Quarto 307. A primeira vez que dormi aqui, não prestei a menor atenção na vista; estava feliz naquela época e a felicidade deixa as pessoas distraídas. Estou sentado diante da escrivaninha, em frente à janela, Pequim se estende adiante e nunca me senti tão perdido em toda a minha vida. A simples ideia de olhar para a cama é insuportável. Sua ausência entrou em mim como um germe de morte que não para de abrir caminho. Uma dor corroendo meu ventre. Bem que tentei quebrar sua ação, anestesiá-la regando sem parar a refeição da manhã com baijiu, mas nem esse álcool de arroz surtiu efeito. Após dez horas de avião sem fechar os olhos, preciso dormir para poder pegar a estrada. Tudo que peço é um instante de inconsciência, um momento de abandono, sem ver desfilar tudo que vivemos aqui. Você está aí? Você fez essa pergunta por trás da porta do banheiro, há poucos meses. Agora ouço apenas os pingos de uma torneira que fecha mal, batendo na louça desgastada de uma pia decrépita. Empurro a cadeira, visto o sobretudo e saio do hotel. Um táxi me deixa no parque Jingshan. Atravesso o roseiral e pego a ponte de pedras que cruza o laguinho. Estou feliz de estar aqui. Eu achava o mesmo. Se tivesse ideia do destino em que nos lançávamos, inconscientes, com sede de descobertas. Se fosse possível fazer o tempo parar, eu o congelaria nesse exato momento. Se fosse possível voltar atrás, seria para ali que eu voltaria... 17 Fui ao lugar onde tinha pensado isso, diante de uma roseira branca, numa alameda do parque de Jingshan. Mas o tempo não havia parado. Entro na Cidade Proibida pelo portão norte e me encaminho pelas aleias tendo como guia apenas algumas lembranças suas. Procuro um banco de pedra perto de uma árvore grande, um lugar bem particular onde, há não tanto tempo, um casal de chineses idosos estava sentado. Quem sabe, se os encontrar, consigo me acalmar, pois achava ter visto no sorriso deles a promessa do nosso futuro; mas talvez rissem simplesmente do que nos aguardava. Acabei encontrando o banco, vazio. Deitei nele. Os galhos de um salgueiro balançam ao vento e essa dança suave me tranquiliza. Com os olhos fechados, o seu rosto surge intacto e pego no sono. Um policial me acorda, pedindo que eu deixe o parque. Já começa a escurecer, os visitantes têm que se retirar. De volta ao hotel e ao quarto. As luzes da cidade impedem que o quarto fique às escuras. Arranco a colcha da cama, estendo-a diretamente no piso e me deito. Os faróis dos carros desenham estranhas manchas que se movem no teto. Para que perder tempo? Não vou mesmo conseguir dormir. Peguei minhas coisas, paguei a conta na recepção e me encaminhei para o carro, no estacionamento do hotel. O GPS de bordo indica a direção de Xian. Nas proximidades das cidades industriais, a noite se desfaz, só reaparecendo na escuridão dos campos. Parei em Shijiazhuang para encher o tanque de combustível, sem comprar comida. Você teria me chamado de covarde e provavelmente com razão, mas estou sem fome, então para que provocar o diabo? Cem quilômetros adiante, lá está o vilarejo no alto de uma colina. Tomo o caminho esburacado, decidido a ver o sol se levantar no vale. Dizem que os lugares conservam a lembrança dos instantes vividos pelos que ali se amaram; pode ser uma fantasia, mas, naquela manhã, eu precisava acreditar nisso. Percorro as ruas desertas e passo pelo tanque da praça principal, com o bebedouro para animais. A taça que você desenterrou nas ruínas do templo confuciano já desapareceu. Como previu, alguém a encontrou e lhe deu outro destino. Sento-me numa pedra à beira do penhasco e espero o amanhecer de um dia que será longo. Depois volto à estrada. A travessia de Linfen continua tão asquerosa quanto na primeira viagem, e uma nuvem espessa de poluição me queima a garganta. Pego no bolso o pedaço de pano com que você havia improvisado para nós uma máscara. Encontrei-o no 18 pacote que foi expedido e chegou às minhas mãos na Grécia. Não resta o menor traço do seu perfume, mas, colocando-o na boca, revejo todos os seus gestos. Atravessando Linfen, você reclamou: Esse cheiro é infernal! ... mas você reclamava de tudo. E agora, como eu gostaria de ouvir suas queixas. Foi passando por aqui que, remexendo sua bolsa, espetou o dedo e descobriu um microfone escondido. Naquela noite, eu devia ter decidido voltar imediatamente; não estávamos preparados para o que nos aguardava, não somos dois aventureiros, mas apenas cientistas se comportando como crianças imprudentes. A visibilidade continua péssima e preciso afastar esses pensamentos ruins para me concentrar na estrada. Lembro que, saindo de Linfem, parei à beira da estrada e me limitei a jogar fora o microfone, sem me preocupar com o perigo que representava, vendo naquilo apenas uma intromissão na nossa intimidade. Foi quando confessei o quanto a desejava e me neguei a dizer tudo que gosto em você, por pudor e não por jogo. Estou perto do lugar em que ocorreu o acidente, onde os assassinos nos empurraram de um barranco, e minhas mãos tremem. Deixe que ele ultrapasse a gente. Brota suor na minha testa. Diminua a velocidade, Adrian, por favor. Os olhos me incomodam. Não acredito, estão fazendo de propósito. Afivelou o cinto? E você respondeu sim a essa pergunta que, na verdade, era uma ordem. O primeiro choque nos empurrou à frente. Vejo seus dedos apertando a alça da porta, tão forte que os nós dos dedos ficam esbranquiçados. Quantos choques nós recebemos antes, até as rodas baterem na mureta e cairmos no abismo? Beijei você enquanto afundávamos nas águas do rio Amarelo, mergulhei nos seus olhos, certo de que íamos nos afogar, meu amor, e fiquei com você até o último instante. As curvas fechadas se sucedem e a cada uma me esforço para controlar meus gestos nervosos, corrigindo a trajetória do carro na estrada. Será que passei da saída com a trilha que leva até o monastério? Desde que peguei o avião para a China, esse lugar ocupa meu pensamento. O monge que nos deu hospedagem é a única pessoa que conheço nessas terras estranhas. Quem, além 19 dele, pode me dar uma informação que alimente a mínima esperança de que você ainda esteja viva? Uma fotografia sua com uma cicatriz na testa não chega a ser uma prova inquestionável, apenas um simples pedaço de papel que retiro do bolso cem vezes por dia. Reconheço, à direita, a entrada do caminho. Freio tarde demais, o carro derrapa e sou obrigado a dar marcha a ré. As rodas tracionadas do carro se enfiam na lama típica do outono. Choveu a noite toda. Estaciono na orla do bosque e continuo a pé. Se minhas lembranças estão certas, devo atravessar a parte rasa do riacho e subir o caminho de uma segunda colina; do alto verei o telhado do monastério. Precisei de uma hora de caminhada para chegar. Nessa estação do ano, o riacho está mais cheio e atravessá-lo não foi tão fácil. Pedras grandes arredondadas mal apareciam nas águas agitadas e estavam escorregadias. Se você me visse naquela posição deselegante, tenho certeza de que teria rido de mim. Essa lembrança me deu coragem para continuar. A lama grudenta prende meus passos e a sensação que tenho é a de recuar, mais do que avançar. Foi preciso muito esforço para chegar ao topo. Encharcado, enlameado, devo estar parecendo algum andarilho perdido e me pergunto como os três monges que vêm em minha direção vão me receber. Sem uma palavra, fazem sinal para que os siga. Chegamos ao portão do monastério, e o monge que parecia me vigiar durante todo o caminho, com medo de que eu fugisse, me levou a uma sala pequena, parecida com aquela em que dormimos. Faz sinal para que me sente, enche uma vasilha de barro com água limpa, se ajoelha à minha frente, lava as minhas mãos, pés e rosto. Depois oferece uma calça de linho, uma camisa limpa, e deixa a sala. Não o vi mais naquela tarde. Um pouco depois, outro monge trouxe alimentos e estendeu uma esteira no chão. Entendi que aquela sala era também meu quarto para pernoitar. O sol já se põe e, finalmente, quando os últimos raios somem no horizonte, aparece quem vim encontrar. — Não sei o que o traz aqui, mas quero que vá embora amanhã mesmo, a menos que tenha a intenção de se retirar. Tivemos já muitos transtornos por sua causa. — Sabem alguma coisa de Keira, a moça que estava comigo? Você voltou a vê-la? — perguntei ansioso. — Sinto muito pelo que aconteceu com vocês, mas, se alguém o fez acreditar que sua amiga sobreviveu àquele terrível acidente, mentiu. Não digo que sei tudo que ocorre na região, mas eu teria sido informado de algo assim. 20 — Não foi um acidente! Sua religião proíbe a mentira; volto então a fazer a pergunta: tem certeza de que está morta? — Erguer o tom da voz nada muda neste lugar, não causa o menor efeito em mim nem em meus discípulos. Como posso ter certeza? O rio não devolveu o corpo, é só o que sei. Com a velocidade e a profundidade das águas, não chega a surpreender. Desculpe insistir em detalhes assim, imagino que são difíceis de ouvir, estou apenas respondendo às suas perguntas. — O carro foi encontrado? — Se a pergunta for muito importante, deve ser feita às autoridades, mas não é algo que eu aconselhe. — Por quê? — Como disse, tivemos transtornos, mas isso não parece lhe interessar muito. — Como assim, transtornos? — Acha que o acidente não teve consequências? A polícia especial investigou. O desaparecimento de uma cidadã estrangeira em território chinês não é algo sem gravidade. E como as autoridades não gostam dos monastérios, tivemos visitas bem desagradáveis. Os monges foram interrogados de forma rude e dissemos que hospedamos vocês, pois não podemos mentir. Então, é compreensível que nossos discípulos não vejam a sua volta com bons olhos. — Keira está viva, precisa acreditar e me ajudar. — É o seu coração que fala, entendo a necessidade de se agarrar a essa esperança, mas recusar a realidade vai levá-lo a um sofrimento que consome por dentro. Se sua amiga tivesse sobrevivido, teria reaparecido em algum lugar e saberíamos disso. Tudo se sabe nessas montanhas. Infelizmente, eu acho que o rio a tomou como prisioneira. Lamento sinceramente e me solidarizo com sua tristeza. Vejo agora por que fez a viagem e me sinto confuso, por ter que trazer você de volta à razão. O luto é ainda mais difícil sem ter um corpo para enterrar, sem um túmulo junto ao qual se recolher, mas a alma de sua amiga o acompanha e continuará com você enquanto se sentir querida. — Ah, por favor, poupe-me dessas bobagens! Não acredito em Deus nem em nada além do que temos. — É seu pleno direito, mas, para alguém sem essa luz divina, você frequenta o monastério com muita assiduidade. — Se o seu Deus existisse, nada disso teria acontecido. — Se tivesse me escutado quando aconselhei a não fazer aquele passeio ao monte Hua Shan, poderia ter evitado esse drama que o abate. Como não veio para um retiro, é inútil ficar mais tempo aqui. Descanse esta noite e vá 21 embora. Não estou expulsando você, não tenho esse poder, mas peço que não abuse de nossa hospitalidade. — Se ela tiver sobrevivido, onde pode estar? — Volte para casa! O monge se retirou. Passei quase a noite inteira de olhos abertos, procurando uma solução. Aquela fotografia não podia mentir. Nas dez horas de voo entre Atenas e Pequim, não parei de olhá-la e continuei a fazer isso, à luz de uma vela. Essa cicatriz na sua testa é uma prova que considero irrefutável. Sem conseguir dormir, me levantei sem fazer barulho e abri a divisória corrediça em folha de arroz que servia de porta. Uma luzinha fraca me guiou e avancei por um corredor, até uma sala onde seis monges dormiam. Um deles deve ter pressentido minha presença, pois se revirou onde estava deitado e respirou fundo, felizmente sem acordar. Continuei em frente, passei com cuidado por cima dos corpos no chão e cheguei ao pátio do monastério. Estávamos em lua crescente a três quartos e fui me sentar à beira do poço que há no centro. Um ruído me assustou, mas a mão de alguém se colou a minha boca, para que eu não fizesse barulho. Reconheci o lama, que fez um gesto e eu o segui. Deixamos o monastério e caminhamos até o grande salgueiro. Ele se virou para mim e ficamos frente a frente. Mostrei a fotografia de Keira. — Quando vai entender que está nos colocando em perigo e, principalmente, a si mesmo? Precisa ir embora, já provocou muito estrago. — Quais estragos? — Não disse que o acidente foi proposital? Por que acha que eu o trouxe para longe do monastério? Não posso mais confiar em ninguém. Quem atacou vocês não deixará de repetir a agressão, se tiver oportunidade. Como não é discreto, tenho medo de que já tenham percebido que você está por aqui; o contrário disso seria um milagre. Espero que o milagre dure o bastante para que volte a Pequim e tome um avião. — Não irei a lugar algum até encontrar Keira. — Deveria tê-la protegido antes, agora é tarde. Não sei o que descobriram, sua amiga e você, nem quero saber, mas por favor vá embora! — Dê alguma indicação, por menor que seja, uma pista a seguir e prometo que parto antes do amanhecer. O monge me olhou fixamente e se calou. Deu meia-volta e tomou a direção do templo. Fui atrás. Chegando ao pátio, sem dizer uma palavra, me acompanhou ao quarto. 22 * * * O sol já está alto, o fuso horário e o cansaço da viagem acabaram se impondo. Já devia ser quase meio-dia quando o monge entrou no cômodo com uma tigela de arroz e um caldo, numa tábua de madeira. — Se me virem servindo o café da manhã na cama, serei acusado de estar querendo transformar esse lugar de orações em pensão — disse, com um sorriso. — Alimente-se antes de retomar a estrada. Pois fará isso ainda hoje, não é? Concordei com a cabeça. Era inútil insistir, pois nada mais conseguiria ali. — Boa viagem, então — disse o lama, se retirando. Erguendo a tigela de caldo, vi embaixo um papel dobrado. Instintivamente eu o escondi na mão e discretamente o enfiei no bolso. Fiz a refeição às pressas e me vesti. Estava impaciente para ler o que o monge havia escrito, mas dois discípulos me esperavam e me levaram até a orla do bosque. Antes de irem embora, me entregaram um embrulho em papel pardo, amarrado com barbante de cânhamo. Já ao volante, esperei que os monges se afastassem para desdobrar o bilhete e ler. Caso não siga minhas recomendações, saiba que ouvi dizer que um jovem monge entrou para o monastério de Garther, poucas semanas após o seu acidente. É possível que isso não esteja relacionado à sua busca, mas é muito raro que esse templo receba novos discípulos. Veio aos meus ouvidos que o jovem não parece tão satisfeito com o retiro. Ninguém sabe dizer quem ele é. Se quiser teimar e continuar com essa investigação pouco prudente, tome a direção de Chengdu. Chegando lá, aconselho deixar seu carro. A região para onde vai é muito pobre, e o veículo chamará atenção de uma forma que é melhor evitar. Em Chengdu, vista as roupas que lhe mandei entregar, elas o ajudarão a passar mais despercebido entre os moradores do vale. Pegue um ônibus, na direção do monte Yala. Não sei o que mais aconselhar; para um estrangeiro, é impossível entrar no monastério de Garther, mas, quem sabe, a sorte lhe sorria. Tome cuidado, você não está sozinho. Antes de qualquer coisa, queime este papel. Estou a 800 quilômetros de Chengdu, preciso de nove horas para chegar. A mensagem do monge não abre grandes expectativas, pode perfeitamente ter sido escrita com a finalidade exclusiva de me afastar, mas não o imagino capaz de tanta crueldade. Quantas vezes, no caminho até Chengdu, voltarei a essa pergunta...? 23 À esquerda, a cadeia de montanhas estende suas sombras assustadoras pelo vale cinzento e empoeirado. A estrada atravessa a planície de leste a oeste. À frente, as chaminés de dois altos-fornos se impõem no meio da paisagem. Liuzhizhen, mineração a céu aberto, céu escuro sobre lotes de terra, terra de extração mineral, paisagens de tristeza sem fim, vestígios de antigas fábricas desativadas. Chove, não para de chover e os limpadores de para-brisa mal conseguem afastar a água que corre. A estrada está escorregadia. Ao ultrapassar algum caminhão, os motoristas me olham curiosos. Não deve haver muitos turistas circulando nessa região. Já percorri 200 quilômetros e ainda tenho seis horas de estrada pela frente. Gostaria de telefonar para Walter, pedir que venha me fazer companhia; a solidão me oprime, não aguento mais. Perdi o egoísmo da juventude nas águas turvas do rio Amarelo. Com uma olhada no retrovisor, vejo que meu rosto mudou. Walter diria ser o cansaço, mas sei que passei por uma etapa, sem possibilidade de volta. Seria bom ter conhecido Keira mais cedo, não ter perdido tanto tempo achando que a felicidade estava no que faço. No que se refere à felicidade, a coisa é bem mais simples: se encontra no outro. Chegando ao final da planície, ergue-se à frente uma barreira de montanhas. Uma placa indica, em escrita ocidental, faltarem ainda 660 quilômetros para Chengdu. Um túnel, a autoestrada penetra na rocha, passo a não poder mais ouvir o rádio, mas pouco importa, aquelas músicas pop asiáticas são insuportáveis. As pontes atravessando profundos cânions quase se emendam uma na outra por 250 quilômetros. Paro num posto de gasolina em Guangyuan. O café não estava tão ruim. Com um pacote de biscoitos no banco ao lado, retomo a estrada. Toda vez que entro em um vale estreito, descubro minúsculos vilarejos. Já passa das vinte horas quando chego a Mianyang. Nesse centro de ciência e tecnologia, a modernidade impressiona, à beira de um rio, com altos arranha-céus de vidro e aço. Cai a noite, e o cansaço se faz sentir. Deveria parar para dormir e recuperar as forças. Vejo o mapa: depois de Chengdu, chegar ao monastério de Garther de ônibus vai me tomar várias horas. Mesmo com a maior boa vontade do mundo, não vou conseguir chegar esta noite. Encontrei um hotel. Deixei o carro e andei ao longo do caminho de cimento que margeia o rio. A chuva parou. Alguns restaurantes servem o jantar em varandas úmidas, aquecidas a gás. 24 A comida é um tanto gordurosa. Longe, um avião decola com um barulho ensurdecedor; passa por cima da cidade e toma a direção sul. Provavelmente o último voo da noite. Para onde vão esses passageiros atrás das janelinhas iluminadas? Londres e Hydra estão tão longe. Sinto-me deprimido. Se Keira estiver viva, por que esse silêncio? Por que não deu sinal algum? O que pode ter acontecido para que tenha desaparecido assim? O monge talvez esteja certo, essa ilusão pode ser loucura minha. A falta de sono exagera as ideias sombrias, e o escuro da noite influencia. Minhas mãos estão úmidas e a mesma umidade se insinua pelo meu corpo todo. Sinto que tremo, não sei se de calor ou de frio; o garçom se aproxima e imagino que esteja perguntando se estou bem. Gostaria de responder, mas não consigo articular a menor palavra. Continuo a passar o guardanapo na nuca, o suor me escorre pelas costas e a voz do garçom parece cada vez mais distante. A luz da varanda fica clara demais e tudo gira ao redor. O vazio. O escuro se dissipa, pouco a pouco surge uma claridade e ouço vozes: duas, três? Falam numa língua que não compreendo. Algo fresco encosta no meu rosto, preciso abrir os olhos. Vejo uma velha. Ela me alisa o rosto, querendo me fazer entender que o pior já passou. Umedece meus lábios e murmura palavras que imagino serem tranquilizadoras. Sinto um formigamento, o sangue volta a circular em minhas veias. Tive um mal-estar. O cansaço, uma doença encubada ou algo que eu não deveria ter comido, estou fraco demais para pensar. Deitaram-me num sofá de forro macio, nos fundos do restaurante. Um homem se juntou à velha senhora que me ajuda; era seu marido. Também sorri para mim e tem o rosto ainda mais enrugado que o dela. Gostaria de dizer alguma coisa, agradecer. O velho aproxima uma taça da minha boca e me força a beber. O líquido é amargo, mas a medicina chinesa tem virtudes inesperadas, então aceito. O casal de chineses se parece tanto com o que Keira e eu vimos, um dia, no parque Jingshan, são idênticos, e essa impressão me tranquiliza. Minhas pálpebras se fecham, sinto o sono tomar conta de mim. Dormir, recuperar energia, é o melhor que tenho a fazer, então espero. * 25