Tradução e viagem: o Brasil de Richard Burton
O
TRADUÇÃO E VIAGEM:
BRASIL DE RICHARD BURTON
Cristina Carneiro RODRIGUES1
RESUMO: Este trabalho examina duas traduções do relato da viagem pelo Brasil realizada
pelo tradutor Richard Francis Burton, com o objetivo de evidenciar a semelhança entre a
escritura de uma narrativa de viagem e a produção de uma tradução. As duas atividades são
transformadoras, interpretativas e são responsáveis pela construção da imagem de um texto,
de um autor, ou mesmo de um povo.
PALAVRAS-CHAVE: Estudos da tradução. Relato de viagem. Richard Burton.
Este trabalho tem como objetivo analisar a aproximação entre o viajar e o
traduzir, evidenciando que alguns aspectos da tradução, especialmente as questões
de poder, de interpretação e de construção de imagens do Outro, fazem parte da
produção do relato de viagem e da tradução. Para Michael Cronin (2000), na relação
entre viagem, linguagem e tradução, a linguagem seria um aspecto fundamental
pois, na medida em que não é transparente e que não há equilíbrio entre os ditos
intercâmbios lingüísticos, a aproximação com o outro, pela tradução ou pela viagem,
pode gerar perdas de significado e erros de interpretação. Como ambas as atividades
têm o poder de construir imagens das culturas estrangeiras, de construir
1
Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários, IBILCE, UNESP, São José do Rio Preto, SP, Brasil.
[email protected]
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representações do Outro, envolvem a problemática da apropriação de outros povos
e culturas.
Em Across the lines, Cronin (2000) aborda detalhadamente três situações
em que linguagem, tradução e viagem se inter-relacionam: quando o viajante fala
a “mesma” língua que os habitantes do lugar por onde viaja, como no caso de um
estadunidense na Inglaterra; quando o viajante conhece a língua do outro (um
italiano falando francês ao viajar pela França, por exemplo); e quando desconhece
a língua do lugar por onde viaja. Em todos os casos, Cronin descreve situações de
conflito lingüístico; mesmo quando o viajante fala a língua local, pois ele se depara
com diferentes dialetos, sotaques e registros inusitados.
O autor não aborda, entretanto, a tradução do relato, ou seja, quando o relato
de viagem escrito pelo estrangeiro é traduzido para o habitante do país alvo do
relato. Nessa situação os conflitos lingüísticos e culturais podem ser exacerbados
por diferentes fatores atuarem nas duas atividades. O texto estrangeiro não retrata
o Outro estrangeiro, mas o que habita o lugar da própria tradução. Mas esse lugar
não é mais o do habitante, é o construído pelo Outro estrangeiro. Se, de acordo
com Venuti (2002, p.131) “[...] a tradução constrói uma representação doméstica
para um texto ou cultura estrangeira [...]”, há espaço para se investigar o que ocorre
quando se traduz uma representação estrangeira da cultura doméstica. Este trabalho
busca examinar essa situação, partindo do pressuposto de que ler um relato de
viagem, assim como ler uma tradução, é ter acesso a um certo ponto de vista, ou
seja, que tanto a descrição de um povo ou de um lugar quanto a tradução são
produtos de interpretação de sujeitos social e ideologicamente constituídos, que se
apropriam do Outro, em maior ou menor medida, e que os sentidos não se
transportam com total transparência.
Para Cronin (2000), viajar é uma maneira de traduzir, de transformar o outro,
de exercer algum tipo de apropriação. Mas o autor não entende a tradução como
sinônimo de qualquer tipo de transformação porque isso seria trivializar a tradução:
pensar que todo tipo de transformação caracteriza a tradução, é semelhante a afirmar
que tudo – ou seja, nada – é tradução. Seu objetivo é argumentar que questões de
mediação entre línguas, que são do domínio da tradução, manifestam-se em outros
campos; no caso, na relação com a viagem.
Meu propósito, ao examinar traduções do relato de viagem pelo Brasil feito
por um tradutor que conhece nossa língua, é evidenciar a semelhança entre os
processos de transformação desencadeados pelas duas atividades. Muitos já ouviram
falar do viajante e tradutor Richard Francis Burton, famoso por sua versão das Mil
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e uma noites. Poucos, entretanto, sabem que ele morou no Brasil entre 1865 e
1868 e escreveu Exploration of the Highlands of The Brazil; with A Full Account
of the Gold and Diamond Mines, relato de sua viagem do Rio de Janeiro à cachoeira
de Paulo Afonso, publicado em dois volumes na Inglaterra em 1869. De acordo
com seu biógrafo Edward Rice (1991, p.398), esses volumes sobre Brasil “mal
foram comentados pela crítica”, o que não ocorreu com os relatos de suas viagens
pelo Oriente. Apesar da falta de entusiasmo por essa viagem na época, parece que
hoje o livro de Burton desperta interesse, pois a Adamant Media Corporation editou,
em 2003, na série Elibron Classics, uma edição fac-símile da edição publicada em
1869 pela Tinsley Brothers.
Duas traduções do livro de Burton estão disponíveis em português. A primeira,
assinada pelo historiador Américo Jacobina Lacombe, foi editada em 1941 pela
Companhia Editora Nacional, na série Brasiliana, e reeditada em 1983; intitula-se
Viagens aos planaltos do Brasil e foi dividida em três volumes, cujos subtítulos
são: Do Rio de Janeiro a Morro Velho; Minas e os mineiros; e O Rio São Francisco.
A segunda tradução é de David Jardim Júnior, publicada em 1976 pela EDUSP/
Itatiaia, como parte da Coleção Reconquista do Brasil e dividida em dois volumes:
Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho (BURTON, 1976) e Viagem de canoa de
Sabará ao Oceano Atlântico (BURTON, 1977).
Quando iniciou sua viagem pelo interior do Brasil, em 1867, Burton tinha
46 anos e já havia realizado suas peregrinações pelo Oriente, mas não a tradução
das Mil e uma noites. Veio ao Brasil a serviço do Ministério do Exterior Britânico,
para trabalhar no porto de Santos, mas estabeleceu sua residência em São Paulo.
“Depois de dezoito meses tediosos em Santos”, o Secretário de Sua majestade
para os Negócios Exteriores (Lord Stanley) concedeu-lhe licença para que se
ausentasse de seu posto (BURTON, 1976, p.35).2 Parte de sua viagem seria de
férias, para realizar um projeto pessoal, mas na outra parte, “which is not a holiday
excursion, the diamond diggings were to be inspected” (BURTON, 1869, p.19).
Na tradução de Jardim, Burton apenas “visitaria as lavras de diamantes” e não há
ênfase em sua negação (“já não uma excursão de férias”, BURTON, 1976, p.35).
Lacombe também não a enfatiza, mas em sua tradução Burton “deveria inspecionar
as lavras de diamantes” (BURTON, 1941, p.55). O papel de observador do Governo
2
Como as normas de edição de textos não permitem que as referências sejam feitas ao tradutor, as datas
remetem à publicação da tradução. Quanto ao texto em inglês, a edição consultada é de 2003, fac-símile
da publicação de 1869. O texto em inglês será apresentado em itálico, o que significa que a fonte normal
representa o que é apresentado em itálico no texto de partida.
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Britânico, marcado pelo itálico do autor na negação e pelo verbo usado, inspect, é
praticamente apagado por Jardim. As traduções, especialmente a de Jardim, não
evidenciam que boa parte da viagem de Burton é uma missão oficial. No entanto,
na descrição de uma nova edição do livro que seria lançada em 2004 pela Narrative
Press, esse é o dado inicial: “em 1866 Richard Burton tornou-se Cônsul em Santos,
Brasil, e começou a observar o país para o Império Britânico, atento para o que
podia ou não ser útil”.3
Os projetos editoriais das duas traduções são diferentes, mas em ambas
enfatiza-se o aspecto documental da obra. Na orelha de Viagem do Rio de Janeiro
a Morro Velho, Vivaldi Moreira apresenta Burton como um viajante “perspicaz e
minucioso”, um erudito que faz “observações, análises, reflexões e conclusões
absolutamente originais, [que] valem como indispensável documentário de uma
época acerca dos lugares percorridos e cidades visitadas”. Burton seria um
documentador preciso de “nossa história social e política”. Na segunda edição da
Brasiliense lê-se, em orelha assinada por Américo Jacobina Lacombe, que Burton
empreendeu “ousada navegação rio São Francisco abaixo” e “registrou suas
tribulações num diário cheio de observações da maior acuidade acerca da natureza
e da população ribeirinha”. Sua apresentação reveste o autor de rigor científico,
pois teria sido “um imenso erudito, antropólogo, naturalista, folclorista e, acima
de tudo, um arguto observador”. Seus dados seriam “válidos para a Sociologia
contemporânea” (BURTON, 1983).4
O próprio autor declara apenas registrar seu percurso em um diário, pois no
Ensaio Preliminar, salienta que não tentará fazer qualquer tipo de embelezamento
do que vê – sua narrativa seria, “mostly a sucession of hard, dry photographs with
rough lines and dark, raw colours, where there is not a sign of glazing. The sketch,
in fact, pretends only to the usefulness of accuracy” (BURTON, 1869, p.10). Para
o tradutor Jardim (BURTON, 1976, p.25), o leitor teria acesso a “uma sucessão de
duras e secas fotografias de linhas rudes e cores grosseiras, de todo sem brilho. A
narração, de fato, só visa à utilidade da precisão”. Na interpretação de Lacombe
3
4
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Minha tradução de: “in 1866 Richard Burton became British Consul in Santos, Brazil, and began scouting
for the British Empire, with an eye for what would be useful and what would not”. Essa edição da
Narrative Press está sendo divulgada no site da Amazon desde junho de 2004. Atualmente, anuncia-se
seu lançamento para julho de 2007. Disponível em: http://www.amazon.com/Explorations-HighlandsBrazil-Account-Diamond/dp/1589762614/ref=sr_1_4/102-5308516-1672117?ie=UTF8&s=books&qid=
1188474956&sr=8-4. Acesso em: 30 ago. 2007.
Na segunda edição há essa orelha, um prefácio sem indicação de autoria e um apêndice ao ensaio preliminar
de Burton, não incluídos na primeira edição de 1941.
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(BURTON, 1983, p.57), teríamos “uma série de fotografias, secas e rudes, de
linhas ásperas e nítidas, com cores vivas e sem o menor vislumbre de brilho. O
meu esboço, realmente, só aspira a uma qualidade: ser fiel”.
Nessa declarada accuracy de Burton, traduzida por tradutor como precisão
e, por outro, como fidelidade, percebe-se uma aproximação da viagem com os
Estudos da Tradução. Temos um viajante afirmando não enfeitar, não embelezar,
apenas descrever. Sua asserção é muito semelhante à de pesquisadores vinculados
aos Estudos Descritivos da Tradução, que afirmam fazer descrições isentas e
imparciais de traduções, sem acréscimo de qualquer juízo de valor. Em ambos os
discursos, declara-se não haver subjetividade nem parcialidade; no entanto, se
refletirmos sobre a metáfora usada por Burton, a da fotografia, concluiremos que
não há a almejada neutralidade, pois o fotógrafo escolhe o ângulo do que é
fotografado. Da mesma maneira, um pesquisador escolhe a perspectiva de sua
análise. Nesse sentido, há subjetividade, e nem viajantes, nem pesquisadores
conseguem a desejada ou declarada isenção.
Isso fica muito claro no texto de Burton, que constrói um Brasil e um
brasileiro de um certo ponto de vista: do europeu, homem da ciência, dados
ratificados pela apresentação das edições em português. Assim, a afirmação de
accuracy de Burton não esconde a mediação, não apaga a visão imperialista do
autor. Percebe-se, em seu relato, um traço que Edward Said (1990, p.203), ao
analisar os escritos de Burton sobre o Oriente, observa: “[...] como um aventureiro
viajante, Burton via-se compartilhando a vida do povo em cujas terras vivia”,
mas sua tentativa de “enxergar a vida do ponto de vista de alguém imerso nela”
não cala seu desejo de “dominação sobre todas as complexidades da vida oriental”.
Na análise de Said (1990, p.202), “Burton era um imperialista”, apesar de se
considerar um rebelde contra a autoridade e estaria em posição similar à do
Império Britânico, nutrindo a “ambição européia de governar o Oriente” (SAID,
1990, p.204). Parece haver empenho de Burton nesse sentido ao viajar pelo
Brasil: conhecer para dominar.
A língua ele dominava. Já havia traduzido parte de Os Lusíadas, quando
veio ao Brasil.5 Mas ele não diz isso em seu livro, nem explicita em que língua
conversa com os condutores das mulas, com os cocheiros, com os donos das
estrebarias nem com os vários estrangeiros que encontra em seu caminho.
5
Sua tradução completa de Os Lusíadas (The Lusiads) foi publicada em Londres em 1880, pela B. Quaritch,
em dois volumes.
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Na nota ao ensaio preliminar, entretanto, Burton deixa clara a opinião geral
dos britânicos a respeito da língua portuguesa: “As a rule we dislike the
[Portuguese] language because it is nasal, and we have a deep-rooted and most
ignorant idea that Portuguese, the most Latin of all the neo-Latin tongues, is a
‘bastard dialect of Spanish’” (BURTON, 1869, p.15). Na tradução de Jardim
(BURTON, 1976, p.28) lê-se que, “em via de regra, desprezamos a língua, porque
é nasal, e nutrimos a velha e errônea idéia de que o português, o mais latino de
todos os idiomas neolatinos, é um ‘dialeto bastardo do espanhol’”.
Enquanto para Burton os britânicos não gostam da língua, para Jardim os
britânicos depreciam, desprezam a língua, por ser nasal. Ora, em francês há
mais vogais nasais que em português, e isso não parece criar problemas, pelo
menos para Burton, que aprendeu francês, assim como latim e grego, muito
jovem. De acordo com seu biógrafo Rice (1991), Burton falava outras línguas
do ramo itálico do indo-europeu – italiano, espanhol, provençal, além do
português – o que torna mais estranha a afirmação de que o português seria a
mais latina das línguas neolatinas. O tradutor Lacombe (BURTON, 1983, p.75)
mantém a afirmação, traduzida por: “geralmente a língua nos desagrada por ser
nasalada. Temos uma idéia profundamente arraigada: a de que o português – a
mais latina de todas as línguas neolatinas – é um ‘dialeto bastardo do espanhol’”.
Seus tradutores não notaram a estranheza da afirmação, ainda que Burton
tenha declarado não ter tido oportunidade de fazer a revisão do livro, que ficou a
cargo de sua esposa Isabel. Eles não observam que o ponto talvez fosse dizer que
o português é a mais neo – nova – das línguas neolatinas (a última flor do Lácio).
Ainda que, pelo fato de ele mesmo ser falante do português, e não
necessariamente compartilhar do desgostar da língua, Burton não se posiciona e
usa o “we”, “nós” – os britânicos. Entretanto, como diz “as a rule”, ele pode
discordar da opinião geral. Mas, ao adjetivar a idéia com “ignorant” evidencia
não considerar o português um espanhol bastardo. Jardim deixa claro que Burton
dela discorda, transformando-a em uma “idéia errônea”; Lacombe, ao não
adjetivar “a idéia profundamente arraigada”, permite ao seu leitor considerar
dúbia a posição de Burton a respeito.
Ainda que nesse trecho Burton não demonstre ter preconceito lingüístico, em
outros pontos o expressa. O tupi, por exemplo, seria uma língua bárbara: “the Tupy
language delights in the onomatopoetic […] and like many other barbarous tongues
it expresses augmentation and magnitude by reduplication. Thus muré is a flute,
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muré-muré a large flute” (BURTON, 1869, p.25).6 É do lugar do civilizado que
Burton refere-se ao tupi, do mesmo lugar de que constrói, para os ingleses, a significação do Brasil e do brasileiro. Em seu relato, é evidente seu desejo de marcar a
diferença, o exótico. Mas, mais evidente ainda é seu desejo de mostrar seu conhecimento e erudição: apresenta uma enorme lista de livros consultados, principalmente
de relatos de viagens anteriores à dele. Em vários pontos, fornece a ortografia “correta” de lugares, plantas e animais, assim como seus nomes científicos e as espécies
e subespécies a que pertencem. Essa tática parece-me muito mais delineada para que
sua erudição seja reconhecida por seus pares do que para apresentar o Outro para um
leitor comum – qual seria o motivo desse leitor querer saber por que se grafa São
João d’El Rei e não Del Rei, Del Rey, D’El Rei (BURTON, 1869, p.114),7 ou se se
escreve Camapuã, Camapuão ou Camapúan (BURTON, 1869, p.158)?
A viagem de Burton foi em 1867 – a preocupação havia deixado de ser,
nessa época, com a nomeação dos lugares, como foi a dos primeiros viajantes
europeus pelo Brasil. Como tudo já está nomeado, o viajante detém-se no estabelecimento da correta ortografia ou etimologia, especialmente dos topônimos. Mas,
como Burton é muito sensível a questões lingüísticas,8 nota que, por exemplo,
Dourado e Doirado são diferentes pronúncias de uma mesma palavra, e que o rio
das Elvas é popularmente pronunciado como rio das Ervas. Cronin comenta que
muitos viajantes têm enorme dificuldade com a maneira pela qual as palavras são
pronunciadas. Mas não Burton, para quem o que assinala como dificuldade de
outros viajantes é um traço a ser descrito.
Também não se pode negar que seja um bom observador dos costumes do
povo e vários comentários a respeito incluem constatações sobre o uso da língua. Por
exemplo, quando vai para Congonhas do Campo e se despede de seu anfitrião, nota
que “in these lands, where all wander, men do not say “adeus” (farewell), but “até a
primeira”, “à tantôt”, or “até a volta” (pronounced “vorta”), till the return”
6
7
8
Traduzido por Jardim como “a língua tupi usa freqüentemente a onomatopéia e, como muitos outros
idiomas bárbaros, emprega a repetição como aumentativo. Assim, muré quer dizer flauta, murremuré,
flauta grande” (BURTON, 1976, p.41); Lacombe opta por: “o tupi apraz-se com onomatopéias [...].
Como em muitas outras línguas bárbaras, exprime o aumento ou a magnitude pelo aumento ou
reduplicação. Assim, muré é flauta; muré-muré flauta grande” (BURTON, 1983, p.93).
Em nota de rodapé, lê-se que: “this [São João d’El Rei] is the only correct way of writing the name; all
the others as Del Rei, Del Rey, D’El Rei, and numerous modifications, are obsolete or erroneous. The
Arabo-Spanish article El is reserved in Portuguese for the king, and it commands a hyphen : the particle
“d’” cannot claim a capital letter, and the modern Portuguese write Rei, not Rey, which is now Spanish”
(BURTON, 1869, p.114).
Fawn Mckay Brodie (1984) afirma que Burton seria um dos dois ou três grandes lingüistas de seu tempo.
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(BURTON, 1869, p.157), traduzido por Jardim (BURTON, 1976, p.145) como
“nessas terras, onde tudo se movimenta, as pessoas não dizem “adeus”, mas “até a
primeira”, “até logo” ou “até a volta” (pronuncia-se vorta)”. Na tradução de Lacombe
(BURTON, 1983, p.240) lê-se que “nessas terras onde todos vagueiam, os homens
não dizem adeus, mas “até a primeira”, “à tantôt” ou “até a volta” (pronuncia-se
vorta)”.
Mas, apesar de suas observações, seu relato evidencia que ele não participa
efetivamente da vida dos lugares por onde passa – não há assimilação cultural,
compartilhamento; narra cenas pouco usuais para seus leitores britânicos e analisa
o comportamento do brasileiro de cima e de fora, mostrando até alguma
condescendência para com seus inferiores, que não partilhariam de seu saber
científico. Como exemplo dessa atitude, selecionei um trecho em que Burton relata
um sábado passado em São João del Rei, em que também se evidencia sua
irreverência; seu texto é seguido pela tradução de Jardim e pela de Lacombe:
It was saturday – begging day by ancient usage in the Brazil. We were strangers, and therefore
fair game. The Praia was beset by cropples of every kind and some wore the weekly “property
dress” – I had never yet seen so much mendicancy in so small a place. Was with me a person
who still believes in the Knightly and middle-aged le gends about alms, and even a share of
bed unwittingly given to individuals of exalted rank in the Spiritual Kingdom: one of these
wretches might be St. Joseph, or something higher. All, therefore, received coppers, and the
result were a glorious gathering of Clan Ragged, the expenditure of small change, the not
seeing St. Joseph, and the frequent seeing “Saint Impudence”. (BURTON, 1869, p.136)
Era sábado, dia dos mendigos, de acordo com o velho costume do Brasil. Nós éramos
estrangeiros, e, portanto, boa presa. A Praia estava repleta de aleijados de todos os gêneros e
alguns usavam a “indumentária adequada” da semana. Jamais eu vira tanto mendigo em tão
pouco espaço. Estava comigo uma pessoa que ainda acredita na caridade e nas lendas
medievais acerca das esmolas e, mesmo na hospitalidade concedida, sem o saber, as pessoas
de ordem elevada no Reino Espiritual: um daqueles desgraçados poderia ser São José ou
algo mais alto. Todos, portanto, receberam moedas de cobre, e os resultados foram a gloriosa
reunião do Clã dos Esfarrapados, o gasto de todo o dinheiro trocado, e não aparecimento de
São José e o freqüente aparecimento de “Santa Impudência”. (BURTON, 1976, p.129)
Era sábado – dia de esmolas, segundo o antigo costume no Brasil. Para nós, estrangeiros,
portanto, um espetáculo interessante. A praia estava apinhada de estropiados de toda espécie.
Alguns estavam com a roupa semanal limpa. Nunca havia visto tanta mendicância num
lugar tão pequeno. Estava comigo certa pessoa que ainda acredita em lendas cavalheirescas
e medievais sobre a esmola, dada, sem se saber, a individualidade de grau elevado no Reino
Espiritual. Um desses pobres desgraçados poderia ser São José ou alguém mais importante
ainda. Todos os pobres, portanto, ganharam cobres, e o resultado foi uma brilhante reunião
do grupo dos esfarrapados, o dispêndio do dinheiro, sem que aparecesse São José, mas com
o aparecimento muito freqüente de São Desaforo. (BURTON, 1983, p.216).
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Nesses dias das esmolas, são os Outros – os que têm crenças medievais –
que dão esmolas e gastam dinheiro para nada (afinal, São José não aparece). Notese que cada tradutor interpretou de modo diferente a estrangeiridade marcada por
Burton. Enquanto para Jardim eles (o grupo formado por Burton, sua esposa Isabel e mais dois ingleses) seriam “boa presa” e, portanto, também alvo dos mendigos e objeto de seu assédio, para Lacombe eles lá estariam apenas assistindo a um
“espetáculo interessante”, sem participação alguma. Enquanto no texto em inglês
e na tradução de Jardim podemos interpretar que sua superioridade britânica é
também a de um homem sobre uma mulher crédula – sua esposa pode ser a pessoa
que ainda acredita na crença medieval e deu esmolas aos pobres – essa interpretação é descartada na leitura da tradução de Lacombe, que nos mostra o grupo como
platéia de um costume local.
Nesse trecho nota-se também que, diferentemente de sua viagem a Meca,
no Brasil, ele não busca parecer um nativo. Burton marca que não é apropriado
para um britânico se abrasileirar – nem nos costumes, nem nas vestimentas: um
britânico deve ser reconhecido por outro britânico. Em determinado momento do
relato, ao chegar a São João del Rei, vê um “indubitable British hat”; ele fala com
o dono do chapéu, que o apresenta a um conterrâneo que também vive no lugar e
acha muito bom saber que “their home habits had not permitted themselves do
become Brazilinised. Brazilian is good, and British is good; the mixture, [...] spoils
two good things” (BURTON, 1869, p.113).9
O que se nota é que é o europeu – ou o britânico – deve se manter puro. A
mistura aqui é contaminação perniciosa, a ser evitada. Em minha análise, isso é
resultado da maneira pela qual Burton constrói a significação do brasileiro. A imagem construída é a de um povo ordeiro, gentil, hospitaleiro, mas a de quem, como
as mulheres, precisa constantemente receber elogios. O brasileiro se caracteriza
pela generosidade, mas é descuidado e não é pontual. É cortês, amável, mas sua
cortesia pode esconder um logro. Burton relata o caso de uma conta excessivamente alta, em que o dono do hotel incluíra as cervejas que ele mesmo tomara;
quando fala das galinhas servidas às refeições, comenta que invariavelmente notava a falta de uma coxa ou de uma asa.
9
Na tradução de Jardim (BURTON, 1976, p.108) consta que “a conservação dos hábitos domésticos não
havia permitido que eles se tornassem brasileiros. Brasileiro é bom, e britânico é bom; a mistura [...]
estraga duas coisas boas”; no texto da Brasiliana lê-se que “a conservação de seus hábitos íntimos não
havia permitido que eles se abrasileirassem. Os brasileiros são bons, os ingleses também. A mistura [...]
estraga as duas coisas boas” (BURTON, 1983, p.188).
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A imagem da prodigalidade e mesmo da negligência do povo nativo é reiterada em várias passagens do relato: o brasileiro usa mal os recursos naturais, deixa
frutas que poderiam ser aproveitadas apodrecerem no chão, não usa tecnologia
adequada na agricultura e nem aproveita a boa terra de que dispõe. Os tradutores
até reforçam um pouco essa imagem, com a adjetivação usada. Nas duas traduções examinadas, com raras exceções, lê-se a legitimação desse olhar europeu
sobre o Brasil e a reiteração do imaginário criado para significar o brasileiro.
Essa legitimação inicia-se pela própria apresentação das obras como documentos produzidos por um homem europeu e cientista. No entanto, como nos
lembra Orlandi (1990, p.124), apesar de os livros dos estrangeiros serem apresentados como livros de história, não são apenas documentos, são a matéria de constituição dos sentidos que definiriam a nação brasileira.
Os viajantes, homens supostamente civilizados, construíram para nós uma
imagem com a qual, de certa forma, nos acostumamos e que realimentamos. Esquecemos, entretanto, que é uma imagem, produzida a partir de determinado ponto de vista. É uma imagem, como as fotos de Burton e como as traduções, mediada
por sujeitos.
Dessa maneira, não é apenas “a tradução [que] exerce um enorme poder na
representação das culturas estrangeiras” (VENUTI, 2002, p.130). A afirmação de
Venuti pode estender-se ao relato de viajantes, que também tem esse poder. Mas,
mais que isso, a tradução também pode ter efeitos na representação de culturas
nacionais quando traduzimos a representação dos estrangeiros e as tomamos como
meros documentos – esquecendo-nos de que são representações produzidas de
determinado ponto de vista.
RODRIGUES, Cristina Carneiro. Translation and travel: Richard Burton’s Brazil. Revista
do Gel, São Paulo, v.5, n.1, p. 69-79, 2008.
ABSTRACT: This paper examines two translations of the travel writing in Brazil carried
out by the translator Richard Francis Burton with the purpose of making the similarity
between the writing of a travel narrative and the production of a translation evident. Both
activities are transformative, interpretive and responsible for constructing the image of a
text, an author, or even one people.
KEYWORDS: Translation Studies. Travel writing. Richard Burton.
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Tradução e viagem: o Brasil de Richard Burton
Referências
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of the gold and diamond mines. London: Tinsley Brothers, 1869. Replica Edition by Adamant
Media Corporation, 2003.
______. Viagens aos planaltos do Brasil. 2.ed. Tradução de Américo Jacobina Lacombe.
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______. Viagem de Canoa, de Sabará ao Oceano Atlântico. Tradução de David Jardim
Junior. São Paulo: Itatiaia: EDUSP, 1977.
______. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Tradução de David Jardim Junior. São
Paulo: Itatiaia: EDUSP, 1976.
______. Viagens aos planaltos do Brasil (1868). Tradução de Américo Jacobina Lacombe.
São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1941. v. 1.
BRODIE, Fawn McKay. The devil drives: a life of Sir Richard Burton. New York: W. W.
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