Estuário Pantoja Ramos 1 Prefácio Estuário do Rio Amazonas. Esse é o tema predominante dessa primeira obra minha. Versos e dissertações iniciais sobre o que vi, conversei e mentalizei sobre a natureza, homens, floresta e bichos das terras estuarinas nestes vinte e nove anos de vida, intensificados pelas minhas andanças quando dos trabalhos de manejo florestal comunitário, promovidos por uma Organização Não Governamental a qual trabalhava. Um conjunto, aliás, que vai além da definição direta de marajoara: pois o Amazonas é o colosso que determina o padrão de vida existente, sua velocidade, lançantes e pacuemas dos destinos. Artefatos de tribos e aterros artificiais da ilha de Marajó e cemitérios em escavações subterrâneos no rio Cunani no Amapá são mostras que a região foco deste livro é muito mais do que simplesmente um grande arquipélago. Trata-se de um berço amazônico. Belém e seus arredores, Cachoeira do Arari, Gurupá, Breves, Portel na sua parte norte, São Sebastião da Boa Vista, Curralinho, Afuá, Macapá, Santana e outras localidades formam a cadeia humana e natural de um sistema único na Amazônia e diversificado dentro de si, o Estuário. Certamente, estarei eu equivocado sobre a abrangência real, numérica e geográfica da área que estou me referindo, mas não me preocupo. Seria preciso n vidas e meia para chegar à descrição total de seus valores. Alguns ilustres o fizeram como Benedito Nunes, Paes Loureiro, Dalcídio Jurandir, etc. Eu só coloco mais uma insignificante pá de terra nessa narrativa, nada mais. As florestas das várzeas, um segredo. Os homens e mulheres nativos, impressionantes. Os rios, trajetos e trajetórias de vida. A História, inexorável aos povos que se deixaram humilhar pelos patrões, pois se atrasou muito o despertar de um desenvolvimento comunitário e sustentável; e punitivo certamente para os próprios coronéis, uma vez que todos aqueles que oprimem são jogados no limbo divino e da espécie humana, antiedificantes que são e foram para formar um mundo equilibrado. Tentativa houve de minha parte de apimentar os versos com filosofia, política e amor. Filosofia que justifico como importante para os ribeirinhos e caboclos. Não me refiro naqueles sofismas insondáveis aos plebeus, mas sim de fazer os simplórios reconhecerem o bom significado de se fazer uma pergunta ou de olhar para os céus de vez em quando. Os complicados que fizeram da filosofia uma coisa chata! Posso não conseguir meu propósito, mas tive a intenção de provocar mais do que tudo. Eis a máxima intenção. O amor também fica guardado nas entrelinhas dos poemas. Espero não ter sido piegas demais quando o homenageei. Acredito nas palavras mais bonitas sobre o amor quando estas não são declamadas e sim subentendidas. Confesso que a timidez também me joga para esse desfecho. E nesse sentimento eu traduzo a minha vontade de escrever sobre algo que me fascinou nestes anos: a constatação que ricos ou pobres, estudados ou analfabetos, sortudos os desafortunados, somos parte de um mesmo todo e assim mesmo, universos particulares, de Deus, da natureza, dos homens, uma esculhambação misteriosamente organizada. 2 Índice João Ingá Pai, João Ingá Neto, João Ingá Incerto .............................. 4 A rede Rosada e a rede Xadrex ................................................. 8 Gurupá de São Benentônio ..................................................... 12 Para os meninos do Estreito de Breves ........................................ 20 Maria Nossa .................................................................. 23 Reflexão na Paixão ........................................................... 25 Estória de Ipê ............................................................... 28 Na tolda do barco, eu fico ................................................... 33 Tio Bel ...................................................................... 35 Estuário ..................................................................... 38 Certa vez uma valsa na comunidade ............................................ 43 Conhecimento sobre o peixe ................................................... 47 As seis pragas ............................................................... 48 Tem cutia pro almoço? ........................................................ 51 Canção do mururé ............................................................. 53 O Elias ...................................................................... 55 Casamento .................................................................... 57 O duelo entre Tio Bel e Seu .................................................. 58 Vinte e oito verões .......................................................... 60 Tio Chico do Bonzão .......................................................... 62 Pretensão de pintura por palavras ............................................ 63 Carreteiros .................................................................. 65 Marcha do Escoteiro .......................................................... 68 Às jovens mães ............................................................... 70 Geometria especial do traído ................................................. 72 A filosofia do abrir mão... .................................................. 73 Círculo da vida .............................................................. 75 3 João Ingá Pai, João Ingá Neto, João Ingá Incerto João Ingá Pai corria na faia, juntar malhadeira e peixe jantar cuidado com o casco, o pau tá na praia remendo carece pro ir labutar; e a várzea que enche transborda pra depois quebrar. E anda no mato com facão na mão eu vou jupati, tu vais matapi, pegar camarão, zagaia descalço arraia remorso ferida inflama pinica semana. Machado que bate, o tronco é boiado “e faço jangada e firmo engate”. Mulher de João o tempo que sobra da bóia, da reza, da roupa que seca catando semente, depura andiroba e ensina à filha brincar de boneca. Boneca de talho 4 de um buriti, na cara um olhão de um caroção bem preto açaí e a filha que brinca enfilha e trinca os dentes aos quinze marido ausente. “ausente, mas crio”, comenta o avô “ispia, meu fio, te cuido, te formo, te faço doutô”. João Ingá Neto estudo não veio motivo o avô Deus logo levou, mantinha a casa, não via qual meio de vir a ser lido, ainda mais professor; e a esperança de dias melhores para ele acabou. Andava no mato com facão na mão decepa palmito lhe mandam no grito humilha o patrão os homens no centro mosquito tormento mutuca 5 maruim “dou tapas em mim”. “Açaí já não tenho, então o que resta? Andar bem distante a léguas dali? Matar minha fome consigo, que festa! Senão, o que faço? É patrão seguir”. “e corto madeira no dia inteiro no trampo, virola às vezes, uma bola e pego dinheiro”. “e compro farinha tabaco galinha um tanto eu guardo pro feijão um fardo”. E bem fica nessa não muda, não cresce, a mata minguando de tora, de caça, barranco que desce. João Ingá Incerto é neto do Neto do primeiro Ingá da prosa que fiz 6 e mais do que os outros, só vive quieto e mora nas ruas, cidade infeliz. Levou já três facas, um tiro, não morreu por triz. Não tem um trabalho qualquer em Santana quer queira, não queira só anda na feira descuido, me afana. Cordão de ouro puxão no couro soldado que pega “no olho me cega” e sonha com mato que a fonte não cessa... x x x x x x x x x x x x x x x x 7 A rede Rosada e a rede Xadrex A rede rosada sublime exalava perfume pra certa rede Xadrex que veio em balanço bem calmo e manso cantando cortejos e assim o fez “esta viagem é um sonho pois você eu queria encontrar te espana e encosta em meu punho para que eu nunca mais possa acordar.” a rede rosada se viu vermelhada e deixou o Xadrex bem perto de si e bem se tocando foram balançando com aquele Banzeiro aplaudindo assim “mas que ilusão venerada 8 que eu nunca mais tinha avistado que pena! a dona da Rosada vai descer no primeiro aportado.” a rede Xadrex engatou por sua vez sua corda pra amada não ter que ir a moça puxava enfim desatava guardava a rosada e assim partir “volta, ó minha adorada então juro, eu vou te buscar que seja minha derrocada nós juntos vamos balançar!” a rede Rosada de dentro chorava da mala se ouvia um suspiro fino e aí se separam mas sempre lembravam dos bons ventos-canto o som do hino 9 “esta viagem é pra sempre que eu nunca mais possa aportar nos anos, que a gente se lembre dos tempos de um lindo tocar” a rede Xadrez faz três anos talvez que procura a Rosada nos barcos afora já toda puída mas bem destemida enfrenta as ondas bradando agora “ó maresia do mundo, me ajuda e que eu possa encontrar me veja como estou moribundo sem rumo, sem força, sem lar.” engata na franja a Rosa com mancha a rede perfume a exalar o Xadrez se espanta feliz é que espana que acorda 10 os outros com seu gritar “Esta viagem é de sorte! Pois você, meu amor, encontrei! e nem que eu rasgue pra morte! minha vida valeu, eu bem sei...” A dona da Rosada e o moço do Xadrex também ficaram engatados para o fim da vida o vento que os balança é o mesmo que nos sopra e lá na alma agitam o Xadrex e a Rosada não é Banzeiro? “que os digam!!” x x x x x x x x x x x x x x x x 11 Gurupá de São Benentônio Canto I São Benedito, olha por nós Devota que sou, que sou a pedir Tira-me o encosto, retira os nós Daquela maldita, marido a fugir! - Ó, minha filha que pensas? Eu vejo o absurdo que fazes com teu esposo não pode nem o homem jogar bola! Repreende-o Escroteia-o briga por toda a parte da casa alcunha de mole a ele tu oferece! Só podia fugir. E por tal eu digo sem pena Verdade que vejo, só posso apontar Humilha teu homem, futuro acena De mulher sozinha, as coxas juntar. São Benedito, olha por mim Um homem de bem, piedoso que sou As preces eu faço, as contas sem fim Comércio quebrado, falência que vou! - Escuta macho já via tua laia engana os outros vende unidade com preço de caixa 12 de caixa caixote de fósforo molhado farinha bolenta conserva amassada ninguém compra e tu choras. E agora eu falo sincero Tu deves, os cheques voltaram Maldade que tinhas, espero Pobreza te estar, pra outros mostraram. São Benedito, ó negro, bondoso que és Santo Antônio, ó branco, me ouve momento Me ajuda, eu juro, atiro-me aos pés Me arruma uma coisa, quero casamento! - Ô moça espivitada. - Tu é doida ou o quê??! - Te acalma. - Enxerida! - Tua hora chega. - Toma teu termo! - Balança a saia. - Que nada! Reza três terço!! - Achamos ser o teu acalanto Amigos, vontade do bem a fazer - Casa bem virgem, uns trinta e tanto!! - O que importa é na hora o amor envolver. Ó piedoso Benedito, te faço ofertório Ainda bem que sou um senhor fiel Um cabra de nome, de modo notório Eu bem que mereço um lote no céu! 13 - Ofensa!! - Blasfêmia!! - Um caboclo que reza mas pisa fora da igreja tá fuxicando da vida da morte de tudo - Todo alinhado coração de pedra dá cascudo em menino que caiu no quintal tirando manga. - Senhores nós somos do que passa na Terra - Por mais que se tente os crimes encobrir - A hóstia não gera a paz, nem a guerra - Mas diz que cristão é querer construir. Me falem, ó Santos, me fala Antônio Aconselha-me, por favor, São Benedito Da morena eu tenho calmo matrimônio Mas a branca me atiça aquele, o dito! - Sem vergonha! Mulherengo! - Peraí Antônio, eu digo. Pecador, depois do bem-bom me fale: quem lava tua tanga? Cuida da tua moleza? Te bota comida no prato? Perceba! - Salomão pede pra eu te falar: 14 “ama a senhora da tua juventude tão linda gazela, um zeloso olhar o riso confiante, no deserto, açude! Canto II Fazendo uma prece pra São Benedito Sentado na vala, um porre tão bonito Andando que nem um velho periquito Eu vejo Antônios, tipos esquisitos “Que raio está na minha frente agora! Um porre deitado na minha igreja, ora Sai logo daqui ou eu te boto fora Casa é de respeito, não onde bebum chora! Eu olho chegar dois Beneditos escuros Nem pisavam na terra, flutuavam, juro Dançando contido, um movimento puro “Me faz a promessa que eu garanto, curo!” “Ó, Benedito, desse jeito não dá! Arruma outro canto para tu ficar! Tô cheio de festeiro que vem a deitar! Na minha igreja feito a profanar!” “Mas Antônio, que posso eu fazer? Eu ralho com eles, eu faço chover Porém, as festas não ficam a ceder Quanto mais trovoada, mais tão a querer!” “Não tem outro modo, te arruma daqui Pra outra cidade, bem longe tu ir Eu peço uma ordem, para permitir Outro município pra tu residir.” 15 Desculpa, Seu Antônio, escuto o fato O seu esculhambo pro homi do lado Me deixa um porre de sina, de fardo Me meta entre os dois, um conselho dado? - Tudo bem! Que tem farreiro incomodando, que seja Mas rezam fervorosos aos dois, eleja Que Junho e Dezembro são cânticos, e veja Quem arruma dinheiro pra sua igreja? “Seu porre desaforado, o que estás a citar! Não sou mercenário, sou santo de altar! Mas concordo contigo, razão é que está Milhares que vem, rezam, neste Gurupá! Tá certo, fica Benedito, te dou permissão Contudo, controla a farra desses beberrão Não quero orgia, quero sossego então A festa é religiosa, profana, não!!” “Tá certo, Antônio, obrigado a chance brigado seu moço, brilhante seu lance que é isso, Antônio, que faz neste instante?” “existe algum mal no fato que eu dance?!!” Canto III Santo Antônio, indagaste Santo Antônio, indagaste O que é o gurupaense Santo Antônio, indagaste: Eu digo: A maresia te bate! 16 A maresia te bate! Tens tanto para mostrar! A maresia te bate! Ao menos que mate! Ao menos que mate! As lições que tu fazes! Ao menos que mate! O patrão te maltrate! O patrão te maltrate! Teu grito de liberdade! O patrão te maltrate! O caminho ensinaste! O caminho ensinaste! Das matas, conservação! O caminho ensinaste! Os ribeirinhos embatem! Os ribeirinhos embatem! O poder que vem de cima! Os ribeirinhos embatem! Só admite empate! Só admite empate! Se os direitos também empatarem! Só admite empate! Só tem espírito de Marte! Só tem espírito de Marte! Que não abraça a causa comunitária! Só tem espírito de Marte! São Benedito, mostraste São Benedito, mostraste 17 O que não havia entendido São Benedito, mostraste. Canto IV O cantar da cigarra anuncia Sol de tarde, que vamos louvar Levantado o mastro no dia As festanças do meu Gurupá Foliões de estandarte erguido E marchando num passo veloz Nos olhares de São Benedito No momento se eleva a voz Glorioso Santo da terra O Amazonas te abraça bem forte Nos retira do espírito a fera O pecado, o medo a morte Nos dê força, coragem, o brio Desafio que vamos vencer Nossa matas, os bichos, o rio Que juramos sempre proteger A mulher que me cata à janela E que amassa o meu açaí E se banha, se mostra tão bela Protegei, que sou grato a ti Glorioso Santo da terra O Amazonas te abraça bem forte Nos retira do espírito a fera O pecado, o medo a morte Abençoa o pobre pescador, 18 O roceiro, extrator de madeira Do açaí, protegei coletor As pessoas que fazem a feira Os boa-noite, boa-tarde, bom-dia Preservai quando vou perguntar Aumentai a nossa simpatia Que famosa já é no Pará Glorioso Santo da terra O Amazonas te abraça bem forte Nos retira do espírito a fera O pecado, o medo a morte Carrazedo ao Itatupã Damos graças, louvores a ti Agradeço o sol da manhã Do Flechal até o Marajoí Benedito, o Santo, o negro Um carinho a nós que encerra Mas não diz e não fala o segredo Do por que de amar nossa terra Glorioso Santo da terra O Amazonas te abraça bem forte Nos retira do espírito a fera O pecado, o medo da morte x x x x x x x x x x x x x x x x 19 Para os meninos do Estreito de Breves Meu Pai do Céu Protegei pra engatar O meu gancho no barco Que lá vem a passar Eu preparo a corda A canoa aprumar E eu miro certeiro O pneu acertar Meu Pai do Céu Consegui engatar Me agüenta irmãozinho Que só falta amarrar E eu pulo no barco O palmito mostrar É um conto cumpadre Pra poder me ajudar Cresço em fel A tardinha chegou Com o vento bem frio E a noite um horror E na volta pra casa A tormenta pegou E eu casco se vira Irmãozinho quedou Cresço em fel O meu medo passou Os meu doze inteiro Mais vale um avô 20 Pois tem homem medroso No escuro cegou Que se liga no luxo E os outros esnobou Tiro o chapéu Pra quem vem me ajudar Que me tira da lida Desse duro penar Que me bota na escola E que vem me ensinar BE com A BE-A-BÁ O que é manejar Tiro o chapéu Pra quem vem gargalhar Duma prosa animada Uma festa dançar E esquece a má vida O exemplo mostrar Pro irmãozinho que tenho O caminho guiar A vida é mel Brincadeira eu sou Me divirto remando Maresia pulou Se errei no navio E a canoa afundou O balanço da bicha Dou um tchás e voltou 21 A vida é mel E o sol me queimou Camarão que levei Minha fome catou O que vendo não rende Minha mãe me avisou Ela sonha de um dia De me ver um dotô Meu Pai do Céu Vou me aventurar Nesses rios do Senhô O Riozão enfrentar Pois eu sei que seu Porto É um bom de abraçar É a melhor esperança Nesse mundo que há Enquanto os homens Não aprendem a brincar Ser criança de engate E um sonho atracar Açaí uns paneiro Umas vagens de ingá É limão, é banana Compre taperebá... x x x x x x x x x x x x x x x x 22 Maria Nossa Vou pedir a Jesus Cristo e a Deus -Licença. Nossa Senhora de Nazaré. Nossa! Como és bonita Acho bela sem maldade Vestes brancas de paz, de infinitude Ralha comigo com os olhos e eu nem reclamo Reza por mim e eu nem reparo Só vejo a pureza, a beleza A advocacia. Sonhei com ela quando criança Mistério. Percebo ela quando adulto É serio. Vejo-me comprando um caderno Com seu rosto possível na capa Não é a face É o símbolo É a alma Serei devoto? Estarei melhorando? No caráter o voto? Talvez eu esteja simplesmente Entendendo o amor de Deus E de seus mártires pela Causa Tão Magníficos Tão Donzela 23 Tão Bela Tão Forte Tão Mãe Parabéns Jesus! Sortudo Jesus! xxxxxxxxxxxxxxxx 24 Reflexão na Paixão Certa vez eu achei Que poderia ser Jesus por um dia. Blasfêmia! Mal provocado e injustiçado Praguejei Briguei Nada entendi. Carreguei uma tira da madeira da Cruz E não suportei. Não mereço Sou vil! Acho que tenho que me virar no avesso Olhar para dentro de mim E ver o mundo As pessoas Os sentidos da vida. Ele assim o fez. Na ignorância que percebeu Declamou -Perdoa-os... eles não sabem o que fazem. Discordou dos olhos, Ouvidos, Sabores, Prazeres, Peles dos algozes seus. Concluiu que eram apenas sentidos da carne. E no sofrimento seu De Corpo Foi mais forte no Espírito É o que vale, ensinaria Afinal, o que fica para a eternidade E para o Eterno? XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX 25 Virola Que o vento me sopra do Norte e o sol me bate no chão, meus braços se estendem, que porte! Sou fino, malhado então. Meu sangue escorrido é laranja, não te aflijas, espinhoso não sou. Me cortas, disfarço a mancha do choro, dor, da mágoa que estou. Do pesar que sinto, dos tempos de era... Meus pais, irmãos, brincando na terra... Na terra? Na várzea! No barro, igapó! Alvarães, Santarém, tal Porto de Moz! Gurupá, Almeirim, Mazagão, Afuá! Breves, Portel, De Belém-Macapá! Minha tribo saudava o Forte, O Grande dos Rios, não vi dimensão. Irmãos meus corriam na sorte nos frutos, mudas, no cio, dispersão. Do sexo das tribos, flechavam com beijos besouros-cupidos, nas flores casal. Misturam distâncias, perenes ensejos, em novas colônias, que formam pontal. 26 E assim do que eu era gabava, rei das várzeas, um onipotente, Com outros, coitados, rivalizava Um brilho, a mim, só era presente. Não tão veloz quanto mulato, não tão forte quanto pracuúba, não tão duro quanto andiroba, não tão raro quanto maúba. Não, não sou tão adjetivo assim, freqüente que posso, frequente vou ser. Escapo das gulas, escapo do fim, Das vis criaturas, que andam de pé. Perseguem as tribos, existem ou ão. Os tipos adultos, a dor se suporta. Mas jovens de mim, coitados então, me soam sinistro: espécie já morta? Machados, motosserras, compensados, vassouras, conforto de uns, para outros, vindoura? Enquanto isso minha tribo escorre da várzea, do barro barriga do soiá. Adeus, besouros, marés, vento Norte. À Deus, eu juro, eu vou reclamar... x x x x x x x x x x x x x x x x 27 Estória de Ipê Senhores, senhoras, meninos, meninas, Que andam nas ruas desta cidade Não olham pro nada, só olham de esquina Não param pra ver do mundo a verdade. Verdade de si, de criar, de pensar Sair da TV, buscar solução Segredos da terra, sequer indagar: “existe loucura na imaginação?” Permitam favor, poder lhes contar Estória absurda que por mim passou De um longínquo tempo, do tempo rimar De era tão simples, tão louco supor. Um homem distinto de seus semelhantes Cuidava com zelo de sua floresta As flores o tinham como tal amante Os bichos, todinhos saudavam em festa O zelador plantava, era esse o vício Em época que árvores se viam montão Angelim, mogno, cedro, que ofício! Andiroba, copaíba e até fruta-pão. Louro, que faia, que rosa, ingá Guajará, quaruba, breu, cumaru Cupiúba, anani, cajuí, piquiá Cinzeiro, cedrorana, fava, acapu Todas plantava, todas vingavam Folhosas cresciam, sadias, mimosas Em torres diversas se apresentavam Esguias, posudas, grossas, vistosas 28 Cresciam traquinas, com ar natural Namoros, de perto, de longe ocorriam Mandavam bilhetes ao vento postal Insetos-cupidos, respostas traziam Faziam sua prole, espalham na terra Mudas que o zelador um dia há de vê-las Gratas ao mestre, as árvores encerram Um laço perene, sem nunca perdê-las Porém, uma delas, de folha pentada Escondia o algo mais que ali sentia E vezes tantas, se viu, vil, tentada De contar ao mestre o que mesmo queria Não desejava outras árvores, insistia Às outras que no cochicho sempre estavam Amava o zelador, para a morte iria Se o mesmo a ordenasse, e disso pensava Mas o dito homem, impassível, sereno Um compromisso antigo, de moço, dispunha De uma jovem loira de sorriso ameno Cravou no peito da planta uma cunha Motivo, ida embora do tal zelador A noiva exigia morar em fazenda Sem árvores, só pasto, só gado, que dor De sua floresta, tornar-se uma lenda “Vais daqui? Não vá!” Clama a arvoreta que desponta como bela e esgalhada “Suplico, tira-me do tronco esta seta da alma a sensação do vazio, do nada!!” 29 o zelador, já saudoso, no momento da ida Abraçou a arvoreta com fundo pesar No caule, acariciou a mão já tremida As manchas que tinha bem visto brotar E foi-se. O fim de seu mundo surgiu. As árvores as folhas, os lenços brandavam “Adeus, nosso mestre, o futuro sorriu Pra quem é cortês, a quem tantos amava!” “Retornas, querido, pra sombra que tenho. Não sou mulher, dizes, que posso fazer? Nos teus sonhos, saio do solo e venho Dizer que te quero, sua simples Ipê!!” Os meses passaram, o choro mantinha As folhas, já fracas, caiam, caiam Magrela que estava, já estava varinha Nem lembrava a bonita que o Sol reluzia Os mais velhos, com Ipê preocupados Decidiram tão logo um arauto enviar Pro tal zelador em tão longe ducados Que este necessário, precisa voltar O mogno urgente mandou sua semente Que o vento, urgente tratou de soprar Procurando por toda a sorte de gente O antigo mestre, por fim o encontrar O zelador agora no seu pasto estava Tedioso com o destino que era assim Tão iguais entre si, diferentes da fava Que o exemplo esnobava o ignóbil capim Até que um dia, pra surpresa geral 30 Um mogno meteu-se no pasto a brotar “Aqui esse tipo nascer não é normal Me lembro da mata, eu vou é voltar...” “Mulher! Eu desejo, quero regressar! Pra minha floresta, pra minha hiléia Me dá uma semana, eu vou retornar Só quero a visão, rever a idéia!!” O Angelim, que na mata olhava do alto O zelador se chegando pra junto dos seus Alertou esparrento que causara o salto De um macaco assustado, que noção perdeu “O mestre vem vindo, atenção, agora Balancem os galhos, sussurrem olá Cadê a arvoreta, ela acaso ainda chora Por seu amor proibido, está? Está?” A arvoreta, não estava preparada Estava varinha, feiosa, magricela “Tupã, me ajuda nesta hora esperada que só quero a frase: me orgulho dela” e num desses milagres do Supremo SER Que mostra a grandeza da vida que é bela Eis que desponta na sofrida Ipê Dezenas da mais linda flor amarela E ela si mostra um anjo na mata Loirinhos tesouros que léguas se via Surgiam mais flores, que bela, exata! Caiam na terra, enfim, coloria “Tupã! Ipê! Ipê! Como linda estás!!” “Orgulho de mim!” – gritava o homem 31 “A minha presença não era demais, te dar formosura, que digo sem nome!” E assim o zelador feliz, um abençoado E a arvoreta ditosa, sua majestade Se viam de longe, do longe ducado Colossal, sublime, radiante, beldade Senhores, senhoras, aqui eu termino Tais notas que foram, que são ou serão Pergunto à moça, indago ao menino: “Existe loucura na imaginação?” x x x x x x x x x x x x x x x x 32 Na tolda do barco, eu fico Estrelas tão perto, tão perto de minhas mãos. Não posso evitar: ergo-as e seguro as luzes, elas tentam fugir. Opa! A Estrela D´Álva, não! Quieto, menina! Espalho-as no céu. Agora tenho constelações que eu quiser. O cacho de açaí, o camarão, a rede com um menino dentro. É só balançar, balançar. Cadê a tesoura? Ah, tá aqui! Voa, tesoura, voa pra rumo do mosquitinho que vai em sua direção lá longe... como eles me vêem? Sou velho ou sou novo? Talvez eu nem brilhe tanto aos seus olhos e elas me espalham como eu as trato, me formam constelações de humildade, pequenice, dúvida e infinito. Afinal, quem será o eterno? Acho que somente o Criador que nos espalha. Resolvo então cair pra junto delas. 33 Um só nós somos, em todos os tempos, em todos os cantos, o cacho de açaí, a paz, a luz, o olho, o já era, o agora, o será, a estrela, a estrela... - acorda, moleque, desce daí, que teu pai já vai ligar o motor do barco! Quer cair no rio??? - Já vou, mãe, já vou pro sonho da rede. x x x x x x x x x x x x x x x x 34 Tio Bel “Tio Bel, Tio Bel!” - Onde é que tu tá! “Tio Bel, Tio Bel!” - Vamu namorá?? “Não posso dizê pois tenho vergonha, mas sei que tu pensas e comigo sonha. Eu sei do vadio, da peste que és, do bicho remoso dos choros que fez”. - Meu bem, meu bem, não olhe esse lado. Meu bem, meu bem, sou moço educado: Eu busco donzelas, pois esse é meu fraco, mas todas eu trato princesas de fato; eu canto a beleza, dedico seresta, eu beijo a mão nua, eu beijo na testa. “Tio Bel, Tio Bel!” - Aparece pra mim! “Tio Bel, Tio Bel!” - Me mata assim! Eu corro pra fonte pra num velhecer, pra modi namoro eu pudé fazer; 35 nos dia de festa fico a cortejar, convido donzela: umbora furar?? “Tio Bel, Tio Bel! Tu cria teu termu. Tio Bel, Tio Bel! Tá velho, né mermo? Tu diz que ainda fura, tu podi mentir, a todos engana, mas nunca a mim. Seu peste sacana, pinguço, vadio: como podes ainda ser puro, gentio?” - Meu bem, meu bem, eu vou te contá. Meu bem, do céu espero acertá. Eu conto as coisa que a mulhé bem qué. Se minto, importa? Mas vale a fé! Tu és as estrela do céu, a canção; Tu és a envira do meu coração: rasgando meu peito de cima pra baixu, matandu de amor, um pobri de um machu. “Tio Bel, Tio Bel! 36 Eu vou revelar. Tio Bel, Tio Bel! Quem sou afinar. Eu sou a menina dos tempo de moço, que morreu mais cedo de puro remorsu. Quandu ti deixei, prucausa de um homi que bate, feria, metia-me fomi; e logo aprendi o bem que tu era: espero ainda ser a tua donzela” - Tio Bel, Tio Bel! Feliz é que está! Tio Bel, eu sou! Vamu namorá? Perdôo minha filha, tudo já passou, me lembro da Dita, que ali me deixou. É o jeito te tê pensando ao menos e quando eu morrê, me venha em aceno. Te chamo querida, te pego o céu, te faço do eterno, Um doce de mel. “Tio Bel, ô Tio Bel...” x x x x x x x x x x x x x x x x 37 Estuário Que enche Que vaza Que vaza Que enche Preparo Barquinho Na água Corrente O óleo Boroca A rede A corda O filho Maré Parada Já morta A força Motor Fumaça Volante Beirada De rio Galhada Errante Que vaza Que vaza Melhora Corrida E anda No meio No rio 38 A partida “Tão grandi, Tão rio Só Deus A criar... E dormi Meu fio Depois Pilotá” Escuro E venta Do Norte Soprar O raio Aviso A chuva Chegar “E fecha Janela Num molha A rede E tira Farinha Do lado Parede” Pilota Barquinho Pro rumo Beirada A chuva Que pega “Relampa 39 Vistada” O vento Bem forte Ma-re-sia! Ma-re-sia! A água Porão É va-si-lha! É va-si-lha! Ba-lan-ça! Ba-lan-ça! Pro rumo Bei-ra-da O bar-co Ga-ran-te? Aposto: Que nada! Piloto Sabido Que sabe Rumar Me faz Diretinho A boca Calar Ba-lan-ça Ba-lan-ça Chegou Na beirada “A corda Aperta No ramo 40 Galhada!!” E Raio! E Chuva! Trovão! Assobio! Cadê A coragem De ficar No Rio? Molhados O pai A rede O fio “Te enxuga Toalha Escapa Do frio...” E raio E chuva Afina Afina A nuvem Estrela Sozinha Cortina “Sumindo A chuva Já dá Pra sair: E troca Comigo Eu vou 41 É dormir! E corre No rio No meio Nem tanto E toma Café Pro sono Espanto...” E pronto No porto “Chegamo!” Atracar A força Do homem Só Deus A criar... x x x x x x x x x x x x x x x x 42 Certa vez uma valsa na comunidade Escuta, querida Que vou te ensiná Passinho pro lado Passinho pra cá Teu pai me vigia Cum olho dali Repara se eu fico Se eu fico a bulí Escuta, donzela Respira então Pertinho de mim Bate um coração Aperta teus dedos Nos meus dedos vem Que eu sinto, menina Um lhe querer bem Escuta, seu moço Afasta teu peito Num fala tal coisa Me deixa sem jeito Repara o meu pai Que a cara tá feia Me pega em namoro Eu fico na peia Escuta, seu homi Até que lhe quero Mas beijo na boca Só em caso sério Afasta tua fala De perto do ouvido Que fico sem graça 43 Seu grande atrivido Pois olha, menina Eu vou te contá Que modo dirfíci De te conquistá Mas vale a pena Menina prendada Que vou te chamá Minha namorada Depois eu te pego Da casa do pai E mesmo pergunto: Será que tu vai? Eu faço uma casa Madeira de fé Te trato rainha Te faço mulhé Ispia, muleque Que tô ti ouvindo Tô só reparano Teu jeito metidu E chispa daqui Pra fora e já Que mandu dipressa Dipressa capá!! Perdôa, seu homi Num faço mais issu Num quiria tê Nenhum rebuliço Mas posso pedir A mão da donzela? Qui acho formosa Qui acho tão bela! 44 Só podi casório Quer queira, quer não Se é homi di fatu Di calo na mão Eu mostro meu calo Sou moço de bem Não sou vagabundo Recrama ninguém Vem cá meu maridu Pro cantu da festa A filha, já moça O rapaz bem presta Tu diz desse jeito Tu podis sabê? Como é qui tu sabi? Me lembra você... Teu jeitu mi agrada Eu vou conceder Mas ficu di olho Num pode mexê Brigada, paizinho Do moço eu gosto Eu fico quietinha Num causo desgosto E vamu dançando Teu pai já deixou Que homi tão brabu Até mi assustou! 45 Dançando nós vamu A vela apagou? Depressa, aproveita! Um beijo tascou... x x x x x x x x x x x x x x x x 46 Conhecimento sobre o peixe O Filosófico é assim Pro peixe, liberdade não há Não alma, não começo , não fim Existência finita que está O Teológico, sagrado que diz Multiplicados, milagre que foi Pecado a gula que fiz Na Paixão, não carne, não boi O Científico supunha o ser Estoque de peixes contar Das teses, espécies de ter Nas vitas, nas minas, gerar O Popular, humilde, modesto Responde ao repórter, abusivo - Você mata pirarucu pra comer? - Não dá pra comer bicho vivo! x x x x x x x x x x x x x x x x 47 As seis pragas O pium. O suco que puxa da pele do peão. Do planalto, Do igarapé, que corre na trompa do Jari, Tê-um. Praga de pretinho que prega no braço picada de agulha que arranca aquele um! A mutuca. A fera que mata a moleza da moleca. Do molhado, da maresia, que fica no trecho de Santana, cutuca. Meleca de moléstia que maçante maçarico incomoda mexida a rede fura! O maruim. Coisinha que mete mal-estar no namoro Do menino. Da mordida, do vespertino 48 de Joanes, ruim. Mazela de morte que maltrata maluco deixa irritado a manha sem fim! A caba. O vôo que pica tal faca na cara. Da casa esquecida, do tronco caído de Curralinho, ferrada. Cassete de coisa que em caçada espanta até o cacique cadê a danada?! O tachi. O time que trava a luta com o caboclo. Da árvore, que encostado tremi, em Portel,bati. Troço de tormenta que caiu da testa ao tornozelo me tira daqui! A carapanã. A rainha que cochicha no ouvido da criança. Do mosquiteiro, do chuvisco que caiu no combu, de manhã. 49 Cambada de corno que castiga a costa do cristão no sereno, campeã! A carapanã. que faz o cavalo se esconder no córrego, do samba. Do cururu, da SUCAM, do Norte que sangra. Cruz-credo de comando cretino que faz até o galo cantar: “carapanã pra caramba!!” x x x x x x x x x x x x x x x x 50 Tem cutia pro almoço? Ponhamos Descartes na mesa Tem cutia pro almoço? Procure as verdades, problemas e soluções. Pense que tu existe, varzeiro. Logo, repare as certezas, aquilo que não tenhas dúvida alguma, sequer um pensamento titubeado: “as cutias são roedores”; “elas comem sementes de andiroba”; “elas precisam roer”; “as bichas são ariscas”. “As andirobeiras são belas árvores”; “se tira boa madeira da andirobeira”; “as andirobeiras estão escasseando”; “Dona Empresa já cortou muita andirobeira”; “por nada”; “virola, cedro e macacaúba também já foi muito tirado”. “Preciso caçá pra comê”; “o frango tá caro”; “tenho seis muleques e uma menina pra criá”; “vivo só de mata, não planto, só tiro”. Agora, meu cabra, levante os problemas, todos aqueles para saber se tem cutia. “Tem que voltar as cutias”; “tenho de dar de comê a meus fio”; “tô com a menina prenha”; “tem que voltar a tê muita andiroba pra bichinha tê o que roê”; 51 “temu que pará com a tirada exagerada dos pau na mata”; “tem que tê mais gente pra pensá comigo”. Muito bem, macho: Agora tente resolver tudo isso, do fácil para o difícil, como tu bem o sabes. “vou chamar os cumpadi pra a gente trocá idéia”; “vamo deixá de tirá andiroba com menos de cento e cinqüenta de rodo”; “vamo planta alguns pé no quintal do terrenu da gente”; “vamo abrir roça e cria frango, porco, pato, pra num tê que caçá tanta cutia”; “vamo ensiná pros fio da gente”. Muito bem, só resta acompanhar tudo isso, dia e noite, noite e dia. “reunião, associação, mutirão, viveiro, galinha, porco, milho, feijão, ração, andiroba, mata, soiá, guandu, preguiça, cutia, eu quero, eu faço”. x x x x x x x x x x x x x x x x 52 Canção do mururé Se estiver Sem esperança Sinta a brisa Na folha a dança Se chorar Se partir Fica a alma Um sorrir Mururé Vem a onda chegando Mururé Desespero tomando Mururé Tua vida balançando Tua fé te segurando E tudo vai se acalmando Te deixaram Olhe pra dentro Estás saudável Diga: enfrento Tô sozinho Tô sozinha Um Pai-nosso Um Salve-rainha Mururé Vem a onda chegando Mururé Desespero tomando Mururé 53 Tua vida balançando Tua fé te segurando E tudo vai se acalmando Estou doente Estou me indo Louvo a vida O resto ainda Vai o corpo Fica o feito Uma criança Melhora o jeito Mururé Vem a onda chegando Mururé Desespero tomando Mururé Tua vida balançando Tua fé te segurando E tudo vai se acalmando... x x x x x x x x x x x x x x x x 54 O Elias Meu avô passara. Passara por mim e quase deu pra tocá-lo. Homem bom, de Breves, puro, viúvo desde cedo na vida e abdicado da sacanagem, sua de direito. Tocador de banda daquelas que banjo e músicos ficavam cansados nos piseiros e dançarinos que eram vigiados pelos pais das moças, ai de quem beijar. Ia para a roça, da roça para casa pentear filha, catava lêndea “e continuava homi”. Radinho de pilha, jogo do Remo, sete da noite, “pára com a zoada, meninu”, quando o conheci. Seu Elias, velhinho, não podia mais roçar. Malmente escutar rádio. Os nervos reclamaram: “vou imbora daqui, si não pudé mais passá 55 terçado no matu!” E foi-se certa noite. Não foi pro céu. Já era do céu. Uma bonita jovem de sua mocidade o aguarda: “cata meu piolhu, Elias, faz tempu qui eu tô esperandu. Táqui a lata”. Enquanto isso, aqui na terra, nós continuávamos na sacanagem... x x x x x x x x x x x x x x x x 56 Casamento Teu riso é o sol que me ilumina. Que duro admitir. Que piegas pensar assim. Quase um desaforo, eu diria. Te amo e basta isso: As brincadeiras, O cheiro no rosto pela manhã, Um mimo. Perceber o infinito que és. A onipotência. O aconchego. A formosura dos momentos De Atena, Afrodite, Moira que vejo E espero nunca ficar cego... Ah, a propósito: eu ainda preciso falar das flores, mulhé? x x x x x x x x x x x x x x x x 57 O duelo entre Tio Bel e Seu Tio Bel e Seu, grandes amigos, se viram em rixa. A cachaça sumira. Quem foi? - Foi tu? - Foi Tu! Tio Bel, noventa anos, Seu, Oitenta e poucos, shorts acima dos umbigos, peitos de frango estufados. Porrada! A remada de Tio Bel leva dez segundos para malinar a costa de Seu. Seu pega um pedaço de pernamanca e deposita no ombro de Tio Bel. Os dois batem cabeça com cabeça, pelo tremelique. Rangendo os restos de dente, fedor de velho na flor da pele. Se separam. Um manca na direção do outro. - Corre, corre! Desatraca! Os netinhos puxam os dois. Solte-os. Solte-os. Ai nas espinhelas deles. - Eu te pego, corno! - Eu te pego, frôxo! Dois sábados depois, amigos de volta. Três meses após, Tio Bel se vai. Seu resmunga, chorando: - Saudade de amigo. Saudade de cachaçada. 58 - Fui eu que tomô a cachaça, Bel. Pontada nas costas de Seu. - De atraição num vale! Deixa eu te vê dinovo, peste! x x x x x x x x x x x x x x x x 59 Vinte e oito verões Que eu te conheça agora, Vá lá. Confesso que estou meio sem jeito, Portel. Nasci de ti, mas que pena! Tive cedo que deixar-te, E vinte e oito verões após, cá estou. Por outra fui criado, Que me dera carinho, filosofia, infância; Aposto que de ti também teria, de outro ângulo. Pelo que vejo és morena, bronzeada, pé sujo da areia das ruas, braços fortes de tanto agüentar os verdes escuros rios que te empurram e que te puxam pra junto deles, não desistas! Olhos e cabelos negros, grossas pernas de tanto bicicletar, seja de calça, seja de saia. Sobrancelhas cheias, largo e jocoso sorriso, maçãs do rosto apetitosas, brilhantes como a cuia, água escorrida no corpo. Beldade de quadros antigos. Te observo sadia, marajoara, fofoqueira como eu imaginava bem ser. Aparentas bem estar, porém, sinto pesar do seu interior pobre. Pobre de atitude, de “eu tenho direito”; teu lado pelego impera o que tem que ser. Acorda! 60 Não te viras material, respeita tua simplicidade, tua caboclice, a brisa que te amena a quentura. Imaginei uma senhora alegre e de pureza amazônica. Não te desvies e eu te chamarei orgulhosamente de minha mãe. x x x x x x x x x x x x x x x x 61 Tio Chico do Bonzão De onde tu veio? Quando é que tu vai? Quem é teu parente? Quem é o teu pai? Digo porque sei Das paragens daqui Dos dois Mazagões Dos rios do Jarí Das roças de jamelina Das derrubas de machado Mas dessa eu me tremo Não agüento tal fardo E fui lá pra beira Ser desempregado Acabei Trinta-e-sete Zelando e levando recado Me mandaram em frente A febre me demitiu Pra Gurupá ser patrão De mim mesmo, um tio Agora vivo a perguntar E de saber do mais novo De onde vem a experiência Senão é que do povo? Enquanto a conversa rolava Um galo montava em uma pata - esse mundo tá perdido, se tá Aponta Tio Chico na lata! x x x x x x x x x x x x x x x x 62 Pretensão de pintura por palavras Segunda-feira de carnaval de dois mil e três. Tempo nublado, preguiço, chuvoso. Cidade de Breves. As marias-bestas metem o bico na terra arenosa e ao mesmo tempo lamacenta das ruas. Um bem-te-vi espreita a caça das cabas e mosquitos que passeiam. Todos concordam: não choverá mais, por enquanto. Da sacada, vejo um estacionamento de barcos. Um homem de calção verde coça a costa no castilho da porta do porto num sobe-desce agoniado, engraçado. Se a coceira não sossegar, o estrepe o sossega. Santa Maria, Viking, Ferreira Pena, Lucatelli, Alex Roberto, Paulo Roberto. Estes são os barcos que consigo ver os nomes. Uns simples, outros com pavulagem. Um barco começa a querer sair: É a Santa Maria. Popozando. Deve ser um dezoito. Como sei? Deve ser pelas conversas que tenho com meus amigos de Gurupá. “Lá vem o Barbudo” “Como é que tu sabe?” “É que ele tem um dezoito que faz um barulho rasgado”. Rasgado. Vai saber. Quando a embarcação aponta na ponta da ilha, não é que é mesmo?! 63 E outros. E outros. Tilintado. Assoviado. Os motores, concordo, tem personalidade. Passa agora um rabeta com pai, filho, motorzinho. Este é pequenino mas saliente o suficiente pra fazer da canoa um prodígio. Sai o Paulo Roberto. Deixa eu tentar: este tem um motor com barulho... sufocado. Casco grande, motor, um onze. Não rende muito. Dono e motor são deprimidos e correm subindo o rio. Agora vejo um casquinho de corrida. Motor onze. Equilibrado. Barulho alegre. Atrás, ao fundo, observo navios-elefantes enormes puxando com a tromba pacotes de madeira. Um caranguejo ziguezagueia para ajudar a encher a barriga do bichão. E lá se vão horas. Árvores. Dúvidas. Será que alguém já tentou plantar itaúbas para outros pretensamente possam versar sobre barcos no futuro? x x x x x x x x x x x x x x x x 64 Carreteiros Carreto que vai, que foi que vem, boné na cabeça, porto de Belém os pés já descalços, bermuda velha carrego empreita, mais mil as telhas. A tábua escorrida, descendo o barco a caixa desliza, farinha o saco bolacha, manteiga, biscoito então e cai dentro d’água, mas presta atenção. Olhando da rede, um passageiro escuta a apontada de um carreiteiro: “te cuida, ó macho, a faca aqui num é brincadeira, vou te partir”. O outro que ri, nem vai ligar só fica a jogar, pacote no mar. “Curralinho é o lote, e Gurupá? 65 O tal babaçu, onde é que tá?” Tomate, cebola, alho pepino me passa a menina e o menino. E joga xarope de um guaraná “umbora dipressa vai chuviscar” “e manda a cachaça a buchudinha vou é tirar uma põe na listinha” “deixa isso aí, senão senão já vou te manjando seu malandrão!” E “vai tipraporra!” E “vaitipramerda!” “vou ti metê faca nas tripa certa!” E rola no chão, no punho a faca e um escorregão, cai na estaca e cai dois do porto, no sujo a lama “e vai ti embora, conheço a fama” “eu vou ti pegá, tu podes crê 66 e reza pro Santo, que vais morrê!!” O dono do barco, enfim apita mulher perguntando, assim aflita: “Ô meu Pai, que mundo louco dois homi brigandu, motivo pouco...” E quando à noite, lá no piseiro os dois se encontram, lá vem braseiro é uma risada, de lá de cá é encarnação, de cá de lá e então os carretos já vão eternos e seus condutores, maus, vis fraternos... x x x x x x x x x x x x x x x x 67 Marcha do Escoteiro1 “O Brasil é maior vai o escoteiro o mundo é melhor segue altaneiro”. E começa a surgir mais um homem com caráter de ferro, puro de coração: “A promessa já fez segue adiante esteja alerta, adiante, avante!”. E a certeza de poder contar você pode com um moço de esmero, bravo e de prontidão: “Olhar para o ...ALTO! Patrulhar a juventude!! Gritar em coro aberto!! Amor, paz e atitude!!!!!” Vocês, ó moços que ainda tem muito o que aprender sincero disciplina e retidão: “Prometo pela minha honra o melhor possível fazer por Deus e à pátria minha digno dos céus ser”. Então sigam marchando para vida que os aguarda de punho cerro, 1 Uma homenagem à memória de Maurício Colares, meu eterno chefe escoteiro. 68 mas n’alma mansidão: “Vai o escoteiro altivo, arrebol para o homem, menino pra Deus girassol”. E ao longe se avista ainda a tropa elite do futuro que quero perder-se na imensidão... “Escoteiro, escoteiro rataplã, escoteiro escoteiro, escoteiro rataplã, escoteiro...”. x x x x x x x x x x x x x x x x 69 Às jovens mães Que fizeste, mimosa? És verde, despontavas Pela manhã da vida Chegando às dez horas, ainda Tão nova Tão nova Teus risos ainda puros Sem a malícia do meio-dia Sem a força dos hormônios Sem os monstros ou demônios Apuros, apuros Queres correr, não podes Rebento tens que cuidar Queres festejar, consciência Te diz, subserviência “Não foges, não foges.” Tenha, peço, equilíbrio As dez horas passarão O fogo será controlado Teu marido, não mais namorado Alívio, suplício Se ficas então solteira Teu parceiro é um inútil? Tua cria será a função Força de si, superação És primeira, primeira. Mimosa, precisas, tu volta O brilho que nunca perdeu Pro teste de um novo amor 70 Suportas, se dane a dor Revolta? Te solta! O antigo te inveja? Que seja Colossal teu espírito está “Bem feito para toda a desdenha! Incerto o futuro desenha? Peleja! Peleja!” x x x x x x x x x x x x x x x x 71 Geometria especial do traído Deodato, o dado quadrado, Casado, abastado,estudado Simone, um cone, De renome por fome de homem Ângelo, um triângulo, Tango, fandango e carango Um quadrado que por base e altura iguais, porém, de aparência, nem menos, nem mais. Um cone que pratica os atos tão vis, beijava o corpo dos homens, pueris Um triângulo sacana no jeito de ser, idolatra a aventura no seu conceber Um triângulo enfiado no cone moldado, até que a geratriz, quadrado feliz. Um filho fornando, o pai esperando, O trair não é cisma. Pois nasce um prisma. Menino que cresce, bem forte está. Ao pai já aparece, de um lado, de cá. Mas vendo de cima, do alto um ângulo. Precisa rimar? Tá bom, é triangulo! x x x x x x x x x x x x x x x x 72 A filosofia do abrir mão... Perceba como viver é abrir mão Um abrir de sonhos, De poesias, de chãos Uma ação involuntária de se deixar algo Desisto dos SIMs em favor dos NÃOs Você larga o jovem, Ainda com sede de querer ser jovem E corre para o adulto, Faz barba, faz filhos Força o curso natural dos rios, Sai dos trilhos E arrepende-se depois do acidente De não ter sido moço suficiente Para ser longo e sinuoso Ou rápido o bastante para enganar a inércia Quando chega a hora Das dores da vida adulta Você se maltrata, Pelo tempo se desculpa E para distrair, usa seus sentidos para pensar Guardando o encéfalo Que inútil agora oculta Tornando-se igual a todos Perante o mundo Abrindo mão de seus dogmas, De seu pudor fundo Caindo nas mesmices Do competir sujo e tísico Lembrando com remorso do resplandecer do sol Cujo penetrante arrebol da janela te fazia anjo E já não passas de um nome Na lista de um estatístico 73 Lançando mão da alma coletiva E ainda assim singular O homem velho procura dar Para a prole de sua prole Razão para amar, para bem fazer Mas sua fôrma pura Que antes exultava está manchada Como aproveitar aos rebentos querer? E no desgosto abissal de suas ilusões Encontra a filosofia que universal se consagra Que disciplina, que nos torna senhores Do alfa, gama, beta E cuidadosa alerta para os seres de amanhã: Já que viver é abrir mão, A quem puder estenda-a e abra-a. x x x x x x x x x x x x x x x x 74 Círculo da vida Amar Gerar Berrar Ninar Andar Palmar Palmar Crescer Querer Por quê? Saber Reler Correr (correr, correr) Pedir Vestir Mentir Ouvir Reunir Curtir Curtir Calor Sabor Furor Amor Supor Impor Se for Dor Dor Humor Sentir 75 Rever Pensar Amar Gerar... x x x x x x x x x x x x x x x x 76