Grupo: Perversões da vida cotidiana na Psicopathologia brasileira Do Jeitão Brasileiro: Como Enquadrar e Queimar Alguém Francisco Martins1 Resumo A oposição entre o chamado ‘jeitinho’ das pessoas do dia a dia e o chamado ‘jeitão’ de exercer o poder por mandatários é estudada aqui em um caso de um político brasileiro. Analisa‐se o ‘jeitão’ brasileiro de ascensão ao poder e manutenção nele custe o que custar para a realização fálica. Apontando‐se a utilização da herança cartorial brasileira é analisada uma seqüência de atos assemelhados à tragédia clássica: o pathos com suas disposições, a criação do nó com seus protagonistas e o desenlace. Quatro momentos são analisados em relação a teoria psicanalítica das perversões no caso de um político em ascensão: O confronto, A armação, O enquadramento e O desenlace. Estes diversos momentos são cotejados com a teoria da castração e sua execução no ‘jeitão’ brasileiro de exercer e se manter no poder. Palavras Chaves: Psicopatologia, Perversão, Linguagem Ordinária Ave Lange!: poderia ser esta a saudação para um dos mais excelentes homens e duradouros políticos formados no Brasil. Um atleta, nadador olímpico, filho da primeira geração de emigrantes belgas francofônicos, tão bem sucedido como advogado quanto na sua ascensão como cartola suprasúmico. Possivelmente o maior e mais articulado de todos os dirigentes até o momento: ainda hoje, Presidente Honorário da FIFA, o mundo futebolístico se comporta nas concepções e processos por ele engendrados. Bastante medalhado, mas pouco reconhecido pelos seus compatriotas. A desconfiança brasileira para com os bem-sucedidos talvez tenha contribuído bem como o semblante e comportamento sisudo o de Havelange. Um patriarca que antes teve que ser um herói atravessando conflitos na seara das lutas como advogado, convivendo e tratando no cotidiano com bajulações subservientes até difamações ressentidas e invejosas da sua direção imperial dos esportes, futebol brasileiro e da FIFA2. Profundamente brasileiro Havelange sabe como lidar com as coisas da política com o chamado ‘jeitinho’ brasileiro. Trataremos aqui, não do quebra-galho ou da mãozinha que um trabalhador é obrigado a fazer no seu desempenho não somente no Brasil mas everywhere: give me a hand, let´s beat the bush; vamos a manetear; l´art de bricollage ou até do clássico debrouillez vous avec le moyens du bord. Reduzindo algo à importância do jeitinho malandro ou não apontaremos algo mais percutidor posto que decisivo no fazer a história. Trataremos aqui do jeitão brasileiro de lidar com o poder. 1 Professor Titular na Universidade de Brasília, Médico Psiquiatra, Psicanalista, Psicólogo. Os dados aqui apresentados estão na biografia feita por Ernesto Rodrigues, Jogo Duro – A História de João Havelange, São Paulo – Rio de Janeiro, Record, 2007 que foi lida pelo biografado. 2 A posição por ele assumida não ocorreu por acaso. É fruto de suas qualidades como sujeito fiel às suas amizades, à sua família, aos seus compromissos assumidos como questão de honra, ao trabalhador incessante nas articulações. Seu sucesso foi fruto também do entendimento refinado da arte advocatícia e entendimento de como proceder no jogo político diário. Arregimentar forças, poder, acalmar sua claque conduzindo seus cooperadores com firmeza confiável, capacidade de armar estratégias refinadas. A estratégia envolve a tática com seus estratagemas e a técnica de lidar pessoalmente com situações impossíveis de tratar para o homem comum de todos os dias que não dispõe dos meios e da ousadia de tomar para si empreitadas de ordem mundial. Sua estratégia geral é movida pelo desejo de ser campeão em geral. Seria isto tão diferente de outros jogadores que se querem manter no ápice de uma pirâmide de poder que só admite um Rei, um Papa, um César, um Presidente, um João Havelange? Sempre um só no cume. Esta é a marca indicativa da organização edipiana da sociedade mundial em processo. O futebol não foge a regra. Ainda que possa ser reconhecido um falicismo autocrático em Havelange como sua tendência geral, deve ser de imediato apontado que isso é obtemperado por uma fineza no trato com a legalidade, coisa que toca as suas táticas e que desce ao detalhe de sua habilidade de lidar com seres e pedras no seu caminho em direção ao topo e manutenção em equilibrismo sentado na cadeira de Presidente quase permanente do futebol. Trataremos aqui tão somente de um detalhe de sua arte de bem driblar ou de dar a volta nos adversários para alcançar o poder e realizar seus ideais que sempre foram do mais alto quilate. Na arte política o caminho mais curto entre dois pontos é no mínimo uma curva: Havelange ganharia até de Didi. Como jogador no campo político Havelange é campeão na arte do contorno, fazendo isto tanto trabalhando o mundo de regras quanto a realidade efetiva material articulada com as regras que tocam. Com contorno e com confronto no tempo, lugar e a investidura da pessoa certa. Ás vésperas da Copa de 82 – Espanha escontra-se na difícil situação de ter prometido ingressos aos representantes dos países e ter recebido tickets comuns incompatíveis na sua visão de anfitrião e responsável cuidador dos membros. Dirige-se ao responsável e comunica que os ingressos eram inadequados e não estavam conforme o carnê de encargos que indica com clareza qual o tipo de acomodação merecida por um delegado. __ É o que tenho3, respondeu-lhe por duas vezes Antonio Saporta, chefe do comitê organizador do campeonato, mesmo tendo Havelange reiterado e explicitado antes que eram ingressos na frente da tribuna. Havelange foi até a porta, trancou-a e guardou a chave no bolso dizendo direta e sem nervosismo: __ Enquanto não vierem os novos ingressos, nem o senhor nem eu sairemos desta sala. E eu quero lhe dizer que eu agüento até 72 horas sem dormir, sem comer, sem beber e sem ir à toalete. E o senhor vai morrer por que não vai agüentar. 3 Op. cit., p. 257-258. Emendaríamos à fala confrontativa explicitada, “... sem ir à toalete”, com o implícito “... e sem medo de escândalo”. O destemor do Presidente da FIFA para lidar com o possível escândalo é notório. O homem neurótico comum seria açulado de temor e tremores: Havelange não. Dias depois os beneficiários dos ingressos que Havelange arrancou de Saporta o aclamaram Presidente da FIFA, sem terem noção do esforço hercúleo tanto na macroscopia quanto na microscopia política feita. Havelange estava ciente da sua melhor posição face ao potencial escândalo: a FIFA tem papel mais de controle e supervisão cabendo ao comitê do país sede a responsabilidade da organização. Importante que o Dr. João Havelange não explicita este óbvio a Saporta. Sorrimos agora o vendo se gabar dos seus poderes físicos e capacidades de “ficar sem” dormir, comer, defecar... caso os ingressos devidos não aparecessem. Sem comércio, sem gozo, no tempo de decisão, Havelange guarda para si a chave da única porta de saída que é dar o que ele quer. Sua jactância é acompanhada com desvio dos seus poderes altos para o poder particular das suas capacidades de autocontrole e autolimitação (castração). A jactância só ajuda na pressão que sofre Saporta para liberar os ingressos e então sair da prisão imposta pelo agora cobrador-mor da FIFA. Um paradoxo parece emergir. A atuação de Havelange tudo bloqueando – pessoa, espaço e até o tempo - com o significante ingresso: ninguém ingressava nem egressava mais da sala, caso o objeto que permitiria o gozo dos delegados não saísse das mãos de Saporta. Havelange aqui se utiliza do regulamento que o protege no possível escândalo para garantir o seu prazer final também. Escândalo, desejo, presidência, poder, ameaça ficam subentendidos no significante ingresso. Dito no não dito implícito o desejo irrenunciável de se manter na investidura de forma completa. Nem sempre Havelange esteve na posição de gerir seus domínios de investimento fazendo cobrança. De toda maneira jogar a lei, a situação contra o adversário que impede seu fruir é-lhe sistemático. Agora, apontaremos não mais um jogo significante, mas a manipulação da realidade em si, no caso a superlotação da tribuna de honra do Maracanã. Novamente a posse de ingressos torna-se o pomo da discórdia. Havelange se dirige ao encarregado do Maracanã e solicita seus ingressos de direito. Este diz estar com Rafael de Almeida Magalhães, principal secretário de Carlos Lacerda, Governador do Estado da Guanabara em 1963. Havelange deseja seus ingressos para distribuí-los como oferenda especial. Descobre que os ingressos estão de posse do secretário. Tenta recuperá-los e nada consegue. O que ele artificia? Como tinha meios para imprimir os ingressos, João Havelange ordena a produção de mais uma provisão de ingresso de maneira que ele pode distribuir seus mimos, mas só que agora de maneira a ‘zonear’ a festa. Quando o governador chegou para assistir ao jogo recuou pasmado, deu meia volta ao ver a tribuna lotada (114 convidados para 57 cadeiras) e com um torcedor aboletado no seu lugar. Ao chamar Havelange para dar explicações sobre o pardieiro formado, Lacerda ouviu a resposta: “Eu tinha a tribuna, nós tínhamos um acordo e me fizeram isso.” 4 Lacerda, visando acalmar e não instigar víboras na sua cozinha disse para Rafael não se meter mais entre ele e Havelange. Dias depois Havelange se retirou do serpentário que se formava saindo de um cargo que não precisava. 4 Op. cit., p. 77-78. A engenhosidade não deve impedir de apontarmos um aspecto saliente nos dois exemplos ditos de “confusão por ingressos”. Havelange uma vez de posse de uma posição e das repercussões legais atua sempre levando a regra ao pé da letra radicalmente e sem subterfúgios. Ao mesmo tempo providencia para que a realidade se mova contra o adversário: a tribuna de honra do Maracanã lotada de populares impedindo que o governador sentasse e o trancafiamento da chave da porta no seu bolso impedindo qualquer possibilidade de fuga e enrolação. A castração, ainda que por via de manigância, deve ser executada para garantir o posto apical: regra havelangeana número 1. Escoladíssimo no Brasil é eleito Presidente da FIFA depois de passar anos garantindo os votos de países mundo afora. Um esforço ciclópico em que a visão era uma só: atingir o cimo inimaginável para o imaginário subdesenvolvido do Brasil sempre no sopé, mas, totalmente exeqüível para quem foi Presidente da CBD – Campeã do Mundo três vezes. Por que não? João Havelange não sofria de complexo de ‘vira-latas’. Seu Supereu não foi feito para ser colonizado. Ao contrário, o colonizador agora é Havelange. Stanley Rous, um Sir inglês, que parecia ter uma relação de fidalguia com o cargo, como se os direitos de presidência tivessem sido ganhos por herança monárquica era o seu oponente. Não havia eleições antes, tão somente aclamações. Enfrentou um homem novo acostumado a troca de promessas, de conluios e da arte de dar a volta e colocar os inimigos em má situação na política duríssima: para os amigos tudo, para os inimigos as penas da lei e a sanha. Os inimigos por vezes teriam que enfrentar armações tipo os casos de ingressos relatados. Outra maneira é a utilização de um terceiro jogado contra um segundo, confrontante direto. Este se confronta não com Havelange, mas com outrem. Regra 2 havelangeana: se a castração pode ser feita por outrem, por que não se poupar? O confronto Foi assim que depois de vencer a eleição João Havelange encontrou a FIFA sem dinheiro e comandada pelo secretário geral da época, Helmüt Käser. Este nada fez para facilitar a vida do novo presidente. Havelange teve que ‘cozinhá-lo’, gerenciar europeus enfezados com ele por todos os lados e mudar a estrutura da casa e até comprar uma nova sede. Dois bicudos se encontraram e a guerra fria não faria Havelange renunciar. Nem Käser seria um renunciador. Certamente uma das jogadas mais bem arquitetadas foi o modo como se livrou do incômodo secretário, um inimigo vivendo dentro da própria casa. Dois grandes procedimentos algo comuns na politicagem brasileira emergiram para efetivar de vez o brasileiro não mais como Sir, mas como o morubixaba do futebol. Morubixaba: Chefe temporal das tribos indígenas brasileiras: “Demais, rei do Eldorado, ou soba numa cubata zanzibarita, rei-sol ou morubixaba, à sua dignidade lhe seriam indispensáveis os prejuízos e percalços da investidura tradicional e divina” (Alberto Rangel, Lume e Cinza, p. 114). [O espiritual é o pajé (q. v.). Var. e sin.: murumuxaua, muruxaua, tubixaba, tuxaua, cacique, curaca.] Usamos o lexema tupi tão somente para afirmar a universalidade, mutatis mutandis para 5 cada cultura, deste tipo de procedimento no conflito tipo vale-tudo que se torna a busca pelo poder e sua posse permanente. Regra havelangeana 3: se necessário for adiar a castração que assim seja. A armação Havelange impoluto, hirto e majestático, adotando uma filosofia digna dos filósofos cínicos, voltou-se estritamente para a eficácia do negócio. Käser era um pedregulho maior que o Monte Branco na sua caminhada atravessando os Alpes. Um outro alemão, Hermann Neuberger, serviu-lhe de apoio para alavancar a defenestração de Käser feita pelo Comitê Executivo em 1981. Neuberger, mesmo sendo seu opositor inicial foi amaciado com apoio para constituir-se chefe do comitê que gerenciava as copas. A amizade por Käser perdeu para a máquina de ‘enquadrar’ que era Havelange. Em reação a uma solicitação administrativa de Havelange Käser escreve-lhe uma carta ferina dizendo que Havelange não tinha direito de solicitar que as cartas fossem numeradas e que ele se intrometia nas suas funções de Secretário-Geral de maneira indevida. A carta era mais um atestado de impossibilidade de convivência daquela dupla em divórcio dentro da casa do futebol. Havelange passou a carta a Neuberger, antes lhe dizendo que caso fosse reeleito ele continuaria no comando que estava e pediu a opinião de Neuberger6. __ __ Se fosse o meu secretário, já estava na rua. O que é que o senhor me aconselha, então? __ O senhor distribua cópias desta carta a todos os membros do Comitê Executivo e apenas observe o que vou fazer. O enquadramento Käser percebeu ser o terceiro excluído da cena dramática que se confinava no tempo e no espaço tal uma final de Copa do Mundo. Tenta se introduzir no cenário decisório dizendo querer fazer parte como secretário, que isso está no estatuto da instituição. A luta passa a ser feita pela leitura ao pé da letra do estatuto. Ler ao pé da 5 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, que corresponde à 3ª. edição, 1ª. impressão da Editora Positivo, revista e atualizada do Aurélio Século XXI, O Dicionário da Língua Portuguesa, 2004. 6 Op. cit., p. 244-247. letra e encontrar uma interpretação saia-justa eficaz parte do daîmon administrativo do Dr. Advogado Presidente. Esta é a sua especialidade. O Secretário está virando amanuense. Percebe o fogo do purgatório que se encontrava quando, pior ainda, escuta a mutilação enquadradora: __ O Senhor não vai assistir porque não há nada que diga respeito à ordem do dia. O senhor ficará do lado de fora. Castrado a frigori, Käser não viu a labareda da sua demissão infernal ser acendida por Neuberger na reunião – ‘Senhores, acho isso um absurdo. Se continuar assim, não teremos como administrar a FIFA. O senhor Käser deve sair da FIFA’ - e aceita pelos membros do comitê executivo. Em seguida a oposição cerrada dos membros, em especial os europeus, foi toda se mudando para o céu que Havelange queria, todos o aclamando e aceitando sua presidência anos seguidos até 1998, quando fez seu sucessor Blatter, justo o secretário que Havelange já queria na época. O esvaziamento da empatia amiga para uma frieza total, tratando o outro como um qualquer, um desconhecido antipático, um estranho estrangeirado. Esvaziamento do investimento da pessoa de Käser, de autoridade investida de importância para serventuário, tornando-o um indivíduo e finalmente um lugar descrito em um estatuto frio. A eupatia (paciência) de Havelange continha muita sanha contra Käser. Contendo a sua própria disposição afetiva (pathos) Havelange não explodiu, armadilhou o outro, servindo-se do desejo de terceiro (Neuberger). A paciência nem sempre é símbolo de paz, mas de não explicitação do pathos. A biografia de Ernesto Rodrigues multiplica os exemplos da ardileza em driblar homens e estatutos dentro do folclore de Havelange. A resposta a Käser, excluindo-o da reunião é típica do uso do detalhe do detalhe da regra do condomínio, agora da situação de contexto – Havelange poderia muito bem estar pensando, ‘não é mais uma reunião que o secretário seja necessário, entendo mais do regulamento que você, sua fala está cassada’ – enquadrando Käser. Enquadrar tem sua especificidade castratória. A operação de enquadramento é o encaixe jurídico do sujeito no tamanho estreito e exato daquilo que o regulamento indica. Ocorre também que a autoridade pode interpretar reduzindo a um mínimo que lhe interessa o posto de trabalho do funcionário. De Secretário Executivo para funcionário Käser e finalmente barnabé K. é um passo demolidor e desqualificativo no escarneamento em movimento. ‘Você só fala do lugar que lhe é dado, senão lhe castro aí mesmo!’: este é o ensinamento que tiramos do exame de pacientes assolados pela castração enquadratória dentro de organizações como o exército, a igreja, os hospitais. Quarta regra castratória havelangeana: use o regulamento e seus detalhes para efetivar a castração. A herança cartorial latino-ibérica, a cultura de rábulas infiltrada no dia a dia desde a colônia, passando pelos Senhores do café, infiltrada nas oligarquias e no neocolonialismo modernizado, destemperando os pequenos tuxauas da terra e mantendo milhões na escravidão e na miséria, não desempregna fácil. Existiria país no mundo que ensinaria a arte de enquadrar alguém melhor que o Brasil? Talvez sim, mas seria reivindicar um traço que a humanidade subserviente em geral não elogia para si, mas que reconhece como presente partout. O faz na guerra, repugnando e admirando em um só tempo as artimanhas volta e meia ressentidas pelos perdedores como luciferinas. Parece um jeitinho. Mas, como é para seres apicais e poderosos, acaba sendo um jeitão.