1
O
Ricardo pergunta como anda minha memória.
– A antiga, perfeita. A recente, mais ou menos. Ontem
à noite estava vendo um filme na tevê a cabo e levei meia
hora pra me lembrar do nome do Mel Gibson.
– Continuas dirigindo bem teu carro?
– Sim, estou pensando em vendê-lo pra pagar uma dívida.
– Não tens jeito, Heleno. Na tua idade e continuas jogando.
– Não me distraio no jogo, minhas antenas se ligam
e vou matando a solidão. Sou um cara pesado, como sabes,
mas bom nas cartas. Agora a mão direita começou a tremer,
tenho medo de ser acometido por um parkinsonzinho.
Pede que levante, estique os braços, abra as mãos. Observa-me os movimentos, me aperta o pescoço e dá um suspiro:
– Não tens indício nenhum da doença de Parkinson. É
claro que não tens força de vontade pra largar o cigarro, não é?
– Sempre me perguntas isso, Ricardo. Fumo quando
jogo e bebo.
– Já desististe daquele AA?
– Não tive paciência. Saía de lá com mais vontade de
beber.
– A dipsomania afasta o ser humano de Deus.
– Talvez eu beba pra encontrá-Lo. Estou brincando, não
bebo tanto. Uma dose de uísque, às vezes quatro ou cinco chopes. Quando jogo, não bebo, porque posso me desconcentrar.
–9–
Antônio Carlos Resende
– Que figura, Heleno. Por que não tentas um J. A.?
– Hem?
– Jogadores Anônimos, tu bem sabes. Um paciente
meu já ia vendendo um terceiro apartamento pra pagar dívidas de jogo, foi lá e não joga faz dois anos.
– Amador. Conheço o discurso de antemão. Contam
suas desventuras ao grupo, prometem não mexer em caçaníqueis, cartas, bingos e acabam enchendo o saco dos outros,
dos familiares, com suas neuroses.
– Todo jogador é um neurótico.
– Grande novidade, Ricardo. Se não satisfaço a paixão
do jogo, caio duro.
– Que exagero. A vida tem outras coisas...
– Ias dizer que devo substituir o jogo pelo sexo.
– E não é?
– Até minha neta de sete anos sabe disso. Porra, Ricardo. Administro oito ou nove males e doenças, oitenta anos
nas costas, e queres que corra atrás de mulher? Jogo e mulher
não combinam.
O velho Ricardo, médico da família há anos, me olha
meio desistindo de mim, mas com algum afeto diz:
– Essa mistura de jogo, bebida, cigarro não é característica de um suicidômano?
– Eu sei.
Os dois velhos amigos de cabelos brancos permanecemos em silêncio nos contemplando. Um com piedade do
outro? Invejo esse homem livre de vícios, bom pai e avô, que
continuará existindo na memória de alguns poucos amigos
sobreviventes. Gostaria de haver conseguido essa vida serena, com ordem e religiosidade. Mas como é tarde. Por outro lado, venho reparando que seu olhar, às vezes, se extravia
pela janela à procura sei lá do quê.
– 10 –
Roubai-vos uns aos outros
Sacode a cabeça a expressar que não tenho mais jeito,
e fraternal:
– Heleno, Heleno, velho Heleno, te esforça pra moderar tuas nítidas tendências destrutivas. Bem sabes que no
fundo és um cara bom.
– Eu?!
– Procura o Igor Paulo, o nosso amigo. Não sou neurologista, mas teu tremor não é nada.
Respeito o Ricardo desde os tempos de ginásio e colegial. Era um cara de acompanhar os freis de uma ordem
religiosa pedindo esmolas e distribuí-las aos pobres dos
morros. Sempre o protegi, nem palavrões dizia perto dele,
era consenso entre nós que tinha vocação para a santidade.
Quando me volta à lembrança que passou trabalho para criar
oito filhos e arranjava tempo para socorrer os miseráveis dos
subúrbios como médico, me sobe aos olhos um sentimento
de reverência e digo num tom de lamento:
– Tenho consciência de que estou me destruindo, Ricardo. O jogo se entranhou na minha natureza, é uma necessidade como comer, respirar.
– Não custa nada ir aos jogadores anônimos ou rezar.
– Rezar? Tivesse tua fé! No tempo do colégio seguia
teus passos aos morros esperando que de súbito um resplendor descesse sobre tua cabeça.
– O Heleno sempre com loucuras. Rezei demasiado
por tua alma.
– E não adiantou, não é?
– Ainda tenho esperanças em tua alma, mas acabaste
fazendo carreira de funcionário público de conceito, correto,
e és um homem bom que tem medo de ser bom.
– Ah, não. Conversa de padre e analista não aguento.
Obrigado. Não pago a consulta porque estou duro. Tchau.
– 11 –
Antônio Carlos Resende
– Espera que vou te dar uma amostra de um benzodiazepínico bem fraco. Vai com Deus. Juízo, Heleno.
Entrega-me a amostra grátis e benze-a fazendo uma
cruz com o indicador. Será que estamos enlouquecendo?
– 12 –
2
S
aio enlouquecido atrás de grana para jogar de noite. O
cheque forte está estourado, meu salário quase comprometido. Ao Poker London devo cinco mil, nem posso pensar.
Além disso, três ou quatro jogam para a casa, não gosto.
No American Poker não me conhecem, talvez consiga
dar um cheque para o final do mês. Conheço o gerente de
outros tempos, pode ser que não saiba que estou caindo pelas
tabelas. Aceita um cheque de cinco mil para o fim do mês.
O Zezinho da Tinga, preto forte meu amigo, representante do grande book Hermógenes, sorri que está à minha disposição, com ele sempre tenho crédito, sorri mais uma vez.
O salão está repleto de gente que pouco conheço, a
não ser uma jogadora desesperada, companheira de várias
madrugadas em algumas espeluncas. Tem vaga na sua mesa,
cumprimenta-me com alguma simpatia, deve estar ganhando. A croupière distribui as cartas para oito parceiros. Recebo
um 2 de paus e um 4 de copas. Jogo fora. A croupière, bem
jovem, abre as três cartas no flop: valete, um 4 e um 5. As duas
restantes: um valete e um 4. Que droga. Se arriscasse, podia
ter feito full-hand ou full-house, como cantam agora. O jogo
falou contra mim.
Passo cinco rodadas sem participar.
Nesta mão, recebo um par de 6.
Toda a mesa se mexe. O último parceiro aumentou
para duzentos.
– 13 –
Antônio Carlos Resende
Sou obrigado a cobrir. Os outros fogem.
O parceiro que dobrou esmalta as unhas, fuma com piteira, cabelos negros repuxados para trás com gomalina, o clássico vigarista jogando, acho, para a casa. Vou morrer na luta.
A croupière abre as três cartas iniciais no flop: um 6, um
valete e uma dama de espadas. Bom, trinca já tenho. O cara
tem um par, certo, e se for de valetes ou damas, estou ferrado. Não estradulo, espero.
O jacaré engomado sobe para oitocentos, não fujo.
Uma a uma, abrem-se as cartas finais: um 6 e um valete. Four de 6. Até que um dia! Bico para não espantar. O
outro, com refinada elegância, sem hesitar, empurra oito fichas de duzentos.
O malandro deve ter feito um four de valetes.
Sem tremer, lúcido, sabendo que perdi, pago e abro com
timidez meu mísero par de 6 e me apronto para levantar.
A croupière confere: quatro 6 para o senhor à direita e
três damas para o seu Cipriano.
Agradeço à santidade do Ricardo ter ganho, mas me
censuro por não ter tido peito, coragem, bagos para redobrar
a parada. Velho e ressabiado.
Podia recolher as fichas, resgatar o cheque e ir embora.
Importa nada que me chamem de bicão, pescador. Dou gorjeta para a croupière, pisco para a companheira de espeluncas.
Jogo mais três paradas, levanto, dou boa-noite. Retiro
na caixa o cheque, um bom lucro.
Mal cruzo a porta giratória e um guarda-costas do
Poker London se dirige a mim risonho:
– Boa noite, doutor Heleno, deu uma porrada boa. Não
quer abater um pouco da dívida do nosso London?
– Tudo bem. Me dá um recibo de dois mil.
– 14 –
Roubai-vos uns aos outros
Como o celular funciona ligeiro com essa turma. Não
recrimino ninguém, faço parte da confraria.
Antes de dormir, um comprimido abençoado e penso
na ex-mulher sonhando a esta hora bons sonhos em outro
apartamento, livre do meu cheiro de cigarro, tosse e roncos.
Podíamos estar juntos, mas o maldito jogo, como se
lamentava, teve mais força e nos separou. Te lembras, amada
Clarissa, como me fazias jurar por nossos filhos que nunca
mais eu ia jogar? Te lembras, Clarissa, que te deixei arrumada
para irmos a um casamento e só cheguei às duas da manhã?
E eu perdia e perdia. Até que exigiste, lembras, a separação
dos bens? Vendemos nosso apartamento, compramos dois.
Estamos separados. Era isso que desejávamos? Ah, Clarissa,
que sufoco a velhice solitária!
– 15 –
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ORicardo pergunta como anda minha memória. – A antiga, perfeita