ARTIGOS O presente artigo pretende dar uma visão de conjunto da Primeira Semana dos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio (EE 23-90). Sua leitura deve ser acompanhada pela consulta ao próprio texto dos Exercícios, publicado neste mesmo número da revista, exceto EE 23, publicado no número anterior (Itaici, no 23, pág. 37). As autoras são membros do CEI-ITAICI. Na versão final, colaborou o redator da revista. COMENTÁRIO DOS EXERCÍCIOS DA PRIMEIRA SEMANA Ir. Maria Fátima Maldaner, SND, e Ir. Maria Thereza Thiele, FSCJ 1 - INTRODUÇÃO Os Exercícios Espirituais (EE) constituem um período de exercitação gradual e metódica no caminho da conversão. Cada "Semana" é uma etapa do itinerário. Este itinerário em etapas, seguindo um roteiro de quatro "Semanas", sugere um caminho progressivo. Inácio o encontrou na tradição ascética da Igreja do seu tempo e adaptou-o à sua maneira. O Princípio e Fundamento é sua grande introdução, uma visão de conjunto, uma espécie de mapa. Situado nos umbrais da Primeira Semana, estende sua perspectiva sobre todo o percurso. Ele responde às grandes interrogações da pessoa a respeito de si mesma, dos outros seres humanos, do universo e de Deus. Apresenta o plano de Deus sobre a humanidade e o cosmos, e a resposta que o ser humano é chamado a dar. Indica as atitudes fundamentais que identificam a vida segundo a fé cristã. A realidade mostra que, à infinita gratuidade do amor de Deus, junta-se o mistério da iniqüidade. A humanidade vive numa situação de pecado. A própria história está feita de luz e trevas, graça e pecado entrelaçados. A história do pecado teve sua origem e origina ambientes, estruturas e atitudes contrárias ao plano de Deus. Hoje, dois terços da humanidade constitui o mundo dos "povos crucificados". A cruz tem aqui o significado de "morte" e morte infligida: morte lenta, causada pela pobreza gerada por estruturas injustas, ou morte rápida e violenta, por causa da repressão e guerras ou ainda, morte indireta, quando estes povos são privados de suas culturas, de suas tradições, de sua própria identidade. Até o final do século, aproximadamente 170 milhões de latino-americanos viverão em extrema pobreza e outros 170 milhões em pobreza biológica crítica. Daí ser imprescindível o enfoque histórico da salvação e da conversão. O coração humano é sempre vacilante. Nele a encruzilhada do amor e do ódio, da vida e da morte. O pecado histórico e estrutural antecede e afeta a humanidade para além de sua livre decisão. O ser humano, contudo, é indubitavelmente livre e responsável por esta história e pelas estruturas geradoras do mal, por ele criadas e mantidas. A Primeira Semana começa situando o exercitante, de maneira lúcida, nesta realidade ambígua. Visa proporcionar-lhe uma experiência profunda e decisiva da gravidade do pecado em si mesmo, na sua origem e nas suas conseqüências, bem como da salvação oferecida gratuitamente por Deus em Jesus Cristo. No seu âmago, a Primeira Semana inaciana é uma experiência da misericórdia de Deus revelada em Jesus Cristo. Para Jesus, ser humano é reagir com misericórdia. Do contrário, a condição humana fica viciada, na raiz, como acontece com o sacerdote e o levita da parábola do Bom Samaritano. Eles, vendo o ferido, passaram adiante, enquanto o samaritano, "movido por misericórdia" (Lc 10,33) socorreu o ferido1. 2 - VISÃO DE CONJUNTO DA PRIMEIRA SEMANA O conteúdo próprio da Primeira Semana é o seguinte: ⎯ Princípio e Fundamento (EE 23)2. ⎯ Exame particular e cotidiano (EE 24-31)3. ⎯ Exame geral de consciência (EE 32-43)4. ⎯ Confissão geral e comunhão (EE 44). ⎯ 1º Exercício: Meditação sobre o 1º, 2º e 3º pecado (EE 45-54). ⎯ 2º Exercício: Meditação dos pecados pessoais (EE 55-61). ⎯ 3º Exercício: Repetição (EE 62-63). ⎯ 4º Exercício: Resumo (EE 64). ⎯ 5º Exercício: Meditação do Inferno (EE 65-71). ⎯ Adições (EE 73-90)5. Podem ser incluídos na Primeira Semana também os seguintes documentos:6 ⎯ Primeiro Modo de Orar (EE 238-248). ⎯ Regras de Discernimento dos espíritos. "São mais próprias para a 1ª Semana" (EE 313-327). ⎯ Notas para sentir e entender escrúpulos (EE 345-351). 2.1 - O dia inaciano (EE 72) ⎯ 1º Exercício: à meia-noite; ⎯ 2º Exercício: ao levantar, pela manhã; ⎯ 3º Exercício: antes ou depois da missa, antes do almoço; ⎯ 4º Exercício: à hora de vésperas; ⎯ 5º Exercício: antes do jantar, no fim do dia. NB. Inácio prevê que se façam os cinco exercícios ou menos, "conforme a idade, disposição e temperamento da pessoa que se exercita" (EE 72). 2.2. Estrutura de cada exercício ⎯ Oração preparatória (EE 46). ⎯ 1º Preâmbulo: composição de lugar (EE 47). ⎯ 2º Preâmbulo: petição (EE 48)7. ⎯ Os "Pontos" em que Inácio divide a matéria da meditação. ⎯ O Colóquio ou colóquios (EE 53-54; 61; 63 e 71). ⎯ "Notas" ou orientações práticas sobre como realizar os exercícios (EE 49; 72), as adições (87-89) ou o exame particular.(EE 90). As notas são um pequeno Diretório dos EE, distribuído ao longo do texto dos mesmos. Ao apresentar o Primeiro Exercício, Inácio oferece ao que dá os Exercícios as principais orientações metodológicas, que serão úteis também para as etapas seguintes. Tais orientações tratam de: a) a oração; b) a matéria da oração; c) o modo de proceder no exercício. Inácio é cuidadoso ao selecionar e ordenar tanto a oração quanto o modo de orar. Tudo é orientado para o fruto a ser alcançado. Introduzido na experiência progressivamente, o exercitante é convidado a percorrer um itinerário, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, em direção ao encontro de seu Criador e Senhor. A petição vai indicando os frutos a serem alcançados em cada etapa do itinerário. A estrutura da Primeira Semana, com as orientações dadas sobre o modo de proceder, sugere três progressões distintas: a) na sucessão dos dias, nesta Semana: O "dia" da Primeira Semana será repetido tantas vezes quantas forem necessárias para alcançar os frutos que se buscam. b) na organização dos tempos de oração (duas meditações, uma repetição, um resumo e uma aplicação de sentidos), distribuídos durante o dia, à luz da grande tradição orante da Igreja (EE 72); c) na estruturação dos pontos ou matéria própria de cada exercício (EE 50-54). Inácio vai introduzindo o exercitante num processo educativo, em que as etapas não são delimitadas cronologicamente. O que se busca no tempo ("kairós") dos EE é a transformação profunda do estatuto existencial da pessoa, até transfigurá-la segundo a imagem de Cristo. 3 - MODO DE ORAR: MEDITAÇÃO COM AS TRÊS POTÊNCIAS a) Introdução: Os tempos intensivos de oração pessoal, no retiro, são chamados por Santo Inácio de "exercícios". Podem revestir modalidades variadas: consideração orante, meditação, repetição, resumo, contemplação, aplicação de sentidos... Nos exercícios propostos para a Primeira Semana, a modalidade predominante é a "meditação". Com efeito, o primeiro exercício se intitula: "Meditação com as três potências"; o segundo, "Meditação dos pecados"; o quinto, "Meditação do inferno". b) Meditação: sua natureza. A "meditação com as três potências" consiste numa maneira de orar discursiva que utiliza a memória, a inteligência e a vontade, para aprofundar e assimilar uma verdade de fé, tendo em vista conformar com ela a própria vida. No uso corrente, o termo meditação acentua o caráter discursivo do exercício, o que não impede pausas mais prolongadas naquele ponto ou aspecto em que a pessoa se sinta mais tocada. Ordinariamente há uma atividade sustentada, séria e agradável, das faculdades a respeito do tema proposto, visando a assimilação do seu conteúdo e sua aplicação à situação pessoal do exercitante. Esta atividade, pouco a pouco, se irá simplificando, unificando e aprofundando conforme o progresso que se fizer na oração. Sto. Inácio fala das "três potências" ou faculdades da alma, segundo a filosofia do seu tempo: memória, inteligência e vontade. Trata-se de uma divisão didática, não seqüencial, buscando como que "introduzir cada faculdade na presença de Deus". Na meditação, a memória é o primeiro olhar do espírito sobre o mistério. Ainda não se quer uma reflexão, mas uma simples visão das coisas, a abertura religiosa da pessoa a esta história, a parábola ou passagem evangélica pela qual Deus quer revelar-se à pessoa em oração. A inteligência tenta detalhar o que a memória traz à tona. Ela o faz de forma orante, à medida em que a memória se desincumbe de sua função. Assim, a memória repleta de recordações espirituais, e a inteligência, iluminada pelo mistério, aquecem o coração e a vontade se expande em afetos de amor e de intimidade. A meditação deve constituir-se num exercício de oração e não simplesmente de reflexão. Por este motivo, não se deve conceber de uma maneira rígida e seqüencial: primeiro, aplicar a memória; segundo, aplicar o a inteligência; e, por último, aplicar a vontade, com o colóquio e resolução prática para a vida. Não é este o exercício inaciano. O que se busca é um exercício espiritual, em que o sujeito da oração seja o próprio Deus, que faz mover as três potências da pessoa. Esta colocará suas faculdades totalmente à disposição da ação da graça. Um ponto no qual Inácio se mostra firme é que a meditação sobre determinado tema deve estar orientada para o fim que lhe é implícito, isto é para o fruto que se pretende alcançar. Isto suposto, Inácio dá grande liberdade: "no ponto em que achar o que quero, vou deter-me, sem pressa de passar adiante, até que me sinta satisfeito" (EE 76). Em síntese, compreendido o papel da memória, da inteligência e da vontade, diante do mistério proposto, Sto. Inácio se limita a indicar o ponto de partida e a direção a tomar. A oração vai adquirir uma modalidade variada, conforme a graça e a pessoa que medita. Recomenda, no entanto, ser muito sensível e dócil às moções do alto, ponto este que sempre deve merecer cuidadoso exame, após cada exercício (EE 77). O papel da memória e da inteligência são importantes, enquanto movem a vontade para os afetos do coração e a conseqüente mudança de vida, como fruto da oração. É a vontade que estabelece o laço orgânico entre oração e vida, orientando a meditação para seu fruto específico, indicado no 2º preâmbulo (EE 48: "pedir o que quero e desejo"), como também para seu fruto geral, expresso na "oração preparatória" (EE 46: o louvor e serviço de Deus). É a inteligência, iluminada pela fé, que mostra o caminho para a vontade, sede do amor, da afetividade, tornando a oração, neste momento, interpessoal, dialógica com aquele que faz de nós sua morada, a Trindade que habita em nós. 4 - PRIMEIRO EXERCÍCIO: A DIMENSÃO UNIVERSAL DO PECADO (EE 45-54) Depois da "Oração preparatória" (EE 46), o "Primeiro preâmbulo" é a composição de lugar (EE 47). Neste primeiro exercício, trata-se de encarar a realidade do mal fora do exercitante, a iniqüidade no mundo. É o pecado social ou estrutural, cujas conseqüências perpassam a nossa história. Inácio propõe duas imagens, para a composição de lugar dessa ruptura do sonho de Deus: a) a alma encarcerada na prisão do corpo (EE 47,5); b) o exílio da pessoa "neste vale", sob o domínio da irracionalidade (EE 47,6). Muitas imagens desse tipo estão gravadas na experiência histórica da imensa maioria do povo latino-americano. Vivemos numa estrutura de pecado, que herdamos do passado e que, hoje, continua gerando injustiça, violência e morte. O "Segundo preâmbulo" é a petição: neste primeiro exercício o exercitante pede "vergonha e confusão de mim mesmo" (EE 48,4). O fruto que se persegue é sentir horror pelos próprios pecados. Todos vemos, porém, com maior clareza os pecados alheios do que os próprios. Por isso, Sto. Inácio quer que o exercitante entre no reconhecimento do seu próprio pecado a partir da realidade externa: o pecado fora de si mesmo. É a pedagogia que Natã seguiu com Davi, ao lhe contar a história da ovelhinha, para terminar dizendo-lhe: "Esse homem es tu!" (2Sm 12). O fruto poderá ser alcançado, através da meditação com as três potências, do exame de consciência e da oração do coração ("Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador"). A ação devastadora do mal é apresentada por Inácio em três pontos: 1) O primeiro ponto (EE 50) nos apresenta a dimensão transcendente do pecado; o pecado como negação, esquecimento ou rebeldia contra Deus. Inácio chama a atenção para a essência última do pecado: a recusa do reconhecimento da soberania absoluta de Deus. O pecado dos anjos, mensageiros de Deus, plenamente lúcidos e livres, coloca o pecado antes da história da humanidade. Os anjos eram livres para reconhecer a absoluta primazia de Deus; livres para recusar o reconhecimento da própria condição de criaturas. "E não quiseram servir-se de sua liberdade para prestar reverência e obediência a seu Criador e Senhor" (50,4). Fecharam-se numa situação de perversão definitiva e completa. Meditar sobre a perfeita liberdade do anjo ajudará o ser humano, liberdade condicionada, a perceber o uso que faz de sua própria liberdade. 2) O segundo ponto (EE 51) nos situa diante da dimensão social do pecado, descrita assim pelo episcopado latino-americano: "no plano das relações interpessoais, a atitude de egoísmo, de orgulho, de ambição e inveja, que geram injustiça, dominação e violência em todos os níveis; luta entre indivíduos, grupos, classes sociais e povos, bem como a corrupção, o hedonismo, a exacerbação do sexo e a superficialidade nas relações mútuas. Conseqüentemente se estabelecem situações de pecado que, em nível mundial, escravizam a tantos seres humanos e condicionam adversamente a liberdade de todos" (Puebla 328). O pecado de Adão e Eva situa o pecado no horizonte da vida humana no alvorecer da humanidade. Os seres humanos -mulheres e homens-, criados para participar da vida divina, afastam-se da sua origem e ponto de referência, da sua fonte e oriente. Por não confiar na palavra de Deus, são iludidos pelo "pai da mentira", rompendo sua dependência do Criador. As conseqüências para os nossos primeiros pais e para toda a história humana são conhecidas: o ser humano condenou-se à morte, ao pó, à perda de sua identidade (Gn 3,8-10); andará errante pelos descaminhos do mundo (Gn 4,14), sem direção, desnorteado, des-orientado, de-solado (=sem chão). Com seu "não" ao seu Criador e Senhor, ele arrastou e arrasta consigo toda a criação, que geme e sofre pelo desejo de libertação (Rm 8,19-23). 3) O terceiro ponto (EE 52) representa a dimensão pessoal do pecado. O pecado, em último termo, é uma responsabilidade pessoal. É uma história que tende a repetir-se em cada ser humano; um processo que tem os efeitos devastadores de uma bola de neve que cai, montanha abaixo. Ao meditar o pecado de uma só pessoa, o exercitante aplica a matéria dos pontos anteriores a um caso particular. A história do pecado se reproduz em cada pessoa que peca. Aceitar o pecado significa atualizar na própria vida a rebeldia dos anjos e a fraqueza dos primeiros pais. Basta um só "pecado mortal" para desencadear no coração humano este processo, cuja dialética pode levar ao limite da própria destruição. O "inferno" vai sendo gestado pela insubordinação da criatura ao Criador, pela submissão a Satanás, pela ingratidão para com Deus. É a história pessoal de rejeição da condição filial e fraternal; é o caminho contrário ao "louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor" (EE 23) O primeiro exercício termina com um colóquio diante de Cristo, nosso Senhor, na cruz (EE 53). O colóquio propriamente dito se faz como uma amigo fala a seu amigo: "O que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo e o que devo fazer por Cristo?". O olhar para o rosto desfigurado de Cristo, nas feições das camadas mais sofridas do nosso povo, faz brotar no coração do exercitante o sentimento de indignação ética e o desejo de pôr-se ao serviço. " O Cristo desfigurado me configura" (Sto. Agostinho). Ele desinstala, abalando as grandes raízes do mal: o ter, o prazer e o poder, abrindo caminho para uma nova história: o retorno à escuta da Palavra de Deus. 5 - SEGUNDO EXERCÍCIO: MEDITAÇÃO DOS PECADOS PESSOAIS (EE 55-61) No primeiro exercício, o exercitante partia do universal, do pecado "fora de mim". Agora, neste segundo exercício deve passar ao particular, ao "trazer à memória todos os pecados da (própria) vida". E aí constata o mesmo dinamismo do mal: a insubordinação, a iniqüidade, a desordem e a ingratidão. É a mesma história do pecado que continua na vida pessoal de cada ser humano. O exercitante se vê arrastado, desde sua origem, e configurado intimamente a esta corrente, em que Deus e Satanás se degladiam no coração humano. Ele experimenta em si forças desagregadoras, que o levam a fazer o que não quer (Rm 7,14-25). Neste conflito entre a abertura a Deus e o fechamento sobre si mesmo, à medida que progride na oração, faz a experiência não apenas de "ter pecados", mas sobretudo de "ser pecador". Além de trazer à memória os pecados pessoais (EE 56), o exercitante é convidado a ponderar "a fealdade e malícia" de cada pecado cometido por ele, mesmo que não fosse proibido (EE 57). Inácio desvincula o pecado da norma. Um fato não é pecado por estar proibido. É pecado porque, objetivamente, “é ruim” (faz dano) e, aos olhos de uma sensibilidade retamente ordenada, "é feio" (dimensão estética relacionada com a sensibilidade)8. A desordem profunda de minha vida de pecador fica mais patente considerando: a) a natureza do pecado (EE 57); b) quem sou eu (EE 58); c) quem é Deus contra quem pequei; d) a dissonância que o pecado introduz no universo. O clímax é uma exclamação de assombro e admiração com intenso afeto (EE 60). O segundo exercício termina com um colóquio de misericórdia (EE 61). O que se busca é a experiência profunda de sentir-se pecador e, mesmo assim, salvo pela bondade de Deus. A linguagem é de cunho afetivo e se dirige ao todo da pessoa. Experiências místicas deste tipo levaram alguns santos a exclamar: "Tudo-nada!". Só a partir da experiência de Deus-misericórdia é possível reconhecer-se pecador. Os outros conhecimentos são superficiais: racionalizações, diminuições ou exageros. Não é uma clareza de auto-conhecimento de ordem intelectual ou moral. É uma clareza e firmeza na fé, entendida como confiança amorosa. O que se pretende com este exercício é que o exercitante se experiencie como pecador imerso numa estrutura de pecado, para a qual ele também contribuiu e continua contribuindo. Esta consciência é graça a ser pedida com humildade; dom a ser acolhido na liberdade. É graça que abre as portas para a comunhão com o Senhor na oração: sou amado/a pelo Senhor, sendo o que sou e como sou, pecador/a continuamente perdoado/a em minha total fragilidade. Trata-se de um processo que dura a vida inteira, até chegar a exclamar com Paulo: "nada poderá separar-nos do amor de Cristo" (Rm 8,39). 6 - TERCEIRO EXERCÍCIO: REPETIÇÃO DO 1º E 2º (EE 62) A repetição é um exercício fundamental na metodologia inaciana. Trata-se, não de um mero saber ou conhecer, mas de uma experiência interiorizada que leva a "sentir e saborear" (cf. EE 2,4). Aqui, como nas restantes semanas dos EE, a repetição tem um significado bem preciso. Não consiste em repetir, simplesmente, uma meditação ou contemplação já feita, mas em voltar-se para aqueles pontos ou aspectos da oração, nos quais temos sentido maior consolação ou desolação. O exercitante deve retomar aqueles momentos em que experimentou maiores "moções" internas, seja de iluminação e gozo espiritual, seja de escuridão e repugnância espiritual. A repetição pode levar, pouco a pouco, a um modo de orar mais simples e agradável, mais substancial e enriquecedor. Possibilita um encontro pessoal com o Senhor, que pelo seu Espírito vai conduzindo a pessoa segundo suas necessidades e características pessoais. Os Três colóquios (EE 63) Nos grandes momentos dos EE, Inácio propõe três colóquios, em vez de um (EE 63; 147; 156; 168; 199; 225).Os colóquios do terceiro exercício da Primeira Semana ocupam um lugar central, tanto em relação à estrutura do dia, quanto em relação ao conteúdo dessa Semana. Inácio apresenta a metodologia e o conteúdo, deixando liberdade quanto ao modo de realizá-los. O primeiro colóquio é feito a Maria, a Mãe de Jesus e Senhora nossa, merecedora de uma atenção especial na espiritualidade cristã católica e ortodoxa. O segundo é ao Filho, vencedor do pecado e da morte. É preciso ter sempre os olhos fixos nEle (Hb 12,2). Finalmente, o terceiro se dirige ao Pai, que tanto nos amou. Foi Ele quem enviou seu Filho para salvação da humanidade, perdida nas trevas e no vazio do pecado. Os Três colóquios sugerem, como já apontamos, uma progressão: a) do exercitante a Maria; b) de Maria a Jesus; e c) de Jesus ao Pai pelo Espírito. O que se pede nos Três colóquios? O primeiro pedido diz respeito aos próprios pecados. É preciso um "conhecimento interno" dos mesmos para poder "detestálos". O exercitante coloca sua vida desorientada, longe de Deus, diante de Maria e por ela diante de Jesus e do Pai, e pede para que seja transformada, reorientada para Deus. O segundo pedido diz respeito às ações. O exercitante pede a graça de sentir a desordem das mesmas, para "detestá-la" e, assim corrigir e ordenar a sua vida. O terceiro pedido é conhecer o mundo, para tirar da própria vida tudo que é mundano e vão: futilidades, vaidades, maquinações, injustiças, conivência com o mal... O grande objetivo deste tríplice colóquio é o de preparar o caminho para a vida verdadeira com Cristo, em Deus. O que se pede é alcançar a graça da conversão profunda, total, duradoura. Para tanto é necessário mudar a orientação espontânea da nossa sensibilidade. Enquanto continuemos gostando daquilo que nos afasta de Deus, a nossa conversão não é total. Por isso pedimos a graça de "detestar" o pecado, a desordem e as coisas mundanas e vãs, porque só detestando o mal estaremos firmes no seguimento daquele que nos trouxe a "vida verdadeira" (cf. EE 139). 7 - QUARTO EXERCÍCIO: RESUMO DO 3º (EE 64) No quarto exercício, Inácio novamente não propõe matéria nova. A matéria é a mesma da repetição. Muda-se apenas o modo de fazê-lo e aprofunda-se o fruto a ser alcançado. A inteligência, "sem divagar", deverá discorrer cuidadosamente pelo que recorda das coisas contempladas nos exercícios anteriores. Fazem-se os mesmos Três colóquios do terceiro exercício. Na linha da simplificação da oração, iniciada na repetição, o resumo dá um passo a mais. Cresce-se na interiorização da linguagem que vem de Deus e das motivações mais profundas do próprio viver. As palavras e as imagens, depois de ter cumprido sua missão de suporte, desaparecem devagarinho, para deixar que o Senhor nos leve, silenciosamente, aonde não sabemos nem mesmo queremos ir. A pluralidade dos elementos de um assunto ou texto bíblico desaparece, em benefício de uma moção única (a "moção hegemônica") que é a graça do momento. Fica-se, pois, no substancial. Na vida são poucas as coisas verdadeiramente fundamentais, que fazem parte das nossas convicções profundas e do próprio eu, Sem elas é impossível viver. É preciso sentir e saborear com o "coração" - o centro da pessoa, na terminologia bíblica -, com o núcleo do eu profundo. A repetição, primeiro, e ainda mais o resumo são exercícios que nos colocam nesta dimensão. 8 - QUINTO EXERCÍCIO: MEDITAÇÃO DO INFERNO (EE 65-72) A meditação do inferno apresenta a dimensão escatológica do pecado. O exercício faz parte do conjunto dos cinco exercícios da Primeira Semana. Tem sentido quando feito na seqüência dos anteriores. O inferno é a conseqüência última e definitiva do processo de negação do amor de Deus, que constitui a essência do pecado. Neste sentido é sugestivo comparar o primeiro preâmbulo deste exercício (EE 65,3) com Ef 3,18-19. Tendo negado o amor de Deus, referencial absoluto da vida humana, os condenados ficariam incapazes de orientar-se, no vazio sem tamanho. No inferno não haveria norte, nem sul, nem leste, nem oeste. O objetivo do quinto exercício não é a "primeira conversão" -do pecado à vida de graça-. Inácio supõe que o exercitante seja já um convertido. Sua finalidade é a de suscitar um santo temor de Deus, como salvaguarda do amor restaurado ou purificado (EE 65,5). Neste sentido, o exercício estaria mais na linha da chamada "segunda conversão" -da vida cristã comum à santidade-. De fato, quem têm uma consciência mais aguda da possibilidade de condenação eterna, não são os grandes pecadores, mas os santos (Sta. Teresa de Jesus, o próprio Sto. Inácio). O verdadeiro conhecimento do amor de Deus é a consciência permanente de que é dom de Deus e que está sempre exposto à tentação. A cruz dos crucificados de hoje é recordação constante da fragilidade de nosso amor a Deus. Historicamente houve grande discordância na interpretação deste exercício. O texto latino dos EE (a chamada "vulgata") o chama de "contemplação". O texto autógrafo, em que nossa tradução se baseia, o chama de "meditação". A corrente francesa o considera uma "aplicação de sentidos", posto que Inácio desenvolve o exercício em cinco pontos, seguindo o esquema dos cinco sentidos corporais (EE 66-70). Autores espanhóis observam, porém, que Inácio pensa mais nos "sentidos internos da imaginação" (cf. EE 66: ver com o olhar da imaginação...). Para um autor de nossos dias trata-se de uma "sensibilização negativa, enfatizando um dos sentimentos mais eficazes que pode experimentar o ser humano: o temor"9 O quinto exercício termina com um colóquio de ação de graças (EE 71). Há em todo o exercício uma estrutura dialética, entre a experiência sensível de perdição e a ação de graças pela salvação. O objeto da sensibilização negativa não é Deus, mas as penas dos condenados. Para Inácio, Deus não manda ninguém para o inferno. A relação com Deus é sempre salvífica, nunca ameaçadora: Ele nos cria para a salvação, nos chama à vida nova em Cristo, nos dá consolação, "verdadeira alegria e gozo espiritual" (EE 329). A presença de Deus na vida do homem é sempre positiva. O julgamento de Deus é sempre salvação. Se a condenação ocorrer, a culpa não será de Deus, mas do próprio ser humano. Este é livre para aceitar o amor de Deus ou fechar-se a ele. O eu de cada ser humano encontra sua plena realização no encontro com o Tu divino. Quando essa relação eu tu se rompe, a pessoa faz, de alguma maneira, a experiência sensível do inferno. O transcendente se experimenta no intramundano. A comunhão é o projeto a ser realizado sempre. O egoísmo, a separação, a autosuficiência é o começo de uma situação que, aos poucos, vai se tornando infernal. Somente o homem pode dar-se a si mesmo a morte eterna. Só Deus, e não o homem, pode dar a este a vida eterna. 9 - CONCLUSÃO: FRUTOS DA PRIMEIRA SEMANA. O exercitante não deverá sair da Primeira Semana, entrando nos exercícios próprios da Segunda Semana, sem ter conseguido o que queria e desejava alcançar nesta primeira etapa. O objetivo global da Primeira Semana é o de sentir-se, embora pecador, salvo por Deus em Jesus Cristo. As graças tão ardentemente pedidas nesta primeira etapa dos EE, são os frutos que o exercitante deve alcançar: a) Experimentar que o pecado é uma insensata ingratidão, que conduz à própria destruição e morte eterna. Trata-se de uma experiência sensível e não apenas intelectual. O exercitante deve sentir o desejo intenso de detestar os pecados da vida passada e de emendar-se, doravante, da desordem em que viveu até hoje. b) Experimentar a salvação gratuita em Cristo. Acolher este mistério revelado no Espírito: Deus, "rico em misericórdia" (Ef 2,4), amou-nos tanto a ponto de nos enviar seu próprio Filho, que "morreu por nós quando ainda éramos pecadores". A morte de Cristo na cruz, preço do nosso pecado, foi a melhor demonstração do amor misericordioso de Deus para conosco (cf. Rm 5,8). Ao final da Primeira Semana, a disposição de "indiferença" em relação ao uso das criaturas (EE 23) deve vir revestida de maior humildade e desconfiança de si mesmo, e de maior confiança em nosso Criador e Senhor. Aquela liberdade afetiva, que se pretendia no Princípio e Fundamento, estará agora reforçada pela vontade de lutar contra as afeições desordenadas que o exercitante descobriu, na origem dos seus pecados e fraquezas. Fruto da Primeira Semana será também a disposição necessária para entrar na Segunda Semana: acolher o apelo do Reino e responder-lhe com prontidão. O exercitante deverá sentir seu coração arder por Cristo Salvador; desejará seguir os seus passos, participar de sua vida e missão. Deverá haver uma mudança de perspectiva. O exercitante dirigirá todos seus sentidos, externos e internos, para a contemplação da vida de Jesus, como norma de sua própria vida. Esta disposição inicial da Segunda Semana será fruto da Primeira, sobretudo dos colóquios: "Que devo fazer por Cristo?" (EE 53,2). A meditação da realidade do mal universal e pessoal deverá ter acentuado a consciência da radical pobreza e do fechamento sobre si mesmo. Daí brotará um maior desejo da vida nova em Cristo Jesus. A Cruz revelou-nos, ao mesmo tempo, a máxima maldade do ser humano e a realização vitoriosa da misericórdia de Deus. NOTAS: 1 Cf. Jon SOBRINO, O Princípio Misericórdia. SP, 1994, 34-35. 2 Cf. L.GONZÁLEZ-QUEVEDO, "Princípio e fundamento (EE 23): Introdução, texto e comentário", Itaici no 23, março 1996, pp. 32-43. 3 Cf. H.COATHALEM, "Exame Particular", neste no da nossa revista. 4 Cf. A.M.CHÉRCOLES e H.COATHALEM, "Exame Geral", neste mesmo no. 5 Cf, neste mesmo número: A.BARREIRO, “As quatro primeiras adições sobre a oração”. A 5ª adição consiste no exame ou "revisão da oração", para discernir o caminho por onde Deus está conduzindo o exercitante (EE 77). As adições 6a a 9a referem-se ao clima próprio da Primeira Semana (EE 78-81). A 10a adição trata da penitência ou mortificação exterior e interior (EE 82-85). No seu conjunto, as adições pretendem ajudar a pessoa a entrar no processo de uma sensibilidade crescente à ação de Deus na própria vida. 6 Tais documentos serão traduzidos e comentados, futuramente, na nossa revista. 7 Para a oração preparatória e os dois preâmbulos, cf. o texto de LEFRANK, neste mesmo nº. 8 Cf. A.M.CHÉRCOLES, SJ, "El pecado, mal objetivo al que estamos cegos", en: La afectividad y los deseos. EIDES, 16. Barcelona, 1995, 20-25. 9 Cf. A. M. CHÉRCOLES, loc. cit., p. 24.