final do período e cobrir as despesas realizadas com os demais asilados. O Jornal do Comércio, em edital publicado dia 16 de novembro de 1873, chamava a atenção para a qualidade das instalações onde se observava a presença de banheiro com água encanada, pomar com árvores frutíferas, terreno com hortas, além de ambiente arejado e 9 limpo. O serviço de limpeza, copa, refeitório, capina do pomar e horta era feito pelos asilados em turmas que se revezavam em escalas quinzenais. O Asilo abrigou em suas dependências, nos primeiros anos, menores de seis a doze anos, negros libertos e brancos, em estado de profunda pobreza. Destinava-se a moralizar a população pobre, vadia e miserável através do trabalho e da disciplina4. Depois de matriculados só poderiam ser excluídos por mau procedimento, por inaptidão para os ofícios, ou por conclusão dos estudos. No resgate de experiências brasileiras mais recentes será oportuno destacar, entre outras, a Escola Parque da Bahia e o Programa de Formação Integral da Criança de São Paulo. Em relação à primeira, o grande educador Anísio Teixeira, quando Secretário de Educação e Saúde da Bahia (1947-1951), inaugurou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, cujo objetivo era oferecer educação integral à criança ao longo de cinco anos de estudo, num dia completo de atividades – das 8 às 16 horas. Ao ensino básico habitual somava-se a educação para o trabalho através de cursos de trabalhos manuais, artes industriais e educação física. Os melhores mestres em suas especialidades, por vezes residentes no próprio bairro da Escola, iniciavam as crianças nos ofícios de alfaiate, sapateiro, marceneiro, tecelão e pintor. Havia ainda atividades artísticas (artes plásticas, dança e teatro), sociais (cooperativa, correio, etc.) e de artesanato onde se ensinava a manipular o sisal e o couro. A escola se destacava das demais já que “a claridade, a luminosidade, os coloridos e, principalmente a música que tocava sem parar”, a colocava em um mundo diferente (Jean, 1959). Enfim, era uma escola que encarava de maneira realista o problema da infância abandonada lhes garantindo a formação como seres humanos úteis a si mesmos e à sociedade. Lamentavelmente, em virtude talvez de seu elevado custo, a experiência não pôde ser generalizada na rede pública do Estado da Bahia. Mais tarde, na virada do século XX, precisamente de 1986 a 1993, o Estado de São Paulo implementou, entre suas políticas públicas, o Programa de Formação Integral da Criança (PROFIC), no qual a escola era concebida como uma instituição responsável pela instrução, bem como pelo cuidado da infância que lhe havia sido confiada. A permanência de crianças carentes na escola estaria expandindo as condições de melhor desempenho na aprendizagem, iniciando-a nas atividades artísticas e recreativas; protegendo-a da violência, do desamparo circunstancial, da doença, da fome e da pobreza. Evidenciou-se nesse projeto, mais uma vez, o caráter assistencialista. O processo de 4 Poderiam ser aplicadas penas de advertência; repreensão; privação de recreio, de passeio, de mesa; prisão sem prejuízo do estudo e trabalho e expulsão. 10 implementação, obstaculizado por conflitos entre Secretarias do Estado e enfrentando de um lado resistências e de outro adesões generosas, não conseguiu, entretanto, se concretizar permanecendo difuso durante sua vigência. 4. Em síntese. Importa observar, a título de conclusão que, embora as estratégias educacionais utilizadas com menores marginalizados se sustentassem em pilares diferenciados ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, buscando fundamentação ética e legal de regeneração moral da infância desvalida e de cuidados com a saúde, objetivavam, de fato, tornar estas crianças mais maleáveis ou passíveis de incorporação ao contexto social. O ensino profissional, na realidade, assumiu um caráter que ultrapassou a regeneração e a reprodução da força de trabalho, sendo entendido como uma concessão que buscava o controle e a disciplina das classes subalternas. Se a relação entre o senhor e escravo baseava-se na violência, a relação entre senhor e homens livres foi mediatizada pelo favor (Marques, apud Schwarz, 1996, p. 21). Referências Bibliográficas ARAÚJO, F. S. Padre Ibiapina : peregrino da caridade. São Paulo: Paulinas, 1996. CARDOSO, C. F. e BRIGNOLI, H. P. Os Métodos da História. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª ed., 1981. COMBLIN, J. Instruções espirituais do Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 1984. CUNHA, L. A. O ensino de ofícios manufatureiros em arsenais, asilos e liceus. Fórum, Rio de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 3-47, jul./ set. 1979. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 27ª ed. São Paulo: Cia Editora Nacional; Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro). 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