FIOS DA PÓS-MODERNIDADE EM RENATO RUSSO: UMA LEITURA DE PERFEIÇÃO, À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS Paulo Nogueira de Souza Júnior1 Wagner Corsino Enedino2 A carência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Renato Russo parece ser decorrente de distintos fatores, entre os quais o falacioso argumento de que a obra do músico carioca seria de baixa qualidade estética. Esse "preconceito estético" pode ser, todavia, um artifício para mascarar preconceitos ideológicos de duas origens diversas: de um lado, o desconhecimento, pela academia, das matrizes sociais que alimentam o real significado da obra; de outro, o esquivar-se, intencionalmente ou por razões políticas, do universo histórico-cultural e ideológico do período em que os textos do autor foram produzidos. Isso não quer significar que a qualidade estética da produção de Renato Russo seja irrepreensível, ou que os estudos de sua obra devam priorizar o político, em detrimento do literário, ou vice-versa. A obra de Renato Russo, centrada, geralmente, na denúncia da exploração capitalista e de sua ideologia, traz para a "arena da luta de classes" elementos de cunho social que procuram entender o processo em que os sujeitos estão envolvidos e por cuja superação lutam. Ancorando-se nas contribuições de Lagazzi (1988), sobre o modo como se organiza a questão do poder nos sujeitos enunciadores, nas observações de Escosteguy (2000), sobre como se articulam os mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações com elementos que rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos estudos desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pós-modernas com o espírito consumidor, este ensaio tem como objeto de análise a letra da canção Perfeição e busca enfatizar a dimensão universal ali explorada, evidenciando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto político: um projeto artístico que quer falar às massas e formar consciências, dramatizando a vida dos que estão submetidos à condição de subemprego/desemprego e ao poder dos exploradores. Importa ressaltar que o poder, na sua forma de coerção, subjaz como temática fundamental do trabalho, 1 2 FUNEC Santa Fé do Sul – SP. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Coxim. uma vez que, “Abordando as relações entre os indivíduos, podemos trazer à tona o complexo sistema social, mostrando os modos de opressão que o constituem [...]” (LAGAZZI, 1988, p. 27) A opção por Perfeição não é, portanto, aleatória: o texto é constituído de significativas disposições políticas, marcadas pelo signo do poder. A obra, envolta num discurso contestatório, foi escrita sob a égide da contestação política, com a vertente artística de um trabalho que procurou provocar no público uma reação de inconformidade com o status quo a que determinadas pessoas são submetidas. Assim, este trabalho justifica-se porque se funda no estudo de problemas atuais, figurativizados em uma obra também atual e de temática universal, constituindose como uma aventura cognitiva que busca verificar como a realidade vivida foi reproduzida para a composição ficcional (LEENHARDT e PESAVENTO, 1998), quais recursos do poder criador do artista Renato Russo fizeram suas letras transformarem-se em evocação de vidas humanas, com uma estrutura artística desenvolvida por meio de uma linguagem poética. Sem a pretensão de preencher todos os vazios do texto analisado, o trabalho remete, antes, ao aspecto provisório da leitura, configurando-se como um primeiro passo em direção ao denso mundo representado por Renato Russo durante sua trajetória de criação artística, em cujos produtos se fundem o local e o universal. Estudos Culturais: uma breve introdução Para se ter uma dimensão sobre o que são os Estudos Culturais é preciso fazer uma recuperação histórica do percurso dessa linha de pensamento desde a sua gênese até os nossos dias. Torna-se necessário estabelecer um recorte para se ter a real noção da diversidade e pluralidade dos Estudos Culturais. Estabelece-se aqui - dentro dos limites e propósitos deste trabalho -, a recuperação de pressupostos teóricos que nortearam o desenvolvimento das discussões sobre a relação cultura/comunicação de massa e, por conseguinte, os produtos da cultura popular. Os Estudos Culturais foram, originalmente, uma invenção britânica; atualmente, atingiram âmbito internacional, rompendo as fronteiras da Inglaterra e dos Estados Unidos para alcançar os mais variados territórios, desde a Austrália até a América Latina, o que não implica, todavia, um "corpo fixo de conceitos que possa ser transportado de um lugar para outro e que opere de forma similar em contextos nacionais diversos" (ESCOSTEGUY, 2000, p.136). Levando em consideração as peculiaridades históricas do contexto britânico, percebe-se a abrangência que o político exerceu sobre o meio acadêmico, o que determinou as diretrizes teórico-políticas dos Estudos Culturais. Deve-se ter a clara consciência de que esse campo de estudo foi concebido, antes de tudo, com a pretensão de estabelecer, do ponto de vista teórico, um projeto político: a intenção era construir um novo campo de pensamento, por meio da interdisciplinaridade como elemento fundamental para um aprofundamento analítico sobre questões de ordem políticocultural da sociedade. Do ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser enquadrados como um mecanismo de "correção política", o que os aproxima dos inúmeros movimentos sociais que emergiam à época de seu surgimento. Ocorre que os mentores dessa área de pesquisa procuraram não difundir uma postura rígida e absoluta de sua proposta. Surge então, em 1964, fundado por Richard Hoggart, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), relacionado às mudanças de valores tradicionais da classe operária inglesa do pós-guerra. Esse centro de estudos surge ligado ao Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Birmingham, para se constituir, depois, como centro de pósgraduação dessa mesma instituição, cujo principal foco de pesquisa são as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade. No final dos anos 50 e início de 60 do século XX, as bases dos Estudos Culturais foram tratadas em três relevantes textos: The uses of literacy (1957), de Richard Hoggart, Culture and society (1958), de Raymond Willians, e The making of the english working-class (1963), de E.P. Thompson, com The making of english working-class (1963). A pesquisa realizada por Hoggart concede especial atenção aos materiais culturais ligados à cultura popular e dos mass media. Com esse trabalho, inicia-se um percurso de teorização sobre práticas de resistência e não tão somente de submissão do âmbito popular, o que mais tarde será alvo dos estudos dos meios massivos. Embora Hoggart traga novas contribuições teóricas sobre os Estudos Culturais, a sua visão recupera aspectos relacionados aos meios sociais, especialmente da classe trabalhadora. No que concerne à contribuição teórica de Raymond Willians (1958), é de fundamental relevância para os Estudos Culturais, uma vez que consegue discutir elementos da análise literária usando como pano de fundo a investigação social. Em The long revolution (1962), Willians traz à baila um intenso debate sobre o impacto dos veículos de comunicação de massa sobre as camadas populares, demonstrando com isso certo pessimismo em relação à própria existência da cultura popular, bem como aos meios de comunicação de massa. No que diz respeito à contribuição de Thompson, pode-se afirmar que seus estudos – amparados pela tradição marxista – exerceram influência sobre o desenvolvimento da história social britânica. Tanto para Willians quanto para Thompson, o papel da cultura está relacionado com um conjunto de práticas e relações em que o indivíduo desempenha papel principal. Ocorre que Thompson mantinha certa resistência para conceber a cultura como uma forma de vida global; na sua visão, a cultura deveria ser entendida como uma luta entre modos de vida diferentes. Outro teórico que ofereceu significativas contribuições na formação dos Estudos Culturais foi Stuart Hall, cujas pesquisas procuraram incentivar o desenvolvimento dos estudos etnográficos, bem como as análises dos meios de comunicação de massa e a investigação de atividades de resistência no âmbito das subculturas. Originalmente, os Estudos Culturais apareceram no cenário mundial com uma proposta de cunho mais político que propriamente analítico. Revestida de um viés marxista, a história dessa linha de pesquisa encontra-se relacionada com a trajetória da New Left, de determinados movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Campaign for Nuclear Disarmament) e de publicações (como a New Left Review) que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda. Mais tarde, no período pós-68, os Estudos Culturais impulsionaram o pensamento intelectual de esquerda, proporcionando um grande impacto no âmbito teórico e político, e suas diretrizes ultrapassaram as fronteiras do espaço acadêmico, trazendo para a Inglaterra um forte compromisso de militância que visava a mudanças sociais radicais. Ao fim dos anos 60, a atenção dos pesquisadores de Birmingham recai sobre a recepção e a densidade dos consumos midiáticos. Tal pensamento ganha notoriedade a partir da divulgação do texto Enconding and decoding in television discourse, de Stuart Hall, publicado em 1973. Por meio de noções relacionadas à concepção marxista sobre ideologia, Hall enfoca a pluralidade, socialmente determinada, das práticas que envolvem a recepção dos programas televisivos. Nesse sentido: [...] podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da mensagem televisiva: uma posição “dominante” ou “preferencial”, quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção; uma posição “negociada”, quando o sentido da mensagem entra “em negociação” com as condições particulares dos receptores; e uma posição de “oposição”, quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa. ESCOSTEGUY (2000, p. 151) Durante os anos 70, os Estudos Culturais aproximaram-se dos Estudos Feministas, tendo como fundamento as relações entre sujeito, poder e dominação. Mais adiante, foram acrescidas à noção de gênero questões relacionadas à raça e à etnia. As pesquisas do Centro de Birmingham acerca de gênero começam a surgir em 1978, com a publicação de Womem take issue, de 1978. Charlotte Brundson, Marion Jordon, Dorothy Hobson, Christine Geraghty e Angela McRobbie são autoras que "revêem suposições do senso comum sobre os meios de comunicação, reivindicando que a audiência, no caso, feminina, tem autoridade sobre suas práticas de leitura." (ESCOSTEGUY, 2000, p. 152) Durante a década de 80, eclodem estudos acerca dos meios de comunicação de massa, tendo como especial referência os programas televisivos. Ocorre, também, nessa esteira, um redimensionamento dos protocolos de investigação científica, fazendo surgirem trabalhos de natureza etnográfica. Algumas das pesquisas dessa época concederam especial importância ao ambiente doméstico, bem como às relações familiares, para a formação de leituras diferenciadas. Para se ter uma dimensão das diferenças existentes no âmbito dos estudos sobre cultura entre as décadas de 80 e 90, é preciso considerar que, durante a primeira, existia uma compreensão das relações entre poder, ideologia e resistência, ao passo que, nos anos 90, a preocupação em recuperar as "leituras negociadas" dos receptores viabilizaria a valorização da liberdade individual desse receptor e tornaria menos valorizados os efeitos da ordem social. Para alguns teóricos, os Estudos Culturais mudaram seu direcionamento ao longo de sua trajetória, como pode se exemplificado no conceito de "classe", que deixou de ser o conceito crítico central. Concomitantemente, o centro das discussões passou a ser questões relacionadas à subjetividade e à identidade. Em síntese, os Estudos Culturais tiveram ampla contribuição social, à medida que trouxeram à tona questões relacionadas aos produtos advindos da cultura popular e dos mass media, que refletiam os rumos e diretrizes da sociedade contemporânea. Nesse momento, tentaram resgatar determinadas tradições teóricas de cunho sociológico, em detrimento do funcionalismo norte-americano, sob a alegação de que este não era suficientemente capaz de compreender as temáticas propostas. Com isso, a Inglaterra passou por um processo de recuperação de perspectivas como a fenomenologia, a etnometodologia e o interacionalismo simbólico. Como o significado de cultura tornou-se algo bastante extenso, o foco viria a recair sobre toda a produção de sentido. Como ponto de partida, dedica-se especial atenção às estruturas sociais (de poder) e ao contexto histórico, considerados fatores determinantes para a compreensão da ação dos meios massivos, bem como o deslocamento do sentido de cultura, antes encravado no tradicionalismo elitista, para as práticas cotidianas. Os Estudos Culturais atribuem à cultura um papel que a esfera econômica não consegue explicar totalmente. O marxismo e os Estudos Culturais mantêm uma relação desenvolvida por meio da crítica ao reducionismo e ao economicismo, o que resulta num modo de contestação do modelo base-superestrutura. A visão marxista trouxe subsídios aos Estudos Culturais no sentido de compreender a cultura na sua “autonomia relativa”: ela não mantém uma relação de dependência econômica, nem seu reflexo, porém tem influência sobre e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Na esteira do pensamento de Althusser, a força econômica, a força política e a força cultural são concebidas como determinantes na composição da complexa unidade que é a sociedade. Outro fator relevante para este campo diz respeito ao conceito de ideologia proposto por Althusser: a ideologia é “provedora de estruturas de entendimento através das quais os homens interpretam, dão sentido, experienciam e ‘vivem’ as condições materiais nas quais eles próprios se encontram” (HALL, 1980 apud ESCOTEGUY, 2000, p.145-6). Nesse primeiro momento, as pesquisas em Estudos Culturais – ainda plenamente concentradas na perspectiva da Escola de Birmingham – restringiam-se às áreas das subculturas, das condutas desviantes, das sociabilidades operárias, da escola, da música e da linguagem: Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos Culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da hegemonia. (ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7) Nessa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos por meio dos quais são estudados os meios de comunicação de massa ganham especial importância, uma vez que sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Isso não é realizado, todavia, dentro de um processo mecânico, mas no interior de um percurso que se vai adaptando às pressões e às contribuições que surgem dentro do universo social, de forma que se integre ao sistema cultural. Gramsci contribuiu de maneira significativa para uma maior compreensão dos processos de mudanças que podem ser construídos dentro do sistema. Sua teoria norteia-se pelas complexas relações que ocorrem entre as culturas populares e a cultura hegemônica. Nessa perspectiva, o que se pode evidenciar é que não existe um rígido confronto entre as diferentes culturas: Na prática, o que acontece é um sutil jogo de intercâmbios entre eles. Elas não são vistas como exteriores entre si, mas comportando cruzamentos, transações, intersecções. Em determinados momentos, a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemônica; em outros, reproduz a concepção de mundo e de vida das classes hegemônicas (ESCOSTEGUY, 2000, p.147) No que diz respeito às linhas de pesquisa implantadas pelos Estudos Culturais, destaca-se aquela que prioriza as relações de consumo da comunicação de massa, sendo esta o lugar onde se realiza a negociação entre práticas comunicativas diferentes. De maneira geral, pode-se entender o Centro de Birmingham, desde a sua fundação até meados dos anos 80, como um pólo de pesquisas que detém um grande número de teorias diversificadas, cuja atenção recai sobre as culturas de massa e culturas populares e que, mais tarde, trouxe para o centro das discussões questões relacionadas às identidades étnicas e de gênero, além de propagar estudos heterogêneos originados das inúmeras e diversificadas teorias que estudam os mais variados temas. Com o surgimento de novos teóricos como Michel de Certeau, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros, no final dos anos 70 e início dos anos 80, os Estudos Culturais passam por um processo de internacionalização, tornando escassas as análises em que o fundamental é "luta" ou "resistência". Para alguns analistas, tal comportamento marca o início da despolitização dos Estudos Culturais. A partir dos anos 90, nota-se, em determinados casos, uma fragmentação, inconsistência e trivialização desse campo de estudos, embora possam ser detectados aspectos consistentes na proposta de análise das nuances culturais que marcam a contemporaneidade. Nessa fase, os Estudos Culturais passam por um período de relaxamento quanto à sua vinculação política, e o pensamento que marcou o início dessa linha de pesquisa sobre o estudo de algo "novo" já não existe mais. Todavia, mesmo fragmentada, existe uma relação de continuidade. Torna-se importante avaliar que a relação cultura/comunicação de massa e as suas várias diretrizes, como os problemas das culturas populares, também sofrem alterações na trajetória dos Estudos Culturais. Tais questões são extremamente relevantes para se ter uma visão dos Estudos Culturais, embora haja outras diretrizes importantes no universo desse campo de estudo, como, por exemplo, a discussão da pós-modernidade, cujo enfoque recai sobre questões como a globalização, a influência das migrações e o papel do Estado, bem como a cultura nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das identidades. Outro ponto relevante acerca dos Estudos Culturais está relacionado ao seu vínculo com o modo de vida globalizado, em que as diferenças aparecem de forma acentuada. Esse pensamento é avaliado por Cevasco (2003), ao apresentar a visão de Raymond Williams, cujos estudos estão centrados no percurso teórico e nas práticas sociais concretas. Para o teórico, as idéias, as estruturas de sentimentos e as formações na linguagem estão relacionadas com uma determinada ordem social e se reproduzem por meio de investigação histórico-literária, materializadas pelo estilo da escrita de cada autor, caracterizando uma profunda consciência política. Estudos Culturais e Cultura Brasileira Conceituar de forma pormenorizada a cultura nacional – marcada por aspectos contraditórios, dinâmicos e plurais – não é uma tarefa fácil, pois as respostas a questionamentos acerca da noção de "identidade brasileira" não terão univocidade. Qualquer tentativa de se fazer um mapeamento dos caminhos que a cultura nacional trilhou entre os anos de 1950 e 1980 necessariamente precisará recorrer a aspectos relacionados com as manifestações artísticas e culturais deste país, sobretudo o teatro, quer pela relevância dessa modalidade artística, quer pela contundência com que trabalhou elementos ligados à representação dos dilemas nacionais. Nesse período, o país passou por um forte processo de industrialização, o que trouxe subsídios para impulsionar o grande fenômeno sócio-cultural que ocorreu nos últimos trinta anos do século XX. Concomitantemente ao advento da moderna indústria cultural brasileira, o país enfrentou problemas que influenciaram consideravelmente os discursos e ações de artistas e intelectuais que marcaram o ápice da cultura engajada, que buscava transmitir ao público uma representação aproximada de um país com seus conflitos e contradições. As forças conservadoras (na maioria ligadas à indústria cultural ou ao Estado), não ficaram, todavia, impassíveis perante a cultura engajada e apresentaram rapidamente suas respostas e projetos para o Brasil. Nesse momento, o país passava por uma fase em que coexistiam elementos ligados ao âmbito rural e componentes cada vez mais urbanos e industrializados. No que diz respeito à cultura popular, esse processo de coexistência representou um cruzamento de elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados ao espaço urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a "cultura de elite", envolta pelo tradicionalismo do século XX, também buscou mecanismos artístico-culturais modernos e cosmopolitas para o pleno desenvolvimento de seus interesses. É nesse segmento que o músico Renato Russo faz ecoar sua voz nos ouvidos das autoridades de um país mergulhado num obscuro regime de exclusão. Com letras que buscam transmitir ao público uma mensagem de contestação, Russo mantém um projeto estético ligado às minorias, àqueles que efetivamente estão à margem da sociedade, trazendo para o centro das discussões questões múltiplas como etnias, relações de poder e, especialmente, a política, fatores que interessam aos Estudos Culturais: O caráter sempre político dos Estudos Culturais é expresso por suas tentativas de usar os melhores recursos intelectuais disponíveis para se obter um melhor entendimento das relações de poder (em jogo ou em equilíbrio) em determinado contexto, com a convicção de que o conhecimento resultante poderá capacitar as pessoas a mudarem o contexto e, conseqüentemente, as relações de poder. (HATTNHER, 2003, p.250) Renato Russo: caminhos e trilhas de um trovador solitário Renato Manfredine Junior nasceu no dia 27 de março de 1960, em Humaiatá, zona Sul do Rio de Janeiro. Filho de pai economista do Banco do Brasil e de mãe professora de inglês, teve uma infância tranqüila, em uma família de classe média-alta, no seio da qual adquiriu uma boa formação cultural. Mudou-se para Nova York aos seis anos de idade, quando seu pai foi fazer um curso nos Estados Unidos. Depois de retornar ao Brasil, a família foi morar em Brasília, onde começaria a fase até então mais traumática. Aos 15 anos, Renato ficou impossibilitado de andar, pois sofria de uma doença rara que ataca os ossos. Passou por diversos tratamentos e operações e só voltaria a caminhar dois anos depois. Com sua doença, começa sua fase de “poeta”. Sem poder andar, em seu quarto Renato inventou uma banda imaginária, a “42th Street Band”, e seu personagem imaginário era Eric Russel. Aos 17 anos, passou no vestibular para Jornalismo, concluiu o curso, mas sequer voltou à faculdade para buscar o diploma. Antes de realizar o sonho, porém, o futuro músico ainda seria professor de inglês, programador de rádio e jornalista. Lecionando na Cultura Inglesa, foi escolhido pela entidade para recepcionar o Príncipe Charles quando o monarca inaugurou uma das filiais do grupo. Renato Manfredini Junior viveu fases em sua vida que mais tarde seriam o “carro chefe” para suas composições, nas quais falaria de sua vida em todos os sentidos. Criou o nome artístico “Russo”, inspirando-se em dois de seus pensadores favoritos, o inglês Bertrand Russell e o filósofo Jean-Jacques Rousseau, bem como no pintor primitivista Henri Rousseau. Russo compôs muitos poemas. Suas primeiras tentativas como escritor e compositor ocorreram na época da banda “Aborto Elétrico”, junto com Fê Lemos e Flávio Lemos, hoje bateirista e baixista do grupo Capital Inicial. Depois de consecutivas discussões, o Aborto Elétrico chegou ao fim, mas, pouco tempo antes, Renato conhecera Marcelo Bonfá, que tocava bateria na banda Metralhas. Por algum tempo, apresentou-se sozinho como Trovador Solitário e, mais tarde, junto com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha (Negrete), formou-se a Legião Urbana, com o próprio Renato Russo como vocal. Várias de suas músicas ainda hoje são inéditas; outras foram gravadas pela Legião. O primeiro álbum chamou-se, como a própria banda, Legião urbana, e foi produzido por José Emílio Rondeau. Lançado em janeiro de 1985, com todas as letras de autoria de Renato Russo, denotava aspectos punks, com a maioria das músicas retratando aspectos da política, das drogas, do amor e do desamor, como é o caso de Ainda é cedo: “Ela me disse eu não sei/ mas o que sinto por você/ vamos dar um tempo/ um dia a gente se vê”. Uma das fortes características dos versos de Renato Russo é o comprometimento com a estética de antigos poetas e com um certo tom de romantismo que os perpassa. O segundo álbum, intitulado Dois, foi produzido por Mayrton Bahia. Lançado em julho de 1986, é considerado, pela crítica especializada, um dos melhores discos do grupo, trazendo Eduardo e Mônica como a música de trabalho do disco. Nessa composição, o autor chama atenção para o fato de que não existir diferença que o amor não possa superar, o que vem ao encontro das características dos poetas românticos: “Quem um dia irá dizer/ que não existe razão/ nas coisas feitas pelo coração”. O álbum Que país é este 1978-1987, também produzido por Mayrton Bahia, é lançado em dezembro de 1987; todas as letras também são de Renato Russo. Aqui a canção épica Faroeste caboclo chama a atenção da crítica por seus versos contundentes e por um estilo notadamente romanesco: “Não tinha medo tal João de Santo Cristo/ era o que todos diziam quando ele se perdeu”, a letra é composta por 159 versos, e conta a saga do anti-herói João de Santo Cristo, o herói bandido que tenta melhorar sua condição social em uma cidade grande, mas que acaba mantendo estreitas relações com o narcotráfico da capital federal. Em decorrência de desentendimentos, o baixista Renato Rocha deixa a banda no limiar do lançamento de As quatro estações. Lançado em novembro de 1989, esse disco reflete o aperfeiçoamento nas letras compostas por Renato Russo, marcadas por relações intertextuais com diversas obras. Um caso de grande notoriedade é a relação da música Monte Castelo com a lírica de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que dói e não se sente”, e com trechos extraídos da Bíblia. O segundo verso da música Há tempos é de um texto achado em uma igreja em 1600; mais uma vez o autor denota a preocupação com efeitos expressivos e com a pesquisa na composição de suas letras. Na música Meninos e meninas, Renato deixava entrever aspectos de sua sexualidade: “Acho que gosto de São Paulo/ gosto de São João/ gosto de São Francisco/ e São Sebastião/ e eu gosto de meninos e meninas”. Já com a descoberta de que era soropositivo, compôs o quinto disco da banda. Mais uma vez o trabalho foi produzido por Mayrton Bahia e Legião Urbana e, em dezembro de 1991, é lançado o álbum V. Considerado por Renato como contendo as melhores letras que já escrevera, o trabalho é revestido de dor e melancolia, especialmente em Teatro dos vampiros. Já a canção Sereníssima traz para o público uma mensagem profundamente centrada no “eu-lírico”: “Sou um animal sentimental / me apego facilmente ao que desperta ao meu desejo/ consegui meu equilíbrio/ cortejando a insanidade / tudo está perdido / mas existem possibilidades”. Durante os ensaios para a turnê de lançamento do disco V, a Legião Urbana gravaria o Acústico MTV, registrado em noite única, em 28 de janeiro de 1992, numa casa de shows chamada Hippódromo, no bairro de Perdizes em São Paulo. O álbum acústico só foi lançado em 1999. Depois de nove meses de turnê, em um show em Natal, no simbólico 7 de setembro, durante o show houve um pane na eletricidade, não só do estádio, como em toda a capital do Rio Grande do Norte, e a mesa de luz queimou. Mesmo assim, no palco Renato se superou, e fez aquele que considerou o melhor show da turnê. Para recuperar o alto investimento financeiro feito para a turnê V, foi lançado em dezembro do mesmo ano o álbum duplo sob o título Música para acampamentos, sem músicas inéditas, exceto A canção do senhor da guerra, uma composição de Renato com fortes traços de contestação social. Com o impeachment de Fernando Collor de Mello em que meados de 1992, Renato se preparava para compor e gravar o sétimo álbum da Legião Urbana, que depois seria lançado com o título O descobrimento do Brasil, em novembro de 1993, considerado o disco da nova fase da Legião. Um ótimo exemplo é quanto à faixa que fazia um apelo à crise que o Brasil atravessava Perfeição: “Vamos celebrar, a estupidez humana/ a estupidez de todas as nações/ o meu país e suas corjas de assassinos/ covardes estupradores e ladrões”. A Legião Urbana se recolhera por um tempo; Renato, em carreira solo, interpretando músicas inglesas, gravou o disco The stonewall celebration concert, lançado em junho de 1994, produzido pelo próprio músico: “foi uma maneira de homenagear os grandes astros da música inglesa, de que sou fã”. Em dezembro de 1995, lançou Equilíbrio distante, todo em língua italiana. Em janeiro de 1996, a Legião Urbana entrava em estúdio para aquele que seria o último disco gravado com Renato ainda em vida (ou seus dois últimos, pois sobraria matéria suficiente para gravar um disco póstumo). Considerado o disco de despedida de Renato Russo, com as letras todas de sua autoria, trazia músicas mais melódicas que as anteriores e muitas vezes denotando seus temores e sua doença, como em A via láctea: “Quando tudo está perdido/ sempre existe um caminho/ quando tudo esta perdido/sempre existe uma luz/ mas não me diga isso/ hoje a tristeza não é passageira/ hoje fiquei com febre a tarde inteira”. O álbum A Tempestade, ou o Livro dos dias, foi produzido por Dado VillaLobos, lançado em setembro de 1996, um mês antes da morte de Renato Russo. Com 20 quilos a menos que os 65 habituais, barba comprida, Renato Russo morreu à 1h15min, no dia 11 de outubro de 1996, em seu apartamento na Rua Nascimento Silva. O artista perdera a luta de seis anos contra a Aids. Seu corpo foi cremado no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Após sua morte, foi lançado, em julho de 1997, um álbum póstumo, chamado Uma outra estação, com músicas inéditas, todas de autoria de Renato, exceto Travessia do eixão. O disco, apesar de Renato já falecido, não deixou de fora as características do cantor e compositor. Na canção Antes das seis, faz alusão aos tempos em que retratava tudo com lirismo e poeticidade: “Quem inventou o amor?/ me diga, por favor/ quem inventou o amor?” Outra homenagem póstuma foi o álbum O último solo, com músicas que ficaram fora do primeiro e do segundo disco solo de Renato. Atualmente os trabalhos da Legião Urbana não têm cessado. As homenagens a Renato Russo estão sendo cada vez mais intensas. Foi lançada em março de 1998 uma antologia póstuma, Mais do mesmo, que reuniu seus grandes sucessos; em outubro de 1999, o álbum ao vivo Acústico MTV, gravado em 1992. Com a seleção de repertório de Carlos Savalla, o álbum intitulado Renato Russo, antologia póstuma da série bis foi lançado em junho de 2000 e Como é que se diz eu te amo, álbum duplo ao vivo, em março de 2001. Já em março de 2003, chega às lojas Renato Russo presente, uma homenagem póstuma em parceria com outros cantores da música brasileira. Em maio de 2004, é lançado o CD duplo, As quatro estações ao vivo. A pós-modernidade em Perfeição Considerando os Estudos Culturais como mecanismo de "correção política", próximo dos movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento, pode-se afirmar que uma análise da obra de Renato Russo à luz dessa nova “teoria” é mais que pertinente. E Perfeição, letra escrita em 1993, momento de tensão política nacional, revela-se um objeto de análise bastante propício para mergulhar na problemática social que permeia o âmbito nacional: tematiza o momento histórico e insinua uma inserção nas discussões políticas do tempo. A nova arte política deve ater-se ao verdadeiro objeto da pós-modernidade – o espaço mundial do capital internacional – e buscar uma maneira de representá-lo, a fim de que entendamos nosso papel como sujeitos individuais e coletivos e recuperemos nossa capacidade de agir e lutar (no espaço e na escala social). O título, irônico e, portanto, ambíguo, engana; produz uma ilusão, que se desfaz nos versos, metáforas ou metonímias de um país mergulhado nas incertezas e injustiças que invadem a história do Brasil. Metaforicamente, remete a um “país das maravilhas”, com suas belezas naturais, com suas práticas futebolísticas e carnavalescas criadas a partir de uma visão internacional sob a égide do capitalismo. Assim considerada, a obra parece aproximar-se da estética pós-moderna, pois uma das funções da pós-modernidade é: [...] correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica – chamada freqüente e eufemisticamente de modernização, sociedade de consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional. (JAMESON, 1985, p. 17) Afirma Jameson (1997) que a produção estética pós-moderna está integrada à produção de mercadorias e que a nova cultura pós-moderna é americana, pois expressa a dominação militar e econômica dos Estados Unidos sobre o resto do mundo. Assim, o pós-modernismo não é, para ele, um estilo, mas uma dominante cultural: um todo em que coexistem várias características bem distintas entre si, mas que se subordinam umas às outras, de modo que também não se trata de uma ruptura com o modernismo. Nessa perspectiva, Renato Russo parece encaminhar, com a obra, duas questões: o que somos? Que país é esse? Por meio da primeira, parece propor a discussão da des-humanização do brasileiro submetido a um trabalho desqualificador “Nosso castelo de cartas marcadas/O trabalho escravo e nosso pequeno universo”; com a segunda, traz para a cena os efeitos do sistema político-econômico do país cuja gente “trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada”. São as maravilhas que se desfazem, cujos pedaços o criador entrelaça para montar a farsa. Importa ressaltar que, no estágio pós-moderno, as fronteiras entre arte e a vida são cada vez mais tênues. Os mecanismos que regem a pós-modernidade podem ser uma das formas produtivas de se ver, descrever, compreender e interpretar o mundo por meio de diferentes manifestações culturais, como acontece, por exemplo, nas letras de Renato Russo, uma vez que o autor focaliza a organização dos espaços urbanos, suas fronteiras e formas de produção permeadas pela lógica do sistema capitalista. Composta em 1993, Perfeição insere-se no disco O descobrimento do Brasil. O país estava, ainda, sob os efeitos de uma grande turbulência política, provocado pelo rápido governo da chamada “Era Collor”; no entanto, desde a sua concepção até os dias de hoje, as realidades focalizadas na canção se mantêm atuais, como destaca Dapieve (2003, p. 141): Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O descobrimento do Brasil, trazia também um impressionante retrato do país, filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando Collor de Melo, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na música Perfeição, incrivelmente amarga, mas no final das contas otimista. Ninguém era poupado. Esse tom otimista pode ser constatado em “Venha o amor tem sempre a porta aberta/E vem chegando a primavera/Nosso futuro recomeça/ Venha, que o que vem é perfeição.” Quanto ao título da composição de Renato Russo, observa-se apresenta um tom de ironia, pois segundo o dicionário Aurélio (1975, p.1068), a palavra “perfeição” vem “do latim, perfectio, estado do que é correto, exato, impecável.” Ocorre que o sentido que percorre o texto é exatamente o oposto, trazendo para o ouvinte/leitor o jogo da ordem de ser/parecer. Segundo Mora (2001), a palavra “perfeição” está relacionada a algo que é perfeito, “completado”, de tal modo que não lhe falte nada, mas nada lhe sobra para ser o que é. Nesse sentido, diz-se que algo é perfeito quando é justo e exemplar. Essa idéia de perfeição inclui a idéia de “limitação”; se o perfeito é algo “limitado”, tudo que for ilimitado será imperfeito. A idéia de perfeição teve considerável importância em toda a história do pensamento ocidental, sobretudo a partir do cristianismo, isto é, quando Deus foi concebido como modelo de perfeição. Somente Deus poderia ser considerado como o arquétipo de perfeição absoluta, cabendo ao restante uma perfeição relativa. A letra enfoca, de forma cortante e irônica, os aspectos de um país naufragado em corrupção política e descaso social: “Vamos celebrar a estupidez humana/ A estupidez de todas as nações/ O meu país e sua corja de assassinos/ Covardes, estupradores e ladrões [...] / Celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa desunião”. Outra questão relevante no texto é quanto ao processo de alienação da população em face dos diversos problemas de ordem social, pois, do ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser vistos como um sinônimo de “correção política”, podendo ser identificado como a política cultural dos vários movimentos sociais. Tal correção é apresentada pelo autor com nuances de crítica contundente: “Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro ou feriado [...]”. É interessante frisar que Renato Russo traz para sua composição aspectos referentes à mitologia greco-romana, como os deuses gregos citados na letra: “Vamos celebrar Eros e Thanatus/ Perséphone e Hades.” Perséfone na mitologia é a deusa da fecundidade e Eros está relaciona ao amor. Perséfone, filha de Zeus e Deméter, casara com Hades e se tornara a rainha dos mortos, Eros está relacionado ao amor o Deus que desperta paixões, Hades é o sombrio Deus do mundo subterrâneo, e Thanatus o mais ativo dos imortais. Em Perfeição, todos os aspectos apontam para o comportamento dos oprimidos em face do poder. Para o autor é necessário comemorar “Toda a hipocrisia e toda a afetação/ Todo o roubo e toda a indiferença [...]”. A corrupção, a chantagem, a contravenção, que surgem pela voz cáustica do artista desfere contra os mecanismos que regem o poder toda inconformidade com o status quo e apresenta o Estado como símbolo da manutenção desse poder. Em consonância, a população mantém um quadro de conivência com o poder instituído: “Vamos celebrar epidemias/ É a festa da torcida campeã.” Acrescentada uma tentativa de discurso da união, o autor tenta buscar a adesão do enunciatário com uso de comprometimento “ideológico” que garanta o alcance do objeto: a união (ou o ajuntamento) poderia constituir um movimento consistente, capaz de exercer influência sobre a situação de exclusão e marginalização social, mas Renato Russo apresenta, de forma metafórica, a discussão de elementos de alienação por parte da população brasileira, representada pelos componentes da escala social dependentes de um mísero “salário”, os quais buscam, na televisão, um elemento de alienação social: “Vamos celebrar a estupidez do povo/ Nossa polícia e televisão/ Vamos celebrar o nosso governo/ E nosso estado que não é nação”. Por meio de uma linguagem ácida, o autor também faz alusão ao poder instituído do capitalismo, que explora sem nenhuma benevolência a mão-de-obra dos trabalhadores do país, o que resulta em descaso e completo abandono das autoridades, denunciados por Russo, em “Vamos celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa desunião.” Deve-se levar em consideração que o autor emprega, também, muitas vezes, o discurso do senso comum - graças a sua força argumentativa e ao fato de atingir o status de verdade universalmente aceita e incontestável - para conseguir a adesão do seu interlocutor, porque “Situar as grandes verdades acima de todos os sistemas, colocandoas como verdades do senso comum, possibilita que a reflexão não entre em choque com o poder vigente”. (LAGAZZI, 1988, p.30). O discurso do senso comum vem ao encontro dos anseios do artista em atingir a grande massa da população: “Venha, meu coração está com pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/ Chega de maldade e ilusão”. Assim, o autor apresenta o discurso da descrença que, envolto num clima de constante exploração, perde qualquer sonho de mudança do status quo: “Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não se ter a quem amar”. Com essa canção, Renato Russo direciona suas letras para dentro da realidade nacional. Uma realidade que remete os excluídos a uma reflexão sobre a sua real condição. Essa reflexão culmina na voz da juventude que tenta conseguir alcançar um futuro melhor. A função que a linguagem alcança no texto é a de estabelecer as relações de poder entre exploradores e explorados. A ideologia subjacente ao discurso do autor ganha dimensão por meio da linguagem porque, como afirma Lagazzi (1988, p. 26), "A linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar com esse poder e essa tensão. O poder procura, no entanto, eliminar as possibilidades que a linguagem nos dá para fugir ao controle que ele quer absoluto". Com efeito, Perfeição, de Renato Russo, traz para o centro das discussões, questões relacionadas ao processo de exclusão e alienação social, marcas da pósmodernidade, por meio de um discurso de rebeldia e contestação, atravessado pela acidez em textos construídos com padrões estéticos ainda pouco explorados pela academia. Considerações Finais Em Perfeição, atrás das palavras que permeiam o texto, há a palavra, há as intenções e a história do autor. Um autor que concebeu o universo do rock’ n roll como um espaço que lhe permitiu tomar parte no debate político. Ao que parece, Renato Russo construiu a letra da canção em torno de sua ideologia; sem perder sua identidade, o texto encarna seus princípios e concepções de mundo. Parece que, para Renato Russo, o sofrimento e a dor causados pela alienação/exclusão social vêm revelar-se como um novo padrão de música, porque a obra também aborda possibilidades de melhoria do país. A letra remete a seres envolvidos num clima de ameaça à segurança e à vida que se estende à comunidade e culmina no anseio de conduzir a população a participar efetivamente das questões sociais. O sentimento de angústia, o tema da morte, a comunicação de aspectos da sociedade “atual”, saturada de objetos mercáveis, a luta interior e a “guerrilha ideológica”, todos esses significados nascem do texto, produzindo uma imagem amalgamada de dois mundos, de dois Brasis. Num texto que parece dialogar com o jornalismo, como é o caso de Perfeição, encontra-se o retrato de um Brasil alienado e às vezes inenarrável pela grande imprensa, criando para o autor uma imagem que oscila entre aspectos positivos e aspectos negativos; entre o “belo” e o “feio”; entre o agradável e o desagradável. Assim, Renato Russo nunca esteve distante da desigualdade social; ao contrário, esteve sempre e profundamente mergulhado na realidade, procurando cumprir um compromisso radical com os seres humanos que a sociedade deixa à margem. Com efeito, Perfeição teve a virtude de mostrar que a arte é social em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação, e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Referências bibliográficas DAPIEVE, A. Renato Russo: o trovador solitário. 8.ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. 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