A ADMISSIBILIDADE COMO MEIO DE PROVA EM PROCESSO DISCIPLINAR
DAS MENSAGENS DE CORREIO ELECTRÓNICO ENVIADAS E RECEBIDAS POR TRABALHADOR
A PARTIR DE E NA CAIXA DE CORREIO FORNECIDA PELA ENTIDADE EMPREGADORA
EVENTUAL DEFINIÇÃO DE LINHAS ORIENTADORAS PELA JURISPRUDÊNCIA
“As novas tecnologias da informação invadiram a vida das nossas
sociedades, incluindo o mundo laboral, trazendo consigo uma vasta
gama de benefícios na área da informação e da comunicação, mas
também riscos e perigos vários, nomeadamente no que respeita a
direitos da personalidade.”
Esta afirmação, a que sem dúvida adiro, não é minha, mas sim do douto
acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Julho de 2007, uma das
decisões que irei em seguida comentar.
Acrescento e sublinho, no entanto, que os riscos e perigos vários inerentes a
estas novas tecnologias são também sentidos e suportados, em grande
medida, pela entidade empregadora.
O correio electrónico é um meio fácil e rápido de comunicação – mas também
uma fonte, fácil e rápida, de entrada e saída de informações da empresa, e de
prática de ilícitos laborais/ nomeadamente de prática de actos de concorrência
desleal e de fuga de informação privilegiada.
E, por essa razão, um tema que recorrentemente surge na prática de advocacia
laboral é o da legitimidade de acesso às mensagens de correio electrónico,
entradas e saídas do endereço de correio posto à disposição pela entidade
empregadora, e da utilização dessas mensagens como meio de prova de
infracção no correspondente processo disciplinar, ou judicial de impugnação da
sanção aplicada.
Refiro-me especificamente à sua utilização como meio de prova, porque é
esse o meu interesse principal nesta análise, embora na maioria das vezes, não
seja possível separar o correio electrónico como meio de prova, do seu
conteúdo como base, objecto, da própria acção disciplinar e fundamento de
aplicação da sanção.
1
As dúvidas com que se depara o empregador quando o principal, ou mesmo o
único meio de prova ao seu dispor quanto à prática de uma infracção são
mensagens de correio electrónico, levou-me a percorrer a jurisprudência
disponível, e a tentar encontrar linhas orientadoras, na interpretação e aplicação
do disposto no artigo 22º do Código do Trabalho (artigo 21º na versão de 2003)
A doutrina já é abundante, mas como decidem os tribunais?
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2007
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007 – o único
acórdão do Supremo que consegui detectar sobre este tema específico, faz uma
análise detalhada e abrangente da doutrina ao tempo disponível sobre a
matéria, e define algumas regras básicas.
Neste acórdão apreciou-se o despedimento de uma trabalhadora com base no
conteúdo de um mail por ela enviado do seu endereço profissional para o
endereço profissional de outra colega, em que eram feitos comentários jocosos
sobre o teor de uma reunião em que a trabalhadora despedida participara, e
sobre os superiores hierárquicos também presentes nessa reunião.
Na ausência, em férias, da pretendida destinatária, o mail foi lido por outro
trabalhador (que a ele podia também legitimamente aceder) e que dele deu
conhecimento ao conselho de administração, daí resultando o despedimento da
trabalhadora, por se considerarem os comentários produzidos como ofensivos e
violadores das obrigações laborais.
Antes de analisar se os comentários produzidos integravam pela sua gravidade e
consequências o conceito de justa causa, o Supremo teve que se debruçar sobre
a admissibilidade de acesso pela entidade empregadora ao conteúdo específico
daquele mail, e à sua eventual protecção pelo direito de reserva e confidencialidade das mensagens de natureza pessoal.
Desta análise o Supremo Tribunal de Justiça concluiu:
1. Não ser o facto de os meios informáticos pertencerem ao empregador que
afasta a natureza privada da mensagem e legitima este a aceder ao seu
conteúdo,
2. Não resultar da simples circunstância de os intervenientes se referirem a
aspectos da empresa que a comunicação passa a assumir natureza
profissional,
2
3. A definição de natureza particular da mensagem obtém-se por contraposição à natureza profissional da comunicação, relevando para tal, antes
de mais a vontade dos intervenientes, ao postularem, de forma expressa
ou implícita, a natureza profissional ou privada das mensagens que
trocam,
4. Assim, a falta de referência prévia, expressa e formal da “pessoalidade”
da mensagem não afasta a tutela legal,
5. A tutela legal e constitucional da confidencialidade da mensagem pessoal
e a consequente nulidade da prova obtida com base na mesma, impede
que o envio da mensagem com aquele conteúdo possa constituir o objecto
do
processo
disciplinar
(decidindo,
a
final,
pela
ilicitude
do
despedimento).
Resulta deste acórdão que a linha que separa as mensagens de natureza
privada, protegidas de acesso e
utilização pelo empregador,
do correio
profissional seria:
(i)
a vontade expressa ou tácita dos intervenientes quanto a essa
natureza
(ii)
vontade essa que, quando reconhecida, se sobrepõe à ausência de
classificação expressa da mensagem como pessoal, e acrescentarei, no caso concreto, ao facto de a mensagem versar sobre a vida
da empresa.
Na situação em apreciação a utilização da mensagem como meio de prova
dificilmente se separa da análise do seu conteúdo enquanto fundamento do
despedimento,
e
creio
que
essa
“confusão”
terá
sido
determinante
nas
conclusões apontadas.
Mas permito-me comentar, se, na verdade, muitas vezes o meio de prova
coincide com o objecto de análise, noutras creio que a decisão do julgador sobre
a gravidade do seu conteúdo para efeitos de aplicação de sanção é confundida,
com o devido respeito, erradamente, com a relevância da sua natureza pessoal
para efeito da admissão como prova.
De registar que o tribunal não considerou relevante, ou pelos menos não o fez
de forma expressa, a existência de prévia regulamentação pelo empregador da
utilização privada do endereço de correio electrónico pelos seus trabalhadores.
Neste ponto não seguiu à letra, na minha opinião bem, a posição defendida por
sector significativo da doutrina e pela própria Comissão Nacional de Protecção
3
de Dados, em 29 de Outubro de 2002, no documento em que enuncia os
Princípios sobre Privacidade no Local de Trabalho.
Por outro lado, interessa reter a ideia de que a vontade dos intervenientes na
definição (expressa ou implícita) da natureza profissional ou privada das
mensagens que trocam é que irá determinar essa classificação, com as inerentes
consequências.
Deverá ser assim?
Vejamos outra decisão, já não do Supremo, mas da Relação de Lisboa
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/06/2008
Em 5 de Junho de 2006, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, debruçouse sobre a decisão de suspensão do despedimento de um trabalhador, repórter
fotográfico, com fundamento no envio a partir do endereço de mail profissional,
de seis fotografias pertencentes à entidade patronal, para outra empresa de
comunicação social, que as veio a publicar.
Foram apresentados como meio de prova, mails do trabalhador despedido, não
identificados como tendo natureza privada; e cujos assuntos, “Fotos da posse de
__”, “Fotos”, “Visita a __”, bem como os destinatários (empresa de comunicação
social) não sugeriam tratarem-se de mensagens alheias à vida profissional, bem
pelo contrário.
A Relação confirmou a suspensão do despedimento, decidindo pela invalidade
probatória do correio electrónico, concluindo, em suma que:
1. O envio de mensagens de pessoa a pessoa preenche os pressupostos da
correspondência privada
2. Resulta do artigo 21º do CT (decisão proferida antes da 1ª revisão do
Código do Trabalho) que se mostram vedadas ao empregador intrusões
ao conteúdo das mensagens de natureza não profissional, incluindo-se
nessa protecção o correio electrónico
3. Todavia, o empregador pode estabelecer, nomeadamente através de
regulamentos internos, regras de utilização dos meios de comunicação e
das tecnologias de informação manuseadas na empresa, por exemplo
impondo limites, tempos de utilização, acessos ou sítios vedados aos
trabalhadores
4
4. Não se provando que o empregador tenha emitido quaisquer instruções
no sentido de proibir o uso privado do correio electrónico ou de que o
mesmo
deveria
ser
inequivocamente
classificado,
distinguido
como
profissional ou pessoal ou até que tenha criado um endereço electrónico
para uso exclusivamente profissional e um outro para utilização meramente pessoal do trabalhador, não se tendo feito, pois essa prova, o
empregador não poderá licitamente abrir as mensagens dirigidas ou
enviadas pelo trabalhador.
Decorre desta decisão, a assumpção de que não existindo regras ou limitações
impostas pelo empregador sobre a utilização privada do endereço de mail
profissional, não é lícito presumir que toda a correspondência nele recebida ou
dele enviada é de natureza profissional.
Ou, dito de outra forma, parece resultar do acórdão que, na ausência de
regulamentação, sempre se presumirá que toda a correspondência é privada,
nem se admitindo, como neste caso, a prova em contrário, após análise do seu
conteúdo.
Ao contrário do caso discutido no acórdão anteriormente citado, neste caso é
fácil distinguir entre o relevo probatório do mail, e a gravidade dos actos
praticados pelo trabalhador despedido. Não duvido que, caso fosse possível à
entidade empregadora provar os mesmos factos por outra via, se estaria
perante uma justa causa de despedimento.
Por essa razão, parece-me difícil aceitar que, tendo um trabalhador utilizado o
mail fornecido pela empresa para praticar actos que, na minha opinião,
configuram claramente a violação do dever de lealdade, e de tal modo que esse
correio tem como assunto matéria que ninguém pode deixar de qualificar como
profissional, não possam ser utilizados como meio de prova.
Acórdão da Relação de Lisboa, de 30 de Junho
Já em 2011, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 30 de Junho, vem, na minha
opinião estabelecer, de forma emblemática, um ANTES e um DEPOIS no
tratamento jurisprudencial desta matéria.
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Neste acórdão decidiu-se, também, sobre admissibilidade como meio de prova
em acção de impugnação de despedimento, de mensagens de mail enviadas e
recebidas pelo trabalhador despedido, e que a entidade empregadora alegou ter
praticado, de forma continuada, actos de concorrência desleal, nomeadamente
negociando por conta e interesse próprio, desviando negócios e clientes para
empresas por si controladas, utilizando em seu proveito informações da
entidade empregadora bem como a actividade de outros trabalhadores da
mesma.
Para prova dos factos, a empresa juntou reprodução total e parcial do conteúdo
de e-mails retirados da caixa de correio electrónico por si facultada ao
trabalhador, requerendo, ainda, depoimento de parte sobre o conteúdo desses
mesmos mails.
O trabalhador contrapôs que se tratavam de mensagens de natureza pessoal,
portanto abrangidas pelo direito de reserva e confidencialidade, não podendo o
seu conteúdo ser considerado, nem sobre ele produzida prova por depoimento
de parte (cujo objecto desapareceria).
A Relação de Lisboa aceitou quer a reprodução dos mails, quer a produção de
depoimento de parte sobre os mesmos. Note-se que esta aresto decidiu apenas
e tão só sobre a admissão da prova, e não sobre o fundo da causa.
Aspecto de profundo interesse neste acórdão é o facto de o Tribunal ter sentido
muito marcadamente o conflito, ou drama, da entidade empregadora que toma
conhecimento
de
factos
de
extrema
gravidade
praticados
por
um
seu
trabalhador, e que se pode ver impedida de promover o seu despedimento (ou
aplicação de uma sanção), por o único ou principal meio de prova serem os
mails recebidos ou enviados por esse trabalhador, mesmo que em, e de,
endereço electrónico fornecido pela própria entidade empregadora.
No acórdão o Tribunal considerou estar-se perante dois direitos em aparente
conflito:
Por um lado, o direito à prova, constitucionalmente consagrada no artigo 20º, nº
1 da Constituição da República Portuguesa, como componente do princípio geral
do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado para a defesa dos
seus direitos e interesses legalmente protegidos, e,
Por outro, o direito de reserva e confidencialidade, previsto no artigo 22.º do
Código do Trabalho, que protege direitos pessoais como o direito à reserva da
vida provada consagrado no artigo 26º da lei fundamental.
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O acórdão considerou que a contraposição dos dois interesses em jogo deve ser
dirimida com prevalência do princípio do interesse preponderante, segundo um
critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
Em seguida, o acórdão, recorrendo à “teoria das três esferas”, procedeu à
sistematização das três dimensões na personalidade humana e de relação
pessoal, e que são:
(i)
a vida íntima, que compreende os gestos e actos que, em absoluto
devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem, concernentes não
apenas ao estado do sujeito, enquanto separado do grupo, mas também a certas relações sociais, totalmente protegida
(ii)
a vida privada, que engloba os acontecimentos que cada individuo
partilha com um número restrito de pessoas, tão-só, relativamente
protegida, e que pode ter de ceder, no caso concreto, perante outros
interesses ou bens, e
(iii)
a vida pública, que, correspondendo a eventos susceptíveis de serem
conhecidos por todos, respeitam à participação
de cada um na vida
da colectividade.
Concluindo que a tutela da intimidade da vida privada apenas inclui a primeira,
isto é, a esfera da vida íntima.
No caso sob apreciação, podia-se retirar, quer da visualização dos endereços,
quer da identificação dos assuntos, quer do conteúdo dos correios, que não se
tratavam de mensagens de natureza pessoal, mas de mensagens que tratavam
de assuntos profissionais.
Tendo todo o exposto em consideração, o acórdão decidiu pela validade
probatória do referido correio.
Considero que este Acórdão pode e deve marcar um ponto de viragem na
avaliação do tema sobre que me debruço.
I.
Em primeiro lugar, porque põe em evidência a contraposição entre
dois direitos e interesses fundamentais e ambos merecedores de pr otecção:
a) direito de reserva de vida privada do trabalhador, que não termina nem
se suspende no portão da fábrica ou na entrada do escritório;
b) mas, também, o interesse e necessidade do empregador produzir prova
sobre factos susceptíveis de consubstanciarem justa causa de despedimento (ou de aplicação de qualquer outra sanção de menor gravidade) e
que não se podem considerar alheios à vida profissional (embora não
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fosse obviamente intenção quer do trabalhador despedido que essas
mensagens fossem visualizadas pelo empregador).
II.
Em segundo lugar, porque vem densificar o que se entende por vida
privada, e que dimensão dessa vida estará efectivamente coberta pela
protecção legal consagrada no artigo 22º do CT
Já em 2012, o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão que, com
o devido respeito, constitui um retrocesso na forma como é abordada esta
matéria.
Esta decisão versa sobre a validade probatória de documentos que se traduzem
em conversas de natureza particular, através do Messenger, em tempo real e
por escrito, de uma trabalhadora e amigas e marido/ namorado, em que se
fazem afirmações que foram consideradas fundamento de aplicação de sanção
disciplinar
O acórdão tem o mérito de distinguir claramente que os documentos têm um
duplo papel: de “miolo” factual de aplicação da sanção disciplinar e de suporte
documental e probatório daquele.
No entanto, ao decidir pela inadmissibilidade dos mesmos como meio de prova,
suporta-se (i) no facto de não existir na empresa qualquer regulamentação
prévia para a utilização pessoal e profissional da internet por parte dos
trabalhadores, e (ii) e no relevo que deve ser dado à vontade de os
intervenientes atribuírem ou não natureza privada a essas comunicações.
Teria a solução sido a mesma se através desse meio de comunicação fossem
transmitidas informações de essencial importância para a empregadora?
Da análise efectuada não retiro grande conforto, quanto ao conselho a dar às
empresas, quando está em causa a utilização como meio de prova, de mails
enviados do e para o endereço de correio electrónico, fornecido ao trabalhador
pela empresa.
E concluo pela:
1.
Necessidade de distinguir claramente entre a utilização do correio
electrónico como meio de prova e a utilização do seu conteúdo como o
fundamento de justa causa de despedimento ou de aplicação de sanção disciplinar
8
2.
Necessidade de densificar com maior clareza, e de delimitar com
maior precisão, a área de vida privada sujeita a reserva e objecto de
protecção legal, nomeadamente no artigo 22º do Código do Trabalho
3.
Necessidade de a análise dos pontos anteriores, não se limitar à
avaliação e sobrevalorização da protecção da vida privada, esquecendo os demais interesses em jogo e também objecto de protecção
jurídica.
Muito obrigada.
Lisboa, 10 de Outubro de 2012
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Adv. Maria da Glória Leitão - Supremo Tribunal de Justiça