FIOS DA PÓS-MODERNIDADE EM RENATO RUSSO: UMA LEITURA DE
PERFEIÇÃO, À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS
Paulo Nogueira de Souza Júnior1
Wagner Corsino Enedino2
A carência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Renato
Russo parece ser decorrente de distintos fatores, entre os quais o falacioso argumento de
que a obra do músico carioca seria de baixa qualidade estética. Esse "preconceito
estético" pode ser, todavia, um artifício para mascarar preconceitos ideológicos de duas
origens diversas: de um lado, o desconhecimento, pela academia, das matrizes sociais
que alimentam o real significado da obra; de outro, o esquivar-se, intencionalmente ou
por razões políticas, do universo histórico-cultural e ideológico do período em que os
textos do autor foram produzidos.
Isso não quer significar que a qualidade estética da produção de Renato Russo
seja irrepreensível, ou que os estudos de sua obra devam priorizar o político, em
detrimento do literário, ou vice-versa. A obra de Renato Russo, centrada, geralmente, na
denúncia da exploração capitalista e de sua ideologia, traz para a "arena da luta de
classes" elementos de cunho social que procuram entender o processo em que os
sujeitos estão envolvidos e por cuja superação lutam.
Ancorando-se nas contribuições de Lagazzi (1988), sobre o modo como se
organiza a questão do poder nos sujeitos enunciadores, nas observações de Escosteguy
(2000), sobre como se articulam os mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações
com elementos que rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos
estudos desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pós-modernas
com o espírito consumidor, este ensaio tem como objeto de análise a letra da canção
Perfeição e busca enfatizar a dimensão universal ali explorada, evidenciando o
entrelaçamento entre projeto literário e projeto político: um projeto artístico que quer
falar às massas e formar consciências, dramatizando a vida dos que estão submetidos à
condição de subemprego/desemprego e ao poder dos exploradores. Importa ressaltar
que o poder, na sua forma de coerção, subjaz como temática fundamental do trabalho,
1
2
FUNEC Santa Fé do Sul – SP.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Coxim.
uma vez que, “Abordando as relações entre os indivíduos, podemos trazer à tona o
complexo sistema social, mostrando os modos de opressão que o constituem [...]”
(LAGAZZI, 1988, p. 27)
A opção por Perfeição não é, portanto, aleatória: o texto é constituído de
significativas disposições políticas, marcadas pelo signo do poder. A obra, envolta num
discurso contestatório, foi escrita sob a égide da contestação política, com a vertente
artística de um trabalho que procurou provocar no público uma reação de
inconformidade com o status quo a que determinadas pessoas são submetidas.
Assim, este trabalho justifica-se porque se funda no estudo de problemas
atuais, figurativizados em uma obra também atual e de temática universal, constituindose como uma aventura cognitiva que busca verificar como a realidade vivida foi reproduzida para a composição ficcional (LEENHARDT e PESAVENTO, 1998), quais
recursos do poder criador do artista Renato Russo fizeram suas letras transformarem-se
em evocação de vidas humanas, com uma estrutura artística desenvolvida por meio de
uma linguagem poética.
Sem a pretensão de preencher todos os vazios do texto analisado, o trabalho
remete, antes, ao aspecto provisório da leitura, configurando-se como um primeiro
passo em direção ao denso mundo representado por Renato Russo durante sua trajetória
de criação artística, em cujos produtos se fundem o local e o universal.
Estudos Culturais: uma breve introdução
Para se ter uma dimensão sobre o que são os Estudos Culturais é preciso fazer
uma recuperação histórica do percurso dessa linha de pensamento desde a sua gênese
até os nossos dias. Torna-se necessário estabelecer um recorte para se ter a real noção da
diversidade e pluralidade dos Estudos Culturais. Estabelece-se aqui - dentro dos limites
e propósitos deste trabalho -, a recuperação de pressupostos teóricos que nortearam o
desenvolvimento das discussões sobre a relação cultura/comunicação de massa e, por
conseguinte, os produtos da cultura popular.
Os Estudos Culturais foram, originalmente, uma invenção britânica;
atualmente, atingiram âmbito internacional, rompendo as fronteiras da Inglaterra e dos
Estados Unidos para alcançar os mais variados territórios, desde a Austrália até a
América Latina, o que não implica, todavia, um "corpo fixo de conceitos que possa ser
transportado de um lugar para outro e que opere de forma similar em contextos
nacionais diversos" (ESCOSTEGUY, 2000, p.136).
Levando em consideração as peculiaridades históricas do contexto britânico,
percebe-se a abrangência que o político exerceu sobre o meio acadêmico, o que
determinou as diretrizes teórico-políticas dos Estudos Culturais. Deve-se ter a clara
consciência de que esse campo de estudo foi concebido, antes de tudo, com a pretensão
de estabelecer, do ponto de vista teórico, um projeto político: a intenção era construir
um novo campo de pensamento, por meio da interdisciplinaridade como elemento
fundamental para um aprofundamento analítico sobre questões de ordem políticocultural da sociedade.
Do ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser enquadrados como
um mecanismo de "correção política", o que os aproxima dos inúmeros movimentos
sociais que emergiam à época de seu surgimento. Ocorre que os mentores dessa área de
pesquisa procuraram não difundir uma postura rígida e absoluta de sua proposta. Surge
então, em 1964, fundado por Richard Hoggart, o Centre for Contemporary Cultural
Studies (CCCS), relacionado às mudanças de valores tradicionais da classe operária
inglesa do pós-guerra. Esse centro de estudos surge ligado ao Departamento de Língua
Inglesa da Universidade de Birmingham, para se constituir, depois, como centro de pósgraduação dessa mesma instituição, cujo principal foco de pesquisa são as relações entre
a cultura contemporânea e a sociedade.
No final dos anos 50 e início de 60 do século XX, as bases dos Estudos
Culturais foram tratadas em três relevantes textos: The uses of literacy (1957), de
Richard Hoggart, Culture and society (1958), de Raymond Willians, e The making of
the english working-class (1963), de E.P. Thompson, com The making of english
working-class (1963).
A pesquisa realizada por Hoggart concede especial atenção aos materiais
culturais ligados à cultura popular e dos mass media. Com esse trabalho, inicia-se um
percurso de teorização sobre práticas de resistência e não tão somente de submissão do
âmbito popular, o que mais tarde será alvo dos estudos dos meios massivos. Embora
Hoggart traga novas contribuições teóricas sobre os Estudos Culturais, a sua visão
recupera aspectos relacionados aos meios sociais, especialmente da classe trabalhadora.
No que concerne à contribuição teórica de Raymond Willians (1958), é de
fundamental relevância para os Estudos Culturais, uma vez que consegue discutir
elementos da análise literária usando como pano de fundo a investigação social. Em The
long revolution (1962), Willians traz à baila um intenso debate sobre o impacto dos
veículos de comunicação de massa sobre as camadas populares, demonstrando com isso
certo pessimismo em relação à própria existência da cultura popular, bem como aos
meios de comunicação de massa.
No que diz respeito à contribuição de Thompson, pode-se afirmar que seus
estudos – amparados pela tradição marxista – exerceram influência sobre o
desenvolvimento da história social britânica.
Tanto para Willians quanto para Thompson, o papel da cultura está relacionado
com um conjunto de práticas e relações em que o indivíduo desempenha papel
principal. Ocorre que Thompson mantinha certa resistência para conceber a cultura
como uma forma de vida global; na sua visão, a cultura deveria ser entendida como uma
luta entre modos de vida diferentes.
Outro teórico que ofereceu significativas contribuições na formação dos Estudos
Culturais foi Stuart Hall, cujas pesquisas procuraram incentivar o desenvolvimento dos
estudos etnográficos, bem como as análises dos meios de comunicação de massa e a
investigação de atividades de resistência no âmbito das subculturas.
Originalmente, os Estudos Culturais apareceram no cenário mundial com uma
proposta de cunho mais político que propriamente analítico. Revestida de um viés
marxista, a história dessa linha de pesquisa encontra-se relacionada com a trajetória da
New Left, de determinados movimentos sociais (Worker’s Educational Association,
Campaign for Nuclear Disarmament) e de publicações (como a New Left Review) que
surgiram em torno de respostas políticas à esquerda.
Mais tarde, no período pós-68, os Estudos Culturais impulsionaram o
pensamento intelectual de esquerda, proporcionando um grande impacto no âmbito
teórico e político, e suas diretrizes ultrapassaram as fronteiras do espaço acadêmico,
trazendo para a Inglaterra um forte compromisso de militância que visava a mudanças
sociais radicais.
Ao fim dos anos 60, a atenção dos pesquisadores de Birmingham recai sobre a
recepção e a densidade dos consumos midiáticos. Tal pensamento ganha notoriedade a
partir da divulgação do texto Enconding and decoding in television discourse, de Stuart
Hall, publicado em 1973. Por meio de noções relacionadas à concepção marxista sobre
ideologia, Hall enfoca a pluralidade, socialmente determinada, das práticas que
envolvem a recepção dos programas televisivos.
Nesse sentido:
[...] podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da
mensagem televisiva: uma posição “dominante” ou “preferencial”, quando o
sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção;
uma posição “negociada”, quando o sentido da mensagem entra “em negociação”
com as condições particulares dos receptores; e uma posição de “oposição”,
quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta
segundo uma estrutura de referência alternativa. ESCOSTEGUY (2000, p. 151)
Durante os anos 70, os Estudos Culturais aproximaram-se dos Estudos
Feministas, tendo como fundamento as relações entre sujeito, poder e dominação. Mais
adiante, foram acrescidas à noção de gênero questões relacionadas à raça e à etnia.
As pesquisas do Centro de Birmingham acerca de gênero começam a surgir
em 1978, com a publicação de Womem take issue, de 1978. Charlotte Brundson, Marion
Jordon, Dorothy Hobson, Christine Geraghty e Angela McRobbie são autoras que
"revêem suposições do senso comum sobre os meios de comunicação, reivindicando
que a audiência, no caso, feminina, tem autoridade sobre suas práticas de leitura."
(ESCOSTEGUY, 2000, p. 152)
Durante a década de 80, eclodem estudos acerca dos meios de comunicação de
massa, tendo como especial referência os programas televisivos. Ocorre, também, nessa
esteira, um redimensionamento dos protocolos de investigação científica, fazendo
surgirem trabalhos de natureza etnográfica. Algumas
das
pesquisas
dessa
época
concederam especial importância ao ambiente doméstico, bem como às relações
familiares, para a formação de leituras diferenciadas.
Para se ter uma dimensão das diferenças existentes no âmbito dos estudos
sobre cultura entre as décadas de 80 e 90, é preciso considerar que, durante a primeira,
existia uma compreensão das relações entre poder, ideologia e resistência, ao passo que,
nos anos 90, a preocupação em recuperar as "leituras negociadas" dos receptores
viabilizaria a valorização da liberdade individual desse receptor e tornaria menos
valorizados os efeitos da ordem social.
Para alguns teóricos, os Estudos Culturais mudaram seu direcionamento ao
longo de sua trajetória, como pode se exemplificado no conceito de "classe", que deixou
de ser o conceito crítico central. Concomitantemente, o centro das discussões passou a
ser questões relacionadas à subjetividade e à identidade.
Em síntese, os Estudos Culturais tiveram ampla contribuição social, à medida
que trouxeram à tona questões relacionadas aos produtos advindos da cultura popular e
dos mass media, que refletiam os rumos e diretrizes da sociedade contemporânea.
Nesse momento, tentaram resgatar determinadas tradições teóricas de cunho
sociológico, em detrimento do funcionalismo norte-americano, sob a alegação de que
este não era suficientemente capaz de compreender as temáticas propostas. Com isso, a
Inglaterra passou por um processo de recuperação de perspectivas como a
fenomenologia, a etnometodologia e o interacionalismo simbólico.
Como o significado de cultura tornou-se algo bastante extenso, o foco viria a
recair sobre toda a produção de sentido. Como ponto de partida, dedica-se especial
atenção às estruturas sociais (de poder) e ao contexto histórico, considerados fatores
determinantes para a compreensão da ação dos meios massivos, bem como o
deslocamento do sentido de cultura, antes encravado no tradicionalismo elitista, para as
práticas cotidianas.
Os Estudos Culturais atribuem à cultura um papel que a esfera econômica não
consegue explicar totalmente. O marxismo e os Estudos Culturais mantêm uma relação
desenvolvida por meio da crítica ao reducionismo e ao economicismo, o que resulta
num modo de contestação do modelo base-superestrutura. A visão marxista trouxe
subsídios aos Estudos Culturais no sentido de compreender a cultura na sua “autonomia
relativa”: ela não mantém uma relação de dependência econômica, nem seu reflexo,
porém tem influência sobre e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Na
esteira do pensamento de Althusser, a força econômica, a força política e a força
cultural são concebidas como determinantes na composição da complexa unidade que é
a sociedade.
Outro fator relevante para este campo diz respeito ao conceito de ideologia
proposto por Althusser: a ideologia é “provedora de estruturas de entendimento através
das quais os homens interpretam, dão sentido, experienciam e ‘vivem’ as condições
materiais nas quais eles próprios se encontram” (HALL, 1980 apud ESCOTEGUY,
2000, p.145-6).
Nesse primeiro momento, as pesquisas em Estudos Culturais – ainda
plenamente concentradas na perspectiva da Escola de Birmingham – restringiam-se às
áreas das subculturas, das condutas desviantes, das sociabilidades operárias, da escola,
da música e da linguagem:
Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como simples
instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos Culturais
compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução social,
acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da hegemonia.
(ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7)
Nessa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos por meio dos quais
são estudados os meios de comunicação de massa ganham especial importância, uma
vez que sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Isso não é realizado,
todavia, dentro de um processo mecânico, mas no interior de um percurso que se vai
adaptando às pressões e às contribuições que surgem dentro do universo social, de
forma que se integre ao sistema cultural.
Gramsci contribuiu de maneira significativa para uma maior compreensão dos
processos de mudanças que podem ser construídos dentro do sistema. Sua teoria
norteia-se pelas complexas relações que ocorrem entre as culturas populares e a cultura
hegemônica. Nessa perspectiva, o que se pode evidenciar é que não existe um rígido
confronto entre as diferentes culturas:
Na prática, o que acontece é um sutil jogo de intercâmbios entre eles. Elas não são
vistas como exteriores entre si, mas comportando cruzamentos, transações,
intersecções. Em determinados momentos, a cultura popular resiste e impugna a
cultura hegemônica; em outros, reproduz a concepção de mundo e de vida das
classes hegemônicas (ESCOSTEGUY, 2000, p.147)
No que diz respeito às linhas de pesquisa implantadas pelos Estudos Culturais,
destaca-se aquela que prioriza as relações de consumo da comunicação de massa, sendo
esta o lugar onde se realiza a negociação entre práticas comunicativas diferentes.
De maneira geral, pode-se entender o Centro de Birmingham, desde a sua
fundação até meados dos anos 80, como um pólo de pesquisas que detém um grande
número de teorias diversificadas, cuja atenção recai sobre as culturas de massa e
culturas populares e que, mais tarde, trouxe para o centro das discussões questões
relacionadas às identidades étnicas e de gênero, além de propagar estudos heterogêneos
originados das inúmeras e diversificadas teorias que estudam os mais variados temas.
Com o surgimento de novos teóricos como Michel de Certeau, Michel
Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros, no final dos anos 70 e início dos anos 80, os
Estudos Culturais passam por um processo de internacionalização, tornando escassas as
análises em que o fundamental é "luta" ou "resistência". Para alguns analistas, tal
comportamento marca o início da despolitização dos Estudos Culturais.
A partir dos anos 90, nota-se, em determinados casos, uma fragmentação,
inconsistência e trivialização desse campo de estudos, embora possam ser detectados
aspectos consistentes na proposta de análise das nuances culturais que marcam a
contemporaneidade. Nessa fase, os Estudos Culturais passam por um período de
relaxamento quanto à sua vinculação política, e o pensamento que marcou o início dessa
linha de pesquisa sobre o estudo de algo "novo" já não existe mais. Todavia, mesmo
fragmentada, existe uma relação de continuidade.
Torna-se importante avaliar que a relação cultura/comunicação de massa e as
suas várias diretrizes, como os problemas das culturas populares, também sofrem
alterações na trajetória dos Estudos Culturais.
Tais questões são extremamente relevantes para se ter uma visão dos Estudos
Culturais, embora haja outras diretrizes importantes no universo desse campo de estudo,
como, por exemplo, a discussão da pós-modernidade, cujo enfoque recai sobre questões
como a globalização, a influência das migrações e o papel do Estado, bem como a
cultura nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das identidades.
Outro ponto relevante acerca dos Estudos Culturais está relacionado ao seu
vínculo com o modo de vida globalizado, em que as diferenças aparecem de forma
acentuada. Esse pensamento é avaliado por Cevasco (2003), ao apresentar a visão de
Raymond Williams, cujos estudos estão centrados no percurso teórico e nas práticas
sociais concretas. Para o teórico, as idéias, as estruturas de sentimentos e as formações
na linguagem estão relacionadas com uma determinada ordem social e se reproduzem
por meio de investigação histórico-literária, materializadas pelo estilo da escrita de cada
autor, caracterizando uma profunda consciência política.
Estudos Culturais e Cultura Brasileira
Conceituar de forma pormenorizada a cultura nacional – marcada por aspectos
contraditórios, dinâmicos e plurais – não é uma tarefa fácil, pois as respostas a
questionamentos acerca da noção de "identidade brasileira" não terão univocidade.
Qualquer tentativa de se fazer um mapeamento dos caminhos que a cultura
nacional trilhou entre os anos de 1950 e 1980 necessariamente precisará recorrer a
aspectos relacionados com as manifestações artísticas e culturais deste país, sobretudo o
teatro, quer pela relevância dessa modalidade artística, quer pela contundência com que
trabalhou elementos ligados à representação dos dilemas nacionais.
Nesse período, o país passou por um forte processo de industrialização, o que
trouxe subsídios para impulsionar o grande fenômeno sócio-cultural que ocorreu nos
últimos trinta anos do século XX. Concomitantemente ao advento da moderna indústria
cultural brasileira, o país enfrentou problemas que influenciaram consideravelmente os
discursos e ações de artistas e intelectuais que marcaram o ápice da cultura engajada,
que buscava transmitir ao público uma representação aproximada de um país com seus
conflitos e contradições. As forças conservadoras (na maioria ligadas à indústria
cultural ou ao Estado), não ficaram, todavia, impassíveis perante a cultura engajada e
apresentaram rapidamente suas respostas e projetos para o Brasil.
Nesse momento, o país passava por uma fase em que coexistiam elementos
ligados ao âmbito rural e componentes cada vez mais urbanos e industrializados. No
que diz respeito à cultura popular, esse processo de coexistência representou um
cruzamento de elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados ao espaço
urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a "cultura de elite", envolta pelo
tradicionalismo do século XX, também buscou mecanismos artístico-culturais modernos
e cosmopolitas para o pleno desenvolvimento de seus interesses.
É nesse segmento que o músico Renato Russo faz ecoar sua voz nos ouvidos
das autoridades de um país mergulhado num obscuro regime de exclusão. Com letras
que buscam transmitir ao público uma mensagem de contestação, Russo mantém um
projeto estético ligado às minorias, àqueles que efetivamente estão à margem da
sociedade, trazendo para o centro das discussões questões múltiplas como etnias,
relações de poder e, especialmente, a política, fatores que interessam aos Estudos
Culturais:
O caráter sempre político dos Estudos Culturais é expresso por suas tentativas de
usar os melhores recursos intelectuais disponíveis para se obter um melhor
entendimento das relações de poder (em jogo ou em equilíbrio) em determinado
contexto, com a convicção de que o conhecimento resultante poderá capacitar as
pessoas a mudarem o contexto e, conseqüentemente, as relações de poder.
(HATTNHER, 2003, p.250)
Renato Russo: caminhos e trilhas de um trovador solitário
Renato Manfredine Junior nasceu no dia 27 de março de 1960, em Humaiatá,
zona Sul do Rio de Janeiro. Filho de pai economista do Banco do Brasil e de mãe
professora de inglês, teve uma infância tranqüila, em uma família de classe média-alta,
no seio da qual adquiriu uma boa formação cultural. Mudou-se para Nova York aos seis
anos de idade, quando seu pai foi fazer um curso nos Estados Unidos. Depois de
retornar ao Brasil, a família foi morar em Brasília, onde começaria a fase até então mais
traumática.
Aos 15 anos, Renato ficou impossibilitado de andar, pois sofria de uma doença
rara que ataca os ossos. Passou por diversos tratamentos e operações e só voltaria a
caminhar dois anos depois. Com sua doença, começa sua fase de “poeta”. Sem poder
andar, em seu quarto Renato inventou uma banda imaginária, a “42th Street Band”, e
seu personagem imaginário era Eric Russel. Aos 17 anos, passou no vestibular para
Jornalismo, concluiu o curso, mas sequer voltou à faculdade para buscar o diploma.
Antes de realizar o sonho, porém, o futuro músico ainda seria professor de inglês,
programador de rádio e jornalista. Lecionando na Cultura Inglesa, foi escolhido pela
entidade para recepcionar o Príncipe Charles quando o monarca inaugurou uma das
filiais do grupo.
Renato Manfredini Junior viveu fases em sua vida que mais tarde seriam o
“carro chefe” para suas composições, nas quais falaria de sua vida em todos os sentidos.
Criou o nome artístico “Russo”, inspirando-se em dois de seus pensadores favoritos, o
inglês Bertrand Russell e o filósofo Jean-Jacques Rousseau, bem como no pintor
primitivista Henri Rousseau.
Russo compôs muitos poemas. Suas primeiras tentativas como escritor e
compositor ocorreram na época da banda “Aborto Elétrico”, junto com Fê Lemos e
Flávio Lemos, hoje bateirista e baixista do grupo Capital Inicial. Depois de consecutivas
discussões, o Aborto Elétrico chegou ao fim, mas, pouco tempo antes, Renato
conhecera Marcelo Bonfá, que tocava bateria na banda Metralhas. Por algum tempo,
apresentou-se sozinho como Trovador Solitário e, mais tarde, junto com Marcelo Bonfá,
Dado Villa-Lobos e Renato Rocha (Negrete), formou-se a Legião Urbana, com o
próprio Renato Russo como vocal. Várias de suas músicas ainda hoje são inéditas;
outras foram gravadas pela Legião.
O primeiro álbum chamou-se, como a própria banda, Legião urbana, e foi
produzido por José Emílio Rondeau. Lançado em janeiro de 1985, com todas as letras
de autoria de Renato Russo, denotava aspectos punks, com a maioria das músicas
retratando aspectos da política, das drogas, do amor e do desamor, como é o caso de
Ainda é cedo: “Ela me disse eu não sei/ mas o que sinto por você/ vamos dar um tempo/
um dia a gente se vê”. Uma das fortes características dos versos de Renato Russo é o
comprometimento com a estética de antigos poetas e com um certo tom de romantismo
que os perpassa.
O segundo álbum, intitulado Dois, foi produzido por Mayrton Bahia. Lançado
em julho de 1986, é considerado, pela crítica especializada, um dos melhores discos do
grupo, trazendo Eduardo e Mônica como a música de trabalho do disco. Nessa
composição, o autor chama atenção para o fato de que não existir diferença que o amor
não possa superar, o que vem ao encontro das características dos poetas românticos:
“Quem um dia irá dizer/ que não existe razão/ nas coisas feitas pelo coração”.
O álbum Que país é este 1978-1987, também produzido por Mayrton Bahia, é
lançado em dezembro de 1987; todas as letras também são de Renato Russo. Aqui a
canção épica Faroeste caboclo chama a atenção da crítica por seus versos contundentes
e por um estilo notadamente romanesco: “Não tinha medo tal João de Santo Cristo/ era
o que todos diziam quando ele se perdeu”, a letra é composta por 159 versos, e conta a
saga do anti-herói João de Santo Cristo, o herói bandido que tenta melhorar sua
condição social em uma cidade grande, mas que acaba mantendo estreitas relações com
o narcotráfico da capital federal.
Em decorrência de desentendimentos, o baixista Renato Rocha deixa a banda
no limiar do lançamento de As quatro estações. Lançado em novembro de 1989, esse
disco reflete o aperfeiçoamento nas letras compostas por Renato Russo, marcadas por
relações intertextuais com diversas obras. Um caso de grande notoriedade é a relação da
música Monte Castelo com a lírica de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver/ é
ferida que dói e não se sente”, e com trechos extraídos da Bíblia.
O segundo verso da música Há tempos é de um texto achado em uma igreja
em 1600; mais uma vez o autor denota a preocupação com efeitos expressivos e com a
pesquisa na composição de suas letras. Na música Meninos e meninas, Renato deixava
entrever aspectos de sua sexualidade: “Acho que gosto de São Paulo/ gosto de São João/
gosto de São Francisco/ e São Sebastião/ e eu gosto de meninos e meninas”.
Já com a descoberta de que era soropositivo, compôs o quinto disco da banda.
Mais uma vez o trabalho foi produzido por Mayrton Bahia e Legião Urbana e, em
dezembro de 1991, é lançado o álbum V. Considerado por Renato como contendo as
melhores letras que já escrevera, o trabalho é revestido de dor e melancolia,
especialmente em Teatro dos vampiros.
Já a canção Sereníssima traz para o público uma mensagem profundamente
centrada no “eu-lírico”: “Sou um animal sentimental / me apego facilmente ao que
desperta ao meu desejo/ consegui meu equilíbrio/ cortejando a insanidade / tudo está
perdido / mas existem possibilidades”.
Durante os ensaios para a turnê de lançamento do disco V, a Legião Urbana
gravaria o Acústico MTV, registrado em noite única, em 28 de janeiro de 1992, numa
casa de shows chamada Hippódromo, no bairro de Perdizes em São Paulo. O álbum
acústico só foi lançado em 1999. Depois de nove meses de turnê, em um show em
Natal, no simbólico 7 de setembro, durante o show houve um pane na eletricidade, não
só do estádio, como em toda a capital do Rio Grande do Norte, e a mesa de luz
queimou. Mesmo assim, no palco Renato se superou, e fez aquele que considerou o
melhor show da turnê.
Para recuperar o alto investimento financeiro feito para a turnê V, foi lançado
em dezembro do mesmo ano o álbum duplo sob o título Música para acampamentos,
sem músicas inéditas, exceto A canção do senhor da guerra, uma composição de
Renato com fortes traços de contestação social.
Com o impeachment de Fernando Collor de Mello em que meados de 1992,
Renato se preparava para compor e gravar o sétimo álbum da Legião Urbana, que
depois seria lançado com o título O descobrimento do Brasil, em novembro de 1993,
considerado o disco da nova fase da Legião. Um ótimo exemplo é quanto à faixa que
fazia um apelo à crise que o Brasil atravessava Perfeição: “Vamos celebrar, a estupidez
humana/ a estupidez de todas as nações/ o meu país e suas corjas de assassinos/
covardes estupradores e ladrões”.
A Legião Urbana se recolhera por um tempo; Renato, em carreira solo,
interpretando músicas inglesas, gravou o disco The stonewall celebration concert,
lançado em junho de 1994, produzido pelo próprio músico: “foi uma maneira de
homenagear os grandes astros da música inglesa, de que sou fã”. Em dezembro de 1995,
lançou Equilíbrio distante, todo em língua italiana.
Em janeiro de 1996, a Legião Urbana entrava em estúdio para aquele que seria
o último disco gravado com Renato ainda em vida (ou seus dois últimos, pois sobraria
matéria suficiente para gravar um disco póstumo).
Considerado o disco de despedida de Renato Russo, com as letras todas de sua
autoria, trazia músicas mais melódicas que as anteriores e muitas vezes denotando seus
temores e sua doença, como em A via láctea: “Quando tudo está perdido/ sempre existe
um caminho/ quando tudo esta perdido/sempre existe uma luz/ mas não me diga isso/
hoje a tristeza não é passageira/ hoje fiquei com febre a tarde inteira”.
O álbum A Tempestade, ou o Livro dos dias, foi produzido por Dado VillaLobos, lançado em setembro de 1996, um mês antes da morte de Renato Russo.
Com 20 quilos a menos que os 65 habituais, barba comprida, Renato Russo
morreu à 1h15min, no dia 11 de outubro de 1996, em seu apartamento na Rua
Nascimento Silva. O artista perdera a luta de seis anos contra a Aids. Seu corpo foi
cremado no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro.
Após sua morte, foi lançado, em julho de 1997, um álbum póstumo, chamado
Uma outra estação, com músicas inéditas, todas de autoria de Renato, exceto Travessia
do eixão. O disco, apesar de Renato já falecido, não deixou de fora as características do
cantor e compositor. Na canção Antes das seis, faz alusão aos tempos em que retratava
tudo com lirismo e poeticidade: “Quem inventou o amor?/ me diga, por favor/ quem
inventou o amor?”
Outra homenagem póstuma foi o álbum O último solo, com músicas que
ficaram fora do primeiro e do segundo disco solo de Renato. Atualmente os trabalhos da
Legião Urbana não têm cessado. As homenagens a Renato Russo estão sendo cada vez
mais intensas. Foi lançada em março de 1998 uma antologia póstuma, Mais do mesmo,
que reuniu seus grandes sucessos; em outubro de 1999, o álbum ao vivo Acústico MTV,
gravado em 1992.
Com a seleção de repertório de Carlos Savalla, o álbum intitulado Renato
Russo, antologia póstuma da série bis foi lançado em junho de 2000 e Como é que se
diz eu te amo, álbum duplo ao vivo, em março de 2001.
Já em março de 2003, chega às lojas Renato Russo presente, uma homenagem
póstuma em parceria com outros cantores da música brasileira. Em maio de 2004, é
lançado o CD duplo, As quatro estações ao vivo.
A pós-modernidade em Perfeição
Considerando os Estudos Culturais como mecanismo de "correção política",
próximo dos movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento, pode-se
afirmar que uma análise da obra de Renato Russo à luz dessa nova “teoria” é mais que
pertinente. E Perfeição, letra escrita em 1993, momento de tensão política nacional,
revela-se um objeto de análise bastante propício para mergulhar na problemática social
que permeia o âmbito nacional: tematiza o momento histórico e insinua uma inserção
nas discussões políticas do tempo. A nova arte política deve ater-se ao verdadeiro objeto
da pós-modernidade – o espaço mundial do capital internacional – e buscar uma
maneira de representá-lo, a fim de que entendamos nosso papel como sujeitos
individuais e coletivos e recuperemos nossa capacidade de agir e lutar (no espaço e na
escala social).
O título, irônico e, portanto, ambíguo, engana; produz uma ilusão, que se
desfaz nos versos, metáforas ou metonímias de um país mergulhado nas incertezas e
injustiças que invadem a história do Brasil. Metaforicamente, remete a um “país das
maravilhas”, com suas belezas naturais, com suas práticas futebolísticas e carnavalescas
criadas a partir de uma visão internacional sob a égide do capitalismo. Assim
considerada, a obra parece aproximar-se da estética pós-moderna, pois uma das funções
da pós-modernidade é:
[...] correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a
emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica –
chamada freqüente e eufemisticamente de modernização, sociedade de consumo,
sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional. (JAMESON,
1985, p. 17)
Afirma Jameson (1997) que a produção estética pós-moderna está integrada à
produção de mercadorias e que a nova cultura pós-moderna é americana, pois expressa a
dominação militar e econômica dos Estados Unidos sobre o resto do mundo. Assim, o
pós-modernismo não é, para ele, um estilo, mas uma dominante cultural: um todo em
que coexistem várias características bem distintas entre si, mas que se subordinam umas
às outras, de modo que também não se trata de uma ruptura com o modernismo.
Nessa perspectiva, Renato Russo parece encaminhar, com a obra, duas
questões: o que somos? Que país é esse? Por meio da primeira, parece propor a
discussão da des-humanização do brasileiro submetido a um trabalho desqualificador
“Nosso castelo de cartas marcadas/O trabalho escravo e nosso pequeno universo”; com
a segunda, traz para a cena os efeitos do sistema político-econômico do país cuja gente
“trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada”. São as
maravilhas que se desfazem, cujos pedaços o criador entrelaça para montar a farsa.
Importa ressaltar que, no estágio pós-moderno, as fronteiras entre arte e a vida
são cada vez mais tênues. Os mecanismos que regem a pós-modernidade podem ser
uma das formas produtivas de se ver, descrever, compreender e interpretar o mundo por
meio de diferentes manifestações culturais, como acontece, por exemplo, nas letras de
Renato Russo, uma vez que o autor focaliza a organização dos espaços urbanos, suas
fronteiras e formas de produção permeadas pela lógica do sistema capitalista.
Composta em 1993, Perfeição insere-se no disco O descobrimento do Brasil.
O país estava, ainda, sob os efeitos de uma grande turbulência política, provocado pelo
rápido governo da chamada “Era Collor”; no entanto, desde a sua concepção até os dias
de hoje, as realidades focalizadas na canção se mantêm atuais, como destaca Dapieve
(2003, p. 141):
Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O
descobrimento do Brasil, trazia também um impressionante retrato do país, filme
queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando
Collor de Melo, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara
para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na música Perfeição,
incrivelmente amarga, mas no final das contas otimista. Ninguém era poupado.
Esse tom otimista pode ser constatado em “Venha o amor tem sempre a porta
aberta/E vem chegando a primavera/Nosso futuro recomeça/ Venha, que o que vem é
perfeição.”
Quanto ao título da composição de Renato Russo, observa-se apresenta um
tom de ironia, pois segundo o dicionário Aurélio (1975, p.1068), a palavra “perfeição”
vem “do latim, perfectio, estado do que é correto, exato, impecável.” Ocorre que o
sentido que percorre o texto é exatamente o oposto, trazendo para o ouvinte/leitor o jogo
da ordem de ser/parecer.
Segundo Mora (2001), a palavra “perfeição” está relacionada a algo que é
perfeito, “completado”, de tal modo que não lhe falte nada, mas nada lhe sobra para ser
o que é. Nesse sentido, diz-se que algo é perfeito quando é justo e exemplar. Essa idéia
de perfeição inclui a idéia de “limitação”; se o perfeito é algo “limitado”, tudo que for
ilimitado será imperfeito.
A idéia de perfeição teve considerável importância em toda a história do
pensamento ocidental, sobretudo a partir do cristianismo, isto é, quando Deus foi
concebido como modelo de perfeição. Somente Deus poderia ser considerado como o
arquétipo de perfeição absoluta, cabendo ao restante uma perfeição relativa.
A letra enfoca, de forma cortante e irônica, os aspectos de um país naufragado
em corrupção política e descaso social: “Vamos celebrar a estupidez humana/ A
estupidez de todas as nações/ O meu país e sua corja de assassinos/ Covardes,
estupradores e ladrões [...] / Celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/
Celebrar nossa desunião”.
Outra questão relevante no texto é quanto ao processo de alienação da
população em face dos diversos problemas de ordem social, pois, do ponto de vista
político, os Estudos Culturais podem ser vistos como um sinônimo de “correção
política”, podendo ser identificado como a política cultural dos vários movimentos
sociais. Tal correção é apresentada pelo autor com nuances de crítica contundente:
“Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro ou feriado [...]”.
É interessante frisar que Renato Russo traz para sua composição aspectos
referentes à mitologia greco-romana, como os deuses gregos citados na letra: “Vamos
celebrar Eros e Thanatus/ Perséphone e Hades.” Perséfone na mitologia é a deusa da
fecundidade e Eros está relaciona ao amor. Perséfone, filha de Zeus e Deméter, casara
com Hades e se tornara a rainha dos mortos, Eros está relacionado ao amor o Deus que
desperta paixões, Hades é o sombrio Deus do mundo subterrâneo, e Thanatus o mais
ativo dos imortais.
Em Perfeição, todos os aspectos apontam para o comportamento dos
oprimidos em face do poder. Para o autor é necessário comemorar “Toda a hipocrisia e
toda a afetação/ Todo o roubo e toda a indiferença [...]”. A corrupção, a chantagem, a
contravenção, que surgem pela voz cáustica do artista desfere contra os mecanismos que
regem o poder toda inconformidade com o status quo e apresenta o Estado como
símbolo da manutenção desse poder. Em consonância, a população mantém um quadro
de conivência com o poder instituído: “Vamos celebrar epidemias/ É a festa da torcida
campeã.” Acrescentada uma tentativa de discurso da união, o autor tenta buscar a
adesão do enunciatário com uso de comprometimento “ideológico” que garanta o
alcance do objeto: a união (ou o ajuntamento) poderia constituir um movimento
consistente, capaz de exercer influência sobre a situação de exclusão e marginalização
social, mas Renato Russo apresenta, de forma metafórica, a discussão de elementos de
alienação por parte da população brasileira, representada pelos componentes da escala
social dependentes de um mísero “salário”, os quais buscam, na televisão, um elemento
de alienação social: “Vamos celebrar a estupidez do povo/ Nossa polícia e televisão/
Vamos celebrar o nosso governo/ E nosso estado que não é nação”.
Por meio de uma linguagem ácida, o autor também faz alusão ao poder
instituído do capitalismo, que explora sem nenhuma benevolência a mão-de-obra dos
trabalhadores do país, o que resulta em descaso e completo abandono das autoridades,
denunciados por Russo, em “Vamos celebrar a juventude sem escolas/ As crianças
mortas/ Celebrar nossa desunião.”
Deve-se levar em consideração que o autor emprega, também, muitas vezes, o
discurso do senso comum - graças a sua força argumentativa e ao fato de atingir o status
de verdade universalmente aceita e incontestável - para conseguir a adesão do seu
interlocutor, porque “Situar as grandes verdades acima de todos os sistemas, colocandoas como verdades do senso comum, possibilita que a reflexão não entre em choque com
o poder vigente”. (LAGAZZI, 1988, p.30). O discurso do senso comum vem ao
encontro dos anseios do artista em atingir a grande massa da população: “Venha, meu
coração está com pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/
Chega de maldade e ilusão”. Assim, o autor apresenta o discurso da descrença que,
envolto num clima de constante exploração, perde qualquer sonho de mudança do
status quo: “Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não se ter a quem amar”.
Com essa canção, Renato Russo direciona suas letras para dentro da realidade
nacional. Uma realidade que remete os excluídos a uma reflexão sobre a sua real
condição. Essa reflexão culmina na voz da juventude que tenta conseguir alcançar um
futuro melhor.
A função que a linguagem alcança no texto é a de estabelecer as relações de
poder entre exploradores e explorados. A ideologia subjacente ao discurso do autor
ganha dimensão por meio da linguagem porque, como afirma Lagazzi (1988, p. 26), "A
linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar
com esse poder e essa tensão. O poder procura, no entanto, eliminar as possibilidades
que a linguagem nos dá para fugir ao controle que ele quer absoluto".
Com efeito, Perfeição, de Renato Russo, traz para o centro das discussões,
questões relacionadas ao processo de exclusão e alienação social, marcas da pósmodernidade, por meio de um discurso de rebeldia e contestação, atravessado pela
acidez em textos construídos com padrões estéticos ainda pouco explorados pela
academia.
Considerações Finais
Em Perfeição, atrás das palavras que permeiam o texto, há a palavra, há as
intenções e a história do autor. Um autor que concebeu o universo do rock’ n roll como
um espaço que lhe permitiu tomar parte no debate político. Ao que parece, Renato
Russo construiu a letra da canção em torno de sua ideologia; sem perder sua identidade,
o texto encarna seus princípios e concepções de mundo.
Parece que, para Renato Russo, o sofrimento e a dor causados pela
alienação/exclusão social vêm revelar-se como um novo padrão de música, porque a
obra também aborda possibilidades de melhoria do país. A letra remete a seres
envolvidos num clima de ameaça à segurança e à vida que se estende à comunidade e
culmina no anseio de conduzir a população a participar efetivamente das questões
sociais.
O sentimento de angústia, o tema da morte, a comunicação de aspectos da
sociedade “atual”, saturada de objetos mercáveis, a luta interior e a “guerrilha
ideológica”, todos esses significados nascem do texto, produzindo uma imagem
amalgamada de dois mundos, de dois Brasis.
Num texto que parece dialogar com o jornalismo, como é o caso de Perfeição,
encontra-se o retrato de um Brasil alienado e às vezes inenarrável pela grande imprensa,
criando para o autor uma imagem que oscila entre aspectos positivos e aspectos
negativos; entre o “belo” e o “feio”; entre o agradável e o desagradável.
Assim, Renato Russo nunca esteve distante da desigualdade social; ao
contrário, esteve sempre e profundamente mergulhado na realidade, procurando cumprir
um compromisso radical com os seres humanos que a sociedade deixa à margem.
Com efeito, Perfeição teve a virtude de mostrar que a arte é social em dois
sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus
diversos de sublimação, e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a
sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores
sociais.
Referências bibliográficas
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HOLLANDA, A. B. de. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
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JAMESON, F. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: Pós-modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco; revisão da trad. Iná Camargo
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______. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Trad. Vinicius Dantas. In: Novos
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LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988.
LEENHARDT, J. e PESAVENTO, S. J. (orgs.). Discurso histórico e narrativa
literária. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. (Coleção Momento)
MORA, J. F. Dicionário de filosofia. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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FIOS DA PÓS-MODERNIDADE EM RENATO RUSSO: UMA