O ENSINO PROFISSIONAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX:
UM ESTUDO SOBRE DUAS EXPERIÊNCIAS.
Helena Ibiapina Lima
Universidade Católica de Petrópolis
PROEDES/UFRJ
1. O contexto histórico do período
Este trabalho busca resgatar uma parcela da história do ensino profissional brasileiro
no século XIX, mais especificamente em sua segunda metade, através do relato de
experiências desenvolvidas com crianças carentes envolvendo meninas no Nordeste e
meninos no Rio de Janeiro.
Verificou-se a possibilidade de reconstrução dessa história a partir dos registros de
ambas as experiências publicados em livros, capítulos de livros, artigos em revista e
dissertações de mestrado, relacionado-os ao contexto, no período estudado, no que se refere à
economia, à política monetária, à renda per capita, à concentração de renda, ao crescimento
populacional e aos problemas de organização social. Para tanto, levou-se em conta a
observação de Cardoso & Brignoli, ao ressaltar que
“... o estudo da evolução das sociedades demonstra a existência de certos
setores e elementos da realidade social, caracterizados por uma estabilidade e
uma permanência relativas e extremamente variáveis. (...) A diferentes
configurações estruturais pressupõem conjunturas diferenciais, características
de diferentes sistemas; e o efeito cumulativo das variações conjunturais pode
produzir mudanças estruturais, quer dizer, pode conduzir a novos estados de
equilíbrio relativo qualitativamente diferentes” (1981, p. 58).
Postan, por sua vez, esclarece
que “não se pode alcançar uma generalização
sociológica a partir de um único fato ou processo. A possibilidade de generalizar implica,
pois, a comparação”(apud, Cardoso & Brignoli, 1981, p. 411).
A atitude comparativa pode ser aplicada, com resultados significativos, em trabalhos
monográficos. Um estudo de caso adquire densidade, desde que se tenha o cuidado de
vinculá-lo a uma tipologia que possa demostrar suas singularidades, localizando as diferenças,
buscando os fatores determinantes e fixando as regularidades manifestadas entre os processos
observados (Cardoso & Brignoli, 1981).
No sentido de recuperar a história é importante lembrar a opinião emitida por alguns
dos seus cronistas. José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1835, traçou um diagnóstico sobre
o Brasil, em que expressava um conceito pouco lisonjeiro sobre seus habitantes. Julgava-os
preguiçosos, indolentes e ignorantes, atribuindo todo o problema ao clima e aos vícios
coloniais. Segundo ele “a educação política e religiosa de mãos dadas com as leis e
costumes, seus filhos”, transformariam em heróis de valor o desleixado brasileiro (Silva,
1998, p. 7). Para que tal acontecesse, afirmava, seria necessário que a heterogênea população
do país fosse transformada em um conjunto homogêneo no sentido racial, cultural, legal e
cívico.
Numa percepção mais recente, um pensador como Caio Prado Junior observou que a
sociedade brasileira, em princípios do sec. XIX, era constituída de pessoas que: vegetavam
miseravelmente em locais afastados da civilização (índios, caboclos, escravos e brancos
fugidos); se encostavam em algum senhor poderoso em troca de pequenos serviços, nas
cidades e sobretudo no campo e finalmente vagavam ao léu de forma incômoda, nociva,
ociosa, turbulenta e numerosa procurando formas de sobreviver e muitas vezes enveredando
pelo crime. Estes desocupados constituíam, no campo, os bandos que se colocavam a serviço
dos poderosos. Nas cidades eram mais perigosos, pois não encontravam quem os apoiasse na
sua belicosidade (2000, p. 290-291).
Complementando essa colocação, na ótica da geografia econômica, Celso Furtado
(1998), assinala que na segunda metade do século XIX, a economia brasileira parecia haver
alcançado uma significativa taxa de crescimento. Era constituída por três setores: o primeiro
representado pela economia do açúcar, do algodão e pela zona de economia de subsistência do
Nordeste; o segundo formado pela economia de subsistência do Sul e o terceiro, tendo como
centro a economia cafeeira do Sudeste.
Segundo o censo de 1872, a população do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe representava a terça parte do país,
distribuindo-se no litoral onde exercia atividades ligadas à exportação, e no interior, às
atividades de subsistência. Por essa época ficou clara a pressão demográfica sobre terras
agricolamente aproveitáveis. Na região compreendida pelos Estados do Espírito Santo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo observou-se a ocorrência de grandes movimentos
demográficos em conseqüência da transferência de mão-de-obra das regiões de mais baixa
produtividade de café, setor de subsistência, para outras de mais alta produtividade. O inverso
teria ocorrido no Nordeste durante a mesma época (Ibid).
Importa destacar ainda que, na região Sudeste, surgiram novos núcleos urbanos em
conseqüência da instalação da rede ferroviária em 1852, da entrada de imigrantes europeus e
do deslocamento do polo cafeeiro para o Vale do Paraíba (Marques, 1996).
2
Quanto à composição demográfica, verificou-se profunda transformação de 1798 a
1872. Os negros livres elevaram sua participação de 12,5% para 42,8%. Quanto aos negros
escravizados, quando relacionados aos livres, alcançavam a cifra de 40% na primeira metade
do século, diminuindo para 28% em 1872 e chegando aos 10% um ano antes da Abolição
(Ibid).
A renda per capita da população brasileira era estimada em torno de 50 dólares no
início do século XIX, declinando na segunda metade do século, particularmente quando
foram incluídos os escravos. Houve sempre, nas regiões referidas, uma tendência à
concentração de renda influenciada pelas etapas de prosperidade impostas pelos produtos
agrícolas de maior significado em ambas regiões – no Nordeste o açúcar e no Sudeste o café.
Crescendo os lucros mais que os salários ou estabilizando os últimos, observou-se que a
participação dos lucros tendeu para o aumento no total da renda territorial (Furtado, 2000).
Entre 1880 e 1889, diminuiu a quantidade de circulação do papel-moeda, enquanto o
movimento de importações e exportações crescia. Considerando que nesse período o sistema
de escravidão foi substituído, permitindo a entrada no país de 200 mil imigrantes, julgou
Celso Furtado (2000) que o sistema monetário brasileiro seria inadequado para uma nova
perspectiva econômica baseada, então, em trabalho assalariado.
O governo encontrava dificuldade para encaminhar, com firmeza, a solução do
problema de mão-de-obra. Em conseqüência ampliou-se o conflito de interesses entre as
regiões Sul e Nordeste do país. As necessidades de ação administrativa, no campo dos
serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional e da organização
bancária, por exemplo, entre as duas regiões, adquiriram dimensões significativamente
diferenciadas. Para Celso Furtado (2000) o Governo Imperial, sob a liderança de políticos
ligados principalmente aos interesses escravistas, foi incapaz de administrar esse problema.
O fator decisivo para a estruturação da aprendizagem de ofícios, de acordo com
Santos (2000), foi o Projeto de Lei sobre a Instrução Pública, em 1826, estabelecendo a
organização do ensino público no país, em todos os níveis de escolarização. A Lei, aprovada
em 1827, incluía conteúdos obrigatórios para meninos (desenho) e meninas (costura e
bordado). O aumento da produção manufatureira na primeira metade do século XIX, junto a
essa estruturação de ensino deram origem, por sua vez, à organização de sociedades civis
objetivando amparar órfãos, bem como à oferta de aprendizagem das artes e ofícios.
O Seminário de São Joaquim, cujo início dos trabalhos data de 1798, representou o
primeiro abrigo de cunho profissionalizante preocupado em integrar o menor à sociedade,
assim como às raízes de uma crença, ainda contemporânea, de que a profissionalização
3
poderia equacionar o problema. O menor parecia seguir uma trajetória de problema humano a
social reconhecido, a partir do século XVIII, quando era visto como ato de caridade do poder
público (Silva, 2001).
A partir
da
segunda
metade do século XIX,
menores órfãos, pobres
ou
desvalidos1, eram utilizados como força de trabalho nos Arsenais de Guerra e da Marinha. A
aprendizagem de um ofício era vista, mais um vez, como obra de caridade destinada a
ampará-los. A partir de 1840 foram criadas ainda, pelos presidentes de províncias, as Casas de
Educandos Artífices cujo objetivo era amparar os órfãos em vez de instruí-los
profissionalmente. Essa instrução dar-se-ia nos Arsenais ou em oficinas particulares (Cunha,
1979).
Em 1851, na Província do Pará, um colégio destinado a recolher meninas pobres e
desvalidas, ensinava costura, bordado, confecção de flores, de enfeites e artes de recreação.
Posteriormente, através de um regulamento de 1870, era previsto que: “ nos lugares onde não
houver escola pública para meninas, nem particulares, o professor público que for casado
poderá ensinar, mediante uma gratificação, a certo número de meninas fora das horas
regulares, incumbindo sua mulher de ensinar-lhes a costurar (Moacyr, 1942, p. 9)
Na Província do Amazonas, instituída em 1852, foi organizada ainda em 1873 uma
instituição para menores desvalidos, principalmente de origem indígena, cujo currículo
envolvia, para as meninas: costura, bordado, confecção de flores e enfeites; e para os
meninos: música, oficina de alfaiate, sapateiro, carpinteiro, torneiro, charuteiro e de chapéus.
O relatório de uma visita realizada por um observador estrangeiro a uma escola de
meninas no Maranhão, em 1860, observava que:
“Não tratam de educar estas infelizes meninas como colegiais, ainda que
recebam a instrução elementar, leitura, escrita e cálculo, mas a lhes dar uma
situação que lhes permita ganhar honradamente a vida. Ensinam-lhes muitos
ofícios; (...) a música e o manejo de alguns instrumentos; enfim uma escola de
desenho, anexa ao instituto, completa a educação delas. Uma disciplina perfeita
e um asseio escrupuloso reinam em todo o estabelecimento. (...) Ficamos
extremamente surpreendidos, porque a ordem e os cuidados minuciosos na casa
não são virtudes brasileiras. É o efeito do trabalho dos escravos (...). Os
dormitórios espaçosos eram frescos e bem arejados (...). No andar superior
acha-se a enfermaria, grande e bela sala bem ventilada ... ” (Ibid, p. 11).
No Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, em visitas realizadas pelos presidentes das
Províncias às instituições denominadas Casa dos Educandos Artífices observou-se uma
experiência tímida, com poucos resultados concretos e exclusivamente dirigida a crianças
1
Aquele que não tem valor, sem valia, desprotegido, desamparado, miserável etc.
4
carentes do sexo masculino, enfrentando sérios problemas de manutenção por falta de
recursos financeiros (Moacyr, 1942).
Em 1836, criou-se um colégio de artes mecânicas, no Rio de Janeiro, para órfãos do
sexo masculino. Alguns parâmetros foram estabelecidos para seu funcionamento: não podia
exceder de 100 o número de matriculados, bem como não poderia admitir escravos mesmo
que seus proprietários se comprometessem a cobrir as despesas com educação. Dez anos
depois, um relatório do Presidente do município da Corte declarava que “as artes mecânicas
seriam de grande vantagem nas escolas com caráter de colégios nas cidades e vilas” (Ibid, p.
28).
O relatório de um comissário do governo imperial (Antônio Gonçalves Dias),
inspecionando escolas nas Províncias do Norte, na década de 1850, observava entretanto que
“O aprendizado de ofícios mecânicos entre nós só não é humilhante em alguns
estabelecimentos gerais ou provinciais: nos particulares os escravos aplicandose aos mesmos misteres, arredam as pessoas livres que teriam de ombrear com
eles. Para os educandos artífices já não será pequeno embaraço, quando,
vencida a primeira dificuldade, entrem na vida e a cada passo se encontrem
com os escravos, que exercem todas ou a maior parte das profissões manuais”
(Ibid, p. 47).
O Imperial Liceu de Artes e Ofícios, criado na Corte em 1858, propunha além dos
cursos profissionais e comerciais dirigidos ao sexo masculino, aulas para o sexo feminino. Em
1883 estavam matriculadas 537 meninas. O Congresso de Instrução, reunido na Corte no
mesmo ano, sugeria a instituição de estabelecimentos de liceus de artes e ofícios, nos moldes
da experiência do Rio de Janeiro, nas demais cidades onde houvesse alguma atividade
industrial. Nesse mesmo Congresso, o Engenheiro André Rebouças – reportando-se à
educação popular – declarava que seria importante “ dar um vasto edifício, com parque e
jardim, para a seção do Liceu dedicado ao sexo feminino e à infância proporcionando os
meios para criação de oficinas das artes mais adequadas à mulher” (Ibid, p. 31).
Tornava-se clara, e de forma crescente, a transição do trabalho escravo para o
trabalho livre, principalmente com o fim do tráfico de escravos em 1850, seguido da Lei do
Ventre Livre em 1871 e finalmente com a Abolição em 1888. Se as atividades manuais até
então eram encaradas como degradação da existência, a partir do momento em que os homens
livres passassem pelas “escolas do trabalho”, uma grande parcela da população sem profissão
conhecida ou definida deveria ser retirada da vadiagem (Marques, 1996).
Importa destacar, entretanto, que o atendimento e as condições dos abrigos existentes
a essa época, considerando-se os índices demonstrados essa tese de Medicina defendida em
5
1855 (Ibid), eram muito abaixo do esperado, inclusive para a sobrevivência dos menores,
como se pode visualizar no quadro 1 que apresenta o problema no município da Corte.
Quadro 1
Dados sobre falecimento de menores atendidos em abrigos
Cidade
Anos de estudo
Matriculados
Ingressos
Total
Falecidos
Rio de Janeiro
1852 - 1853
70
560
630
515
Rio de Janeiro
1853 – 1854
53
552
605
462
Rio de Janeiro
1854 -1855
76
528
604
275
Com índices de mortalidade variando de 82%, 76% e 45% percebe-se também, através
dos dados de ingresso razoavelmente equilibrados, que a mortalidade teve um decréscimo de
quase 50%, o que poderia indicar um crescimento na qualidade das condições dos abrigos ou
uma diminuição na propagação de doenças na região (Silva, 2001).
2. As Casas de Caridade do Nordeste.
A partir de 1862 – especificamente nas antigas províncias de Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí – foram instituídos, por um sacerdote o Padre Ibiapina,
22 colégios denominados Casas de Caridade, buscando um ideal de trabalho e fé, duplicando
um apostolado pela religião e pela educação. Com tenacidade, o sacerdote organizou uma
obra de assistência e educação, a fim de curar o operário e preparar para fins domésticos a
mulher pobre dos sertões (Mariz, 1942, p. 4).
O padre Ibiapina criou as Casas de Caridade sem qualquer ajuda do poder público,
“numa região imensa, …
longe dos centros eclesiásticos da época e de toda a vida
organizada da sociedade brasileira do tempo” (Comblin, 1984, p.15). Percebeu que, juntando
a energia dos camponeses espalhados pelo sertão, era possível ampliar-lhes as esperanças. As
escolas, os hospitais edificados mostraram-se superiores aos que o governo construíra. O
trabalho era sempre realizado em mutirão, contando com materiais locais e com a colaboração
de todos (ibid, p. 13).
As províncias onde foram instaladas as Casas representavam 7,07% do território
brasileiro desenvolvendo, à época, um esforço educacional pouco representativo, já que as
instituições existentes estavam localizadas nas capitais e/ou nos grandes centros e dificilmente
preocupar-se-iam em oferecer ensino público dirigido ao sexo feminino (Mariz, 1942).
Essas Instituições congregavam, em cada região, a comunidade cristã, representando
pontos de referência, propiciando estrutura e consistência a esse povo privado de amparo por
6
parte de autoridades civis e eclesiásticas, mas capaz de fundar obras e instituições próprias,
desenvolvendo-as com seus próprios recursos. Na construção dessas obras, e buscando tornálas produtivas, o Padre Ibiapina soube, como bem observa Comblin, “despertar vocações de
centenas de moças” (1984, p. 13) que independente de votos religiosos dirigiram suas
atividades para a educação do povo nordestino.
As Casas de Caridade recebiam “quem quizesse aprender, além das internas, e
acrescendo às letras as prendas e profissões compatíveis com o momento sertanejo”,
desenvolvendo um trabalho pioneiro . Essa tarefa foi depois ampliada quando, “Ibiapina teve
a preocupação de especializar algumas moças, formando mestras públicas como ele
chamava, para facilitar-lhes estado, que queria dizer casamento, e resultava num belo
serviço à sociedade e à instrução” (Mariz, 1942, p. 116).
Mantinham-se à custa de donativos particulares e recebiam meninas desvalidas e as
expostas, dos cinco aos nove anos, além de pensionistas de qualquer idade pagando uma
pensão mensal no valor de 12 mil réis em média, como também mulheres para o trabalho2. A
todas davam instrução elementar, e ensinavam “os trabalhos próprios do sexo e algumas
indústrias, como a de fiar e tecer algodão”. O tratamento recebido não diferia pelo fato de ser
órfã, pensionista ou trabalhadora ( Ibid, p. 283/293).
O ensino visava facilitar o casamento que era então a chave do problema das mulheres
(a instituição assegurava inclusive o dote para as órfãs); visava ainda à profissionalização e
trabalhos remunerados. Elas aprendiam a ler, escrever, contar, cozinhar, fiar, tecer, costurar,
bordar, fazer sapatos, plantar sementes em tempo certo e fazer chapéu de palha conforme o
tipo, a necessidade, a determinação climática e social de cada zona. As meninas pobres do
campo adequavam o conhecimento ao contexto de cada região (Ibid, p. 275).
As auxiliares de serviços gerais (mulheres do trabalho), nas horas vagas, recebiam
aulas de doutrina e leitura. Após uma permanência de cinco anos nas Casas de Caridade,
poderiam optar entre a vida religiosa (irmãs de caridade) e o casamento, recebendo aí o
mesmo tratamento atribuído às órfãs, incluindo o dote.
A disciplina não era rígida se comparada aos padrões da época. Os castigos para
meninas e moças ficavam, na maioria das vezes, circunscritos a penitências (jejum e silêncio),
restrições de recreio e retirada de distintivos nos trajes (Ibid, p. 253).
2
“A instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos” (Mariz, 1942, p.257).
7
As aulas aconteciam diariamente, de segunda a sábado, no período de seis da manhã
às cinco e meia da tarde, contando naturalmente com os intervalos das refeições3 e rezas. As
tarefas de limpeza pessoal, corte de unhas e cabelos, assim como banhos eram desenvolvidas
toda quinta-feira e domingo.
“As suas 22 escolas domésticas, quase todas aos poucos desaparecidas e não
substituídas, ainda honrariam qualquer administração pública. …” Não será
justo considerar-se atrasada a pedagogia de Ibiapina. Ele não pensou em criar
nos sertões a mulher culta e elegante. Seria insensato se fosse além do que
estabeleceu nos seus cursos regionais. Não era possível instruir suas órfãs em
datilografia, escrituração mercantil e inglês. Nem que se desse ao luxo de uma
culinária de bolos açucarados em forma de bicho, de sobrado ou de estatueta”
(Ibid, p. 272).
Padre Ibiapina sempre esteve preocupado com a qualidade da educação das mulheres,
incluindo a formação profissional, o que representava – para a época – uma posição de
vanguarda. Em carta, datada de 20 de março de 1875, recomendava
“ Convém que teçam muito, bom pano, redes, e pano de cor, e eu
receberei tudo isso aqui para ir suprindo o que por outro meio não puder.
Convém animar a escola preparando as órfãs para receber a doutrina
escolar que a seu tempo estabelecerei lá mandando pessoa habilitada
para isso” (Ibiapina, Santa Fé).
Analisando o material escrito sobre essas instituições, pode-se inferir que o mais
importante é o fato de que foram criadas num contexto de analfabetismo e superstição
sertaneja. Para fazer frente a esses problemas, a instrução e a formação da mulher, oriundas
do estrato pobre das populações, destacavam-se pela extensão, zelo e originalidade. Em 1878,
no final do mês de dezembro, já muito doente, o Padre Ibiapina escreveu sobre os obstáculos
enfrentados para manter funcionando algumas dessas Casas de Caridade. Eram reflexões
sobre a seca de 1877, onde relatava as agruras causadas pela falta d’água, ocasião em que a
roupa era lavada em outra cidade a três léguas de distância e a água para beber era carregada
por duas léguas. Relatava também a precariedade de recursos financeiros que o impediam de
comprar cargas d’água e alimentos.
Padre Ibiapina pressentiu que a Casa de Caridade, enquanto instituição, poderia
enfrentar situações críticas após sua morte. Lamentavelmente sua previsão se confirmou. Em
1893, dez anos após seu desaparecimento,
a Casa de Santa Fé, a principal instituição
educacional idealizada e fundada por ele – onde viveu seus últimos anos – encontrava-se em
ruínas.
3
8 horas o almoço, 12 horas o jantar e 19, 30 h. a ceia.
8
Cabe registrar que no interior do Nordeste do Brasil, até 1851, só existia uma escola
em Pernambuco voltada para o atendimento de meninas pobres, mas sem qualquer
preocupação com o ensino profissional. A obra educacional do Padre Ibiapina, portanto, se
destaca pelo fato de oferecer ensino gratuito ao sexo feminino, recebendo quem quisesse
aprender leitura, escrita,
ofícios domésticos, industriais e agrícolas; como também por
procurar formar “mestras públicas”.
3. O Asilo dos Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro.
O reconhecimento do valor social da criança, enquanto indivíduo diferenciado,
começava a se esboçar, embora ainda estivesse, como aponta Marques (1996, p. 12) à sombra
dos adultos, numa trajetória marcada "pela violência, repressão, abandono e por passagens
em instituições que, por vezes, contribuíam para o sepultamento da própria infância".
No Rio de Janeiro, no bojo da reordenação da visualização da infância ocorrida no
Brasil surgiu, em 1874, o Asilo dos Meninos Desvalidos, instituição destinada a atender
crianças carentes do sexo masculino, oferecendo educação e instrução profissional. Um
Decreto de 1854 fornecera as bases para a reforma do ensino primário e secundário,
mencionando explicitamente a criação dessas casas. O ensino compreendia instrução
primária, álgebra elementar, geometria e mecânica aplicada às artes, escultura e desenho,
música, artes tipográficas, encadernação; ofício de alfaiate, carpinteiro, marceneiro, torneiro,
funileiro, ferreiro e sapateiro. Foi nesse estabelecimento onde, pela primeira vez a educação
popular exerceu um duplo papel: ensino profissional aos deserdados e controle/disciplina
dessa parcela da população.
Pelo primeiro regulamento não seriam admitidos os que sofressem de moléstias
contagiosas ou incuráveis, ou os que tivessem defeitos físicos. Todos deveriam estar
vacinados contra varíola e se adquirissem, durante a permanência na instituição, doenças
infecto-contagiosas, seriam tratados fora dela. Ainda pelo regulamento, recebiam um enxoval
ao ingressar e ao concluir o ciclo de estudos; deveriam permanecer no Asilo, por três anos,
trabalhando nas oficinas. Esse trabalho compulsório tinha um duplo objetivo: obrigar o
asilado a fazer uma economia já que, metade do produto do trabalho era depositado na Caixa
Econômica, para lhes ser entregue no final do período e cobrir as despesas realizadas com os
demais asilados.
O Jornal do Comércio, em edital publicado dia 16 de novembro de 1873, chamava
a atenção para a qualidade das instalações onde se observava a presença de banheiro com
água encanada, pomar com árvores frutíferas, terreno com hortas, além de ambiente arejado e
9
limpo. O serviço de limpeza, copa, refeitório, capina do pomar e horta era feito pelos asilados
em turmas que se revezavam em escalas quinzenais.
O Asilo abrigou em suas dependências, nos primeiros anos, menores de seis a doze
anos, negros libertos e brancos, em estado de profunda pobreza. Destinava-se a moralizar a
população pobre, vadia e miserável através do trabalho e da disciplina4. Depois de
matriculados só poderiam ser excluídos por mau procedimento, por inaptidão para os ofícios,
ou por conclusão dos estudos.
No resgate de experiências brasileiras mais recentes será oportuno destacar, entre
outras, a Escola Parque da Bahia e o Programa de Formação Integral da Criança de São Paulo.
Em relação à primeira, o grande educador Anísio Teixeira, quando Secretário de
Educação e Saúde da Bahia (1947-1951), inaugurou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro,
cujo objetivo era oferecer educação integral à criança ao longo de cinco anos de estudo, num
dia completo de atividades – das 8 às 16 horas. Ao ensino básico habitual somava-se a
educação para o trabalho através de cursos de trabalhos manuais, artes industriais e educação
física. Os melhores mestres em suas especialidades, por vezes residentes no próprio bairro da
Escola, iniciavam as crianças nos ofícios de alfaiate, sapateiro, marceneiro, tecelão e pintor.
Havia ainda atividades artísticas (artes plásticas, dança e teatro), sociais (cooperativa, correio,
etc.) e de artesanato onde se ensinava a manipular o sisal e o couro. A escola se destacava das
demais já que “a claridade, a luminosidade, os coloridos e, principalmente a música que
tocava sem parar”, a colocava em um mundo diferente (Jean, 1959). Enfim, era uma escola
que encarava de maneira realista o problema da infância abandonada lhes garantindo a
formação como seres humanos úteis a si mesmos e à sociedade. Lamentavelmente, em virtude
talvez de seu elevado custo, a experiência não pôde ser generalizada na rede pública do
Estado da Bahia.
Mais tarde, na virada do século XX, precisamente de 1986 a 1993, o Estado de São
Paulo implementou, entre suas políticas públicas, o Programa de Formação Integral da
Criança (PROFIC), no qual a escola era concebida como uma instituição responsável pela
instrução, bem como pelo cuidado da infância que lhe havia sido confiada.
A permanência de crianças carentes na escola estaria expandindo as condições de
melhor desempenho na aprendizagem, iniciando-a nas atividades artísticas e recreativas;
protegendo-a da violência, do desamparo circunstancial, da doença, da fome e da pobreza.
Evidenciou-se nesse projeto, mais uma vez, o caráter assistencialista. O processo de
4
Poderiam ser aplicadas penas de advertência; repreensão; privação de recreio, de passeio, de mesa; prisão sem
prejuízo do estudo e trabalho e expulsão.
10
implementação, obstaculizado por conflitos entre Secretarias do Estado e enfrentando de um
lado resistências e de outro adesões generosas, não conseguiu, entretanto, se concretizar
permanecendo difuso durante sua vigência.
4. Em síntese.
Importa observar, a título de conclusão que, embora as estratégias educacionais
utilizadas com menores marginalizados se sustentassem em pilares diferenciados ao longo dos
séculos XVII, XVIII e XIX, buscando fundamentação ética e legal de regeneração moral da
infância desvalida e de cuidados com a saúde, objetivavam, de fato, tornar estas crianças mais
maleáveis ou passíveis de incorporação ao contexto social. O ensino profissional, na
realidade, assumiu um caráter que ultrapassou a regeneração e a reprodução da força de
trabalho, sendo entendido como uma concessão que buscava o controle e a disciplina das
classes subalternas. Se a relação entre o senhor e escravo baseava-se na violência, a relação
entre senhor e homens livres foi mediatizada pelo favor (Marques, apud Schwarz, 1996, p.
21).
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, F. S. Padre Ibiapina : peregrino da caridade. São Paulo: Paulinas, 1996.
CARDOSO, C. F. e BRIGNOLI, H. P. Os Métodos da História. Tradução de João Maia. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2ª ed., 1981.
COMBLIN, J. Instruções espirituais do Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 1984.
CUNHA, L. A. O ensino de ofícios manufatureiros em arsenais, asilos e liceus. Fórum, Rio
de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 3-47, jul./ set. 1979.
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 27ª ed. São Paulo: Cia Editora Nacional;
Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro).
GIOVANNI, G. e SOUZA, A. N. Criança na Escola ? Programa de Formação Integral da
Criança. Educação e Sociedade, CEDES / UNICAMP, Campinas, ano XX, n. 67, p. 70-111,
agosto de 1999.
JEAN, Y. A Escola Parque e o Centro Regional de Pesquisas da Bahia. Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, INEP/MEC, v. 31, n. 74, p. 317-321, abril / jun. 1959.
MARIZ, C. Ibiapina: um apóstolo do nordeste. João Pessoa: A União Editora, 1942.
MARQUES, J. S. Os Desvalidos: O caso do Instituto Profissional Masculino (1894-1910).
Uma contribuição para a História Social da Instituições Educacionais na cidade do Rio
de Janeiro, 1996, 169 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MOACYR, P. A Instrução e a República. Ensino Técnico Industrial (1892-1929) e Ensino
Comercial (1892-1928) . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 6° volume, 1942.
11
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo:
Brasiliense; Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro).
SANTOS, J. A. A trajetória da educação profissional. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO,
L. M. e VEIGA, C. G. (Org). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2000, 608 p.
SILVA, J. B. A. Projetos para o Brasil / José Bonifácio de Andrada e Silva. Miriam
Dolhnikoff (org.). São Paulo: Cia das Letras; Publifolha, 2000 (Grandes nomes do
pensamento brasileiro).
SILVA, P. R. As percepções do “outro” em instituições para menores infratores, 2001,
120 f. Monografia (Graduação em Pedagogia) - Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
12
Download

O ENSINO PROFISSIONAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX