verve verve Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP 7 2005 VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº7 ( maio 2005 - ). - São Paulo: o Programa, 2005 Semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C. Corrêa, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Márcio Ferreira Araújo Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Gilvanildo Avelino, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos. Conselho Editorial Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia). ISSN 1676-9090 verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal. SU M Á R I O Émile Henry, o benjamim da anarquia Jean Maitron 11 Notas para a abolição dos campos de concentração e de extermínio Salete Oliveira 43 Prisões: falência e crime social Emma Goldman 57 Abolicionismo penal, medidas de redução de danos e uma nota trágica Edson Passetti 75 A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais Christian Ferrer 86 Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana Saul Newman 101 Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade na revolução espanhola Margareth Rago 132 A educação anarquista na república velha Eduardo Valladares 153 Os pedreiros da anarquia Edgar Rodrigues 178 Anarquia e anarquismo Eduardo Colombo 194 Centro de cultura social, uma prática anarquista Entrevista com José Carlos Morel 209 Haikai Henry D. Thoreau 224 Anarquismo na vida e na obra de eugene o’neill Pietro Ferrua 226 Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra: trajetórias Beatriz Scigliano Carneiro 244 Jean Vigo, a revolta e o devir Pablo Martins 264 RESENHAS Anarquismo e crítica pós-moderna Nildo Avelino 279 Notícias de um pensador: a coragem da verdade e o pensamento libertário de Michel Foucault Tony Hara 286 Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista Jorge Vasconcellos 292 Afirmação da vida e decretação da morte Acácio Augusto 297 Conectando anarquias Thiago S. Santos 301 os anarquismos estão vivos como história do presente. um presente composto das memórias de suas lutas, de suas experimentações, das atuações dos anarquistas no trabalho, no cotidiano jamais modorrento. um presente feito de atualidade, de reviravoltas diárias. verve não se interessa pela polêmica; esta apenas sustenta dogmatismos. interessa-nos rebeldias. diante do pavor disseminado pelo terrorismo conservador deste início do século XXI, século que também vem se caracterizando pelo conformismo, verve 7 traz instantes do julgamento de émile henry, no final do XIX, e suas atuais palavras. é a partir deste jovem anarquista que se apresenta uma tensa discussão sobre o abolicionismo penal, os anarquismos, as aproximações com nietzsche, o teatro de eugene o’neill, o cinema de jean vigo, o contundente ensaio de saul neuwman sobre foucault e stirner, resenhas sobre ética, coragem e verdade, e poesias de sergio cohn. diante de tantas forças reativas, contaminando de boçalidade até os libertários, é sempre corajoso uivar: a uniformidade é a morte. 7 2005 não há como celebrar o raro sem o encontro Sergio Cohn 10 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia émile henry1, o benjamim da anarquia jean maitron* Nota introdutória, por acácio augusto O terrorismo anarquista é um importante acontecimento histórico-político, que ocorre entre a Comuna de Paris (1871) e a primeira Guerra Mundial (1914), largamente ignorado pela historiografia de direita e de esquerda. A lembrança da postura e da atitude política destes homens de ação (como gostavam de se autodenominar) ou destes assassinos delicados (utilizando um termo cunhado por Camus) faz-se necessária, ainda mais, em nossos dias quando vários acontecimentos internacionais passam a desencadear uma vasta bibliografia de época, produzida por intelectuais oportunistas e desavisados polemistas apressados, repleta de negligências históricas. * Jean Maitron (1910-1987) foi um dos mais importantes historiadores do movimento operário francês. Professor do ensino médio e depois professorassistente na Sorbonne (Paris I) escreveu e organizou diversas obras como Histoire du mouvement anarchiste en France — 1880-1914 (Paris, Sudel, 1951), Le mouvement anarchiste en France de 1914 à nous jours (Paris, Gallimard, 1992) e Ravachol et les anarchistes (Paris, Collection Archives, 1964). verve, 7: 11-42, 2005 11 7 2005 O texto que segue é uma seleta de um dos capítulos do livro de Jean Maitron, Ravachol e os Anarquistas, resultado de uma pesquisa realizada nos arquivos de polícia da prefeitura de Paris na década de 1950. Maitron reproduz uma série de documentos compostos de interrogatórios policiais e judiciais, artigos de jornais e prontuários, documentos que utilizou para escrever sua História do Anarquismo na França (1880-1914). Maitron é, junto com o alemão Max Nettlau, um dos principais historiadores anarquistas. O julgamento de Émile Henry, trecho que selecionamos do livro, é um acontecimento singular no interior do que foi conhecido como terror anarquista. Na ocasião do julgamento dos Trinta (1894), resultado de uma intensa repressão levada a cabo pelo governo francês para pôr fim aos atentados e ameaças que emergiram das resoluções da Internacional Negra (1881) — uma tentativa de reagrupar internacionalmente os libertários após a cisão com os autoritários no Congresso de Haia, em 1872 — Henry, um jovem espanhol promissor de classe média, deflagra dois atentados contra a burguesia de Paris e declara que, desde então, os anarquistas responderiam com violência à violência da burguesia organizada no Estado. Três fatores surpreendem o governo e burgueses franceses no caso de Henry: um é o fato deste não possuir as características físicas e sociais de um anarquista exemplar, outro é de seus atentados ocorrerem no exato momento em que se esperava liquidar a ação dos anarquistas com o julgamento dos Trinta, e, por fim, a reivindicação estritamente pessoal que Henry faz de suas ações. A maneira que Émile Henry entende a anarquia dispensa apresentações. A leitura desta seleta que publicamos pela primeira vez no Brasil é suficiente. Im- 12 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia portante ressaltar que algo de muito intenso ocorreu na França nas décadas de 1880 e 1890: o terror anarquista acordou os socialistas acomodados em sindicatos e partidos e perturbou o sono da burguesia que esperava dormir tranqüila após ter prendido, matado e exilado os insurgentes da Comuna de Paris. Quando tudo parecia caminhar para normalidade, os anarquistas explodiram bombas para lembrar que são contra a representação, o tribunal, o Estado e a propriedade privada. O anarquista é uma procedência moderna no terrorismo que reivindica para si, e na história, a capacidade de se defender contra o contrato fictício — que entrega cada um às mãos do Estado, ao seu monopólio legítimo do uso da força e à pletora de direitos. ********* Nos dias 27 e 28 de Abril de 1894, numerosos agentes policiais dispersaram-se pelos arredores do Palácio da Justiça, outros colocaram-se nas entradas, revistando cuidadosamente cada pessoa que entrava.2 O caso sobre o qual o júri do Sena é hoje chamado a debruçar-se apresenta uma gravidade excepcional. Desta vez, o acusado não é um homem grosseiro cuja educação primária tenha sido menosprezada. Émile Henry é um jovem de vinte e dois anos, de fisionomia fina e doce, de tom pálido. Os cabelos castanhos são cortados à escova. Uma ligeira barba loura cresce-lhe no queixo. Sentado no banco dos réus, de costas apoiadas no parapeito, sorri com indiferença. Está vestido de preto.3 13 7 2005 [O interrogatório] [...] Terminada a leitura dos autos de acusação, o presidente procede ao interrogatório do acusado: Pergunta. A 12 de Fevereiro, entrou no Café Terminus. Resposta. Sim, às oito horas. P. A sua bomba ia à cintura de suas calças? R. Não, no bolso de meu sobretudo. P. Por que foi ao Café Terminus? R. Fui primeiro à Casa Bignon, ao Café de la Paix e ao Americain, mas não havia gente o suficiente; então, entrei no Terminus e esperei. P. Havia uma orquestra. Quanto tempo esperou? R. Uma hora. P. Por que? R. Para que aparecesse mais gente. P. E em seguida? R. Já o sabem. P. Estou perguntando. R. Usei o charuto!, acendi o rastilho e depois, pegando a bomba, saí e à porta, ao deixar o café, lancei a bomba. P. Despreza a vida humana. R. Não, a vida dos burgueses. P. Fez tudo para salvar a sua. 14 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia R. Sim; para recomeçar. Contava sair do café, fechar a cortina de entrada, comprar um bilhete na estação Saint-Lazare, fugir e recomeçar no dia seguinte. P. Ao fugir encontrou-se mais adiante com um empregado do café, um homem de nome Etienne, que caçou-o, dizendo: “Agarrei-te canalha!” — Você respondeu: “Ainda não”. E o que é que fez? R. Disparei sobre ele. P. Ele caiu. O que é que você disse? R. Que tivera sorte por o meu revólver não ser melhor. P. Depois foi detido por um funcionário de cabeleireiro; que fez? R. Desfechei-lhe um tiro de revólver. P. Foi atingido e está mal. O agente Poisson o seguia. R. Como nessa altura se juntava gente, parei; esperei o agente Poisson e disparei contra ele os últimos três tiros do meu revólver. P. Então foi preso e os policias tiveram dificuldade em arrancá-lo da fúria da multidão. R. Que não sabia o que eu tinha feito. P. Tinha consigo balas que haviam sido fendidas. Por que? R. Para causar mais estragos. P. E um punhal embebido numa preparação. R. Envenenara a lâmina para esfaquear um delator de anarquistas. P. Estava decidido a atacar o agente com essa arma? R. Certamente. 15 7 2005 P. Achava-se sentado a uma mesa próxima da porta e lançou a bomba para a frente. Por que não atingiu mais pessoas com essa explosão, apesar de ter feito pontaria à orquestra? R. Lancei a bomba demasiado alto; chocou-se com o lustre e desviou-se. P. Então ouviu-se uma explosão surda e o café ficou completamente destruído: mesas, espelhos, madeiras são quebrados. Houve muitos feridos: vinte; um deles, o Sr. Borde, entretanto morreu. Ficara com uma perna crivada de feridas; um outro, o Sr. Van Herreweghen, sofreu quarenta ferimentos. Encontravam-se ali mulheres: a Sra. Kingsburg, ainda sobre grande padecimento, bem como outras que ireis escutar. E essas mulheres ficaram aterrorizadas ao ponto de esconder os seus ferimentos. Você declarou que quanto mais burgueses morressem, melhor seria. R. É isso que penso. P. Identificou-se primeiro como um tal Breton; pouco depois, desmascara-se, diz chamar-se Émile Henry e descreve a sua bomba. Como é que era feita? R. Tratava-se de uma pequena marmita de ferro branco contendo um detonador e um rastilho. P. Afirmou que tinha experimentado um insucesso relativo. O que é que isso significa? R. Queria ter morto mais gente; mas a marmita não estava bem fechada. P. Pôs projéteis dentro dela. R. Coloquei cento e vinte balas. P. Vaillant, que dizia querer ferir e não matar, tinha posto pregos e não balas. 16 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia R. Eu pretendia matar e não ferir. P. O seu domicílio não era conhecido. R. Declarei que não tinha domicílio em Paris; afirmei vir de Marselha ou de Pequim. P. Pouco depois, foi assaltado um quarto da casa Faucher; o comissário da polícia, avisado, encontra materiais explosivos e conclui ser aquela a sua residência. R. Desconheço quem entrou no meu quarto. P. Advertiram-no que fôra descoberto o seu domicílio e, então, replicou que deveriam ter encontrado em sua casa uma certa quantidade de materiais explosivos. R. Dava para fazer entre doze e quinze bombas. P. (Aos jurados): Conhecem o crime e o acusado, que acaba de vos confessar o seu crime com cinismo. O acusado: Não é cinismo, é convicção. P. Quis matar Etienne, o empregado do café? R. Quis matar todos os que se opusessem à minha fuga. P. Quis matar o agente Poisson? R. Certamente; ele erguera o sabre e teria me matado. P. Quis matar as pessoas do Café Terminus? R. Certamente, quantas mais melhor. P. Quis destruir o edifício? R. Oh! Pouco me importa. Sr. Presidente (aos jurados): Isto já bastaria para estabelecer a culpabilidade do acusado; mas, seja qual for o crime, a justiça, o que muito nos honra, nunca prescin- 17 7 2005 de das regras habituais. Devemos examinar todos os detalhes e debruçarmo-nos ainda sobre um outro fato imputado ao acusado. P. O seu pai morava em Brévannes, depois foi para a Espanha, tomou parte na Comuna de Paris, em seguida a sua mãe ficou viúva e com três crianças. Obteve uma bolsa na Escola J. B. Say4, e aos dezessete anos pôde ser admitido na Escola Politécnica. Não continuou. R. Para não ser militar e não ser obrigado a disparar contra infelizes como em Fourmies.5 P. Arranjou emprego com um empreiteiro, Sr. Bordenave, seu parente. Quanto ganhava? R. Em Veneza, ganhava 100F por mês. P. Por que é que veio embora? R. Por motivos que não vêm ao caso. P. Ele quis obriga-lo — foi você quem o afirmou — a exercer uma vigilância discreta que lhe repugnou. O Sr. Bordenave, interrogado, protestou. R. Reconheceu que tinha havido um mal entendido. P. Depois arranjou emprego. R. Passei três meses de miséria, antes disso! P. Em todo caso, logo arranjou uma ocupação. R. Ocupação bem medíocre: 100 a 120F por mês. P. Nesse momento você era influenciado por um dos seus irmãos. Pouco depois, foi preso, após um comício de homenagem a Ravachol6; e o seu patrão encontra na sua escrivaninha obras anarquistas, nomeadamente uma tradução de um jornal italiano, indicando os métodos de fabricar nitroglicerina, e nos quais se lê: “Viva o roubo, Viva a dinamite!”. Estão aí as regras que pôs em 18 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia prática no atentado da Rue des Bons-Enfants. Então o seu patrão despediu-o. R. Fui despedido quando encontraram esses papéis. P. Procurou trabalho num relojoeiro. Depois, esteve empregado no En dehors, dirigido por Matha, condenado em 1892, ano em que você entrou para esse jornal, por incitação à insubordinação militar — recusou também ser militar. R. Estive três anos num batalhão escolar7 e é tudo o que poderia fazer como tropa. P. Furtou-se ao serviço militar e a sua mãe não concordou. R. Temia que eu fosse expatriado. P. Entrou para casa do Sr. Dupuis recomendado por Ortiz, um ladrão.8 R. Não estou ao par do que tem feito Ortiz desde que o conheci. P. O Sr. Dupuis aumentou o seu salário. R. Sentia uma grande estima por ele. P. Quererá repetir diante do júri as confissões que fez durante a instrução? Prefiro que você fale. R. Com certeza. Os motivos do meu ato direi amanhã. A Sociedade de Carmaux é representada em Paris pela sua administração; depois da greve, comprei uma marmita; tinha dinamite, uma espoleta e rastilho de mineiro; preferi o sistema da bomba de inversão. O interrogatório prosseguiu. O acusado recusa-se a dizer o que fez durante o ano de 1893, que separa os dois 19 7 2005 atentados. Durante uma discussão mais acalorada, o juizpresidente gritou: P. Dane-se com o seu silêncio! R. É-me indiferente. Não preciso me acautelar com o meu silêncio; sei bem que serei condenado à morte. P. Escute: acho que há uma confissão que dói ao seu orgulho. Vaillant confessou ter aceito 100F de um ladrão; você não quer reconhecer que estendeu essa mão para receber dinheiro do roubo, essa mão que vemos hoje coberta de sangue. R. As minhas mãos estão cobertas de sangue, tal como a sua toga! De resto, não tenho que lhe responder. P. Você é acusado e o meu dever é interrogá-lo. R. Não reconheço a tua justiça, estou contente com o que fiz!... P. Você não reconhece a justiça. Infelizmente para você está nas malhas dela e os jurados saberão apreciar. R. Eu sei! O Sr. Presidente: Sente-se. A audiência, suspensa às duas horas e meia, recomeçou às três horas e quinze. [...] Mais algumas testemunhas de acusação e passa-se aos depoimentos favoráveis. Brémant, mestre-escola em Fontenay-sous-Bois: Émile Henry foi meu aluno; era um modelo. Possuía uma maturidade de espírito extraordinária, uma grande doçura. Deixou-nos aos doze anos e mantive excelentes relações com ele. Chegou a mandar-me uma vez uns versos. 20 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia Le Fermous: Fui condiscípulo de Émile Henry na Escola J. B. Say. Era um colega excelente, um amigo muito indulgente; tinha por ele um grande afeto. Philippe, professor particular na Escola Politécnica: Fui professor de Henry na Escola J. B. Say; era uma criança perfeita, a mais honesta que é possível encontrar; antes de se apresentar na Escola Politécnica, perguntou-me o que deveria fazer; respondi-lhe que o achava perfeitamente capaz para ser admitido. P. Teria podido, pelos seus conhecimentos, construir uma existência honrada e lucrativa como empregado de um construtor que se interessasse por ele? R. Poderia ter feito carreira muito boa, sob a orientação de seu parente. Conhecia mal a vida, menos do que os rapazes da sua idade. Brajus, 65 anos: Conheci muito bem o pai, a mãe e os filhos da família Henry. Sempre se portaram bem e a minha casa esteve-lhes sempre aberta. Fui acompanhando Émile. Em 1893, veio ver-me duas ou três vezes. Sr. Hornbostel [advogado de defesa]: A testemunha deu dinheiro a Henry? R. A mãe dele pediu-me algumas vezes que lhe emprestasse dinheiro e ele me pagou. Gauthey (Jules-François), operário metalúrgico: Conheci Henry em 1891, visitava-me. P. Viu-o em 1893? R. Vi-o uma vez; mas procurou-me várias vezes na minha ausência, vestido de operário. P. Tinha as mãos sujas? 21 7 2005 R. A minha mulher viu-o e disse-me que ele era serralheiro. Em 1891, estimava Henry. Ele gostava muito das crianças. Goupil, médico. O Sr. Presidente (dirigindo-se à testemunha para o convidar a prestar juramento): Levante a mão direita. O Dr. Goupil coloca a mão direita atrás das costas. P. Levante a mão direita. R. Recuso-me a prestar juramento por respeito pela vossa religião, que não tenho a felicidade de praticar nem de conhecer. Não tendo a citação à testemunha sido entregue ao Ministério Público, o delegado opõe-se a que o Sr. Dr. Goupil preste juramento, a fim de permitir que possa ser ouvido sem caráter oficial. O Doutor Goupil: Conheci o Henry pai. Cheguei a têlo como secretário. Tratei-o no fim da vida. O Émile gozou uma juventude excelente; é um jovem muito nervoso; já afirmei diante de alguns dos senhores jurados, refiro-me aos que se dignaram receber-me. O acusado: Não sou louco. O Doutor Goupil: Reuni apontamentos que entreguei à defesa e que indicam qual o estado mental do acusado. O acusado: Agradeço-lhe, mas tenho consciência do que fiz; não sou louco. Os resultados obtidos no colégio foram posteriores à minha febre tifóide. O meu pai morreu em conseqüência de um envenenamento por vapores mercuriais. Agradeço-lhe mais uma vez, mas não sou um louco; sou responsável pelos meus atos. 22 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia Ogier d’Ivry (conde): Sou parente por afinidade de Émile Henry. Conheci-o jovem, excelente aluno, sonhador, desequilibrado. Tinha por padroeiro São Luís; depois seguiu as inclinações do pai. Há nestes homens um extraordinário sentimento de revolta; descendem dos antigos Camisards9, o pai participou na Comuna. São mais anarquistas do que a Anarquia ou mais realistas que o rei sob a monarquia. Sempre na oposição e em revolta. Convenci-o a entrar para a Escola Politécnica. O Sr. Presidente: Senhores jurados, antes de mandar entrar a última testemunha, insisto em perguntar ao acusado e ao seu defensor se renunciam a ouvi-la. Sr. Hornbostel: De maneira nenhuma. Sr. Presidente: Então quero explicar em que circunstâncias esta testemunha foi citada. Recebi de Émile Henry a carta seguinte: “Senhor Presidente, Tendo a minha mãe manifestado o desejo de assistir ao meu julgamento, tentei em vão dissuadi-la. Temendo justificadamente que as emoções de dois dias de audiências lhe sejam demasiado dolorosos, tenho a honra de vos solicitar senhor presidente, que lhe negue qualquer autorização que ela vos possa pedir para assistir as mesmas. Queira aceitar, senhor presidente, as minhas sinceras saudações. Émile Henry 25 de Abril de 94. Prisão do Palácio de Justiça.” Esta carta foi-me entregue pela defesa. Já aparecera, aliás, nos jornais antes de meu conhecimento. O advogado pediu-me autorização para fazer entrar a mãe do acusado na sala de audiência. Recusei energicamen23 7 2005 te, declarando que não queria deixar vir aqui uma mãe para ouvir o acusador público requerer a pena capital contra o filho. Acrescentei que só havia um meio de a fazer entrar, que era citando-a como testemunha. Se esta testemunha for chamada, a lei obriga-me a ouvila. O acusado: Desconhecia que a minha mãe tivesse sido citada... Não quero ver aqui a sua dor. P. É precisamente o que pretendia evitar-lhe. Renuncia à audiência da testemunha? O acusado: Renuncio em absoluto.10 Sr. Hornbostel: Renuncio igualmente. Esgotado o rol de testemunhas o acusador público pronunciou o seu requisitório. O que mais lhe importa é saber “como este jovem burguês se tornou um anarquista”. Estamos aqui na presença, não de Ravachol, Léauthier e outros, mas na de um burguês. O seu pai possuía bens, coisa singular para um anarquista; foi empreiteiro de profissão, depois engenheiro, e a infelicidade atingiuo juntamente com a doença. Como foi educado o acusado? Condoemo-nos muito com certos anarquistas, com uma jovem12, esquecendo os órfãos que os atentados teriam podido causar. Apiedamo-nos também com a má sorte de Émile Henry; conseguiu uma bolsa, terminou os estudos secundários e chegou à admissão na Escola Politécnica, era um burguezinho. Emprega-se na casa do Sr. Bordenave que aos dezesseis anos e meio lhe oferece um lugar e quer propiciar-lhe um futuro. Começa com 75F por mês; isto não foi suficiente para o seu orgulho, não chegava, porque queria principiar por onde os outros acabam. 11 24 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia É orgulhoso e cruel. Após o caso do Terminus, declara chamar-se Breton, vindo de Marselha ou Pequim, como quiserem. Vejam como é um frio ironista. Acrescenta lamentar não ter morto mais gente e não ter podido usar seu punhal: “Matei muito pouca gente! Outros virão depois de mim, que farão melhor”. É isto que diz. Assistiram, ontem, a sua atitude em presença das vítimas. Quando depunha o Sr. Herrenweghen, ostentava ele a sua indiferença face a esta vítima ainda débil que chorava a morte do seu amigo [...]. Quero falar-vos das vítimas: Sinto-me cheio de pena da Sra. Henry cujo luto não começará com o vosso veredicto; o seu luto começou no dia do crime. A Sra. Henry é sua primeira e mais dolorosa vítima. Morreram cinco vítimas na Rue de Bons-Enfants; a sexta faleceu, há pouco tempo, depois de sofrimentos horríveis. Os feridos: Sr. Van Herrenweghen, ainda combalido; Sr. Maurice, empregado de cabeleireiro; essas senhoras enlouquecidas, escondendo seu terror, e tantas outras. Henry ri destas vítimas! Garin, o funcionário da Sociedade de Carmaux, deixa viúva grávida e duas crianças, vivendo de uma pensão. Réuax tinha vinte e oitos anos; deixa viúva e um bebê. Formarin deixa viúva e um jovem rapaz. Touteau deixa viúva e três crianças. Pousset deixa viúva e dois filhos. Eis o resultado da anarquia: Pousset era filho de um oficial; educado na Flèche, fôra para Saint-Cyr, tornara-se oficial; amava uma mulher pobre, casou com ela e teve que interromper sua carreira; fez um pouco de tudo; estudou direito, licenciou-se, foi secretário de comissário da polícia e em breve seria comissário. A bomba estúpida da Rue des Bons Enfants acabou com tudo isso. Foi o que fez. É esta a solução da questão social segundo os anarquistas. 25 7 2005 Os crimes de Henry são crimes atrozes; a opinião pública sente por eles apenas ódio e desejo de vingança. Escapou de ser esquartejado por populares. A justiça é mais fria, mais calma; o que a multidão teria feito sob o domínio da cólera, fazei-o vós com o sangue frio necessário à justiça. Concordai que só a pena capital pode igualar-se a seus crimes [...]. [Palavras de Émile Henry] Suspensa a audiência às cinco horas e quarenta e cinco minutos, recomeçou às cinco e dez. Émile Henry pediu então a palavra, o que lhe foi concedido. Levanta-se e virando-se para os jurados, fala: Não é uma defesa que vos quero apresentar. Não tento de forma alguma furtar-me às represálias da sociedade que ataquei. De resto, só aceito um único tribunal — eu próprio; e o veredicto de qualquer outro me é indiferente. A explicação de meus atos. Quero simplesmente explicar os meus atos e lhes dizer como fui levado a executá-los. Sou anarquista há pouco tempo. Apenas me lancei no movimento revolucionário em meados de 1891. Até aí vivera em meios totalmente imbuídos da moral vigente. Tinha sido habituado a respeitar, e até a amar, os princípios da pátria, família, autoridade e propriedade. Mas os educadores da geração atual esquecem com demasiada freqüência uma coisa: que a vida, com suas lutas e os seus dissabores, as suas injustiças e iniqüidades, encarrega-se, indiscreta, de abrir os olhos dos ignorantes à realidade. Foi o que me aconteceu, como acontece a todos. Tinham me dito que esta vida era fácil, larga26 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia mente aberta aos inteligentes e vigorosos, mas a experiência mostrou-me que só os cínicos e os bajuladores conseguem obter um lugar ao sol. Haviam me dito que as instituições sociais se baseavam na justiça e na igualdade, mas não vi à minha volta senão mentiras e velhacarias. Cada dia me tirava uma ilusão. Onde quer que fosse, testemunhava em alguns as mesmas dores, noutros os mesmos prazeres. Não demorei para compreender que as palavras pomposas que me tinham ensinado a venerar — honra, abnegação, dever — não eram mais do que uma máscara escondendo as mais torpes infâmias. O industrial, que construía uma fortuna colossal à custa do trabalho dos seus operários, a quem tudo faltava, era uma pessoa honesta. O deputado, o ministro de mãos sempre abertas ao suborno, servia ao bem público. O oficial que, experimentava o último modelo de espingarda contra crianças de sete anos, cumpriria bem o seu dever e era, em pleno Parlamento, felicitado pelo presidente do conselho de ministros! Tudo o que vi me revoltou e o meu espírito entregou-se à crítica da organização social. Essa crítica foi feita demasiadas vezes para que eu a repita. Atraído pelo socialismo Atraído momentaneamente pelo socialismo, afastei-me depressa desse partido. Tinha demasiado amor à liberdade, demasiado respeito pela iniciativa individual, demasiada repugnância pela arregimentação, para aceitar ser um número a mais no exército do Quarto Estado. 27 7 2005 Percebi, por um lado, que no fundo o socialismo não altera em nada a ordem atual. Mantém o princípio da autoridade, e este princípio, digam o que disserem os pretensos livres pensadores, não passa de um velho resquício da fé numa potência superior. Estudos científicos me iniciaram, gradualmente, no funcionamento das forças naturais. Ora, eu era materialista e ateu; compreendera que a hipótese de Deus era repudiada pela ciência moderna, que dela já não necessitava. A moral religiosa e autoritária, baseada na falsidade, deveria portanto desaparecer. Qual era então a nova moral, em harmonia com as leis da natureza, que deveria regenerar o velho mundo e dar à luz uma humanidade feliz? Toda esta introdução foi recitada pelo acusado com uma voz segura, apenas de início atravessada por uma ligeira emoção. Nesta altura, a memória falhou-lhe; o Sr. Hornbostel, seu advogado, passa-lhe então um caderno que seguirá com os olhos até ao final da intervenção. E recomeça: É por essa altura que me relacionei com alguns companheiros anarquistas, que ainda hoje considero como dos melhores que conheci. O caráter desses homens seduziu-me imediatamente. Apreciava-lhes a grande sinceridade, a absoluta franqueza, um desprezo profundo por todos os preconceitos, e quis conhecer o pensamento que tornava tais homens tão diferentes de todos os que conhecera até ali. Esse pensamento encontrou no meu espírito um terreno preparado para o receber, devido a observações e reflexões pessoais. Apenas tornou mais preciso o que havia em mim de vago e confuso. 28 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia Fiz-me também anarquista. Não vou desenvolver aqui a teoria da anarquia. Quero apenas reter o seu lado revolucionário, a sua marca destruidora e negativa pela qual compareço diante de vós. Nesta época de luta aguda entre a burguesia e os seus inimigos, sinto-me quase tentado a dizer, como Souvarine no Germinal: “Todos os raciocínios sobre o futuro são criminosos porque se opõem à destruição pura e simples e entravam a marcha da revolução”. Trouxe comigo para a luta um ódio profundo, dia a dia mais intenso devido ao espetáculo revoltante dessa sociedade em que tudo é reles, ambíguo, feio, em que tudo é um entrave à expansão das paixões humanas, às tendências generosas do coração, ao livre desenvolvimento do pensamento. Bater com força e precisão Quis vibrar um golpe com a maior força e precisão possíveis. Passaremos então ao primeiro atentado que cometi, a explosão da Rue des Bons-Enfants. Tinha acompanhado atentamente os acontecimentos de Carmaux. As primeiras notícias da greve encheram-me de alegria; os mineiros pareciam enfim dispostos a renunciar às greves pacíficas e inúteis, em que o trabalhador confiante espera com paciência que a sua meia dúzia de francos vença os milhões das companhias. Pareciam ter entrado numa via de violência que se afirmou resolutamente no dia 15 de Agosto de 1892. Os escritórios e edifícios da mina foram invadidos por uma multidão farta de sofrer sem se vingar. O engenhei- 29 7 2005 ro tão odiado pelos seus operários ia ser executado, quando alguns timoratos se interpuseram. Os timoratos Quem eram esses homens? Os mesmos que fazem abortar todos os movimentos revolucionários, por recearem que o povo, uma vez lançado na ação, deixe de obedecer à sua voz; aqueles que levam milhares de homens a sofrer privações durante meses inteiros, para fazer propaganda à custa dos seus sofrimentos e ganharem a popularidade necessária à obtenção de um mandato — refiro-me aos chefes socialistas. Esses homens, com efeito, tomaram a direção do movimento grevista. E viu-se, subitamente, cair sobre a região um enxame de senhores bem-falantes que se colocaram à inteira disposição da luta, organizaram subscrições, proferiram conferências, enviaram pedidos de fundos para todo o lado. Os mineiros depuseram nas suas mãos toda a iniciativa. O que aconteceu, sabemos bem. A greve eternizou-se, os mineiros travaram conhecimento mais íntimo com a fome, sua companheira habitual; esgotaram os magros fundos de reserva do seu sindicato e dos que vieram em seu auxílio e, ao fim de dois meses, de orelha murcha, voltaram à fossa, mais miseráveis do que antes. Desde o princípio teria sido muito simples atacar a companhia no seu único ponto fraco: o dinheiro; incendiar o estoque de carvão, destruir as máquinas de extração, destruir os aparelhos de bomba hidráulica. Claro que a Sociedade teria capitulado bem depressa. Porém, os grandes pontífices do socialismo não admitem esses processos, que são anarquistas. Neste jogo arriscase a prisão e, quem sabe?, talvez uma dessas balas que 30 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia fizeram maravilhas em Fourmies. Nem se ganha nenhum lugar municipal ou legislativo. Resumindo, a ordem, perturbada por instantes, volta a reinar em Carmaux. Mais poderosa do que nunca, a Sociedade continuou a sua exploração e os senhores acionistas felicitaram-se pelo feliz desenlace da greve. Convenhamos que ainda havia bons dividendos a partilhar. A voz da dinamite Decidi então introduzir, nesse concerto de alegres chilreios, uma voz que os burgueses já tinham ouvido, mas que julgavam morta com Ravachol: a voz da dinamite. Quis mostrar à burguesia que, daí em diante, acabariam para ela as alegrias completas, que seus insolentes triunfos seriam perturbados, que o seu bezerro de ouro haveria de tremer violentamente no pedestal, até ao safanão definitivo que o derrubaria na lama e no sangue. Ao mesmo tempo, quis fazer entender aos mineiros que há só uma categoria de homens — os anarquistas — que sentem sinceramente os seus sofrimentos e estão prontos a vingá-los. Esses homens não se sentam no Parlamento, como os senhores Guesde e quejandos, mas caminham para guilhotina. Preparei pois uma marmita. Por um instante, veio-me à memória a acusação de Ravachol: e as vítimas inocentes? Mas resolvi rapidamente o problema. A casa onde se encontram os escritórios da Sociedade de Carmaux só era habitada por burgueses. Não haveria, portanto, vítimas inocentes. 31 7 2005 A burguesia no seu conjunto vive da exploração dos infelizes; deve em conjunto expiar os seus crimes. Foi com a certeza absoluta da legitimidade do meu ato que coloquei a minha marmita na porta dos escritórios da Sociedade. Expliquei, durante os debates, como esperava que, no caso do meu engenho ser descoberto antes da explosão, viesse a rebentar no posto policial, atingindo, ali, os meus inimigos. Eis os motivos que me levaram a cometer o primeiro atentado que me censuram. A caça aos anarquistas Passemos ao segundo, o do Café Terminus. Vim a Paris na época do caso Vaillant. Assisti à repressão formidável que se seguiu ao atentado do Palais-Bourbon13. Testemunhei as medidas draconianas tomadas pelo governo contra os anarquistas. Espiava-se por todo lado, faziam-se buscas, prendiam-se pessoas. Ao acaso, uma multidão de indivíduos era arrancada da família e lançada na prisão. O que sucedia às mulheres e aos filhos destes camaradas durante o seu encarceramento? Ninguém se preocupava com isso. O anarquista já não era um homem, mas um animal feroz cercado por todos os lados, para quem a imprensa burguesa, escrava infame do poder, pedia o extermínio por todos os meios. Ao mesmo tempo, os jornais e panfletos libertários eram confiscados, o direito de reunião proibido. Mais do que isso: quando queriam se livrar definitivamente de um companheiro, um bufão colava no seu quarto um embrulho que dizia conter tanino e, no 32 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia dia seguinte, era feito uma busca com um mandato datado da antevéspera. Encontravam uma caixa cheia de pós suspeitos, o camarada ia a julgamento e apanhava três anos de prisão. Perguntem se isso não é verdade ao miserável denunciante que se infiltrou na casa do companheiro Mérigeaud. Mas todos esses processos foram considerados bons. Atingiam um inimigo do qual se tinha medo e os que tinham tremido queriam passar por corajosos. Coroando esta cruzada contra hereges, ouvimos o Sr. Raynal, ministro do Interior, declarar na Assembléia que as medidas tomadas pelo governo tinham obtido um bom resultado, que tinham semeado o terror no campo anarquista. Não era ainda suficiente. Condenaram à morte um homem que não matara ninguém, e para parecerem corajosos até o fim, um belo dia, guilhotinaram-no. Mas, senhores burgueses, não havíeis contado com este vosso convidado. Vocês encarceraram centenas de indivíduos e violentaram um sem-números de domicílios; mas ainda havia fora das vossas prisões homens que vocês ignoravam e que na sombra assistiam à vossa caça aos anarquistas, esperando apenas o momento para, por sua vez, caçarem os caçadores. As palavras do Sr. Raynal constituia um desafio lançado aos anarquistas. O repto foi aceito. A bomba do Café Terminus foi a resposta a todas as vossas violações da liberdade, às vossas prisões, às vossas buscas, às vossas leis de imprensa, às vossas expulsões em massa de estrangeiros, às vossas decapitações. Mas, dirão, porquê ir atacar clientes tranqüilos que ouviam música e que talvez não sejam nem magistrados, nem deputados, nem funcionários? 33 7 2005 Porque é que atirei a esmo Por que? É bem simples — a burguesia fez dos anarquistas um bloco. Um só homem, Vaillant, lançou uma bomba; nove décimos dos companheiros nem sequer o conheciam. Que importa? Perseguiu-se em massa. Quem quer que tivesse qualquer relação anarquista foi perseguido. Muito bem. Uma vez que vocês responsabilizaram um movimento pelos atos de um indivíduo e o atacam em bloco, nós também atacamos em bloco. Devemos apenas atacar os deputados que fazem as leis contra nós, os magistrados que as aplicam, os polícias que nos prendem? Não penso assim. Todos esses homens são meros instrumentos que não agem em seu próprio nome. As suas funções foram instituídas pela burguesia para a sua defesa. Não são mais culpados do que os outros. Os bons burgueses que embora não tendo qualquer função recebem, no entanto, os seus dividendos, que vivem na ociosidade com os lucros produzidos pelo trabalho dos operários, devem também sofrer a sua parte de represálias. E não só eles, mas todos os que se sentem satisfeitos com a ordem atual, que aplaudem os atos do governo e que se tornam seus cúmplices, esses assalariados por 300 ou 500F por mês que odeiam o povo mais ainda que os grandes burgueses, essa massa estúpida pretensiosa que se coloca sempre ao lado do mais forte, clientela habitual do Terminus e doutros grandes cafés. E por isso atirei a esmo sem escolher as minhas vítimas. 34 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia Que a burguesia compreenda É necessário que a burguesia compreenda bem que aqueles que têm sofrido estão finalmente fartos dos seus sofrimentos, mostram os dentes e atacam tanto mais brutalmente quanto mais tiverem sidos brutais para eles. Eles não têm nenhum respeito pela vida humana, porque os próprios burgueses também não se preocupam com ela. Não cabe aos assassinos da semana sangrenta e de Fourmies chamar assassinos aos outros. Não poupam nem mulheres nem crianças burguesas porque as mulheres e as crianças que amam também não são poupadas. Não serão vítimas inocentes essas crianças que, nos subúrbios, morrem lentamente de anemia porque o pão escasseia em casa? Essas mulheres que definham nas vossas oficinas e se esgotam para ganhar quarenta centavos por dia, e muito felizes quando a miséria não as arrasta para prostituição? Esses velhos que vocês transformaram em máquinas de produção durante toda a sua vida e que atiram para a valeta ou para o hospital logo que as suas forças se exaurem? Tenham ao menos a coragem dos vossos crimes, senhores burgueses, e admitam que as nossas represálias são totalmente legítimas. Porém não me iludo, é claro. Sei que os meus atos não serão ainda perfeitamente entendidos pelas multidões insuficientemente preparadas. Mesmo entre os operários, por quem lutei, há muitos que, enganados pelos vossos jornais, julgam-me seu inimigo. Mas isso pouco me importa. Não me preocupa o juízo de ninguém. Não ignoro também a existência de indivíduos que se dizem anarquistas e se apressam a condenar qualquer solidariedade com os propagandistas pela ação.14 35 7 2005 Tais indivíduos tentam estabelecer uma sutil distinção entre teóricos e terroristas. Demasiado covardes para arriscarem a sua vida, renegam aqueles que atuam. Mas a influência que dizem ter sobre o movimento revolucionário é nula. Hoje a hora é de ação, sem fraquezas nem recuos. Alexandre Herzen, o revolucionário russo, afirmou: “Das duas uma, ou fazer justiça e seguir em frente, ou perdoar e vacilar a meio do caminho”. Não queremos perdoar nem vacilar e seguiremos sempre em frente até que a revolução, objetivo de nossos esforços, venha finalmente coroar a nossa obra, tornando o mundo livre. Não imploramos a mínima piedade nesta guerra impiedosa que declaramos à burguesia. Sabemos matar, saberemos morrer. É pois com indiferença que aguardo seu veredicto. Estou ciente que a minha cabeça não será a última que vocês cortarão; outras ainda hão de rolar, pois os mortos-de-fome começam a descobrir o caminho dos vossos grandes cafés e restaurantes, como o Terminus e o Foyot. Vocês acrescentarão novos nomes à lista sangrenta dos nossos mortos. Vocês enforcaram em Chicago, decapitaram na Alemanha, garrotaram em Jerez, fuzilaram em Barcelona, guilhotinaram em Montbrison e em Paris, mas o que nunca conseguirão destruir é a anarquia. As suas raízes são demasiado profundas. Nasceu no seio de uma sociedade podre e em desagregação, é uma reação violenta contra a ordem estabelecida. Representa as aspirações igualitárias e libertárias que vêm atacar a 36 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia autoridade atual; está em todo lado, o que a torna inatingível; acabará por vos liquidar.15 [...] Menos de um mês depois, a 21 de maio, Émile Henry, condenado à morte, era executado. Em La Justice dois dias depois, Georges Clemenceu, sob o título “A guilhotina”, fazia a descrição do suplício: Alguém me disse: “É preciso que assista para poder contar aos que concordam”. Hesitei, em busca de um pretexto. Mas depois, bruscamente, decido-me. Vamos lá. Atravessamos Paris das madrugadas, com seus grupos de mulheres deslavadas sob os lampiões de gás, e os seus notívagos em busca de uma aventura. Enervado, procuro nas coisas um indício estranho. Nada. Um céu de ardósia, encarneirado pelas nuvens, de uma transparência pálida. Um vento seco e cortante que nos gela. Eis-no na Place du Château-d’Eau, face à grande República em barrete frígio, mostrando o seu ramo de oliveira que, diz ela, faz a paz entre os homens. E o cutelo? No seu íntimo, grita-lhe: “Mentirosa!” Agora é Ledru-Rollin16, teatralmente colocado face à câmara do Fauboug. Mostra, num gesto enfático, a urna do sufrágio popular, dizendo: “Aqui está a salvação. — Sem dúvida, amigo, mas é longa a espera para uma vida curta. Tu próprio sofreste, durante vinte anos, a cruel experiência.” Todas as ruas que dão para a Place de la Roquette foram fechadas. A praça encontra-se ocupada por militares. Lá estão mil homens. São muitos para matar um só. Barragens mantêm o público no limite da Rue de la Roquette. Impossível ver alguma coisa do espetáculo iminente. O Sr. Joseph Reinach17 diverte-se à nossa custa. A praça não passa de um grande pátio prisional. 37 7 2005 Diante da porta da Roquette surgem novas barreiras para as pessoas com cartão de entrada. Amontoam-se ali, bem à vontade, uns sessenta jornalistas, entre os quais uma mulher, uma senhora de idade, de cabelos grisalhos, que atrai a curiosidade geral, sem mostrar qualquer incômodo. Fala alegremente com os mais próximos e com os guardas que lhe dizem gracejos. Agentes de polícia passeiam, com cigarro ou cachimbo na boca. Todos fumam. Fala-se a meia voz. A atitude é, sobretudo, de recolhimento. [...] Três homens de casaca e com cartola dirigem três operários em roupas de trabalho: camisolão curto, calaças de pano azul. Os três “burgueses” são o carrasco e os dois ajudantes. Um dos ajudantes, dizem-me, é genro do carrasco, o outro, filho. Jantaram em família e saíram corajosamente para o trabalho, olhando cheios de ternura as crianças adormecidas, beijando, uma a mãe, o outro a mulher ou a filha, que lhes fazem recomendações afetuosas por temer o frio da noite. Mal vi o Sr. Deibler, um velhote que arrasta uma perna. Seria impressão? Pareceu-me desajeitado, incerto e sonso. Um dos seus ajudantes, um rapaz louro, gordo, saudável e rosado, contrastava com ele. Todos trabalhavam sem ruído, com a boa consciência e a decência das pessoas que sabem viver. Pouco a pouco, as traves que se vêem por terra vão ganhando significado. Duas travessas encaixadas em cruz repousam sobre as lajes do chão. Estão devidamente calçadas e o Sr. Deibler, com o seu nível de água, acaba de assegurar-se que a sua máquina dispõe de uma base perfeitamente horizontal. Notam-se que não se usa sequer um prego. Só parafusos. Nem uma martelada. Que progresso! As calhas são erguidas, encimadas por uma trave que suporta uma polia. Fazem subir a lâmina que percorre a calha; montam a báscula e experimentam-na. É o 38 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia próprio Sr. Deibler que coloca a banqueta para a cabeça que envolve com uma espécie de biombo de madeira que impedirá os salpicos de sangue. O cesto destinado ao corpo encontra-se aberto, ao lado da báscula, perto da carreta que seguirá para Ivry. Agora é dia, ou quase. Acabam de apagar os bicos de gás. Olho a prisão e, estupefato, leio por cima da porta: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Como puderam esquecer-se de acrescentar: “ou a morte”? [...] Um movimento! Um jovem num sobretudo claro sai da prisão, de charuto nos lábios, e rindo na frente de todos vem até junto da guilhotina contar uma anedota a um amigo que lhe acha imensa graça. Disseram-me qual era sua função. Não a divulgo. Há dois guardas lívidos; dois novatos, sem dúvida. O jovem soldado de sentinela agitase constantemente: balança-se, faz gestos bruscos, ri nervosamente, gira os olhos no vazio. Pensei que se iria sentir mal. A pequena porta se fechou num gemido agudo. Ouvese o barulho das trancas de ferro a cair. A porta grande se abre e, atrás do capelão que toca uma sineta, surge Émile Henry, trazido, empurrado pelo grupo do carrasco. Lembra qualquer coisa como uma visão de Cristo de Munkacsy, com seu ar louco, a cara extremamente pálida, semeada de pelos ruivos, escassos e revoltos. Apesar de tudo, ostenta ainda uma expressão implacável. A sua cara pálida me cega. Não consigo olhar para outra coisa. O homem acorrentado avança a passo rápido, apesar dos entraves. Lança um olhar circundante e, com esgar horrível, numa voz rouca mas forte, grita aconselhável estas palavras: “Coragem camaradas. Viva a Anarquia!” 39 7 2005 Notas 1 Émile Henry, nascido em 1872, um ano depois da Comuna de Paris, em que seu pai lutou. Foi um terrorista diferente dos demais, com formação intelectual sedimentada, morto na guilhotina, em 1894. Jean Maitron. Ravachol e os anarquistas. Tradução de Eduardo Maia, Lisboa, Antígona, 1981, pp. 63-96. Adaptado por Acácio Augusto e Edson Passetti, dividindo o texto em duas partes: “O interrogatório” e “Palavras de Émile Henry”. 2 Cf. “Gazzete des Tribunuax”, 27 e 28 de Abril de 1894. 3 Idem. Foi um aluno brilhante: 2o prêmio de Excelência em 1885, 1o prêmio em 1886, 2o prêmio em 1887, 5a distinção em 1888 (ano preparatório na Escola Politécnica). 4 5 Alusão aos tiros do 1° de Maio de 1891. O exército disparou sobre manifestantes: dez pessoas foram mortas, entre elas duas crianças de 11 e 13 anos. François Claudius Koeningstein, Ravachol por parte de mãe, nasceu em 1854. Passou a usar o nome de Leon Léger, em 1891, para praticar atentados tendo sido preso em março de 1892. Apesar de diversas acusações e prisões, foi condenado à decapitação pela guilhotina, em 11 de julho de 1892, em Saint Étienne, por uma morte a ele atribuída. O jornal anarquista Pere Peinard declarou; “A cabeça de Ravachol caiu aos seus pés, agora temem que ela possa explodir como uma bomba”. Pobre, foi um intenso ativista e escreveu poucas anotações publicadas, inicialmente, em 1893, pelo jornal anarquista L’ Insurgé. (N.E.). 6 7 Em 1884-85, E. Henry pertenceu à 3° companhia do batalhão escolar de J. B. Say e obteve, no fim do ano, a oitava distinção. Ortiz Philippe, Léon, nascido em Paris, a 18 de novembro de 1868. Anarquista, fundou em 1887, com Malato e alguns outros, o “Révolution Cosmopolite”. Em 1894, foi acusado de participar com outros companheiros em roubos e fez parte dos acusados que compareceram no Processo dos 30, no tribunal do Sena a 6 de agosto de 1894. Foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados. Na deportação contou com a comunidade anarquista. 8 9 Camisards: grupo de camponeses protestantes calvinistas franceses que explodiu em revolta em 1702 (segundo Voltaire) e 1703 (segundo Philippe Joutard), resistindo, na região das Cévennes, à perseguição do Estado francês católico, que tinha proibido o culto, em 1685. São considerados dentro do fenômeno das seitas cristãs comunalistas ou de afronta à Igreja de Roma. Como não faz sentido pensar que o pai de Henry tenha sido um deles literalmente, mas sim foi participante da Comuna de Paris, o termo deve ter sido usado com referência a revoltosos de maneira geral. (N.E.). Um pouco mais tarde, o réu interrompeu violentamente o acusador público: “não se meta com a minha mãe, proíbo-lhe!”. 10 40 verve Émile Henry, o benjamim da anarquia Léon Jules Léauthier, nascido em 1874, era sapateiro e atentou contra a vida do Ministro da Sérvia Georgevitch, em 13 de novembro de 1892, em Paris. Condenado à pena de prisão perpétua, em 1894, foi assassinado na prisão de Iles de Salut, durante uma rebelião. (N.E.). 11 12 Sidonie Vaillant, filha do anarquista com o mesmo sobrenome. 13 Câmara dos deputados, onde Auguste Vaillant lançou uma bomba, em Dezembro de 1893. 14 Tema de sua polêmica com Malatesta em “L’En Dehors” de agosto de 1892. Desde o momento em que foi preso, Henry teve, ainda uma outra vez, a ocasião de desenvolver as suas teorias. Fê-lo por escrito, a pedido do diretor da prisão do Palácio da Justiça, depois duma visita que este lhe fez em 18 de fevereiro. Uma fotocópia do texto redigido pelo jovem anarquista está depositada nos arquivos da Prefeitura de Polícia, com a cota B a/140. 15 Estátua de Alexandre Auguste Ledru-Rollin, político que promoveu o sufrágio universal, membro do governo provisório de 1848, exilado após os acontecimentos de Junho. (N. T.) 16 Outro político (1856-1921), discípulo de Gambetta; defendeu a revisão do processo Dreyfus. (N. T.) 17 41 7 2005 RESUMO Um anarquista no tribunal. Émile Henry, seu julgamento e sua demolidora crítica ao direito, ao tribunal e à sociedade. Palavras-chave: Terrorismo, anarquismo, pena de morte. ABSTRACT An anarchist in a court. Émile Henry, his trial and his demolishing critic on the Law, the court and society. Keywords: Terrorism, anarchism, death penalty. Indicado para publicação em 7 de abril de 2003. 42 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... notas para a abolição dos campos de concentração e de extermínio salete oliveira* “Eis um filão que é preciso não perder de vista (...) na realidade, talvez sejam vários, todo um consórcio de tiranos, divididos entre si no que me concerne, deliberando desde um bom pedaço de eternidade, escutando-me de tempos em tempos, depois indo comer e jogar cartas, em segredo, a expensas do governo, à minha revelia (...).” Samuel Beckett Morder, mascar, deglutir “No ano de 1949, aconteceu-nos, a mim e a alguns amigos lermos uma nota que nos chamou a atenção na revista Priroda (Natureza), da Academia das Ciências. Impressa em caracteres minúsculos, noticiava que na bacia do rio Kolimá, durante umas escavações, tinhase deparado, casualmente, sob uma camada glacial, com uma corrente congelada, nela tendo sido descobertos, * Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora-pesquisadora na PUC/SP pelo Prodoc-CAPES. verve, 7: 43-56, 2005 43 7 2005 também congelados, espécimes de fauna fossilizados (com várias dezenas de milênios de idade). Esses peixes, ou tritões, conservavam-se tão frescos — testemunhava o correspondente científico — que as pessoas presentes quebravam o gelo ali mesmo e comiam-nos com prazer. Não poucos leitores da revista devem ter se espantado bastante pelo fato de a carne de peixe poder conservar-se durante tão longo tempo no gelo. Mas foram menos os que puderam discernir o sentido verdadeiramente heróico dessa nota imprudente. Nós compreendemos tudo num ápice. Vimos com clareza toda a cena, nos seus mínimos pormenores: como as pessoas presentes quebravam o gelo, com exacerbada pressa, e como, menosprezando os elevados interesses da ictiologia, se acotovelavam uns aos outros, arrancavam os pedaços da carne milenária, passavam-na pela chama, descongelavam-na e saciavam a fome. Compreendemolo porque as pessoas presentes éramos nós próprios, porque nós éramos membros dessa poderosa legião de zeks [detidos], a única na terra que podia comer os tritões com prazer. Kolimá era a maior e a mais célebre ilha, o pólo da ferocidade desse assombroso país do Gulag, desgarrado pela geografia num arquipélago, mas psicologicamente ligado ao continente, a esse quase invisível, quase intangível país habitado pelo povo zek. Este arquipélago, cheio de enclaves, recortava-se polícromo sobre o outro país, a que estava incorporado, penetrava nas suas cidades, pairava sobre as suas ruas — e no entanto havia quem não se apercebesse de nada, embora muitos tivessem ouvido falar vagamente de algo; só os que lá tinham estado conheciam tudo. Entretanto, como se tivessem perdido o dom da fala nas ilhas do arquipélago, eles guardavam silêncio. Numa inesperada viragem da nossa história, uma parte insignificante desse arquipélago foi dada a conhecer ao mundo. Mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora 44 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... conciliadoramente as palmas e dizem ‘não se deve... não se deve remexer no passado!... Aquele que recorda o passado perde um olho!’ E, no entanto, o provérbio acrescenta: ‘aquele que o esquece perde os dois!’ As décadas vão correndo e lambem irrecuperavelmente as cicatrizes e as úlceras do passado. Outras ilhas, durante esse tempo, estremeceram, foram-se derretendo, desbordaram, e o mar polar do esquecimento vem embater sobre elas. E um dia, no século futuro, este arquipélago, o seu ar e os ossos dos seus habitantes, congelados numa camada glacial, serão apresentados aos descendentes como um inverossímil tritão.”1 Soljenítisin, passou onze anos de sua vida confinado em um gulag. Seu Arquipélago Gulag, publicado em russo, em Paris, em 1973, trouxe, pela primeira vez, a público a história vivida e documentada dos campos de trabalho escravo na URSS, relativa ao período de 1918 a 1956. A principal tese do livro diz respeito ao fato de que os Gulags fizeram parte da constituição do Estado soviético desde o momento da Revolução Russa, em 1917, contrariando os argumentos que o justificaram ou o atenuaram sob a alegação de que teriam sido uma criação distorcida e arbitrária de Stálin. Paris, janeiro de 1976. Primeira veiculação televisiva de imagens do campo de concentração soviético, localizado na cidade de Riga. No mês seguinte, K. S. Karol entrevista Michel Foucault; indaga-lhe sobre as imagens que viu. “Em primeiro lugar, os soviéticos disseram o seguinte, o que me chocou muito: ‘não há nada de escandaloso nesse campo: a prova disso é que está no meio da cidade, todo mundo pode vê-lo.’ Como se o fato de um campo de concentração ser instalado em uma grande cidade — no caso, Riga — sem que seja necessário dissimulá-lo, tal como os alemães o faziam, às vezes, fosse uma des45 7 2005 culpa! Como se este impudor de não esconder o que se faz, ali onde se faz, autorizasse a reivindicar o silêncio em qualquer outro lugar, e a impô-lo aos outros: o cinismo funcionando como censura. É o argumento de Cyrano: já que meu nariz é enorme, bem no meio do meu rosto, vocês não têm o direito de falar dele. Como se não fosse preciso, nessa presença de um campo em uma cidade, reconhecer o brasão de um poder que se exerce sem pudor, tal como nossas prefeituras, nossos Palácios de Justiça ou nossas prisões. Antes de saber se os detentos que ali estão são ‘políticos’, a instalação do campo, nesse lugar tão visível, e o terror que ele exala são, em si, políticos. O arame farpado que prolonga os muros das casas, os feixes de luz que se entrecruzam e o passos das sentinelas à noite, isso é político. E é uma política.”2 Em uma entrevista posterior, relativa, ainda, aos campos soviéticos, concedida a Jacques Rancière, no ano de 1977, Foucault, aponta para dois desdobramentos distintos: a instituição Gulag e a questão Gulag.3 São apenas dois pequenos apontamentos que podem ser desdobrados e esgarçados. A instituição gulag O termo GULAG refere-se a uma vasta rede de campos de trabalhos forçados que se espalharam por toda a URSS. Das ilhas do Mar Branco às costas do Mar Negro. Do círculo Ártico às planícies da Ásia Central. De Murmansk a Vorkuta e ao Casaquistão. Do centro de Moscou à periferia de Leningrado.4 A palavra GULAG designa “administração geral dos campos” e refere-se, imediatamente, à instituição de uma polícia política que, por sua vez, corresponde à divisão da polícia secreta que gerenciava os campos soviéticos. Polícia multiplicada e redimensionada inúmeras vezes.5 46 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... Cheka (Comissão Extraordinária), polícia secreta que vigorou durante a revolução. GPU (Agência Política do Estado), polícia secreta que sucedeu a Cheka no início dos anos 1920. OGPU (Agência Política Unificadora do Estado), polícia secreta do final dos anos 1920 e início de 1930, sucessora da GPU. NKVD (Comissariado do povo para assuntos internos), polícia secreta que agiu nos anos 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, sucessora da OGPU. MVD (Ministério de Asssuntos Internos), a polícia secreta responsável pelas prisões e pelos campos de trabalho forçado no pós-guerra. MGB/KGB (Ministério/Comitê de Segurança do Estado), responsável pela segurança interna e externa no pós-guerra. Uma das procedências do Gulag encontra-se na Rússia czarista, correspondendo às “turmas de trabalho forçado” que localizavam-se na Sibéria e operaram desde o século XVII até o início do século XX. Foi de lá que conseguiram fugir vários anarquistas no século XIX, dentre eles Bakunin. E dataria desta época sua futura habilidade em imprimir fantásticas fugas dos gulags soviéticos, já que vieram a ser um de seus alvos principais. Logo após a revolução, segundo Applebaum, o gulag assume sua forma mais moderna e familiar, tornando-se parte do sistema soviético. Tal qual a polícia política e secreta o gulag também vai sofrer modificações e reacomodamentos em suas significações e aplicações. Com o tempo passa a indicar não só a administração dos campos de concentração mas, também, o próprio sistema de trabalho soviético, trabalho escravo, sob as mais diferentes formas e modalidades. Campos de trabalho forçado; campos punitivos; campos criminais e políticos; campos femininos; campos infantis; campos de trânsito. O campo se dividia em campos e no interior dos campos alojavam-se outros campos, respondendo a uma 47 7 2005 multiplicação e alastramento que Soljenítsin denominaria de arquipélago, mesmo termo que Michel Foucault, não fortuitamente, utilizou para se referir à prisão dispositivo — diferindo do internamento considerado isoladamente — o arquipélago carcerário.6 O gulag não só passou a significar todo o sistema repressivo soviético — os presos o denominavam como o “moedor de carne”7, referindo-se aos amplos itinerários que abrangiam, das delações às capturas, das prisões aos interrogatórios e sessões de tortura; dos translados em vagões de gado ao trabalho forçado, da destruição de laços amorosos e amistosos aos anos de degredo, das mortes prematuras aos extermínios — como, também, a partir dele, e sem jamais abrir mão dele, foi que este sistema de poder encontrou sua positividade e a sociedade socialista soviética pôde funcionar. Deslizamentos históricos da instituição gulag para a questão gulag Em 1918 Lênin determinava que os “indignos de confiança”, os “inimigos em potencial” fossem encarcerados em campos de concentração a uma distância considerável das cidades principais. Mas antes, mesmo de 1918, isto já estava posto, e neste ponto Soljenítsin é enfático: “Seria bem mais justo dizer que o Arquipélago nasceu ao som dos canhões do Aurora. Como poderia ser diferente? Reflitamos. Marx e Lênin não ensinaram sobre a necessidade de destruir a antiga máquina coercitiva da burguesia e substituí-la imediatamente, criando-se uma nova? Ora, a máquina coercitiva compreende: o exército (nós não nos espantamos de ver constituir-se o Exército Vermelho no começo de 1918); a polícia (renovou-se a polícia antes mesmo do exército); os tribunais (a partir de 22 de novembro de 1917) — e as 48 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... prisões. Por que então, se deveria demorar em introduzir uma nova espécie de prisão? Dito de maneira diferente, de um modo mais geral, retardar em matéria de prisão, fosse de estilo antigo ou novo, era uma coisa rigorosamente impossível. Desde os primeiros meses que se seguiram à Revolução de Outubro, Lênin exigiu ‘as medidas mais resolutas e mais draconianas para se restabelecer a disciplina. Ora são possíveis medidas draconianas sem prisão?”8 Soljenítsin, ainda, sublinha: não foi o próprio Marx que em sua Crítica ao Programa de Gotha havia sido enfático ao afirmar que o único meio de reabilitação dos prisioneiros era o trabalho produtivo? Assim foi feito, em maio de 1918 foi criado o Serviço Penal Central; em março de 1919 os “fundamentos da política de trabalho forçado” foram incluídos no novo programa do Partido. Em 1921 já havia se constituído 84 campos em 43 províncias diferentes.9 A partir de 1929 os gulags adquirem nova importância. Stálin utiliza-os para intensificar o processo de industrialização da URSS. Nos gulags foram produzidos desde brinquedos para crianças até foguetes espaciais. É neste mesmo ano de 1929 que a polícia secreta assume o controle do sistema penal soviético, acoplando o judiciário a todos os campos e prisões. Entre 1937 e 1938 intensificam-se as prisões em massa e os gulags alastram-se vertiginosamente. No final da década de 1930 era possível encontrar inúmeros campos em todos os 12 fusos horários da URSS.10 O Gulag não pára de crescer para atingir seu apogeu na década de 1950 e passar a ser responsável pela produção de 1/3 da riqueza da URSS. Durante a década de 1970 e começo da de 1980 o gulag passa por reformulações para responder ao encarceramento de ativistas anti-soviéticos e dos designados criminosos. Durante a existência da URSS foram criados 476 complexos distintos de campos, perfazendo mi49 7 2005 lhares de campos individuais.11 Soljenítsin, lançando mão de várias fontes documentais, fornece a estimativa de que 60 milhões de pessoas passaram pelo enorme sistema do arquipélago. Levandose em conta que sua obra abrange o período entre 1918 e 1956 e ao considerar, de acordo com Applebaum, que os campos na URSS começam a ser dissolvidos, apenas, em 1987, é possível supor que o número de pessoas tragadas por este sistema tenha sido muito maior. Não se assuste leitor se acaso você perguntar a 100 pessoas se elas já ouviram falar nos campos de concentração nazista e 99 assentirem que sim e se para estas mesmas pessoas você pronunciar a palavra gulag e apenas uma não fizer cara de interrogação. Será que neste espaço que designam como ocidente, do lado de cá do meridiano central, acima e abaixo do equador, lá e aqui bem na frente de cada nariz os gulags estão tão distantes assim? A questão gulag Nils Christie, um abolicionista penal, em 1998, escreve A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAG’s em estilo ocidental, publicado no Brasil no mesmo ano.12 Christie sublinha como a Criminologia Positivista foi profícua em sua internacionalização. As idéias de Lombroso e Ferri na Itália e, posteriormente, as de von Lizt na Alemanha, constituíram um dos mais fantásticos êxitos da chamada ciência multidisciplinar. A Associação Internacional de Política Criminal, fundada em 1889 e que teve em von Lizt sua figura central, assegurou à criminologia alemã o estatuto de locus exportador do ideário da prevenção geral, modelo preponderante de política da verdade para o sistema penalizador do século XX. 50 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... Christie mostra como no final do século a Nova Penalogia, escola conservadora da Criminologia americana, com suas teorias sobre o crime e táticas de controle redimensiona uma nova política, denominada por ele: “a caminho dos gulag’s em estilo ocidental”. Na década de 1980 a direita americana a partir da nova penalogia, com sua “teoria da vidraça quebrada” e articulação da polícia repressiva com a polícia comunitária gestam o programa de Tolerância Zero implantado na década seguinte. Interessa à nova penalogia, segundo Christie, não mais a recuperação mas o controle e gerenciamento das populações segregadas. A prisão, neste sentido, assume a função de gerenciamento. Trata-se de um redimensionamento da estatística, enquanto linguagem probabilística aplicada às populações construídas e vinculada à construção civil e ao controle eletrônico. A estatística transformada em norma legal. A construção crescente de prisões, constituindo um fértil mercado, no qual os lucros ampliam-se no investimento em duas direções: nos consórcios governamentais e não governamentais; no fluxo de empregos gerados, envolvendo não só funcionários mas, também, mão-de-obra de presidiários. Christie, ainda ressalta os equipamentos disponíveis ao mercado prisional, que vão desde prisões de segurança máxima, monitorada informaticamente; dispositivos de alta tecnologia de contenção, desde instrumentos simples a equipamentos testados em prisões, para, posteriormente, serem utilizados em guerras cirúrgicas a dispositivos de controle, como exemplo o código de barras que se tornou algo corriqueiro em nosso cotidiano e cuja procedência situa-se em uma tecnologia criada a partir do 51 7 2005 controle de condenados ao cárcere ou sob monitoramento a céu aberto. Por fim, Christie ressalta a gestão das prisões constituída pela disponibilidade da adminstração em demonstrar sua eficácia burocrática. A questão que se coloca diante disto não deve ser posta em termos de negatividade: qual a distorção teórica que propiciou o aparecimento dos gulag’s. É preciso problematizar a questão gulag em termos de sua positividade. Foucault, já apontava na década de 1970, que o gulag não era uma seqüência, tampouco um resto. É um presente pleno. Não se trata de buscar uma linearidade entre o gulag soviético redimensionado pelo programa de tolerância zero, muito menos de assumir o discurso cômodo que relativiza e formaliza a denúncia sistemática “todos nós temos um gulag”, pois isto nada mais é, como já alertara Foucault, do que se instalar em um ecletismo acolhedor. Colocar-se a questão gulag implica defrontar-se com a história e formulá-la para a sociedade socialista — é sempre pertinente lembrar que China, Cuba, Coréia do Norte e alhures estão aí — e que desde 1917, nenhuma delas conseguiu funcionar sem um sistema mais ou menos derivado de gulag. A positividade de tal questão reside em enfrentar as perguntas deixadas por Foucault em relação ao gulag: para que ele serve; qual funcionamento ele garante e, por fim, a quais estratégias ele responde. Para sociedades como a nossa, para hoje, para o Estado democrático de direito que convive tão bem com o programa de tolerância zero trata-se de problematizar: para que servem as prisões e o controle a céu aberto; em que medida os direitos, não por uma falta de garantia mas pela sua própria condição de direito, fazem fun- 52 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... cionar o gulag redimensionado e, finalmente, quais as conexões de fluxos de controle ele responde?13 Ainda na pista deixada por Foucault, é preciso não perder de vista que propor uma outra solução para punir é colocar-se, inteiramente, recuado em relação ao problema que não é nem do quadro jurídico nem de sua técnica, mas do poder que pune. Da Alemanha ao Brasil dos anos 1920, da criação do campo de concentração Clevelândia14, no Oiapoque, para onde eram mandados, sobretudo, anarquistas, à promulgação do Código de Menores Melo Matos de 1927, dentre outras medidas, visava-se constituir uma política profilática. A medicalização da sociedade, sob a prática da prevenção geral foi redimensionada pela medicalização do controle da segurança no pós-guerra e se transforma hoje com o programa de tolerância zero na disputa pelo controle da segurança. Guardadas as diferenças específicas, a política dos Gulags, colocada já para Lênin, era uma questão de “profilaxia social” que devia se estender a crianças e jovens. A caça aos anarquistas passou a se entrelaçar com a caça a crianças e jovens. “Pyotr Yakir, de catorze anos, foi primeiro colocado numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os adultos. Seu interrogador o acusou de ‘ter organizado um bando de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar atrás das linhas do Exército Vermelho’, citando como prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida foi condenado pelo crime de ser ‘elemento socialmente perigoso’.”15 O destino posterior eram os campos infantis e juvenis. Do início da Revolução a 1922 foi colocada em operação o tribunal da consciência de justiça revolucionária 53 7 2005 que, de acordo com Soljenítsin decidia quem trancafiar, quem exterminar. O tribunal popular mostrou-se perfeitamente ajustável ao gulag. O primeiro Código Penal soviético viria a ser promulgado em 1922 e daria novos contornos ao tribunal. O Estado socialista não abriu mão do direito penal burguês e perpetuou os gulags. Tribunal é tribunal. É uma instituição, é uma questão. É uma política. Em qualquer parte do planeta é uma política de julgamento. Todo sentenciado ou à espera de sentença a ser cumprida no cárcere ou a céu aberto, sob o pretexto de extermínio, correção, reeducação ou cura é um preso político. As crianças sabem disto. “‘O berçário também era parte do complexo do campo’, escreveria Evgeniya Ginzburg. ‘Tinha sua própria guarita, seus próprios portões, seus próprios barracões, seu próprio arame farpado.16 (...) Quando Evgeniya tentou ensinar algo à crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas — aquelas que haviam mantido algum contato com as mães — se mostravam capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima: ‘Olhe’, eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha que eu desenhara. ‘O que é isso?’ ‘Alojamento’, respondeu o menininho, de modo bem claro. Com algumas canetadas, pus um gato ao lado da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí desenhei uma cerca rústica, tradicional, em volta da casa. ‘E o que é isso?’ ‘A zona prisional’, gritou Vera, encantada.”17 54 verve Notas para a abolição dos campos de concentração... Notas Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. I. Tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1979, pp. 7-8. 1 Michel Foucault. “Crimes e castigos na URSS e eoutros lugares...” in Estratégia, poder-saber, Col. Ditos e escritos. vol. IV. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, pp. 189-190. 2 Idem. “Poderes e estratégia” in op. cit., pp. 240-452. 3 Conforme Anne Applebaum. Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos. Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte. São Paulo, Ediouro, 2004. 4 5 De acordo com Alexandre Soljenítisin e Anne Applebaum. Michel Foucault. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987. 6 7 Termo ressaltado por Soljenítisin e por Applebaum. Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. II. Tradução de Leonidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro/São Paulo, Difel, 1976, p. 9. 8 9 Conforme Anne Applebaum, op. cit.. 10 Idem. 11 Ibidem. Nils Christie. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAG’s em estilo ocidental. Tradução de Luís Leiria. Rio de janeiro, Forense, 1998. 12 A este respeito ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003. 13 A este respeito ver Carlo Romani. “Clevelândia (Oiapoque), Colônia penal ou campo de concentração?” in Verve, n° 4. São Paulo, Nu-Sol, 2003. 14 15 Anne Applebaum, 2004, op. cit., p. 382. A palavra zona é uma palavra russa e designa de forma geral campo de concentração, literalmente refere-se à área protegida pela cerca de arame farpado. 16 17 Anne Applebaum, 2004, op. cit., pp. 374-376. 55 7 2005 RESUMO Breve exposição histórico-política dos Gulags soviéticos. Alguns apontamentos sobre o redimensionamento dos campos de concentração instrumentalizados pelo programa de tolerância zero. Palavras-chave: abolicionismo penal, Gulags, campos de concentração. ABSTRACT A short historical-political exposure of the soviet Gulags. Some appointments about the remodeling of the concentration camps by the program of zero tolerance. Keywords: penal abolitionism, Gulags, concentration camps. Recebido para publicação em 22 de novembro de 2004. 56 verve Prisões: falência e crime social prisões: falência e crime social emma goldman* Em 1849, Fiodor Dostoievski escreveu na parede de sua cela na prisão a seguinte história intitulada “O Padre e o Demônio”. “Olá, padre gordinho!’ Disse o diabo ao sacerdote’. ‘O que o fez mentir tanto para essas pessoas pobres e iludidas? Que torturas infernais você descreveu? Você não sabe que eles já estão sofrendo torturas infernais em suas vidas na Terra? Não sabe que você e as autoridades do Estado são meus representantes na Terra? É você quem os faz * Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman, o que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso de contraceptivos. Escolhemos este texto (In Emma Goldman. Anarchism and Other Essays. Toronto, Dover Publication Inc., 1969. pp. 109-126) de 1910 por mostrar uma reflexão ativista, dirigida aos trabalhadores organizados, situando os efeitos de uma leitura científica e a necessidade da abolição das prisões. Emma Goldman participou criticamente da Revolução Russa, da Guerra Civil Espanhola e morreu em 1940, no Canadá. Seu corpo foi sepultado em Chicago, junto com os dos anarquistas de Haymarket. verve, 7: 57-74, 2005 57 7 2005 sofrer as dores do inferno com as quais você os ameaça. Você não sabe disso? Bem, então, venha comigo!’ O diabo agarrou o padre pelo colarinho, ergueu-o no ar, e o levou a uma fábrica, uma fundição de aço. Lá, ele viu os trabalhadores correndo, indo de lá pra cá, e labutando sob um calor escaldante. Rapidamente, o ar denso e pesado e o calor eram demais para o padre. Com lágrimas nos olhos, ele implorou para o diabo: ‘Deixe-me ir! Deixe-me sair deste inferno!’ Meu querido amigo, eu vou lhe mostrar muitos outros lugares. ‘O diabo pegou-o novamente e o arrastou até uma fazenda. Lá, ele viu os trabalhadores debulhando grãos. O pó e o calor eram insuportáveis. O administrador carregava um chicote e batia sem piedade em quem caísse ao chão vencido pelo trabalho duro ou pela fome. Depois o padre foi levado para as cabanas aonde os mesmo trabalhadores viviam com suas famílias — sujas, frias, esfumaçadas, buracos fedidos. O demônio sorri. Ele aponta para a pobreza e a miséria que se encontram à vontade. Ele pergunta: ‘isto não é suficiente?’ E parece que até ele, o diabo, tem compaixão dessas pessoas. O piedoso servo de Deus mal pôde suportar isso. Com as mãos levantadas, ele implora: ‘Deixe-me ir embora daqui. Sim, sim! Este é o inferno na Terra!’ ‘Bem, então, você vê. E ainda promete a eles outro inferno. Você os atormenta, tortura mentalmente até o fim e a eles só resta estar fisicamente mortos! Vamos! Eu lhe mostrarei mais um inferno — mais um, o pior de todos.’ Ele o levou a uma prisão e lhe mostrou o calabouço, com seu ar viciado e as diversas formas humanas, 58 verve Prisões: falência e crime social despojadas de toda saúde e energia, deitadas no chão, cobertas por vermes que devoravam os seus pobres corpos nus e mirrados. ‘Tire suas roupas de seda’, disse o diabo ao padre, ‘coloque nos seus tornozelos as pesadas correntes assim como estes desafortunados as usam; deite-se no chão frio e sujo — e então fale a eles sobre o inferno que ainda os espera!’ ‘Não, não!’, respondeu o padre, ‘eu não posso pensar em nada mais terrível que isso. Eu lhe suplico, deixe-me ir embora daqui!’ ‘Sim, este é o inferno. Não pode existir nenhum inferno pior que este. Você não sabia disso? Você não sabia que estes homens e mulheres os quais você assusta com a figura do inferno do além — você não sabia que eles já estão no inferno, antes de morrer?’. Isto foi escrito há 50 anos na escura Rússia, na parede de uma das mais horríveis prisões. No entanto, quem pode negar que isto se aplica com a mesma força na atualidade, até mesmo nas prisões americanas? Com todas nossas tão vangloriadas reformas, nossas grandes mudanças sociais, e nossas descobertas de longo alcance, os seres humanos continuam a ser enviados para o pior dos infernos, aonde são ultrajados, degradados e torturados, para que a sociedade seja “protegida” desses fantasmas de sua própria criação. Prisão, uma proteção social? Que mente monstruosa pode ter concebido uma idéia dessa? É como dizer que a saúde pode ser promovida pela disseminação de uma epidemia. 59 7 2005 Depois de 18 meses de horror em uma prisão inglesa, Oscar Wilde deu para o mundo sua maior obraprima The ballad of reading goal: As ações mais perversas, como as ervas venenosas, Florescem bem no ar da cela; Só o que é bom no Homem Se perde e murcha nela. A pálida Angústia guarda o pesado portão, E o desespero é sentinela.1 A sociedade continua perpetuando este ar envenenado, não percebendo que disso só podem sair os mais venenosos resultados. Estamos gastando no presente $ 3,500,000 por dia, $ 1,000,095,000 ao ano, para manter as instituições prisionais, e isso em um país democrático — um total quase tão grande quanto a soma da produção de trigo, que vale $ 750,000,000, e a produção de carvão avaliada em $ 350,000,000. O professor Bushnell, de Washington D.C, estima o custo das prisões em $ 6,000,000,000 anuais, e o Dr. G. Frank Lydson, um eminente escritor norte-americano sobre crime, estima, como um valor razoável, $ 5,000,000,000 anuais. É uma despesa incalculável para manter um vasto exército de seres humanos enjaulados como animais selvagens!2 No entanto, os crimes aumentam. Assim, sabemos que na América há 4,5 vezes mais crimes para cada milhão de habitantes hoje, do que há 20 anos. O aspecto mais horrível é que nosso crime nacional é o assassinato, não roubos, desfalques, ou estupros, como no Sul. Londres é cinco vezes maior que Chicago e, no entanto, nesta cidade há 118 assassinatos anuais, enquanto em Londres há apenas 20. Tampouco é Chicago 60 verve Prisões: falência e crime social a cidade líder em crimes; ela é apenas a 7ª da lista liderada por quatro cidades do Sul, São Francisco e Los Angeles. Diante de uma situação tão terrível, parece ridícula tagarelice dizer que a proteção da sociedade deriva das prisões. A inteligência média é vagarosa em apreender a verdade, mas quando a instituição mais completamente organizada, centralizada, mantida com uma despesa nacional excessiva mostrou-se um completo fracasso social, o obtuso deve começar a questionar o seu direito a existir. Já foi o tempo da satisfação com nossa estrutura social simplesmente porque ela é “ordenada por direito divino” ou pela majestade da lei. As amplas investigações sobre prisões, agitação e educação nos últimos anos são provas conclusivas que os homens estão aprendendo a ir fundo nos alicerces da sociedade, às causas da terrível discrepância entre a vida individual e social. Por que, então, são as prisões um fracasso e um crime social? Para responder essa questão vital cabe-nos procurar a natureza e causa dos crimes, os métodos empregados para combatê-los e os efeitos que esses métodos produzem em livrar a sociedade da desgraça e horror dos crimes. Primeiro, quanto à natureza do crime. Havelock Ellis3 divide o crime em quarto tipos: o político, o passional, o insano e o ocasional. Diz que o criminoso político é a vítima de uma tentativa de um governo mais ou menos despótico por preservar sua própria estabilidade. Ele não é necessariamente culpado de uma atitude anti-social; simplesmente tenta reverter uma certa ordem política que pode ser ela mesma anti-social. Essa verdade é reconhecida em todo mundo, exceto na América onde ainda prevalece uma tola noção de que na democracia não 61 7 2005 há lugar para criminosos políticos. No entanto, John Brown foi um criminoso político, assim como os anarquistas de Chicago, assim como todo grevista. Conseqüentemente, diz Havelock Ellis, o criminoso político de nosso tempo ou lugar pode ser o herói, o mártir, o santo de outra época. Lombroso denomina o criminoso político como o verdadeiro precursor do movimento progressivo da humanidade. “O criminoso passional é comumente um criminoso bem nascido e de vida honesta, que sob um grande stress, um incidente, tomou a justiça nas suas mãos”4. Mr. Hugh C. Weir em The menace of the police, cita o caso de Jim Flaherty, um criminoso passional que ao invés de ser salvo pela sociedade, tornou-se um bêbado e um reincidente, tendo como resultado uma família arruinada e jogada na miséria. Um tipo mais patético é Archie a vítima da novela de Brand Whitlock, The turn of the balance, a maior exposição americana da maquinação de um crime. Archie, mais que Flaherty, foi levado ao crime e à morte pela cruel falta de humanidade do seu meio, e pela inescrupulosa perseguição da máquina da lei. Archie e Flaherty são apenas alguns exemplos entre milhares, demonstrando como os aspectos legais do crime, e os métodos para tratá-los, ajudam a criar a doença que está minando a nossa vida social. “O criminoso insano, na verdade, não pode ser considerado criminoso mais que uma criança pois está sob condição mental semelhante à de uma criança ou de um animal”.5 A lei já reconhece isso, mas apenas em casos raros de natureza muito flagrante, ou quando a riqueza do acusado permite o luxo da insanidade criminal. Ficou na moda ser vítima de paranóia, mas em geral, a “soberania da justiça” continua a punir os crimes de insanidade com toda a severidade. Então, o senhor Ellis cita as estatísticas do Dr. Richter mostrando que 62 verve Prisões: falência e crime social na Alemanha 106 loucos, de 144 criminosos insanos, foram condenados a punições severas. O criminoso ocasional “representa de longe a maior parte de nossa população carcerária, portanto, a maior ameaça ao bem-estar social”. Qual é a causa que compele um vasto contingente da família humana a escolher o crime, de preferir a terrível vida encarcerada à vida livre? Esta causa, certamente, deve ser inexorável, pois deixa suas vitimas sem saída, pois até o mais depravado ser humano ama a liberdade. Essa incrível força está condicionada por nossa cruel disposição social e econômica. Não afirmo que se deva negar os fatores biológicos, fisiológicos ou psicológicos na realização do crime; mas dificilmente se encontra um eminente criminológo que não concordará que as influências sociais e econômicas são as mais implacáveis, as sementes mais venenosas do crime. Mesmo admitindo que existam tendências criminais inatas, não é menos verdade que estas tendências encontram campo fértil em nosso ambiente social. Há uma relação próxima, diz Havelock Ellis, entre crimes contra o indivíduo e o preço do álcool, entre crimes contra a propriedade e o preço do trigo. Ele cita Quetelet e Lacassagne, o primeiro vendo a sociedade como fomentadora dos crimes e os criminosos como instrumentos de sua execução. O último acha que “o ambiente social é o meio de cultivo da criminalidade; que o criminoso é o micróbio, um elemento que apenas se torna importante quando encontra o meio, que provoca sua fermentação; toda sociedade tem os criminosos que merece”.6 O período industrial mais “próspero” torna impossível que o trabalhador receba o suficiente para a manutenção da saúde e do vigor. E como a prosperidade é, no melhor dos casos, uma condição imaginária, milhares 63 7 2005 de pessoas são constantemente adicionadas à multidão dos desempregados. De leste a oeste, do sul ao norte, este vasto exército caminha em busca de trabalho ou comida, e tudo que encontra são reformatórios ou favelas. Aqueles que ainda têm uma centelha de auto-respeito, preferem o desafio aberto, preferem o crime à posição esquálida e degradada da pobreza. Edward Carpenter estima que cinco sextos dos crimes sujeitos à sanção penal consistem em alguma violação ao direito de propriedade; mas este é um número muito baixo. Uma investigação completa provaria que nove em dez crimes poderiam ser ligados, direta ou indiretamente, às nossas injustiças sociais e econômicas, ao nosso sistema de exploração e usurpação sem compaixão. Não há criminoso tão estúpido, que não reconheça este terrível fato, apesar dele não ser capaz de dar-se conta disto. Uma coleção de filosofia criminal, que foi compilada por Havelock Ellis, Lombroso, e outros homens eminentes, mostra que o criminoso sente de maneira nítida de que é a sociedade que o leva ao crime. Um ladrão milanês, disse a Lombroso: “Eu não roubo, eu simplesmente tomo dos ricos seus supérfluos; por outro lado, os advogados e comerciantes não roubam?”. Um assassino escreveu: “Sabendo que três quartos das virtudes sociais são vícios covardes, eu pensei que um assalto aberto a um homem rico devesse ser menos ignóbil do que a combinação cautelosa da fraude”. Outro escreveu: “Eu estou preso por roubar meia dúzia de ovos. Ministros que roubam milhões são honrados. Pobre Itália!”. Um condenado educado disse a Mr. Davitt: “As leis da sociedade são forjadas com a finalidade de garantir a riqueza do mundo para o poder e a ponderação, despojando uma larga porção da humanidade de seus direitos e oportunidades. Por que eles deveriam me punir por estar tomando 64 verve Prisões: falência e crime social de uma forma similar daqueles que tomaram mais do que tinham direito?”. O mesmo homem adicionou “A religião rouba as almas de sua independência; patriotismo é uma adoração estúpida do mundo pelo qual o bem-estar e a paz dos habitantes foi sacrificada por aqueles que lucram com ele, enquanto as leis da pátria, reprimindo desejos naturais, estão travando guerra ao espírito manifesto da lei de nossos seres. Comparado a isso”, ele concluiu, “roubar é uma meta honrável”7. Há certamente uma verdade maior nesta filosofia do que em todos os livros sobre lei e moral da sociedade. O fator econômico, político, moral e físico são os micróbios do crime, então, como pode a sociedade enfrentar esta situação? Os métodos para lidar com o crime têm sem dúvida passado por muitas mudanças, mas principalmente no sentido teórico. Na prática, a sociedade tem mantido o objetivo primitivo ao lidar com o criminoso, que é a vingança. Ela também adotou a idéia teológica, em outras palavras, punição; e o método legal e “civilizado” consiste em retrocesso ou terror, e reforma. Devemos observar, atualmente, que os quatros tipos falharam totalmente, e que nós não estamos hoje mais perto de uma solução do que na idade das trevas. O impulso natural do homem primitivo de revidar um golpe, de vingar-se de uma ofensa, é anacrônico. Ao invés disso, o homem civilizado, despido de coragem e audácia, tem delegado a um organizado maquinário a responsabilidade de vingar-se por ele de suas ofensas, baseado na tola crença que o Estado se justifica ao fazer aquilo para o qual ele não tem mais a virilidade ou consistência. A “majestade da lei” é algo racional; ela não desce aos instintos primitivos. Sua missão é de natureza “superior”. Verdade, ela ainda é impregnada pela confusão teológica, que pro- 65 7 2005 clama a punição como forma de purificação, ou uma indireta reparação do pecado. Mas, legal e socialmente o estatuto exercita a punição, não apenas como aplicação da dor sobre o criminoso, mas também para provocar um efeito aterrorizante sobre outros. Entretanto, qual é a base real para a punição? A noção do livre arbítrio, a idéia que o homem é sempre um agente livre para o bem ou para o mal; e se ele escolhe o último, deve pagar o preço. Ainda que esta teoria tenha explodido há muito, e tenha sido jogada em um entulho, ela continua a ser aplicada diariamente por toda a maquinaria do governo, tornando-a o mais cruel e brutal torturador da vida. A única razão para isto continuar é a noção, ainda mais cruel, que quanto maior a propagação do terror da punição, certamente maior será seu efeito preventivo. A sociedade usa os medos mais drásticos ao tratar com o criminoso social. Por que eles não desistem? Embora nos Estados Unidos um homem seja considerado inocente até que provem sua culpa, os instrumentos da lei, a polícia, perpetuam o império do terror, aprisionando indiscriminadamente, espancando, esbordoando, aterrorizando pessoas, usando métodos bárbaros de “terceiro grau”, sujeitando vítimas desafortunadas ao vicioso ar de suas delegacias, e à mais asquerosa, ainda, linguagem de seus guardiães. Os crimes continuam se multiplicando rapidamente, e a sociedade paga o preço. De outro lado, não é segredo que quando o desafortunado cidadão é contemplado com a “misericórdia” da lei, e para o bem da segurança ele é escondido no pior dos infernos, inicia-se seu real calvário. Roubado de seus direitos enquanto ser humano, degradado a um mero autômato sem desejo ou sensações, totalmente dependente da misericórdia de seus guardiães, passa diariamente por um processo de desumanização, que a ela 66 verve Prisões: falência e crime social comparada, a vingança selvagem é brincadeira de criança. Não há uma única instituição penal ou reformatório nos Estados Unidos em que os homens não sejam torturados para “tornarem-se bons”, por intermédio do cassetete, da clava, da camisa de força, da água para o afogamento, do humming bird (uma corrente elétrica que percorre o corpo humano), a solitária, e a dieta de fome. Nestas instituições sua vontade é quebrada, sua alma degradada, seu espírito subjugado pela monotonia mortal e a rotina da vida presidiária. Em Ohio, Illinois, Pensilvânia, Missouri, e no sul, estes horrores se tornaram tão flagrantes que atingiram o mundo exterior, enquanto na maioria das outras prisões os mesmos métodos cristãos ainda prevalecem. Mas as paredes das prisões raramente permitem que os gritos aterrorizantes das vítimas escapem — as paredes das prisões são espessas, elas abafam o som. A sociedade deveria, com grande imunidade, abolir as prisões de uma vez, do que esperar por proteção dessas câmaras de horrores do século vinte. Ano após ano os portões das prisões infernais devolvem ao mundo uma parte náufraga da humanidade, esquálida, deformada, sem vontade própria, com a marca de Caim em suas testas, suas esperanças esmagadas, todas as suas inclinações naturais frustradas. Sem nada, mas com a fome e a desumanidade para recebê-los, estas vítimas logo mergulham novamente no crime como a única possibilidade de existência. Não é, de forma alguma, incomum encontrar, homens e mulheres que passam metade de suas vidas — ou melhor, quase toda sua existência — na prisão. Eu conheço, uma mulher na ilha Blackwell, que entrou e saiu 38 vezes, e soube por meio de um amigo de um jovem ra- 67 7 2005 paz de 17 anos, de quem ele foi enfermeiro e cuidou, na penitenciária de Pittsburg, que nunca conheceu o significado de liberdade. Do reformatório à penitenciária foi o caminho da vida deste rapaz, até que, alquebrado, morreu vítima da vingança social. Estas experiências pessoais estão substantivadas por extensos dados que trazem evidências esmagadoras do absoluto fracasso das prisões como um meio de dissuasão ou reforma. Pessoas bem intencionadas estão trabalhando por uma nova orientação na questão da prisão — reclamação, devolver mais uma vez ao prisioneiro a possibilidade de se tornar um ser humano. Apesar de louvável, eu temo ser impossível esperar por bons resultados, despejando um bom vinho numa garrafa mofada. Nada menos que uma reconstrução completa da sociedade livrará a humanidade do câncer do crime. Ainda, se o fio cego de nossa consciência social fosse afiado, as instituições penais poderiam ganhar uma nova camada de verniz. No entanto, o primeiro passo a ser dado é a renovação da consciência social, que está em uma condição particularmente dilapidada. Ela necessita, desesperadamente, ser despertada para o fato que o crime é uma questão de grau, que todos nós temos o embrião do crime dentro de nós, mais ou menos, de acordo com nosso ambiente mental, físico, e social; e que o indivíduo criminoso é somente um reflexo das tendências da massa. Com a consciência social despertada, o individuo comum pode aprender a recusar a “honra” de ser o cão de caça da lei. Ele pode parar de perseguir, desprezar, desconfiar do criminoso social e lhe dar uma chance de viver e respirar entre seus companheiros. As instituições são, obviamente, mais difíceis de serem atingidas. Elas são frias, impenetráveis e cruéis; no entanto, com a consciência social despertada pode ser possí- 68 verve Prisões: falência e crime social vel libertar as vítimas das prisões, da brutalidade dos oficiais, guardas e carcereiros. A opinião pública é uma arma poderosa; até os guardiões da presa humana a temem. Eles podem ser educados com um pouco de humanidade, especialmente se perceberem que seus trabalhos dependem disso. Mas o passo mais importante é dar ao prisioneiro o direito de trabalhar durante o aprisionamento, com alguma recompensa monetária que pode permitir que ele poupe algo para o dia de sua libertação, o começo de uma nova vida. É quase ridículo esperar muito da sociedade atual quando consideramos que um operário, escravo ele mesmo do salário, opõe-se ao trabalho do condenado. Eu nem irei entrar no mérito da crueldade dessa objeção, mas vou simplesmente considerar sua impraticabilidade. Para começar, a oposição até agora levantada pelo trabalho organizado tem sido direcionada contra moinhos de vento. Os prisioneiros sempre trabalharam; apenas o Estado tem sido seu explorador, da mesma maneira que o empregador individual é o usurpador do trabalho organizado. Os Estados ou têm usado os condenados para trabalhar para o governo, ou têm subcontratado o trabalho do condenado para particulares.Vinte e nove dos Estados norteamericanos seguem o último plano. O governo federal e dezessete Estados o têm descartado, assim como as nações líderes da Europa, já que levam a um abominável trabalho pesado e abuso dos prisioneiros, e a um suborno sem fim. “A ilha Rhode, Estado dominado por Aldrich, talvez expresse o pior exemplo. Em um contrato de 5 anos, elaborado em 7 de julho de 1906, e renovável por mais cinco anos, por opção dos próprios contratantes, o trabalho dos internos da Penitenciária da Ilha Rhode e da cadeia do condado 69 7 2005 de Providence são vendidos para a Reliance-Sterling Mfg. Co., por uma taxa um pouco menor que 25 centavos por dia e por homem. Esta Companhia é um verdadeiro monopólio gigante do trabalho na prisão, e para isso eles também alugam o trabalho de condenados das penitenciárias de Connecticut, Michigan, Indiana, Nebraska, e Dakota do Sul, e do reformatório de Nova Jersey, Indiana, Illinois, e Wisconsin, totalizando 11 estabelecimentos. A enormidade do suborno no contrato de Rhode Island pode ser estimado pelo fato desta mesma Companhia pagar 62 dólares e meio por dia em Nebrasca pelo trabalho dos condenados, e que Tennessee, por exemplo, ganha $ 1.10 por dia pelo trabalho de um condenado da Gray-Dudley Hardware Co.; Missouri ganha 70 centavos por dia da Star Overall Mfg. Co; West Virginia 65 centavos por dia da Kraft Mfg. Co, e Maryland 55 centavos por dia da Oppenheim, a fábrica de camisas Oberndorf & Co. A grande diferença nos preços aponta para um enorme suborno. Por exemplo, Reliance-Sterling Mfg. Co, manufatura camisas sendo que o custo do trabalho livre não é menor que $ 1.20 por dúzia, enquanto ela paga a Ilha Rhode trinta centavos a dúzia. Além disto, o Estado não cobra deste monopólio aluguel pelo uso das suas enormes fábricas. Não cobra nada pela eletricidade, calor, luz, e até mesmo drenagem e não exige taxas. Que suborno!”.8 Estima-se que o equivalente a mais de 12 milhões de dólares de camisas e macacões de trabalhadores são produzidos, anualmente, neste país, por prisioneiros. É uma indústria feminina, e a primeira reflexão que isto levanta é que uma imensa quantidade de trabalho feminino livre está desocupada. A segunda consideração é que prisioneiros masculinos, que deveriam estar aprendendo um ofício, o que daria a eles alguma chance de se sustentarem após sua libertação, 70 verve Prisões: falência e crime social são mantidos neste trabalho com o qual possivelmente não ganharam um dólar. Isto é ainda mais sério quando consideramos que muitos desses trabalhos são feitos em reformatórios, que alardeiam estar treinando seus internos para que se tornem cidadãos úteis. A terceira, e mais importante consideração é que o enorme lucro conseguido por meio dos trabalhadores apenados é um constante incentivo para os contratantes exigirem de suas vítimas infelizes muito além de suas forças, e para os punir cruelmente quando seu trabalho não acompanha o aumento excessivo da demanda. Mais algumas palavras a respeito da condenação dos apenados e sobre as tarefas com as quais eles não devem ter esperança de poder ganhar a vida. Indiana, por exemplo, é um estado que tem feito um grande alarde por estar à frente no quesito aperfeiçoamentos penais modernos. Porém, de acordo com o relatório produzido em 1908 pela instituição de treinamento de seu “reformatório”, 135 estavam comprometidos na produção de correntes, 207 na de camisas, e 255 na fundição — um total de 597, nas três ocupações. Mas neste autodenominado reformatório 59 profissões, eram representadas pelos internos, 39 das quais ligadas a interesses do país. Indiana, como outros estados, professa estar treinando os prisioneiros em seus reformatórios em ocupações com as quais eles poderão obter seu ganha pão após serem soltos. Na verdade, os prepara para trabalhar fazendo correntes, camisas e vassouras, estas últimas para o lucro da Louisville Fancy Grocery Co. A produção de vassouras é uma prática amplamente monopolizada pelos cegos, a de camisa é feita por mulheres, e há apenas uma fábrica “livre” de correntes no estado, e nela um prisioneiro liberto não pode ter esperança de conseguir empregar-se. Toda a situação é uma farsa cruel. 71 7 2005 Se, então, os estados podem ser instrumentos em arrancar enormes lucros de suas vítimas indefesas não está mais do que na hora do trabalho organizado parar com seu uivo inútil, e começar a requisitar uma remuneração decente para o condenado, tal como reivindicam para si mesmos? Desta maneira, os trabalhadores erradicariam o germe que faz o prisioneiro um inimigo dos interesses do trabalho organizado. Já disse em outra ocasião que milhares de prisioneiros, sem competência ou profissão, sem meios de subsistência, são anualmente lançados de volta ao meio social. Estes homens e mulheres devem viver, pois até ex-condenados tem necessidades. A vida na prisão os tornou anti-sociais e as portas firmemente fechadas que eles encontraram na sua libertação não diminuíram a sua amargura. O resultado inevitável é que eles formam um núcleo favorável do qual fura-greves, detetives e policiais são extraídos e dispostos a cumprir a ordem do mestre. Portanto, o trabalho organizado, pela sua tola oposição ao trabalho na prisão destrói a si mesmo. Ajuda a criar a fumaça venenosa que asfixia qualquer tentativa de melhora econômica. Se o trabalhador deseja evitar esses efeitos ele deveria insistir no direito do condenado ao trabalho, devia vê-lo como um irmão, trazê-lo para a sua organização, e com sua ajuda enfrentar o sistema que os agrilhoa. Por último, mas não menos importante, é a crescente tomada de consciência da barbárie e da inadequação da sentença definitiva. Aqueles que acreditam, e seriamente se esforçam, numa mudança chegam, rapidamente, à conclusão que deve ser dado ao homem a oportunidade de fazer o bem. E como ele fará isso com dez, quinze ou vinte anos de prisão pela frente? A esperança de liberdade e de oportunidade é o único incentivo para a vida, especialmente para a vida de um presidiário. A sociedade tem pecado há muito contra eles e isto é o 72 verve Prisões: falência e crime social mínimo que ela deve deixar-lhes. Eu não estou muito esperançosa que isto ocorrerá, ou que qualquer mudança real nesta direção possa acontecer até que as condições que originam a ambos, o prisioneiro e o carcereiro, sejam abolidas para sempre. Da sua boca, uma rubra, rubra rosa! Do seu coração, uma branca! Para quem pode dizer por qual estranha via Cristo traz sua vontade à luz do dia, Do cajado estéril que o peregrino portava Floriram diante do Papa.9 Tradução do inglês por Anamaria Salles. Tradução das poesias por Thiago Rodrigues. Notas 1 The Ballad of Reading Goal: The vilest deeds, like poison weeds, Bloom well in prison air; It is only what is good in Man. That wastes and withers there. Pale Anguish keeps the heavy gate, And the Warder is Despair 2 W. Owen. Crime and criminals. Havelock Ellis, foi um membro dos fabianistas ingleses, psicólogo, defensor da eugenia, e escreveu em 1890, The criminal. Em 1892, publicou The Nationalisation of Health, entre outros. Foi um estudioso do homossexualismo, escrevendo o controvertido Studies in the Psychology of Sex, entre 1897-1928, em 7 volumes. (N.E.). 3 4 Havelock Ellis. The criminal. 5 Ibidem 73 7 2005 6 Ibidem 7 Ibidem 8 Extraído das publicações do National Committee on Prison Labor. 9 Out of his mouth a red, red rose! Out of his heart a white! For who can say by that strange way; Christ brings his will to light; Since the barren staff the pilgrim bore; Bloomed in the great Pope’s sight. RESUMO Contundente reflexão da anarquista Emma Goldman sob as condições carcerárias e a necessidade da abolição das prisões. Palavras-Chave: Abolição da prisão, anarquismo, trabalho na prisão. ABSTRACT Strong reflexion by the anarchist Emma Goldman about the prison conditions and the urgency in abolishing them. Keyword: abolishment of prison, anarchism, work in prison. Indicado para publicação em 10 de março de 2003. 74 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... abolicionismo penal, medidas de redução de danos e uma nota trágica1 edson passetti* 1. As práticas anti-proibicionistas às drogas levam a uma política de descriminalização, e como tais, devem ser saudadas pelo abolicionista penal. Medida de redução de danos é, portanto, mais do que uma política sanitária. Reconhecer que não há universalidade e uma generalidade da lei aplicada, uniformemente, como resultado de uma suposta igualdade jurídico-formal é mais do que um avanço significativo anti-repressão. Sexo não é o mesmo que sexualidade; e estados alterados de consciência podem ser atingidos com ou sem o uso das substâncias proibidas. Reduzir danos é também uma políti- * Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol. verve, 7: 75-85, 2005 75 7 2005 ca abolicionista que lida com situações-problema, compondo parcerias com interessados. 2. Droga designa o proibido em lei por meio da atuação de uma moral conservadora criada e revivida pelas forças sociais. Droga é perigo e risco; nela habitam as surpresas da vida. Mas não só. Nas drogas estão, também, a rotina e o mal digerido cotidiano. Assim sendo, droga caracteriza um conjunto de medicamentos receitados por médicos, combinados ou não com terapêuticas (psicológicas, de controle de peso, de animação da musculatura, segundo uma estética do corpo saudável, o atual hedonismo de academia), legitimado pelo Estado, respaldado na lei. Droga é o permitido e o impedido, é marasmo e surpresa, é legal e ilegal. Atletas são cobaias de novas drogas para o corpo. Desconhecidas dos agentes de punição e sem regulamentações legalizadas quando usadas, geram quebras de recordes, agilidade, explosão muscular, elasticidades, fôlego, um corpão cobiçado, um atestado de saúde. Um belo dia elas passam a ser consideradas proibidas. Acabam os medalhistas, os recordistas, o semblante do saudável em nome da verdadeira saúde. Mais uma rodavida, nada cessa: o mesmo corpão começa a ser refeito, moto continuum. Quem produz cria e recria; quem usa paga o pato; e são os mesmos produtores e consumidores, os alucinados cidadãos, que desejam proibições, regulamentações, leis, punições, internações, prisões, confinamentos. Além das drogas proibidas, super conhecidas, que vão da maconha ao ecstasy, há aquelas destinadas à terapêutica. Nestes casos, é preciso o uso medicalizado de drogas administrado segundo receitas ou acompanhamentos de psi (quiatra, cólogo, canalista, co-pedagogo, 76 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... etc. e tal), dentro ou fora de clínicas, para acalmar, relaxar a tensão e gerar concentração a trabalhadores produtivos. Não só. É preciso saber docilizar rebeldes, acalmar adolescentes, administrar a saúde mental. Mais ainda. É urgente, na atualidade, estimular a pessoa a participar de programas, na economia informático-computacional, na política, no dia-a-dia, livre de apatias, depressões, síndromes do medo. Enfim, em poucas palavras, o que é droga depende do momento histórico para ser definida; não é apanhada por um conceito universal, mas designa quem deve ser curado, cuidado da saúde, docilizado ou potencializado como ser produtivo. Falar droga é o mesmo que identificar um crime. E é tão impossível uma ontologia da droga como do crime. Um usuário ontem, pode ser, neste instante, um paciente numa clínica que usa maconha para o cliente abandonar o crack. O que era tráfico em toneladas de maconha ou cocaína, no passado recente, hoje vai se transformando, com leves grandes quantidades de drogas sintéticas carregadas em pequenas bolsas, carteiras e porta-níqueis, por jovens de classes emergentes. Deixa de ser trabalho de miserável e recebe novo status. A diversificação do comércio de drogas estabeleceu uma distinção entre os trabalhadores: o serviçal do narcotráfico, confinado e sob ameaça de prisão e morte pela polícia ou choque de gangues, passou a ser um potencial jovem empresário das drogas sintéticas que faz de uma ou duas viagens o trampolim para seu próprio negócio legal. O dinheiro ainda continua sendo lavado e não é em nenhuma lavanderia. Verso e avesso vão realizando o rodízio. O que era política anti-narcoterrorismo vai virando combate ao narcotráfico; sobre o que demarcou nos anos 1980 a dicotomia país consumidor/país devedor, hoje se situa uma diplomacia que envolve empréstimos vultuosos em 77 7 2005 dólares, influência indireta no regime das fronteiras, participação equilibrada no acesso aos satélites de segurança e vigilância, intervenção em programas antidrogas ministrados por policiais a crianças escolarizadas nas periferias das metrópoles. A lei pune mais; as boas pessoas que defendem a sociedade assim o desejam. Enfim, novamente, e chovendo no molhado, sempre haverá drogas e sua comercialização proibida enquanto perdurar a moral do bom senhor que zela pelo rebanho. Cada época gera suas drogas (as naturais, as transformadas pela farmacologia, as criadas em laboratórios), e não raras vezes, umas são somadas às anteriores, da mesma maneira que as políticas repressivas não param de proliferar. Na mesma proporção, repete-se a mesma constatação secular: quanto mais baixa a qualidade das drogas comercializadas, maiores serão os riscos para a saúde do usuário. A era do álcool odiada pelos puritanistas norte-americanos, do final do XIX e início do século XX, rende hoje em dia a extraordinária máquina de fazer dinheiro chamada cerveja, bebida estimulada a qualquer jovem tanto pela propaganda (regulada pelo politicamente correto, sugerindo beber moderadamente ou com responsabilidade). O sexo entre homens, de início, alvo escolhido como disseminador da nova peste, o então chamado câncer gay, transforma-se em mais de uma década numa recomendada relação normalizada pelo casamento com camisinha, e expõe, durante o percurso de sua pacificação, a ferida do próprio casamento: é entre heterossexuais que na atualidade a aids prolifera e mata mais. A religião dissemina pela África adentro o imperativo reacionário do sexo confinado ao casamento e para a reprodução. É uma política moralizadora mais trágica e mortal do que na Europa e nas Américas. Está na normalização o itinerário moderno da peste. Opor certo a 78 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... errado, fundir o proibido no legítimo, consagrar o livre pela regulamentação, difundir o sexo restrito ao casamento com ou sem eloqüência das culpas religiosas, não livra ninguém de alcoolismo, de aids, de peste. Uma amiga minha, Salete Oliveira, também abolicionista penal, sempre lembra Artaud dizendo que é preferível morrer de peste do que de mediocridade. 3. Os sarados, os curados, os potencializados, os docilizados, os aditivados, os saudáveis e os viciados, os da ordem e os da desordem, os puritanos e os desajustados, carolas e putas, governantes e governados, juízes, promotores e advogados, pessoa qualquer, aqui, ali ou acolá já cometeu alguma infração. Quem a negar não é uma pessoa sincera. Nem um juiz, muito menos um sacerdote das almas está isento da infração. Não surpreende que é pela moralidade que eles se isentam de culpas e as esquadrinham como crimes, punições, policiamento extenso, tolerância zero. Transcendência religiosa e racional não se apartam, caminham juntas na consagração da moral. A política de tolerância zero (que por definição é anti-religiosa e antidemocrática, supõe que religiosos e democratas devam ter compaixão e conviver com vizinhos) apareceu entre a direita estadunidense e migrou para as esquerdas. A luta por liberdades cedeu lugar à garantia de segurança. Vivemos uma era de globalização que se pauta na esperada conduta conformista enaltecedora da vida democrática, a vencedora do socialismo, a mais justa, a verdadeira maneira de saborear a mobilidade social, e ao mesmo tempo, zelar pelos necessitados. Em nome da democracia como panacéia modula-se o planeta. 79 7 2005 Passemos a outros brevíssimos casos. Não se quer mais acabar com favelas, mas melhorar sua imagem. Recuperam-se os argumentos racistas quando a própria população das periferias identificam os sangue ruins entre os seus. Proliferam ong’s patrocinadas por empresas difundindo a necessidade de integração pela imobilidade, a permanência na periferia e a sua glorificação, a construção de equipamentos sociais mínimos, configurando uma política de confinamento, filosoficamente uma política de campo de concentração. É exigido o tribunal local, mais ágil; legislação mais punitiva; polícia equipada e cidadã: prender mas não matar; escola em tempo integral para evitar que as crianças sejam contaminadas pelos desajustados; é necessário vigiar com a ajuda da eletrônica, criar mais prisões de segurança máxima, edifícios monitorados: controle total. Recomenda-se não resistir e se integrar na política institucional; não fazer passeatas senão para comemorar direitos multiculturais e/ou passeatas críticas amparadas e asseguradas pela polícia. Tudo na mais perfeita ordem. Chegamos a um ponto em que as relações entre burocracia estatal, empresários e sindicatos pôde ser refeita com novas legislações trabalhistas voltadas para a produtividade e a disseminação da filantropia. Foi-se o tempo neoliberal para dar entrada ao liberalismo social: o espaço de superfície foi redesenhado, explicitando novas fronteiras e abolição do nomadismo; ao mesmo tempo, a conquista sideral ampliou o nomadismo para espaços sem fronteiras, novas ocupações planetárias. Muitos ficaram, alguns irão. A liberdade de mercado continua sendo a liberdade capitalista que não sobrevive sem intervenção estatal em seu benefício, atuando a favor de consórcios e monopólios, e também, administrando miseráveis e o trabalho informal: cuidando dos saudáveis e contabilizando 80 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... os improdutivos, desajustados, drogados, viciados, prisioneiros. Esse enorme contingente foi agregado à grande massa sob a forma de desmembramentos estatísticos. Os formuladores e alimentadores dos esquadrinhamentos e percentuais, viajam por internet e aviões, segundo os resultados de aplicação de programas de contenção da insatisfação, dinamizando o turismo dos especialistas burocráticos. Para estes qualquer coisa pode ser traduzida em papers, resultados geradores de mais verbas, outras intervenções possíveis, administração da desgraça banhada em utopias, compaixões, acusações à globalização, enaltecimento à cidadania, à “ética”, compondo um discurso generalizante e oco o suficiente para gerar novos investimentos. Todos devem convencer os miseráveis e a si mesmos que as soluções são jurídicopolíticas, portanto, institucionais, e que em nome das soluções, antes de resistir, é preciso integrar. A sociedade de controle requer a participação de cada um, como eleitor, liderança local, monitor, criador de ong, um filantropo, uma vítima e um Estado totalizador. Reduzir danos sob estas relações é uma ponta de um iceberg abolicionista; é uma política que atua com a potencialidade de cortar o casco de um Titanic repressor. As políticas de redução de danos têm tudo para potencializar a luta pela liberação das drogas. Seus usuários e ativistas sabem mais do que qualquer especialista de gabinete com um título de doutor a tiracolos obtido com base em estudos estatísticos milimétricos. Eles lidam em cima das fronteiras e inventam espaços de relacionamentos e liberdades. O abolicionista trata cada caso como algo especial, como situação-problema e não crime ou infração. Procura compreender a situação dos envolvidos, algozes e vítimas, tomando partido de ambos. Anti-universalista, reconhece a verdade em cada parte e busca a solução 81 7 2005 pelo lado de fora, o da conciliação capaz de propiciar uma resposta-percurso que evita a prisão e, ao mesmo tempo, incentiva a indenização. Uma resposta-percurso que não se transforma em modelo, que é avessa à filantropia, que não seqüestra a palavra ou as vontades das partes, não as submetem a autoridades superiores de juízes, promotores, advogados, técnicos de humanidades, lideranças, etc. e tal. Promove, isso sim, uma conversação entre envolvidos e pessoas diretamente relacionadas ao caso, autoridades despojadas de seu poder universalizador de julgar. O dinheiro do Estado é meu, é seu, é de cada um. Se o gasto com prisões é imenso e ineficaz, porque não atuar de outra maneira? Não como alternativa punitiva à prisão. Para este caso já existe o regime das penas alternativas. Mas pela disseminação de práticas de redução de danos, respostas–percurso capazes de afirmar outras possibilidades de se conviver com drogas, sejam elas legais ou ilegais. A busca por drogas não cessará, pois independe da motivação que leva um jovem a consumir cocaína, maconha, ecstasy ou crack, uma senhora de prendas do lar a ingerir antidepressivos, um trabalhador a buscar estimulantes ilegais para produzir mais, muitos programas assistenciais a docilizar clinicamente jovens, certos atletas a buscar ouro olímpico ou similares. Estimulado ou não pelos laboratórios farmacêuticos associados aos ditames de controle do trabalho, pelas idealizações do corpo saudável, pelas pacificações das almas sofridas, pelo prazer incomensurável, cada usuário encontrará sua maneira de chegar às drogas, aos melhores fornecedores. Reduzir danos é uma política que reconhece essa milenar história do uso das drogas e atua segundo o interesse do usuário. É anti-repressiva, não idealiza a saúde, lida com o acontecimento no instante. 82 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... Sabemos que o sistema penal é incapaz de apanhar todas os infratores. Ele opera por seletividade sócio-econômica, sim, e além disso, diversos encaminhamentos feitos às delegacias jamais chegam ao sistema, gerando a cifra negra. O sistema penal não pode e não quer dar conta de todas as infrações cometidas ou denunciadas. Se desse, acabaria com a ilegalidade necessária à existência do capitalismo e do Estado, pois ambos não vivem sem corrupções. A cultura da punição (extensa ou intensa), jamais consegue dar conta das ondas de infrações. Quando o capitalismo defrontava-se com o socialismo, o welfare-state, uma forma democrática de intervenção estatal conseguia, com políticas sociais, prender menos; com o neoliberalismo e a difusão da inevitável democracia, com base na idealização da economia livre de mercado que manteve a intervenção governamental, criouse a autoritária política de tolerância zero. Por ela se prende mais, confina mais, ameaça mais, policia demais e não se chega a um efeito melhor no Estado Penal que no Estado de Bem-Estar Social. Trata-se apenas de uma nova política para o rebanho, bêbado, drogado, sarado, em busca da volta do Messias, lambendo os calcanhares de pastores e sacerdotes, as mãos de governantes, o caminho dos líderes de ong’s. Experimentar o abolicionismo é antes abolir o castigo dentro de si, inventar novos costumes libertários, lidar com o presente sem medo e com riscos. É praticar liberdades; é não tolerar prisões para os jovens. 4. Trarei uma pequena lembrança para encerrar. Há 40 anos, em dezembro de 1964, foi inaugurada uma nova política de segurança no Brasil, chamada política nacional do bem-estar do menor, que criou as Febem’s sempre 83 7 2005 em reformas, o atendimento bio-psico-social para carentes e infratores menores de idade, uma burocracia monumental a ponto de, hoje em dia, o sindicato dos carcereiros da Febem ser mais importante do que um jovem lá internado. Tudo em nome da segurança nacional e de uma integração segura para excluídos, potencialmente perigosos, habitantes não escolarizados das periferias, portadores de uma cultura da pobreza. Durante a ditadura militar se questionou a Febem, seus métodos e se deu legitimidade às rebeliões. A ditadura acabou e uma institucionalização democrática apareceu. As periferias permanecem miseráveis, crianças e jovens foram escolarizados e na medida em que isso aconteceu ficou evidente que a escola é lugar para aprender a obedecer (critério uniforme para acionar a evasão); para integrar no mundo globalizado é preciso a escola eletrônica e essa não é para todos. A Febem, enfim, passou a ser uma prisão reconhecida. O tráfico tradicional de drogas permanece recrutando os seus serviçais nas periferias (para comercializar e matar). A polícia lá recruta para prender e matar. As organizações filantrópicas ali atuam para docilizar e imobilizar. Não se questiona o racismo de Estado tanto por meio da identificação naturalizada de quem é mau, quanto pela difusão de políticas de cotas entre os bons com o intuito de gerar uma elite no interior da mesma periferia; enfim, onde há muito direito multiculturalista há, também, bastante racismo e confinamentos. Não há direito, dizia Nietzsche, que não emerja de um ato de violência. Vivemos uma era em que o campo de concentração se anuncia como um modelo de administração governamental. No passado as resistências libertárias afirmavam que cada um era dono do seu próprio corpo, dele podendo dispor como bem desejasse, inclusive para consumir drogas. Hoje, 84 verve Abolicionismo penal, medidas de redução de danos... sob o conservadorismo, apropria-se daquela prática libertária transformando-a em um lema da moralidade individualista: “você pode fazer o que quiser de seu corpo, inclusive consumir drogas, mas saiba que é sua responsabilidade alimentar a continuidade do tráfico”. Numa época em que se procura anular resistências, medidas de redução de danos expressam liberações alheias à conduta dos polidos zeladores da moral, dos pastores religiosos e ongueiros, dos participantes cidadãos. O abolicionista penal está ao lado dos ativistas das medidas de redução de danos, convidando-os a lutarem, também, pelo fim das prisões para jovens. Nota 1 Palestra realizada na I Conferência de Redução de Danos da América Latina e do Caribe, RELARD-IHRA-REDUC, São Paulo, 11 de fevereiro de 2004. RESUMO Uma perspectiva abolicionista que vê a política de redução de danos como uma resistência estratégica à prática proibicionista e um parceiro tático para potencializar a luta pela liberação das drogas. Palavras-chave: abolicionismo penal, drogas, política de redução de danos. ABSTRACT The abolitionist perspective sees the harm reduction policies as a strategic resistance to the prohibitionist practice and as a tactical ally to enforce the fight for drug liberation. Keywords: penal abolitionism, drugs, harm reduction policy. Recebido para publicação em1 de março de 2004. 85 7 2005 a mecanização do cadáver — a má sorte dos animais christian ferrer* Na ocasião do dilúvio universal, foram anunciadas a Noé duas missões: salvar um pequeno núcleo humano e todos os animais da terra, e não somente durante a catástrofe, mas o tempo suficiente para sua posterior conservação e reprodução. Na arca, emblema da comunidade de todos os seres vivos em momentos difíceis, os animais são cuidados, pois desconhecem a causa de sua má sorte. Eles foram extirpados de seu ambiente natural apesar de serem inocentes. Como um cão Era um vira-lata e respondia unicamente ao nome de “Dash”. Fora entregue à ciência com a finalidade de testar a eficácia da eletricidade aplicada à arte de matar. Descarregaram-se primeiro 300 volts no corpo do cachorro, fazendo-o estremecer até o uivo, seguiu-se depois com 400 volts, que também não acabaram com *Professor na Universidade de Buenos Aires. verve, 7: 86-99, 2005 86 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais sua vida, e assim a corrente chegou aos 700 volts e, mesmo que sua língua pendesse como um badalo, ainda continuava vivo. Na quarta tentativa, sucumbiu, em Nova Iorque, no dia 30 de junho de 1888. A comissão estatal encarregada de selecionar um método alternativo à forca — o predileto até então — considerou trinta e quatro propostas diferentes, que contemplavam ser lançado de um canhão, ser fervido em carne viva e ser jogado numa horda de animais selvagens. O leque foi fechado sobre quatro propostas: o vil garrote, a guilhotina, a injeção subcutânea (possibilidade descartada porque “a morfina poderia eliminar no réu o grande medo da morte”) e a eletrocussão, que terminou por satisfazer os membros da comissão. Dois anos mais tarde, Francis Kemmler seria sua primeira cobaia humana: levantara a mão contra sua esposa, fatalmente. Na nova fórmula judicial que lhe fôra lida estipulava-se o seguinte: “Você foi condenado a sofrer a pena de morte por meio da eletricidade”. O condenado respondeu ao tribunal: “Estou disposto a morrer pela eletricidade. Sou culpado e devo ser castigado. Estou pronto para morrer. Estou contente porque não serei enforcado. Acredito ser muito melhor morrer pela eletricidade do que por enforcamento. Não me provocará nenhuma dor”. Estava errado, e muito. A sentença não foi executada imediatamente, pois Kemmler recorreu da resolução, que seria depois confirmada. Entre grades foi batizado na fé metodista e inclusive aprendeu a ler, pois tivera ingressado analfabeto à prisão. Sua execução não foi simples. Tampouco a dos sucessivos cachorros, e também cavalos, com os quais se acabou de aprontar o carrasco de quatro pés. A guilhotina, em seu momento, foi tida como considerável melhora em relação aos enforcamentos e fuzilamentos de costume, e a cadeira elétrica agora prometia dar uma morte tão veloz que inclusive passaria inadvertida 87 7 2005 para o condenado. Este artefato fatal ingressava suavemente na consideração progressista das invenções científicas: precisas, infalíveis, “modernas”; e sem dúvida não foram seres mascarados os que aprontaram a primeira execução, mas sim engenheiros e eletricistas. Quando foi levado para o último lugar que veria em vida, Francis Kemmler disse aos curiosos presentes: “Cavalheiros, lhes desejo boa sorte. Acredito que vou para um lugar melhor e estou pronto para partir. Só quero acrescentar que muito se disse sobre a minha pessoa que não é verdade. Sou bastante ruim, mas é cruel me tirar deste mundo pior do que eu”. Estando sentado e de mãos amarradas foi dada a ordem de descarregar os 1000 volts combinados. Segundo relataram as testemunhas, o corpo de Kemmler enrijeceu repentinamente, os olhos saíram das órbitas, e a pele empalideceu. Um médico certificou a morte do réu dezessete segundos depois. Entretanto, Francis Kemmler não tinha morrido e vários dos que assistiam disto deram aviso. Então foi elevada a corrente a 2000 volts e a saliva começou a fluir pela boca, e suas veias romperam-se e as mãos se encheram de sangue. No final, o corpo todo ardia em chamas. Aconteceu no dia 6 de agosto de 1890. Paleontologia e política Charles Darwin publicou A origem das espécies em 1859, e seu complemento em 1871, com A orígem do homem. Dois raios cravados sobre um céu sereno. Animal “evoluído”, o homem seria uma pirueta autoprovocada por um macaco. Logo após a morte de Darwin, foi iniciado na Europa um áspero debate não isento de seqüelas políticas em torno ao “darwinismo social”, que se sobrepôs à polêmica paralela entre evolucionistas e creacionistas. Por certo, “a sobrevivência do mais apto” não é um lema que resulte de imediato agradável para des88 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais crever a promoção das espécies. Houve aqueles que privilegiaram a condição “gladiatorial” dessa luta e lhe deram significados políticos e morais à hipótese de Darwin: a natureza, um quadrilátero; as espécies, boxeadores solitários. O príncipe Piotr Kropotkin, anarquista e cientista, confronta-os em 1902. Em O apoio mútuo, obra que recebeu certa consideração pública, Kropotkin identificou dois tipos distintos de luta. A do organismo contra o organismo pelos recursos limitados, uma postal de coliseu romano que podia satisfazer a impressionável sensibilidade burguesia do século XIX; e a do organismo e a espécie unidos contra o meio ambiente, comunhão que garante melhor a sobrevivência do que o combate. Bandos e manadas cooperam, e assim prosperam. Aquele príncipe profetizou, retroativamente e com lógica tenebrosa, que a dominação do homem pelo homem era uma conseqüência deslocada da dominação, maltrato e matança dos animais por parte do homem. Tábula rasa Seria pronunciado o auto de fé dos cultos e atualizados: o corpo se sustenta na cultura, não na dotação biológica. Mas se a história se inscreve no volume de carne como se este fosse uma lousa límpida, a linhagem animal perde seu elo. Ironicamente, aquela certeza humanista culmina agora em numerosos sociólogos e filósofos que depositam na biotecnologia a esperança de uma mudança positiva para o destino histórico da espécie. Já são legião: uns comemoram a continuidade “irreversível” entre máquinas e homens, e outros deliram com artefatos que reproduziriam “inteligência” e “emoções” humanas. Todos entendiam. Negada a designação “animal” no ser humano, a descontinuidade se torna abissal e, então, encurralar o resto do reino animal contra o precipício é questão de tempo. Na vida social, o 89 7 2005 “drama da diferença” pode conduzir à negação ou ao desrespeito de direitos, à tolerância ou à aceitação do alheio, e também ao reconhecimento dos atributos do “outro” que há em “mim”. Estas operações emocionais e políticas se tornam raras quando se aborda a diferença animal. Domínio, piedade, concessão de “direitos”? A questão nos concernirá unicamente quando se assuma que a destruição do corpo humano está diretamente vinculada ao tratamento dado ao resto dos seres vivos. O bumerangue costuma retornar violentamente ao braço que o lançou. Depois de tudo, o ser humano bem poderia ser uma errata da natureza, e a história humana sua persistência fatal. Mas os animais estavam antes. Descuido Milhões de anos atrás, a massa continental original se fragmentou em vários pedaços e foi quando a Oceania ficou desvinculada da sorte ecológica das outras terras. Quando os maori chegaram desde a Polinésia ao que hoje chamamos Nova Zelândia, perto do ano 1300 depois de Cristo, se encontraram com o moa, o maior pássaro que existia no mundo, que não podia voar. Sendo um dos alimentos preferidos dos maori, foi extinto no século XVII. Porém, em 1893 descobriu-se que numa pequena ilha chamada Stephens, localizada no Estreito de Cook, que separa as duas grandes ilhas, a Ilha do Norte da Ilha do Sul, tinham sobrevivido algumas espécies de aves, algumas do tamanho de um frango e incapazes de voar, que havia séculos estavam extintas no resto do arquipélago. Rapidamente, o governo neozelandês proibiu as pegadas humanas nessa cápsula isolada no tempo, a declarou “reserva natural” e mandou construir um farol. Um ano depois, todos os pássaros estavam mortos. O assassino, entretanto, era inocente. O encarregado do farol tinha desembarcado na ilha junto com um gato que levou apenas 90 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais um ano para acabar com todos os pássaros. Apenas um ciclo de contato com a cultura humana dera baixa a cem milhões de anos de evolução. Para sempre. Defensores As primeiras vítimas defendidas não foram cachorros e gatos, muito menos baleias, mas cavalos, asnos e mulas. As sociedades filantrópicas de “proteção aos animais” foram criadas no rescaldo da revolução industrial, quando a “tração a sangue” era o meio de viabilidade mais habitual e o maltrato era contínuo e à vista de todos. No final do século XIX, foram fundadas organizações contra a vivisseção, dedicadas majoritariamente a “criar consciência” em uma época na qual a experimentação científica estava se “profissionalizando”, na qual se requeriam maiores quantidades de animais a modo de cobaias “de índias” e na qual destripar animais nas escolas públicas resultava ser um tópico do currículo. Suas conquistas foram escassas porque na Europa e nos Estados Unidos, onde chegaram a ser ricas e poderosas, a renúncia à ação política foi pobremente compensada pelo recurso da “campanha de conscientização”. Mas, uma época na qual se criava intensivamente o gado com a finalidade de assassiná-lo e na qual se contavam aos milhões os animais com os que se experimentava em laboratórios, já precisava de outro tipo de orientação política. O “Movimento de Libertação dos Animais” propagou uma nova definição política da relação entre homem e animal. Isso aconteceu perto de 1970. Sub-humanos A vida — e a morte — dos animais tem sido mecanizada: já são produtos cujo controle de qualidade exige a imposição de certas doses de crueldade. Os cepos e arma- 91 7 2005 dilhas provocam um imenso padecimento, além de prolongar a agonia do animal durante dias. A compra e venda de espécies “exóticas” resulta ser o prelúdio de sua extinção, ao provocar o retrocesso da diversidade genética necessária para sua promoção. E, enquanto os potentados do extremo oriente continuem adquirindo ilegalmente pó de corno a modo de afrodisíaco, será muito difícil salvar a atual população de rinocerontes negros. E afinal, a criação de gado, que supõe castração, separação de mãe e filho, marcação, transporte ao matadouro e morte prematura, atividades interditas para com os seres humanos, salvo que se quebre o laço de continuidade com algum grupo humano específico, fato acontecido sessenta anos atrás na Europa com milhões de homens e mulheres inermes. Relembre-se: até século e meio atrás, e nos Estados Unidos, era perfeitamente legal separar as mães de seus filhos, transportar estes últimos ao mercado, e também matá-los antes de tempo. Durante o ciclo da escravatura, as mães não costumavam desenvolver afetos fortes com suas crianças, pois com a idade de seis anos já podiam ser comercializados. Por certo, naqueles tempos os proprietários costumavam fazer com que seus escravos lutassem entre si, com argola ao pescoço e em combates a morte. E apostavam, como ainda se faz nas brigas de galo ou de cachorros de luta. Estômago Nada mais errôneo do que entendê-lo como invenção contemporânea. O naturismo foi uma doutrina amplamente difundida desde o final do século XIX, no Ocidente, e atiçada, em especial, pelos anarquistas, sempre preocupados por melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores. Distintas veias confluíam nessa esquecida ecologia social dos pobres: ideais existenciais de “boa vida”; a propaganda da alimentação “protéica-racional” nos bairros ope92 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais rários; a difusão da “biofilia”, o nudismo e o vegetarianismo; a criação de centros de medicina natural; a promoção da “procriação consciente”. Não faltaram, entre os anarquistas, comunas e restaurantes vegetarianos ou tampouco piquetes contra açougues. Para suas escolas, também chamadas “racionalistas”, a vivisseção era alheia. Pelo contrário, ensinavam a vida da natureza por meio de passeios pela cidade destinados a identificar e escutar os pássaros, ou também inspecionando os prósperos nichos de insetos sob os azulejos. Vegetarianismo e anarquismo não conformaram uma excentricidade ideológica, mas uma aliança entre política e cultura popular. Os pobres sempre alimentaram-se com vegetais, pois a carne animal foi, e continua sendo, um privilégio de ricos. Na China e na Índia, faz milhares de anos que a comida está confeccionada na base de vegetais. Por certo, os indianos reverenciam as vacas mas não deixam de ordenhá-las. Entretanto, o disparate não pára de se expandir: o gado precisa de alimento proveniente de terras de cultivos que poderiam ser usadas para alimentar a espécie humana com proteína vegetal; são destruídos bosques para dar lugar a terras de pastoreio; e as frotas pesqueiras capturam um cinqüenta por cento de pesca imprestável que sucumbe no navio fábrica. Ao considerar que os vegetais produzem dez vezes mais proteínas do que a carne, cabe concluir que a indústria da proteína animal colabora com o aumento da fome no mundo. Só um boicote poderia deter esta trituradora. O especismo A palavra “especismo” resume a contribuição de Peter Singer para a história das idéias. Em seu Animal Liberation, de 1975, argumentou que ao nos orientar por princípios éticos que promovem a diminuição do sofrimento e 93 7 2005 o aumento do bem-estar, não seria aceitável provocar dor a uma espécie em função dos interesses de um grupo definido por seu estatuto superior. E, na suposição de que os animais tenham interesses, o primeiro deles seria não sofrer. Mas se diz que os animais não têm inteligência, sem a qual é impossível estabelecer uma simetria de interesses. Mas um macaco demonstra maior inteligência do que um bebê, e não por isso consideramos este último um inferior. E também, que os animais não têm autonomia fora do seu ciclo instintivo. Mas um doente grave ou um bebê tampouco a têm, e não por isso descuidamos deles. E também, que os direitos supõem reciprocidade, e os animais não a concedem. Mas tampouco as crianças costumam outorgá-la, nem podem concedê-la aqueles que experimentam uma “vida vegetativa”, e o fato de que as futuras gerações não existam ainda não é critério para fazer da terra um pântano. Enfim, que ausente nos animais uma linguagem auto-reflexiva, não haveria laço possível com o humano. Mas tampouco os bebês podem se expressar de tal maneira ainda que disponham da faculdade para o fazer no futuro, e em outras épocas os surdos-mudos também careciam de linguagem. Não há provas científicas para “comprovar” a necessidade de acabar com a destruição dos animais. Trata-se, apenas, de um ideal orientador. No passado, foram publicados livros “científicos” que “provavam” a inferioridade “natural” dos escravos, ou das mulheres, ou dos que não fossem brancos. Justamente, o especismo nega os interesses de outras espécies a partir de preconceitos favoráveis à própria. Mas a negação a levar em consideração outros padecimentos requer do encobrimento do processo. É uma condição prévia afetiva imprescindível para engolir cadáveres. 94 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais Não Em 1988, uma adolescente chamada Jennifer Graham negou-se a realizar uma vivisseção em sua aula de biologia. Tendo sido abaixada sua nota devido à sua negação, a jovem iniciou um julgamento ao Estado da Califórnia, e venceu. A dissecção em vivo já não seria obrigatória nesse estado a partir de então. Uma lei caída por causa da palavra não. Um só homem “Quantos coelhos Revlon deixa cegos por causa da beleza?”. Esta pergunta, publicada em primeira página no New York Times do dia15 de abril de 1980, conseguiu que milhões de dólares em ações da corporação hegemônica no mercado da cosmética despencassem em menos de vinte e quatro horas. Até então, a pasta de blush ou de rímel era testada em coelhos, nos quais se aplicavam em profusão os produtos na mucosa ocular com a finalidade de pesquisar se o excesso de substância cosmética produzia algum efeito. A conseqüência era a cegueira final do animal, prévia ulceração progressiva do olho. O aviso se repetiria duas vezes mais até curvar a Revlon. Daí em diante, o “animal testing” foi abandonado e o “controle de qualidade” se fez em imitação artificial da carne vivente. O mesmo caminho foi seguido pelo resto da indústria cosmética, temerosa do custo a ser pago em publicidade negativa. Henry Spira, membro exclusivo de uma organização dedicada à “libertação animal”, havia pagado por esse aviso. Em dezembro de 1955, e na cidade de Montgomery, uma mulher chamada Rosa Parks negou-se a ceder seu lugar a um passageiro branco, roque forçado contemplado pelas leis do Estado de Alabama. O homem branco reclamou ao motorista, quem não pôde persuadir a mu- 95 7 2005 lher de abandonar sua atitude. Obstinado, o homem levou a juízo a empresa de transportes. A resposta foi o boicote: durante sete meses milhares de pessoas foram e voltaram caminhando até conseguir derrogar a ordenança municipal. Foi o começo do movimento de luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Henry Spira, um jovem trotskista, cobriu o conflito para seu jornal, e da simples observação dos acontecimentos aprendeu algumas coisas. Depois, deixaria o partido e seu ofício de marinheiro mercante e se transformaria em professor de escola. E assim até 1973. Em abril de 1973, a The New York Review of Books publicou um comentário favorável à edição recente de livros que tratavam o tema dos direitos dos animais. O autor da resenha era Peter Singer. Meses depois, Henry Spira lê numa publicação trotskista de escassa tiragem uma crítica à crítica de Singer; basicamente uma denúncia da “bancarrota - intelectual - dos - intelectuais de - esquerda - que - em - lugar - de - defender - os trabalhadores - se - dedicam - a - causas - supérfluas”. Mas Spira, muito treinado na arte de ler entrelinhas, interessou-se, e participou de um curso de “extensão” na Universidade de Nova Iorque no qual Singer expôs avances de seu Animal Liberation. Compareceram vinte pessoas e Henry Spira era uma delas. Nesse âmbito foi fundada a Animal Rights International. Era preciso escolher onde golpear. Em 1975 o Museu Americano de História Natural guardava arquivos e objetos, mas também um laboratório onde se experimentava com felinos, aos que se lhes extirpavam os órgãos sexuais e se lhes induziam lesões cerebrais com a finalidade de investigar sua conduta reprodutiva. Constatação tão cruel como desnecessária para o mundo. O grupo começou com cartazes e distribuição de panfletos na entrada do Museu. Aos poucos, as rádios começaram 96 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais a se ocupar do caso. Num primeiro momento, o Museu ignorou as reclamações, mas logo teve de se defender, pois uma comissão parlamentária decidiu inspecionar o laboratório. Ed Koch, futuro prefeito de Nova Iorque, inquiriu sobre a natureza das experiências e lhe foi mostrado um gato macho com lesões cerebrais induzidas encerrado numa jaula onde também havia uma gata e um coelho fêmea. Koch perguntou pelas seqüelas da experiência: acaso a preferência sexual do felino seria afetada pela lesão? Foi a resposta que o gato ia indistintamente com a coelha ou com a gata. Koch voltou a perguntar: “E o que opina a coelha de tudo isto?”. O clima de opinião daqueles anos não favorecia este tipo de ativismo. Os “líderes de opinião”, políticos e jornalistas não levavam a sério a questão; e o desprezo da comunidade científica em relação aos opositores de experiências com animais era incomensurável. Entretanto, Henry Spira teve sempre cuidado de se confrontar com a ciência em si mesma. Afinal, a pressão da opinião pública conseguiu que o museu fosse obrigado a suspender as experiências e a se desfazer dos pesquisadores. O epitáfio dos mesmos foi cinzelado em outubro de 1976 pela influente revista Science, que deu o golpe de misericórdia. Science abandonou o Museu à sua sorte talvez porque já se tornava evidente que não era possível defender qualquer experiência realizada com animais, e também porque naquele laboratório costumavam dar nomes de famosos cientistas vivos aos felinos lobotomizados ou castrados; entre outros, o do diretor da revista Science. Foi o começo. Seguiria a confrontação com a indústria cosmética. Nos anos noventa Spira lançou uma campanha destinada a humilhar um gigante, Mc Donald’s, pois se as experiências “científicas” realizadas no Museu de História Natural supunham a castração e dano 97 7 2005 de centenas de felinos, e se a experimentação em cosmética dizia respeito à sorte de milhares e milhares de coelhos, a produção de carne de vaca ou de frango para hambúrguer implicava a mecanização da vida e a morte de milhões de animais. A campanha culminou em um julgamento iniciado e ganho pela empresa, ainda que o veredicto se constituiu numa falsa vitória para a Mc Donald’s, que sequer tentou cobrar as centenas de milhares de dólares creditados na conta do defensor dos animais. Henry Spira morreu no ano de 2001. As muitas conquistas que conseguiu para sua causa se desprendiam do potencial político da palavra “libertação”, olho da fechadura dos anos sessenta e setenta, estendida agora ao reino animal. Hominização O longo processo de hominização culminou num desequilíbrio. Transformado no árbitro de todas as espécies, o homem as submeteu ao seu arbítrio. É um acontecimento que não pode ser revertido, nem redimido, e talvez tampouco possa ser detido. A progressão da história humana, e o nível de suas necessidades, assim o exigem. É uma experiência imensa e cruel desenhada para antedatar a chegada do Apocalipse, começando com o dos animais. Tratar-se-ia de remover a ordem dada a Noé: não a conservação e cuidado da vida, mas seu holocausto. Tradução do espanhol por Natalia Montebello. 98 verve A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais RESUMO Uma analítica da história desenha territórios de saberes que evidenciam a atualidade de se pensar a espécie como problema político e o corpo como extensão onde a política instaura verdades. Dimensionada assim, a política permite combinar práticas sobre a pena de morte, sobre o homem como espécie diante de outras espécies, sobre saberes evolucionistas e criacionistas, como experimentação histórica sobre o presente. Palavras-chave: evolucionismo, espécies, direitos ABSTRACT An analysis of History draws territories of knowledge that highlight the importance of thinking the species as a political problem and the body as an extension where politics states truths. Put in that way, politics is able to mix practices over death penalty, the Man as a specie facing other ones, evolutionism and creationism as historical experimentations over the present. Keywords: evolutionism, species, rights Recebido para publicação em 19 de maio de 2004. 99 7 2005 assim também seu corpo para mim: o que se abre, o que se reflete em sorriso. nenhum crime, nenhum castigo. Sergio Cohn 100 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana stirner e foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana saul newman* Max Stirner e Michel Foucault são dois pensadores que raramente são analisados juntos. No entanto, já foi sugerido que o tão ignorado Stirner pudesse ser visto como o precursor do pensamento pós-estruturalista contemporâneo.1 De fato, há muitos extraordinários paralelos entre a crítica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racionalidade universal e as identidades essenciais, e as críticas similares realizadas por pensadores como Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, e outros. Contudo, o propósito deste artigo não é meramente situar Stirner na tradição “pós-estruturalista”, mas analisar seu pensamento a respeito da liberdade, e pesquisar as conexões com o próprio desenvolvimento do conceito de Foucault no contexto das relações de poder e subjetividade. Em linhas gerais, os dois pensadores enxergam a clássica idéia kanti- * Professor no Departamento de Ciência Política da University of Western Australia. verve, 7: 101-130, 2005 101 7 2005 ana de liberdade como extremamente problemática, por envolver pressupostos essencialistas e universais que são freqüentemente opressivos. O conceito de liberdade deve ser repensado. Este não pode ser visto exclusivamente em termos negativos, como a liberdade de coação, mas deve envolver mais noções positivas de autonomia individual, particularmente a liberdade do indivíduo para construir novas formas de subjetividade. Stirner, como veremos, dispensa a noção clássica de liberdade como uma totalidade e desenvolve a teoria da (Eigenheit)2 para descrever esta autonomia radical do indivíduo. Eu proponho, neste artigo, que tal teoria da propriedade de si como uma forma não essencialista de liberdade tem muitas similaridades com o próprio projeto de liberdade de Foucault, que envolve um ethos crítico e uma esteticização de si. De fato, Foucault questiona os fundamentos racionais universais e antropológicos do discurso de liberdade, redefinindo-os em termos de práticas éticas.3 Tanto Stirner quanto Foucault são, portanto, cruciais para o entendimento da liberdade na contemporaneidade — eles mostram que a liberdade não pode mais ser limitada por absolutos racionais e categorias morais universais. Eles tomam o entendimento de liberdade para além dos limites do projeto kantiano — apoiando-se em estratégias concretas e contingentes de si. Kant e a liberdade universal Para compreender como esta reformulação radical da liberdade pode acontecer, devemos ver como o conceito de liberdade está situado no pensamento iluminista. Neste paradigma, o exercício da liberdade é visto como a herança de uma propriedade racional. Segundo Immanuel Kant, por exemplo, a liberdade humana pressupõe uma lei moral que é racionalmente entendida. Na Crítica da razão 102 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana prática, Kant busca estabelecer um fundamento racional absoluto para o pensamento moral além dos princípios empíricos. Argumenta que os princípios empíricos não são uma base apropriada para as leis morais, por não permitirem que sua verdadeira universalidade seja estabelecida. A moralidade deveria, ao contrário, ser baseada em uma lei universal — um imperativo categórico — que pode ser racionalmente compreendido. Para Kant existe, então, apenas um imperativo categórico, o qual sustenta o fundamento para todas as ações racionais do homem: “Age somente pela máxima segundo a qual tua ação e vontade tornam-se uma lei universal”.4 Noutras palavras, a moralidade de uma ação está determinada pela lei universal quando aplicável a todas as situações. Kant traça três características de todas as máximas morais. Em primeiro lugar, elas devem ter um formato universal. Em segundo lugar, devem ter um fim racional. E, em terceiro, as máximas que provém de legislações autônomas do indivíduo, devem estar de acordo com uma certa teologia de fins. Este último ponto trás conseqüências importantes para a questão da liberdade humana. Para Kant, a lei moral é baseada na liberdade — o indivíduo racional escolhe livremente pelo senso de dever aderir às máximas morais universais. Dessa maneira, para que as leis morais sejam racionalmente fundamentadas, elas não podem estar baseadas em qualquer forma de coerção ou constrangimento. Elas têm que estar livremente incorporadas como um ato racional do indivíduo. A liberdade é vista por Kant como uma autonomia da vontade — a liberdade do indivíduo racional para seguir os preceitos de sua própria razão pela adesão a estas leis morais universais. Esta autonomia da vontade, então, é para Kant o princípio supremo da moralidade. Ele a define como “aquela propriedade pela qual ela é uma lei para si mesma (independentemente de qualquer pro103 7 2005 priedade dos objetos da vontade)”.5 A liberdade é, portanto, a habilidade do indivíduo em legislar para si, livre de forças externas. No entanto, esta liberdade da auto-legislação deve estar de acordo com as categorias morais universais. Por conseguinte, segundo Kant, o princípio da autonomia é: “nunca escolher, exceto quando estiver numa condição em que as máximas da escolha estejam compreendidas na mesma vontade como uma lei universal”.6 Pode parecer que há um paradoxo central nesta idéia de liberdade — você é livre para escolher desde que faça a escolha certa, desde que escolha as máximas da moral universal. Porém, para Kant, aqui não há contradição, pois apesar da adesão às leis morais ser um dever e um imperativo absoluto, ela continua sendo um dever livremente escolhido pelo indivíduo. Leis morais são racionalmente estabelecidas, e pelo fato da liberdade apenas poder ser exercida por indivíduos racionais, eles irão necessariamente, ainda que livremente, escolher obedecer estas leis morais. Noutras palavras, uma ação é livre somente na medida em que está de acordo com a moral e os imperativos racionais — caso contrário ela é patológica e, portanto, “não-livre”. Neste sentido, a liberdade e o imperativo categórico não são antagônicos, mas antes, conceitos mutuamente dependentes. A autonomia individual é para Kant a principal base das leis morais. “Mas este princípio da autonomia (...) é o único princípio das morais que pode ser mostrado prontamente por uma mera análise dos conceitos da moralidade; por esta análise nós descobrimos que este princípio tem que ser um imperativo categórico, e este (o imperativo) comanda, nem mais nem menos, que sua própria autonomia”.7 O reverso autoritário Todavia, pode parecer haver um autoritarismo escondido na formulação da liberdade de Kant. Enquanto o 104 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana indivíduo é livre para agir de acordo com os preceitos de sua própria razão, ele deve, contudo, obedecer às máximas da moral universal. A filosofia da moral de Kant é uma filosofia da lei. Este é o porquê Jacques Lacan foi capaz de diagnosticar um jouissance escondido — ou a apreciação em excesso da lei — que anexou ao imperativo categórico de Kant. Segundo Lacan, Sade é o complemento necessário a Kant — o prazer perverso incorporado às leis se torna, no universo sadiano, a lei do prazer.8 O que une a liberdade kantiana à lei são suas vinculações a uma racionalidade absoluta. É porque a liberdade deve ser exercida racionalmente que o indivíduo se encontra obedecendo, obrigatoriamente, as leis morais universais, racionalmente fundamentadas. Contudo, tanto Foucault quanto Stirner colocaram em questão tais categorias universais, racionais e morais, centrais para o pensamento iluminista. Eles insistem que categorias absolutas da moralidade e racionalidade sancionam diversas formas de dominação e exclusão, e negam a diferença no indivíduo. Para Foucault, por exemplo, a centralidade da razão em nossa sociedade está baseada na exclusão violenta e radical da loucura. As pessoas permanecem excluídas, encarceradas e oprimidas devido a esta arbitrária divisão entre a razão e a não-razão, racionalidade e irracionalidade. Do mesmo modo, o sistema penitenciário está baseado na divisão entre bem e mal, inocência e culpa. O encarceramento do prisioneiro é possível somente pela universalização de códigos morais. O que deve ser contestado, segundo Foucault, não são apenas as práticas de dominação que se encontram nas prisões, mas também a moralidade que justifica e racionaliza tais práticas. O foco principal da crítica de Foucault sobre as prisões não é necessariamente relativa à dominação interna, mas no fato de que esta dominação está justificada em bases morais absolutas — a base moral que Kant busca para cons105 7 2005 truir o universal. Foucault quer romper com a “serena dominação do Bem sobre o Mal”, central nos discursos morais e práticas de poder.9 Este é o absolutismo moral ao qual Stirner também se opõe. Ele vê a moralidade como um “fantasma” — um ideal abstrato colocado além do indivíduo e que age sobre ele de forma opressiva e alienante. Moralidade e racionalidade se tornam “idéias fixas” — idéias tidas como sagradas e absolutas. Uma idéia fixa, de acordo com Stirner, é um conceito abstrato que governa o pensamento — uma ficção discursivamente fechada que nega a diferença e a pluralidade. Estas são idéias abstraídas do mundo e que continuam a dominar o individuo pela comparação de cada um a uma norma ideal impossível de ser atingida. Noutras palavras, o projeto de Kant de retirar as máximas morais do mundo empírico para o interior de um reino transcendental, em que poderiam ser aplicadas universalmente, isto poderia ser visto por Stirner como um projeto de alienação e dominação. A invocação da obediência absoluta às máximas morais universais de Kant, seria vista por Stirner como a pior negação possível da individualidade. Para Stirner, o indivíduo é supremo, e qualquer coisa que pretenda se aplicar a ele ou falar por qualquer um, universalmente, é uma anulação da diferença da unicidade do indivíduo. O indivíduo está infestado por estes ideais abstratos, estas aparições que não são criações suas e a ele impostas, confrontando-o com padrões racionais e morais impossíveis. Como veremos, além disso, o indivíduo para Stirner não é uma identidade ou essência fixa e estável — isto seria uma abstração idealista assim como os espectros que o oprimem. A individualidade deve ser vista, neste caso, em termos similares aos de Foucault — como uma forma radicalmente contingente de subjetividade, uma estratégia aberta que se empenha em questionar e contestar os limites do essencialismo. 106 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana A crítica ao essencialismo O exorcismo que Stirner executa neste “espírito do reino” de absolutos morais e racionais é parte de uma crítica radical do humanismo iluminista e do idealismo. Seu “rompimento epistemológico” com o humanismo pode ser visto mais claramente em seu repúdio a Ludwig Feuerbach. Em A essência do cristianismo, Feuerbach aplicou a noção de alienação para a religião. A religião é alienante, de acordo com Feuerbach, pois ela exige que o homem abdique de suas qualidades e poderes essenciais para projetá-los em um Deus abstrato, além da compreensão da humanidade. Para Feuerbach, os predicados de Deus, eram somente os predicados do homem como espécie. Deus era uma ilusão, uma projeção fictícia das qualidades essenciais do homem. Noutras palavras, Deus era uma reificação da essência humana. Como Kant, que tentou transcender o dogmatismo da metafísica reconstruindo sobre bases racionais e científicas, Feuerbach procurou superar a alienação religiosa restabelecendo as capacidades morais e racionais universais do homem como base essencial para a experiência humana. Feuerbach corporifica o projeto humanista do Iluminismo de restaurar ao homem seu justo lugar no centro do universo, fazendo do humano o divino, o finito, o infinito. Stirner argumenta, contudo, que por meio da busca do sagrado na “essência humana”, posicionando um sujeito essencial e universal, e atribuindo-lhe, certas qualidades que foram, até agora, de Deus, Feuerbach somente re-introduziu a alienação religiosa, substituindo o conceito abstrato de homem na categoria do Divino. Por meio da inversão feuerbachiana o homem se torna Deus, e apenas como homem foi rebaixado sob Deus, então o indivíduo é posto abaixo deste ser perfeito, o homem. Para Stirner, o homem é tão opressivo, se 107 7 2005 não mais, que Deus. O homem se torna o substituto da ilusão cristã. Feuerbach argumenta Stirner, é o sacerdote de uma nova religião universal — o humanismo: “A religião humana é somente a última metamorfose da religião cristã”.10 É importante notar que o conceito de alienação de Stirner é essencialmente diferente da compreensão humanista feuerbachiana da alienação da essência do indivíduo. Stirner radicaliza a teoria de alienação para ver a essência por si só alienante. Saliento, que a alienação neste exemplo pode ser vista muito além da noção foucaultiana de dominação — como um discurso que amarra o indivíduo a certa subjetividade por meio da convicção de que dentro de qualquer um existe uma essência para ser revelada. Para Stirner é esta noção de uma essência humana universal que estipula as bases para a absolutização da moral e das idéias racionais. Estas máximas tornaramse sagradas e imutáveis porque estão agora fundadas na noção de humanidade, na essência humana, e transgredi-las seria uma transgressão na essência. Neste sentido o tema é levado a um conflito consigo mesmo. O homem é, de certa forma, perseguido e alienado por ele mesmo, por meio do espectro da “essência” dentro dele: “A partir de agora, em casos típicos, o homem não mais estremecerá diante de fantasmas externos, mas diante de si mesmo; ele está aterrorizado por si mesmo”.11 Para Stirner, a “insurreição” de Feuerbach não destruiu a categoria da autoridade religiosa — apenas instalou o homem dentro dela, revertendo a ordem do sujeito e do predicado. Da mesma forma, podemos sugerir que a “insurreição” metafísica de Kant não destruiu as estruturas dogmáticas da crença, mas apenas instalou a moralidade e a racionalidade dentro delas. Enquanto Kant procurava retirar a moralidade do domínio da religião, fundamentando-a na razão, Stirner 108 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana sustenta que a moralidade é apenas o velho dogmatismo religioso em um novo e racional aspecto: “A fé moral é tão fanática quanto a fé religiosa!”.12 Stirner não se opõe à moralidade em si, mas o fato que esta se tornou uma lei sagrada e indestrutível, e expõe o desejo pelo poder, a crueldade e a dominação por trás das idéias morais. A moralidade está baseada na profanação, na destruição da vontade do indivíduo. O indivíduo deve se conformar aos códigos morais; senão, ele se torna alienado de sua essência. Para Stirner, a coerção moral é tão viciosa quanto a coerção realizada pelo Estado, só é mais insidiosa e perspicaz, pois não exige o uso da força física. O guardião desta moralidade está instalado na consciência do indivíduo. Esta moral internalizada da vigilância também se encontra em Foucault na discussão sobre o panoptismo — na qual ele argumenta, revertendo o paradigma clássico, que a alma se torna a prisão para o corpo.13 Uma crítica similar deve estar relacionada à racionalidade. Verdades racionais são sempre colocadas acima das perspectivas individuais, e Stirner sustenta que isto é apenas uma outra forma de dominar o indivíduo. De maneira similar ao que afirmou sobre a moralidade, Stirner não é necessariamente contra a verdade racional em si, mas contra o modo como ela se torna sagrada, transcendental e deslocada da compreensão individual, anulando o poder do indivíduo. Stirner diz: “enquanto você acreditar na verdade, você não acredita em si mesmo, e você é um servo, um homem religioso”.14 A verdade racional, para Stirner, não possui nenhum real significado para além das perspectivas individuais — é algo que pode ser usado pelo indivíduo. Sua verdadeira base, assim como para a moralidade, é o poder. Enquanto para Kant as máximas morais são racionais e livremente obedecidas, para Stirner elas são pa- 109 7 2005 drões coercitivos, baseadas em uma noção alienante de “essência” humana compelida sobre o indivíduo. Além disso, elas se tornam a base para práticas de punição e dominação. Por exemplo, em resposta à idéia iluminista que o crime era antes uma doença a ser curada do que uma moral enfraquecida a ser punida, Stirner afirma que estratégias de cura e punição são dois lados do mesmo velho preconceito moral. Ambas estratégias contam com a adesão a uma norma universal: “meios de cura’ sempre anunciam inicialmente que indivíduos serão supervisionados ao serem ‘chamados’ para uma ‘salvação’ específica e tratados de acordo com as exigências deste ‘chamado humano’”.15 Para Kant, o indivíduo não é também, “chamado” para uma “salvação” específica quando solicitado a cumprir uma de suas obrigações ou a obedecer aos códigos morais? Neste sentido, o imperativo categórico kantiano não seria também um “chamado humano”? Noutras palavras, a crítica de Stirner sobre a moralidade e a racionalidade pode ser aplicada ao imperativo categórico de Kant. Para Stirner, embora as máximas morais possam ser livremente seguidas, elas continuam ocultando uma coerção e um autoritarismo. Isto porque, na formulação kantiana, elas foram universalizadas como normas absolutas que reservam um pequeno espaço para a autonomia do indivíduo, e que não podem ser transgredidas, pois isto significaria ir contra o próprio “chamado humano” racional e universal. A crítica de Stirner à moralidade e à sua relação com a punição possui similaridades impressionantes com os escritos do próprio Foucault sobre a punição. Para Stirner, como já vimos, não há diferença entre cura e punição — a prática da cura é a re-aplicação dos velhos preconceitos morais sob uma nova máscara iluminada: “os meios de cura ou tratamento são o reverso da punição, a teoria da cura segue paralela à teoria da pu110 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana nição; se esta última enxerga em uma ação um pecado contra o direito, o primeiro entende isso como um pecado do homem contra si mesmo, deixando de lado a sua saúde”.16 Isto é muito próximo ao argumento de Foucault sobre o preceito moderno da punição — em que as normas médicas e psiquiátricas são apenas a velha moralidade em uma nova roupagem. Enquanto Stirner considera os efeitos de tais formas da higiene moral na consciência do indivíduo, o foco de Foucault está mais na materialidade do corpo e a fórmula de cura e punição são as mesmas: é a noção do que é propriamente “humano”, que autoriza uma série de exclusões, práticas disciplinares, moral restritiva e normas racionais. Tanto para Foucault, como para Stirner, a punição é possível por meio do sagrado ou do absoluto — no sentido que Kant faz da moralidade uma lei universal. Há inúmeros pontos a serem sublinhados. Primeiro, Stirner e Foucault vêem os discursos racionais e morais como problemáticos — eles geralmente excluem, marginalizam, e oprimem aqueles que não vivem sob as normas implícitas destes discursos. Segundo, os dois pensadores vêem a racionalidade e a moralidade implicadas nas relações de poder, mais do que constituindo um ponto crítico epistemológico fora do poder. Não somente estas normas se tornam possíveis por práticas de poder, por meio da exclusão e dominação do outro, mas também, justificam e perpetuam práticas de poder como as encontradas em prisões e asilos. Terceiro, ambos os pensadores vêem na moralidade uma relação ambígua com a liberdade. Enquanto Stirner discute que superficialmente as normas morais e racionais são livremente admitidas, elas impõem, contudo, uma opressão sobre nós mesmos — uma autodominação — que é muito mais incidiosa e efetiva que a coerção explícita. Noutras palavras, em conformidade com a prevalência universal da moral e 111 7 2005 da norma racional, o indivíduo abdica de seu próprio poder e se deixa dominar. Foucault, também, desmascara esta dominação oculta da moral e da norma racional que é encontrada atrás do calmo semblante da liberdade humana. A clássica idéia iluminista da liberdade, argumenta Foucault, permite apenas uma pseudo-soberania. Isto clama pela posse da soberania “conscientemente (soberania no contexto do julgamento, mas sujeita às necessidades da verdade), o indivíduo (um controle nominal de direitos pessoais sujeitos às leis da natureza e da sociedade), a liberdade básica (a soberania interna, mas aceitando as demandas de um mundo externo e ‘alinhado com o destino’)”.17 Noutras palavras, o humanismo iluminista clama pela liberdade individual sobre qualquer forma de opressão institucional enquanto, ao mesmo tempo, exige uma intensificação da opressão sobre o indivíduo e a negação do poder de resistir a esta sujeição. Esta subordinação no coração da liberdade pode ser vista no imperativo categórico kantiano: mesmo baseada em uma liberdade de consciência, esta liberdade está ainda assim sujeita a categorias morais e racionais absolutas. A liberdade clássica permite somente uma certa forma de subjetividade, ao intensificar a dominação sobre o indivíduo subordinado a estes critérios morais e racionais. Enfim, o discurso de liberdade está baseado em uma forma específica de subjetividade — o homem autônomo e racional do iluminismo e do liberalismo. Como mostram Foucault e Stirner, esta forma de liberdade só se faz possível por meio da dominação e exclusão de outros modos de subjetividade que não se encaixam neste modelo racional. Noutras palavras, enquanto a moralidade não nega ou constrange a liberdade de forma evidente — no caso de Kant as máximas morais estão baseadas na liberdade de escolha do indivíduo — esta liberdade está, não obstante, restrita a um modo mais sutil por necessitar se conformar a absolutos morais e racionais. 112 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana Para Foucault e Stirner, a idéia clássica de liberdade em Kant é profundamente problemática. Ela constrói o indivíduo como “livre” e “racional” enquanto o assujeita a normas morais e racionais absolutas, e o divide em seres racionais e irracionais, morais e imorais. O indivíduo se adapta livremente a estas normas racionais, e neste sentido sua subjetividade é construída como um lugar para sua própria opressão. A tirania silenciosa da norma auto-imposta se torna o principal modo de sujeição. Enquanto para Kant as máximas morais e as normas racionais existem em uma relação complementar à liberdade, para Stirner e Foucault a relação é muito mais paradoxal e conflituosa. A moral transcendental e as normas racionais não negam a liberdade em si — no paradigma kantiano elas pressupõem a liberdade. A forma de liberdade trazida por meio destas categorias absolutas, implica outras formas de dominação muito mais sutis. Esta dominação é possível precisamente porque a relação da liberdade com o poder é mascarada. Para Kant, como já vimos, a liberdade é uma ausência de coerção. Entretanto, para Stirner e Foucault, a liberdade implica sempre em relações de poder — relações de poder tão criativas quanto restritivas. Ignorar isso, e ainda, perpetuar a ilusão confortante de que a liberdade assegura uma liberação universal do poder, significa atirar-se diretamente nas mãos da dominação. Pode-se argumentar, então, que Foucault e Stirner, de maneiras diferentes, decifram o autoritário lado obscuro, ou a “outra face”, da liberdade kantiana. A liberdade foucaultiana: o cuidado de si Stirner e Foucault não rejeitam a idéia de liberdade. Ao contrário, eles interrogam os limites do projeto iluminista de liberdade, de modo a expandi-lo — para inventar novas formas de liberdade e autonomia que vão 113 7 2005 além das restrições do imperativo categórico. Como mostra Olívia Custer, Foucault está tão engajado quanto Kant na problemática da liberdade. Entretanto, como veremos, ele procura levar a questão da liberdade por um caminho diferente — por meio de estratégicas éticas concretas e práticas de si. Para Foucault, a ilusão do estado de liberdade para além do mundo do poder deve ser dissipada. Além disso, o vínculo entre liberdade e categorias essencialistas e coordenadas morais e racionais pré-ordenadas, devem ser pelo menos questionadas. Porém, o conceito de liberdade é muito importante para Foucault — ele não prescinde do conceito, mas antes o situa no domínio das relações de poder que necessariamente o fazem indeterminado. É somente repensando a liberdade neste sentido, que esta pode ser arrebatada do mundo metafísico e trazida para o nível do indivíduo. Melhor que a noção abstrata de liberdade kantiana como uma escolha racional além de constrangimentos e limitações, a liberdade para Foucault existe em situações mútuas e recíprocas de poder. Mais do que uma liberdade pressuposta por uma máxima moral absoluta, ela é na realidade pressuposta pelo poder. Segundo Foucault, o poder pode ser entendido como uma série de “ações sobre a ação dos outros”, nas quais múltiplos discursos, contradiscursos, estratégias e tecnologias confrontam-se umas com as outras — relações específicas de poder sempre provocam relações de resistências específicas e localizadas. A resistência é algo que excede o poder e é ao mesmo tempo algo integrado à sua dinâmica. O poder se baseia numa certa liberdade de ação, numa certa escolha de possibilidades. Neste sentido, “o poder é exercido somente sobre sujeitos livres, e somente na medida que estes são livres”.18 Diferentemente do esquema clássico no qual a liberdade e o poder são diagramaticalmente opostos, o pensamento foucaultiano sustenta a 114 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana total dependência de um ao outro. Onde não há liberdade, onde o campo de ação é absolutamente restrito e determinado, de acordo com Foucault, não pode haver poder: a escravidão, por exemplo, não é uma relação de poder.19 A noção de liberdade em Foucault é uma quebra radical com a noção de Kant. Enquanto, para Kant, a liberdade é abstraída dos constrangimentos e limitações do poder, para Foucault, é a principal base destes limites e constrangimentos. Liberdade não é um conceito metafísico e transcendental. Ela pertence inteira a este mundo e existe em uma relação complicada e emaranhada com o poder. De fato, não existe possibilidade de um mundo sem relações de poder, assim como poder e liberdade não existem um sem o outro. Foucault percebe a liberdade implicada nas relações de poder, pois para ele liberdade é muito mais que somente ausência ou negação do constrangimento. Ele rejeita o modelo “repressivo” de liberdade que pressupõe a essência de si — uma natureza humana universal — que é restrita e precisa ser liberada. A liberação de uma subjetividade essencial é a base das noções clássicas de liberdade para o iluminismo e continua sendo central para o nosso imaginário político. Foucault e Stirner rejeitam esta idéia da essência de si — isto é meramente uma ilusão criada pelo poder. Como diz Foucault: “O homem descrito para nós e que somos convidados a libertar, já é em si o efeito de um assujeitamento muito mais profundo que ele próprio”.20 Enquanto ele não reduz os atos de liberação política — por exemplo, quando um povo tenta se libertar das regras coloniais — isto não pode operar como a base de um modo contínuo de liberdade. Supor que a liberdade pode ser estabelecida eternamente na base deste ato de libertação inicial significa apenas um convite para novas formas de dominação. Se a liber115 7 2005 dade deve ser um aspecto permanente de qualquer sociedade política, ela deve ser tida como uma prática — um modo de ação e uma estratégia em curso, que desafia e questiona continuamente as relações de poder. Esta prática de liberdade é também uma prática criativa — um processo contínuo de auto-formação do sujeito. É neste sentido que a liberdade pode ser vista como positiva. Um dos aspectos que caracteriza a modernidade, segundo Foucault, é uma atitude “heróica” baudeleriana em relação ao presente. Para Baudelaire, o contingente, a natureza fugaz da modernidade deve ser confrontada com uma certa “atitude” em relação ao presente que é concomitante ao novo modo de relação que se tem consigo. Isso envolve a reinvenção de si: “esta modernidade não ‘liberta o homem em seu próprio ser’; obriga-o a encarar a tarefa de produzir a si próprio”.21 Antes da liberdade ser uma libertação da essência do homem de coações externas, ela é uma prática ativa e deliberada da invenção de si. Esta prática de liberdade pode ser encontrada no exemplo do dandy ou do flanêur, “que faz do seu corpo, do seu comportamento, dos seus sentimentos e paixões, de sua própria existência, uma obra de arte”.22 É esta prática de auto-esteticização que nos permite, de acordo com Foucault, refletir criticamente sobre os limites de nosso tempo. Não se procura um lugar metafísico além de todos os limites, mas obras dentro dos limites e coerções no presente. Mais importante, no entanto, é também uma obra conduzida sobre os nossos limites e nossas próprias identidades. Pelo fato do poder operar por meio do processo de assujeitamento — amarrando o indivíduo a uma identidade essencial — a reconstituição radical de si é um ato de resistência necessário. Esta nova forma de liberdade define, então, uma nova forma de política mais relevante aos regimes contemporâneos de poder: “o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é libertar o indivíduo do 116 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana Estado e suas instituições, mas de nos libertar do Estado e do tipo de individualização ligada a ele”.23 Para Foucault, além disso, a libertação de si é uma prática ética distinta. Ela envolve a noção de “cuidado de si”, pela qual o desejo e o comportamento são regulados por si próprios de modo que a liberdade possa ser praticada eticamente. Esta sensibilidade com o cuidado de si e a prática ética da liberdade pode ser encontrada, sugere Foucault, entre os gregos e romanos da antiguidade. Para eles a liberdade do indivíduo era um problema ético. O desejo pelo poder sobre os outros era também uma ameaça à própria liberdade, e o exercício do poder era algo que tinha que ser regulado, monitorado, e limitado. Ser escravo de seus próprios desejos era tão ruim quanto ser escravo do desejo de outros. Esta regulação de práticas e desejos requer um comportamento ético que cada um constrói para si. Para praticar a liberdade eticamente, para ser sinceramente livre, é preciso obter o poder sobre si mesmo, sobre os próprios desejos. Foucault mostra, no antigo pensamento grego e romano que “o bom governante é precisamente aquele que exerce seu poder corretamente, ou seja, exercendo ao mesmo tempo o poder sobre si mesmo”.24 Esta prática ética da liberdade associada ao cuidado para si começa, entretanto, a soar de certo modo como o pensamento kantiano. Na realidade, como diz Foucault, “para que a ética, senão para a pratica da liberdade? [...] A liberdade é a condição ontológica da ética”.25 Isso não parece re-invocar o imperativo categórico onde, para Kant, a moralidade pressupõe e é fundada na liberdade? Será que Foucault, em sua tentativa para escapar do absolutismo da moralidade e racionalidade, re-introduziu o imperativo categórico nesta cuidadosa regulação do comportamento e do desejo? Não há dúvidas sobre o rigor desta forma de ética. Em O uso dos prazeres e O cui117 7 2005 dado de si, Foucault descreve as prescrições gregas e romanas sobre tudo, da dieta ao exercício do sexo. Entretanto, eu sugeriria que há uma diferença importante entre a ética do cuidado e as máximas morais universais insistidas por Kant. A regulação do comportamento e a problematização da liberdade, central para a ética do cuidado, são coisas que cada um aplica a si mesmo, não é algo imposto externamente por uma perspectiva universal fora do indivíduo. A prática de liberdade em Foucault é, portanto, uma ética mais do que uma moralidade. Supõe uma coerência de modos e comportamentos que têm como objeto a consideração e a problematização de si. Noutras palavras, permite que o sujeito seja visto como um projeto aberto a ser constituído por meio de práticas éticas do indivíduo, e não como algo definido a priori por leis universais e transcendentais. Leis morais não se aplicam aqui — não há nenhuma autoridade transcendental ou imperativos universais que sancionem estas práticas éticas e penalize infrações. Segundo Foucault, a moralidade é definida pelo tipo de assujeitamento que ela acarreta. De um lado há a moralidade que faz com que os códigos sejam cumpridos, por meio de interdições, e que exige uma forma de subjetividade que se refere à conduta do indivíduo sob estas leis, submetendo-o à uma autoridade universal. Isso, que pode ser discutido, é a moralidade do imperativo categórico de Kant. De um outro lado, afirma Foucault, existe a moralidade na qual “a ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites e pelos prazeres, manter uma superioridade sobre eles, manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna das paixões, e atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela supremacia de si sobre si mesmo”.26 A noção de Foucault de liberdade como uma prática ética é radicalmente diferente da idéia de Kant de liberdade como base da lei moral universal. Para Foucault, a liber118 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana dade é ética porque implica um projeto em aberto conduzido sobre a pessoa, com o intuito de expandir o poder que se exerce sobre si mesmo, e limitar e regular o poder em exercício sobre os outros. Desta forma, a liberdade e a autonomia da pessoa são expandidas. Para Kant, por sua vez, a liberdade é a base de uma moralidade metafísica que deve ser obedecida universalmente. Para Foucault, a ética intensifica a liberdade e a autonomia, enquanto para Kant, liberdade e autonomia estão circunscritas principalmente pela máxima moralidade possível. Há, portanto, dois aspectos relacionados com o conceito de liberdade de Foucault que devem, aqui, ser enfatizados. Primeiro, existe a prática de liberdade que permite à pessoa libertar-se, não dos limites externos que reprimem a sua essência, mas dos limites impostos pela própria essência. Exige a transgressão destes limites por meio de uma transgressão e re-invenção de si. Esta forma de liberdade opera dentro dos limites do poder, permitindo ao indivíduo fazer uso destes limites na invenção de si mesmo. Segundo, existe o aspecto da liberdade claramente ético — é a prática do cuidado de si que tem como intuito o aumento do poder de si sobre seus desejos, colocando em cheque, desta forma, o poder de um sobre os outros. A prática do cuidado de si permite ao indivíduo navegar um percurso ético de ação por dentro das relações de poder, com o objetivo de intensificar a liberdade e a autonomia pessoal. Portanto, a liberdade é concebida como uma prática de si contingente e em curso que não está determinada por uma moral fixa e por leis racionais. Os dois iluminismos Em seu último ensaio “O que são as Luzes?”, Foucault considera a insistência de Kant em um uso livre e público da razão autônoma como uma evasão, uma saída do 119 7 2005 homem do estado de imaturidade e subordinação. Foucault acredita que esta razão autônoma é útil por permitir um ethos crítico sobre a modernidade, mas recusa a “chantagem” do iluminismo — a insistência com que este ethos crítico, no coração do iluminismo, é inscrito em uma moralidade e racionalidade universais. O problema de Kant é que ele abre caminho para uma autonomia individual e reflexão crítica nos limites do sujeito, apenas para reinscrevê-lo no espaço fechado por uma noção transcendental de racionalidade e moralidade que requer obediência absoluta. Para Foucault a herança do iluminismo é extremamente ambígua. Segundo Colin Gordon, para Foucault há dois iluminismos — o iluminismo da certeza racional, identidade absoluta, e do destino, e o iluminismo do questionamento contínuo e da incerteza. Segundo Foucault, esta ambigüidade está refletida no próprio pensamento de Kant sobre o iluminismo. Talvez exista um momento kantiano em Foucault (ou deveríamos dizer um momento foucaultiano em Kant?). Foucault mostra, como Kant pode ser lido de uma forma heterogênea, enfocando o aspecto mais oscilante de seu pensamento — em que somos encorajados a interrogar os limites da modernidade, a refletir criticamente sobre como somos constituídos como sujeitos. Como mostra Foucault, Kant vê o iluminismo (Aufklärung) como uma condição crítica, caracterizada por uma “audácia de saber” e um uso público livre e autônomo da razão. Esta condição crítica é concomitante com uma “vontade de revolução” — com a tentativa de entender a revolução (no caso de Kant a Revolução Francesa) como um evento que permite interrogar as condições da modernidade — “uma ontologia do presente” — e a forma, como sujeitos, que lidamos com isso.27 Foucault sugere que adotemos esta estratégia crítica para refletir sobre os limites do discurso do iluminismo em si e de suas in- 120 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana terdições morais e racionais universais. Deveremos, neste sentido, usar as capacidades críticas do iluminismo contra ele mesmo, abrindo caminho, deste modo, para a autonomia individual dentro de seus edifícios, além da compreensão de leis universais. A postura crítica relativa ao presente e a prática do “cuidado de si” com a qual está ligada, esboça uma estratégia genealógica da liberdade — uma estratégia, como afirma Foucault que “não procura tornar possível uma metafísica que finalmente se tornou uma ciência; procura dar novo ímpeto [...] para o trabalho indefinido da liberdade”.28 A teoria da propriedade de si de Stirner É o desejo de dar um novo ímpeto à liberdade, de a tirar do domínio de promessas e sonhos vazios, que se reflete na teoria da propriedade de si de Stirner. Ele adota um caminho “genealógico”, próximo ao de Foucault, trazendo o foco da liberdade de si e situando a liberdade no interior das relações de poder. A idéia de transgredir e reinventar-se — libertando-se de identidades fixas e essenciais — é também o tema central do pensamento de Stirner. Como já vimos, Stirner mostra que a noção de essência humana é uma ficção opressiva derivada de um idealismo cristão invertido, que tiraniza o indivíduo e está ligada a várias formas de dominação política. Stirner descreve um processo de assujeitamento que é muito similar ao de Foucault: mais do que o poder operar com uma repressão depressiva, esta governa o assujeitamento do indivíduo, definindo-o de acordo com uma identidade essencial. Stirner afirma: “o Estado denuncia sua inimizade a mim, exigindo que eu seja um homem... ele impõe ‘ser um homem’ como um dever”.29 A essência humana impõe uma série de morais fixas e 121 7 2005 idéias racionais no indivíduo, que não são parte de sua criação e que reduz a sua autonomia. E é precisamente esta noção de dever, de obrigação moral — o mesmo sentido de dever que está na base dos imperativos categóricos — que Stirner considera opressiva. Para Stirner, o indivíduo deve se livrar — destas idéias opressivas e obrigações livrando-se, em primeiro lugar, da essência — da identidade essencial que lhe é imposta. A liberdade envolve, portanto, a transgressão da essência, a transgressão de si. Mas como deve ser esta transgressão? Como Foucault, Stirner desconfia da linguagem de libertação e da revolução — baseadas na noção de um ser essencial que supostamente joga fora as correntes da repressão externa. Para Stirner, é precisamente esta noção de essência humana que é opressiva. Além disso, busca diferentes estratégias de liberdade — que abandonam o projeto humanista de libertação e procuram reconfigurar o sujeito em caminhos novos e não-essencialistas. Para este fim, Stirner convida a uma insurreição: “Revolução e insurreição não devem ser vistas como sinônimos. A primeira consiste na derrubada das condições, das condições estabelecidas ou posições, do estado ou da sociedade, um ato político ou social; a outra tem de fato, por suas conseqüências inevitáveis, uma transformação das circunstâncias, começa pelo descontentamento dos homens consigo mesmos, não é um levante armado, mas um levante dos indivíduos, um levante sem se incomodar com as implicações daí decorrentes. A revolução pretendia novas disposições; a insurreição nos leva a não mais deixarmo-nos ser arranjados, mas nos arranjar sem acalentar uma esperança nas “instituições”. Não é uma luta contra o estabelecido, pois se este prospera ele se arruína a si mesmo, é apenas um trabalho além de mim e do estabelecido”.30 122 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana Enquanto a revolução pretende que a essência humana prospere, a partir da transformação das condições sociais e políticas existentes, uma insurreição procura libertar o indivíduo da essência. Como a prática de liberdade em Foucault, a insurreição procura transformar a relação que o indivíduo tem consigo. A insurreição começa, portanto, com a recusa do indivíduo em fazer cumprir sua identidade essencial: começa, segundo Stirner, com o descontentamento dos homens com eles mesmos. A insurreição não tem como objetivo destruir instituições políticas. Ela procura, de certo modo, transgredir no indivíduo sua própria identidade — o resultado, contudo, é uma mudança na ordem política. A insurreição, portanto, não é o tornar-se — humano, homem — mas tornar-se o que não é. Este ethos de escapar das identidades essenciais por meio da reinvenção de si, tem muitos paralelos importantes com a estetização de si baudelairiana, que interessa a Foucault. Como na afirmação de Baudelaire em que o sujeito deve ser tratado como uma obra de arte, Stirner vê o sujeito — ou o eu — como “um nada criativo”, um vazio radical que cabe somente ao indivíduo definir: “eu não me pressuponho, pois estou a cada momento posicionando ou criando a mim mesmo”.31 O sujeito, para Stirner, está em processo, um fluxo contínuo de auto-criação — este é um processo que se esquiva da imposição de identidades fixas e essências: “nenhum conceito me expressa, nada designado como minha essência me exaure”.32 A estratégia insurrecional de Stirner e o projeto do cuidado de si de Foucault são ambas práticas contingentes de liberdade, que envolvem a reconfiguração do sujeito e sua relação consigo. Para Stirner, assim como em Foucault, a liberdade é um projeto indefinido e sem uma finalidade na qual o indivíduo se empenha. A insurreição, como afir- 123 7 2005 ma Stirner, não confia em instituições políticas para subsidiar a liberdade do indivíduo, mas procura, que o indivíduo invente suas próprias formas de liberdade. É uma tentativa de construir espaços de autonomia dentro das relações de poder, limitando o poder que é exercido sobre o indivíduo pelos outros, e aumentando o poder que o indivíduo exerce sobre si mesmo. O indivíduo, além disso, é livre para reinventar-se de formas novas e imprevisíveis escapando dos limites impostos pela essência humana e as noções universais de moralidade. A noção de insurreição envolve uma reformulação do conceito de liberdade de maneira radicalmente pós-kantiana. Stirner sugere, por exemplo, que não pode haver nenhuma idéia universal de liberdade; a liberdade é sempre uma liberdade particular disfarçada de universal. A liberdade universal que é, para Kant, o domínio de todos os indivíduos racionais, mascararia interesses particulares ocultos. Liberdade, segundo Stirner, é um conceito ambíguo e problemático, um “sonho lindo e encantado” que seduz o indivíduo, mesmo sendo inatingível, e do qual o indivíduo deve acordar. Além disso, liberdade é um conceito limitado. Só é vista em seu sentido mais estreito e negativo. Stirner quer, ao contrário, ampliar este conceito para o de uma liberdade mais positiva. Liberdade em seu sentido negativo envolve apenas uma auto-renúncia — pra livrar-se de algo, para negar a si mesmo. Segundo Stirner, quanto mais ostensivamente livre o indivíduo se torna, de acordo com os ideais emancipadores do humanismo iluminista, mais ele perde o poder que exerce sobre si mesmo. De outro lado, a liberdade positiva — ou da propriedade de si — é uma forma de liberdade criada pelo indivíduo para ele mesmo. Diferente da liberdade kantiana, a propriedade de si não é garantida por ideais universais ou imperativos categóricos. Se assim fosse, isto só poderia resultar em 124 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana mais dominação: “um homem que é colocado em liberdade, não é nada além de um homem libertado [...] ele é um homem não-livre travestido com liberdade, como o asno na pele do leão”.33 A liberdade deve antes ser apoderada pelo indivíduo. Para que a liberdade tenha algum valor ela deve estar baseada no poder do indivíduo para criá-la. “Minha liberdade só se torna completa somente quando é a minha própria força; mas a partir disso eu deixo de ser meramente um homem livre e me torno e sou este homem”.34 Stirner foi um dos primeiros a reconhecer que a verdadeira base da liberdade é o poder. Ver a liberdade como uma universal ausência do poder é mascarar sua base principal no poder. A teoria da propriedade de si é o reconhecimento, e de fato a afirmação, da relação inevitável entre poder e liberdade. A propriedade de si é a realização do poder do indivíduo sobre si mesmo — a habilidade de criar suas próprias formas de liberdade, que não estão circunscritas pela metafísica ou categorias essencialistas. Neste sentido, a propriedade de si é uma forma de liberdade que vai além do imperativo categórico. Está baseada na noção de si como um contingente e um campo aberto de possibilidades, e não numa adesão absoluta e submissa às máximas morais externas. Conclusão Esta noção de propriedade de si é crucial na formulação de um conceito de liberdade pós-kantiano. Talvez, nas palavras de Stirner, “a propriedade de si cria uma nova liberdade”.35 Primeiro, a propriedade de si permite que a liberdade seja considerada além dos limites da moral universal e das categorias racionais. A propriedade de si é a forma de liberdade que o sujeito inventa para si mesmo, ao contrário daquela garantida por ideais transcendentais. 125 7 2005 Foucault, também, procurou “libertar” a liberdade destes limites opressivos. Em segundo lugar, a propriedade de si aproxima-se do argumento de Foucault sobre a liberdade situada nas relações de poder. Foucault, assim como Stirner, mostra como é ilusória a noção de liberdade como algo que possa acarretar uma abstenção total do poder e da coação. O indivíduo está sempre envolvido em uma rede complexa de relações de poder, e a liberdade deve ser batalhada, reinventada, e renegociada dentro destes limites. A propriedade de si deve ser vista, portanto, como criadora de possibilidades e resistências ao poder. Próximo a Foucault, Stirner defende que a liberdade e a resistência podem existir sempre, mesmo nas mais opressivas condições. Neste sentido, a propriedade de si é um projeto de liberdade e resistência dentro dos limites do poder — é o reconhecimento da natureza fundamentalmente antagônica e ambígua da liberdade. Em terceiro lugar, a propriedade de si não é somente uma tentativa para limitar a dominação do indivíduo, mas também um modo de intensificar o poder que o sujeito exerce sobre si. Para Stirner e Foucault, a liberdade universal em Kant está baseada numa moral absoluta e em normas racionais que limitam a soberania do indivíduo. Foucault e Stirner estão interessados, de formas diferentes, em reformular o conceito de liberdade: por meio da prática ética do cuidado de si e por meio da estratégia da propriedade de si, que pretendem aumentar o poder que o indivíduo tem sobre si mesmo. Estas duas estratégias nos permitem conceituar a liberdade de uma forma mais contemporânea. A liberdade não pode mais ser vista como uma emancipação universal, a promessa eterna de um mundo além dos limites do poder. A liberdade que forma a base do imperativo categórico, a liberdade exaltada por Kant como a providência da razão e da moralidade, não pode mais servir como base para as noções contemporâneas de liberdade. Tanto Stir126 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana ner quanto Foucault mostraram que ela exclui e oprimi onde inclui, e escraviza onde também liberta. A liberdade deve ser vista não mais como subserviente às máximas absolutas de moralidade e racionalidade, aos imperativos que invocam a fria, a sombria inevitabilidade da lei e da punição. Para Stirner e Foucault, a liberdade deve ser “liberada” destas noções absolutas. Antes de ser um privilégio garantido ao indivíduo por um ponto metafísico, a liberdade deve ser vista como uma prática, uma crítica do ethos e do eu, e uma batalha que é assumida pelo indivíduo dentro da problemática do poder. Isso abrange necessariamente uma reflexão sobre os limites de si e das condições ontológicas do presente — uma problematização e reinvenção constante da subjetividade. Uma liberdade póskantiana, neste sentido, não é apenas um reconhecimento do poder, mas uma reflexão sobre os limites do poder — uma afirmação das possibilidades da autonomia individual dentro do poder e das capacidades críticas da subjetividade moderna. Tradução do inglês por Anamaria Salles e Eliane Knorr de Carvalho. Notas ver Andrew Koch. “Max Stirner: The Last Hegelian or the First Poststructuralist.” Anarchist Studies 5 (1997): 95-107. 1 O termo alemão Eigenheit foi traduzido para a língua inglesa como Owness, porém tal termo é inexistente no vocabulário inglês. Nesta tradução Eigenheit será referido como “Propriedade de Si”, forma que consideramos mais adequada, lembrando que o conhecido livro de Max Stirner chama-se Einzige und Sein Eigentum (O único e a sua propriedade). (N.T.). 2 Esta rejeição de fundamentos antropológicos da liberdade é discutida também por Rajchman. Na realidade Rajchman vê o projeto de liberdade de Foucault como uma atitude ética de um questionamento contínuo das margens e limites de nossa experiência contemporânea — uma liberdade da filosofia 3 127 7 2005 assim como uma filosofia da liberdade. Minha discussão sobre a re-configuração da problemática da liberdade em Foucault em termos de estratégias éticas concretas de si, também pode ser vista neste contexto. 4 Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Tradução de Thomas Kingsmill Abbot. London, Longmans, 1963, p. 38. 5 Idem. 6 Ibidem. 7 Ibidem. Ver Lacan. Neste ensaio, Lacan mostra que a lei produz suas próprias transgressões, e que esta só pode operar por meio de suas transgressões. O excesso de Sade não contradiz os mandatos, leis, e imperativos categóricos de Kant; antes, eles estão inexoravelmente ligados a estes. Como a discussão de Foucault sobre as “espirais” do poder e prazer, na qual o poder produz o próprio prazer que este deve reprimir, Lacan sugere que a negação do gozo — incorporado na lei, no imperativo categórico — produz sua própria forma de satisfação perversa, ou um gozo a mais — le plus de jouir. Sade, segundo Lacan, expõe este prazer obsceno revertendo o paradigma: ele torna este perverso prazer como uma lei, uma espécie de imperativo categórico kantiano ou princípio universal: “Deixe-nos enunciar a máxima: ‘Eu tenho o direito de prazer sobre o seu corpo, qualquer um pode me dizer, e eu exercerei este direito, sem nenhum limite que me intercepte a satisfação da exatidão dos caprichos’”. Desta forma o prazer obsceno da lei que está desmascarado em Kant é revertido na lei do prazer obsceno por Sade. Como Zizek aponta, em “Kant com (ou contra) Sade”, o “insight” crucial do argumento de Lacan aqui não é que Kant é um “sadista em segredo”, mas ao contrário, que Sade é um “kantiano em segredo”. O excesso em Sade é levado a tal extremo que se torna esvaziado de prazer, e toma a forma de um sangue frio, triste lei universal. 8 Michel Foucault. Intellectual and Power: a conversation between Michel Foucault and Gilles Deleuze. Foucault, Language, pp. 204-217. 9 Max Stirner. The Ego and Its Own. Tradução de David Leopold. Cambridge and London, University of Cambridge Press, 1995, p. 158. 10 11 Idem. 12 Ibidem. Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Tradução de Alan Sheridan. London, Penguin, 1977, pp. 195-228. 13 14 Max Stirner, op. cit., p. 312. 15 Idem., p. 213. 128 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana 16 Ibidem. nota 17: Michel Foucault. “Revolutionary Action: ‘Until Now.’” in Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ed. Donald Bouchard. Oxford: Blackwell, 1977, p. 221. 17 Michel Foucault. “The Subject and Power.” Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. By Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow. Chicago, University of Chicago Press, 1982, pp. 208-226. 18 19 Idem, p. 221. 20 Michel Foucault, op. cit., 1977, p. 30. Michel Foucault. “What is Enlightenment?” The Foucault Reader. Ed. Paul Rabinow. New York, Pantheon, 1984, p. 42. 21 Idem, pp. 41-42. Michel Foucault, op. cit., 1982, p. 216. 24 Ethics: Subjectivity and Truth. Essential Works of Michel Foucault, 19541984. Ed. Paul Rabinow. Trad. Robert J. Hurley. Vol. 1. London, Penguin, 1997. p. 288. 25 Idem., 1997, p. 284. 22 23 Michel Foucault. The Use of Pleasure: The History of Sexuality, Volume 2. Tradução de Robert Hurley. New York, Pantheon, 1985, pp. 29-30. 26 27 Michel Foucault. Kant on Enlightenment and Revolution. Tradução de Colin Gordon. Economy and Society 15.1, 1986, pp. 88-96. 28 Michel Foucault, op. cit. 1984, p. 46. 29 Max Stirner. op. cit., p. 161. 30 Idem, pp. 279-180. 31 Ibidem, p. 135. 32 Idem, p. 324. 33 Ibidem, p. 152. 34 Idem, p. 151. 35 Ibidem, p. 147. 129 7 2005 RESUMO A filosofia universalista de Kant é problematizada por meio das intensas aproximações entre as reflexões de Max Stirner e Michel Foucault, as noções de propriedade de si e cuidado de si, e os desdobramentos políticos de resistências disseminando éticas de liberação. A atualidade de Stirner e Foucault ao liberarem a liberdade da moral. Palavras-chave: Propriedade de si, cuidado de si, liberação. ABSTRACT The universalist philosophy of Kant is questioned when faced with the reflections by Max Stirner and Michel Foucault, the concepts of property of the self and care of the self, and the political unfold of resistances that spreads ethics of liberation. The verve of Stirner and Foucault when they free liberty from moral. Keywords: Property of the self, care of the self, liberation. Indicado para publicação em 1 de março de 2004. 130 verve as vozes ardem contra a mente esta noite e lá fora a chuva é o silêncio de todas as coisas Sergio Cohn 131 7 2005 mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade na revolução espanhola margareth rago* Que el pasado se hunda en la nada! Qué nos importa del ayer? Queremos escribir de nuevo la palabra MUJER! Hino das Mujeres Libres, de Lucía Sanchez Saornil, 1937. Não é novidade dizer que as experiências femininas na Revolução Espanhola, entre 1936 e 1939, foram obscurecidas por narrativas que não valorizam a dimensão do gênero. Na tradição histórica que se constituiu em nosso país, por exemplo, os estudos sobre esse importante movimento revolucionário foram marcados por um olhar que não só privilegiou a atuação dos homens, como deu maior visibilidade às lutas antifascistas, focalizando, na maior parte das vezes, grupos comunistas e trotskistas em luta * Professora no Departamento de História da Unicamp. verve, 7: 132-152, 2005 132 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... contra os franquistas, apesar do reconhecimento da participação de outros setores políticos importantes, como os anarquistas. Daí a grande desinformação a respeito das criações revolucionárias, nesse movimento político e social, tanto quanto sobre a atuação das mulheres. Como observa Shirley Mangini, saindo dos marcos nacionais: “Dos milhares de artigos e livros sobre a Guerra Civil espanhola, poucos contêm informações sobre o papel das mulheres na guerra e no período seguinte, exceto algumas descrições ou simples referências em notas de rodapé. E, no entanto, (...) a oportunidade mais revolucionária para a emergência das mulheres na cena intelectual e política ocorreu nesse momento.”1 Para muitos e muitas, portanto, a Revolução Espanhola constitui um marco histórico fundamental, pelas rupturas profundas que promoveu na ordem social burguesa e pelas possibilidades de invenção da liberdade que revelou ao mundo capitalista, especialmente com suas experiências autogestionárias nas cidades e nos campos. Muitos militantes libertários, entre mulheres e homens, ainda hoje, indignam-se com esse esquecimento, pois compartilham o sentimento de terem participado de uma “genuína revolução popular, como dificilmente se repetirá na História”, como afirmou um deles, em entrevista recente.2 Afinal, os anarquistas tinham construído toda uma história de resistências e lutas, formado gerações no mundo do trabalho com seus ateneus, bibliotecas, escolas modernas, centros culturais e grupos artísticos, e já tinham 70 anos, quando surge o Partido Comunista Espanhol. “Para os anarquistas tudo se referia à Espanha de 1936, 1939, tudo era exemplificado com a Espanha. Só que havia uma diferença. Entre os anarquistas, muitos participaram da Guerra Civil na Espanha, realmente ...” observa, em suas lembranças, Maurício Tragtenberg.3 133 7 2005 Evoco, ainda, a memória de duas militantes libertárias, profundamente, comprometidas com a preservação histórica dessas lutas: a espanhola Federica Montseny e a escritora italiana Luce Fabbri. A primeira, protagonista dos eventos revolucionários da Espanha, foi nomeada ministra da Saúde e da Assistência Social, no gabinete de Francisco Largo Caballero, em novembro de 1936; como tal, propôs implementar uma ampla reforma na saúde, descentralizando o atendimento médico, reorganizando os hospitais, legalizando o aborto, criando casas para abrigar as mulheres carentes.4 A segunda, radicada no Uruguai, acompanhou entusiasticamente cada minuto da Revolução, mobilizando diversos tipos de apoio e solidarização em seu meio; produziu, além de vários artigos políticos para os jornais libertários, uma coletânea intitulada 19 de Julio, com o pseudônimo de Luz D. Alba, em que reúne depoimentos e outros documentos de vários combatentes, testemunhando as criações coletivas da Revolução, a coletivização das fábricas e dos campos, a reforma pedagógica, assim como as perseguições e as mortes ocorridas no processo político revolucionário.5 A primeira registra o evento em sua autobiografia e reivindica sua reatualização no presente: “As semanas vividas em Madri naquele período, aqueles meses de novembro e dezembro de 1936 permanecem em minha memória como os mais extraordinários de minha vida. Ver todo um povo espontaneamente mobilizado, trabalhando febrilmente para organizar sua defesa não é um fato histórico que se veja todos os dias”, afirma em Mis primeros cuarenta años.6 Do mesmo modo, Luce Fabbri se refere à Revolução Espanhola como o acontecimento mais marcante de seu passado: “Foram três anos em que vivemos 134 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... mais na Espanha do que aqui, com o coração; na realidade, tudo o mais havia desaparecido...”.7 Não são apenas as histórias da desapropriação das extensas propriedades de terra e da autogestão efetivada por milhares de pessoas nas fábricas e nos campos, que mal conhecemos. Muitas experiências sociais e culturais, como as promovidas pela Agremiação anarco-feminista “Mujeres Libres”, fundada por três ativistas libertárias, também foram silenciadas por várias décadas e, na verdade, vieram à tona, em grande parte, pela ação de suas próprias antigas militantes, desde o final do franquismo, em 1975.8 Em linhas gerais, a história desse grupo anarco-feminista começa em abril de 1936, às vésperas da eclosão da guerra civil, quando três combativas anarquistas, a jornalista e poetisa Lucía Sanchez Saornil, a advogada Mercedes Comaposada e a médica Amparo Poch y Gascón se unem para criar o grupo “Mujeres Libres”, dedicado à luta pela emancipação feminina no mundo do trabalho. Lucía Sanchez Saornil, nascida em Madri, em 1895, trabalhara na Companhia Telefônica de Barcelona e durante uma série de greves de que participa, adere à CNT – Confederação Nacional do Trabalho, de orientação anarquista. A partir daí, radicaliza sua participação, escrevendo nos periódicos libertários Solidaridad Obrera e Tierra y Libertad. Em fins de 1935, anuncia seu projeto de criação de uma agremiação política dedicada à causa das mulheres. Mercedes Comaposada, filha de um ativo sapateiro anarquista, nasce em Barcelona, em 1901, e aprende desde cedo a montar películas; mais tarde, ao participar da CNT – Confederação Nacional do Trabalho, encontra o escultor Balthasar Lobo, a quem se une. Enquanto advogada, desgostosa com o comportamento dos trabalhadores num curso que oferecia em 135 7 2005 um dos sindicatos da CNT, em 1933, encontra Lucía, com quem logo passa a discutir a questão feminina no anarquismo. Amparo Poch y Gascón, nascida em Saragoça, em 1902, torna-se médica pediatra e também assina como a Dra. Salud Alegre. Assim como as outras duas, defende a liberdade sexual, a maternidade consciente e o aborto.9 As três libertárias já traziam uma bagagem política expressiva, como militantes de esquerda, tanto quanto ideais feministas, sobre os quais escreviam nos jornais Tierra y Libertad e Solidaridad Obrera, ou nas revistas Estudios, Generación Consciente e Umbral. Revoltavamse com as dificuldades e com a opressão sexual enfrentadas pelas mulheres pobres, mesmo no meio libertário, mais oxigenado, em que eram solicitadas e incentivadas a participar no espaço público. Desde o último quarto do século XIX, os anarquistas haviam conseguido forte penetração social, fundando sindicatos, criando ateneus libertários, promovendo inúmeras atividades culturais por toda a Espanha. Apesar de suas críticas contundentes às instituições sociais, como a Igreja e a família, apesar dos ataques ao casamento, às desigualdades sexuais, à educação coercitiva para as crianças, na prática, a situação feminina continuava fortemente opressiva e poucas melhoras haviam sido feitas. Portanto, quando o pequeno grupo se constitui, não demora a encontrar-se com outras companheiras, que também começavam a atuar em Barcelona, na “Agrupación Cultural Feminina”, formada por anarquistas como Pilar Grangel, professora racionalista e militante da CNT e Áurea Cuadrado. Rapidamente, novos grupos locais são criados por toda a Espanha e inúmeras mulheres aderem à organização. Muitas são operárias analfabetas; outras autodidatas, como Lola Iturbe, ou formaram-se nos ateneus libertários. Espanholas, na grande 136 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... maioria. A anarquista Etta Federn, por sua vez, vinha da Alemanha e também opta por unir-se ao grupo. Mudar as condições de existência das mulheres pobres da Espanha, capacitando-as para o trabalho e para a vida pública, retirando-as do confinamento doméstico e do obscurantismo religioso, proporcionando-lhes meios práticos para a participação na vida social, política e cultural foi uma preocupação constante nas propostas e realizações do Grupo. Assim, além do “Instituto Mujeres Libres” e das centenas de agrupamentos locais espalhados pelo país, elas fundam o “Casal de la Dona Traballadora”, no Paseo de Gracia, em Barcelona, espaço cultural destinado aos cursos, palestras e oficinas que realizam para cerca de 600 mulheres. No bairro de Sans, nesta cidade, criam um “Instituto nocturno”, também chamado “Mujeres Libres”. Segundo um anúncio publicado no jornal CNT, de 1937, ficamos sabendo que ali eram oferecidos cursos de Aritmética, Gramática, História da Literatura, Geografia, História, Contabilidade, Ciências Naturais, Anatomia, Idiomas, Desenho, cursos de Agricultura, Puericultura, Enfermagem, formação de secretárias, mecanografia, taquigrafia, redação e cursos em Propaganda. Além disso, poderiam estudar mecânica na escola de transporte, entre outros ofícios que não eram tradicionalmente oferecidos às mulheres, mesmo que estas já ocupassem um largo espaço no mercado de trabalho industrial. Contudo, mais do que isso, a mudança que essas militantes visavam enquanto anarco-feministas apontava para a criação de novos estilos de vida, fundados em uma ética capaz de propor novas formas de sociabilidade e de produzir subjetividades mais libertárias.10 A questão da produção da subjetividade se colocou enfaticamente, sobretudo nesse contexto revolucionário, em que as/os anarquistas lutaram não apenas para 137 7 2005 destruir o poder político concentrado no Estado e fortalecido pela ajuda material de outros países, mas também investiram fortemente para transformar radicalmente a vida econômica, as relações sociais hierárquicas e desiguais e garantir as manifestações culturais populares. De fato, a população mobilizada, ao lado dos libertários, transformou a luta antifascista numa revolução social, como observam vários historiadores11 — e esquecem outros — tratando de criar organismos econômicos autogestionários e de incentivar formas solidárias de sociabilidade por toda a parte. Em se tratando da experiência do “Grupo Mujeres Libres”, as questões sociais se aliaram às lutas pela libertação feminina e, nesse sentido, elas procuraram promover novos modos de constituição de si, capazes de subverter os códigos burgueses de definição das mulheres como esposas, mães, exclusivas do lar, ou como seu avesso. Mas não de uma maneira apenas negativa, isto é, como formas de reação ao poder, já que essas lutadoras implementaram muitas iniciativas pioneiras, como a criação de cursos de capacitação das operárias, nos quais desejavam “despertar a consciência feminina para as idéias libertárias”, como afirmavam; cursos de alfabetização e profissionalizantes, visando criar novas formas de inserção social para as mulheres pobres; centros de assistência médica e de educação sexual; creches; liberatórios de la prostitución, isto é, casas destinadas às que desejassem sair da prostituição e também “para que as prostitutas pudessem ter tratamento médico e orientação para melhorar suas vidas”, como afirmava Pura Perez12, além de espaços, como os da revista que leva o nome do Grupo, em que puderam refletir sobre si mesmas e criar toda uma cultura feminista entre as militantes e simpatizantes do anarquismo. 138 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... A revista, da qual existem apenas 13 números, era escrita, feita e subvencionada só por mulheres, pois “sabemos por experiência que os homens, por muito boa vontade que tenham, dificilmente atinam com o tom preciso”13. Abordava temas variados relativos ao universo feminino, como maternidade consciente, prostituição, puericultura e infância, moda, ginástica, e discutia a constituição de uma nova moral sexual. Revelando uma preocupação estética, para além de ética, a revista divulgava as realizações do grupo, propagava as idéias libertárias, chamava as trabalhadoras para a reflexão e militância anarco-feminista. Vale notar que as possibilidades criadas de outras formas de produção da subjetividade não se efetivaram num marco individualista, como se poderia supor, e aqui recorro às conceitualizações de Foucault, pois visavam a uma intensificação das relações consigo mesmas, mas não no sentido corrente de uma valorização da vida privada em detrimento da esfera pública, nem no de uma acentuação do valor do indivíduo sobreposto em relação ao grupo.14 Longe de estimular o apego à esfera privada como refúgio em relação ao mundo competitivo dos negócios e da política, como defendia a ideologia da domesticidade contra a qual, aliás, elas se batiam, essa “cultura de si” do anarco-feminismo, se assim podemos chamar, passava pelo estabelecimento de novas relações consigo, mas também com o outro, relações solidárias, de amizade, de companheirismo político, anti-hierárquicas, num meio bastante sofrido como o operário. Visava, portanto, fortalecer as redes da militância política tanto entre elas mesmas, como com os companheiros ligados a outras entidades, sobretudo nesse momento de intensa movimentação revolucionária em que um novo mundo parecia totalmente possível. 139 7 2005 Essa questão não passou desapercebida para algumas historiadoras, como a norte-americana Temma Kaplan, que registra a preocupação dessas ativistas libertárias com as dimensões psico-sociais, em geral ignoradas pelos homens. Evidenciadas em investimentos para “ensinar as mulheres a agir politicamente, a assumir posições de liderança e a desenvolver novas imagens de si como povo potencialmente autônomo (...).”15 Segundo ela, esses temas escapavam aos militantes do sexo masculino, que, como outros revolucionários, acreditavam firmemente que o sucesso da Revolução em termos econômicos e sociais levaria necessariamente ao fim da opressão sexual e da desigualdade de gênero. O que significa que muitas mulheres continuavam a enfrentar imensas dificuldades tanto diante da tirania dos pais, maridos e irmãos, quanto pela proliferação da prole, ou pelas situações de abandono, já que eram pobres e sem dote. Contudo, há que se relativizar essas afirmações, pois mais do que em qualquer outro país, a cultura anarquista espanhola contou com a adesão de médicos e psiquiatras libertários, que lutaram pela transformação da moral sexual conservadora e preconceituosa, tanto ideologicamente, através de livros, folhetos e artigos publicados na imprensa anarquista, quanto por iniciativas práticas. A revista Estudios, por exemplo, possuía uma seção intitulada “Consultório Psico-sexual”, em que o Dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Psicologia Sexual e em Sexologia, respondia às cartas dos trabalhadores, procurando apresentar soluções para seus problemas sexuais e sentimentais, ou prestar esclarecimentos sobre distúrbios físicos e psicológicos.16 O Dr. Isaac Puente, assassinado em 1936, pelos franquistas, publicava nas revistas Generación Consciente, La Revista Blanca, Umbral e nos jornais Solidaridad Obrera, CNT, Tierra 140 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... y Libertad, entre outros, divulgando suas concepções filosóficas e sociais libertárias. O próprio nome escolhido pelo Grupo para se identificar e ser identificado é surpreendente e revelador: “Mujeres Libres” demarca com ousadia um espaço próprio, já que assumido no contexto de uma Espanha católica, machista e ultraconservadora, em que a liberdade feminina era associada à degeneração moral pelo discurso religioso e pelo científico. Enquanto a Igreja abençoava as mulheres puras e santificadas, associadas à imagem de Santa Maria, os médicos burgueses, influenciados pelas teorias lombrosianas da degenerescência, afirmavam cientificamente que elas haviam nascido para a maternidade e para o lar. No rol das transgressoras, alinhavam-se prostitutas, lésbicas, feministas, anarquistas e socialistas. Esse pensamento predominava no mundo ocidental naquele período, e vale lembrar que até os anos 1970, não apenas no Brasil, o termo mulher pública era sinônimo de prostituta. Nos inícios do século XX, não era raro que costureiras, floristas, chapeleiras, trabalhadoras das fábricas de tecido e artistas fossem percebidas como prostitutas, não apenas na Espanha. Portanto, as palavras de Lucía, refletindo a respeito do nome dado ao grupo são esclarecedoras: “Pretendíamos dar ao substantivo ‘mulheres’ todo um conteúdo que reiteradamente se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo ‘livres’, além de nos definirmos como totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito — mulher livre — que até o momento havia sido preenchido com interpretações equívocas, que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem incompatíveis”. 141 7 2005 Mulher e direito à liberdade são associados em seu discurso contestador. O feminismo que defendiam, contudo, difere muito do feminismo liberal vigente então. Na tentativa de diferenciarem-se das liberais, que lutavam pelo direito do voto, pelo acesso à esfera pública, deixando inquestionados os códigos da feminilidade da época, as “Mujeres Libres” chegaram, às vezes, a declararem-se nãofeministas, ambigüidade que se expressa nos próprios artigos publicados em sua revista. Assim, se de um lado, a própria revista Mujeres Libres afirmava desejar “reforçar a ação social da mulher, dando-lhe uma nova visão das coisas, evitando que sua sensibilidade e seu cérebro se contaminem com os erros masculinos. E entendemos por erros masculinos todos os conceitos atuais de relação e convivência (...)” (no.1, maio de 1936); de outro, criticava o feminismo que, segundo elas, havia levado as mulheres à guerra, “feminismo que buscava sua expressão fora do feminino, tratando de assimilar virtudes e valores estranhos (...)”. Propunham, portanto, um outro feminismo, como diziam claramente: “é outro feminismo, mais substantivo, de dentro para fora, expressão de um modo, de uma natureza, de um complexo diverso frente ao complexo, à expressão e à natureza masculinos. Está claro que elas defendiam uma afirmação das mulheres e, por isso mesmo, recusavam a publicação de quaisquer artigos escritos por homens, na revista, reservando e preservando o espaço feminino que construíam e queriam fazer expandir. Como observam: “[a revista] quer (...) fazer ouvir uma voz sincera, firme e desinteressada: da mulher, porém uma voz própria, a sua, a que nasce de sua natureza íntima (...)” Ao mesmo tempo, se de um lado o discurso do Grupo aparece muitas vezes como essencialista, ao invocar uma natureza feminina diferenciada da masculina e, por isso mesmo, capaz de trazer novas formas para modelar a vida 142 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... social e cultural, de outro, destaca-se por sua crítica ao modelo hegemônico de feminilidade, como aparece em vários números dessa publicação. Assim, enquanto defendiam a igualdade de direitos entre mulheres e homens, também questionavam a maternidade como função essencial da mulher: “que a mulher cuja vocação não for doméstica e sua ampla realização, a maternidade, tenha as mesmas facilidades que o homem para buscar e obter outras oportunidades que lhe permitam conseguir sua liberação econômica” (n.5) Aliás, num artigo de Lucía Sanchez Saornil, que não quis ser mãe, no qual critica certas organizações feministas, a maternidade aparece identificada negativamente pela metáfora animal. Diz ela: “(...) recolhendo ao sentido tradicional da feminilidade, (aquelas organizações) pretendiam que a emancipação feminina só estivesse no fortalecimento daquele sentido tradicionalista que centrava toda a vida e todo o direito da mulher em torno da maternidade, elevando esta função animal até sublimações incompreensíveis. Nenhuma nos satisfez”.17 Segundo o depoimento de Sara Berenguer, dado muitas décadas depois, “Mujeres Libres” foi um grupo atuante dedicado à luta pela autonomia feminina, mas não tendo em vista excluir a outra parte, os homens. Segundo ela, — que se uniu a um companheiro e teve vários filhos e netos —, como um grupo revolucionário, este lutou pela emancipação dos dois sexos. Ao comparar o “Mujeres Libres” aos grupos feministas norte-americanos da atualidade, delimita claramente as diferenças: “Este não é o caso dos grupos feministas na América do Norte e em outras partes do mundo, os quais tendem a dispersar sua energia e seu tempo discutindo e escrevendo acerca da teoria da opressão da “pobre mulher” pelo “homem malvado”, mantendo-se deste modo demasiado ocupadas para ajudar às mulheres pertencentes às classes 143 7 2005 sociais com mais desvantagens e menos oportunidades, como são as minorias, as pessoas pobres e as mulheres da classe operária, que necessitam de ajuda prática, educação e informação.”18 As concepções de gênero que orientavam as práticas e as representações que essas ativistas construíram de si mesmas e em relação ao outro foram bastante subversivas e radicais. Longe dos ideais de feminilidade e de masculinidade que vigoravam na Espanha dos anos trinta, o Grupo “Mujeres Libres” defendia o fim das hierarquias sexuais e sociais, o amor livre, a maternidade consciente, o direito ao aborto, além dos direitos de acesso à cultura, ao trabalho e à educação. Se não se pode generalizar essas concepções para todas as mulheres que se envolveram com o Grupo, ao examinar a biografia das três fundadoras, observa-se que apenas Mercedes teve um companheiro fixo, o escultor Balthazar Lobo e desenhista da Revista. Lucía viveu com sua amiga América Barroso a vida toda, enquanto a dra. Amparo, que defendia claramente o amor livre, não se fixou com nenhum homem. Nenhuma teve filhos. Os discursos e as práticas do Grupo soam, hoje, com uma impressionante atualidade e parecem bem mais próximos das questões formuladas pelo feminismo contemporâneo do que os de suas precursoras institucionalmente reconhecidas, ou seja, as antigas feministas liberais. Num debate relativamente recente, questionando as políticas afirmativas da identidade, Elizabeth Grosz sustenta que o feminismo precisa reconceitualizar o que entende por subjetividade, discordando que se trata de libertar as mulheres, pois reconhecer identidades seria defender uma política servil. Segundo ela: 144 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... “O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.”19 Outra conhecida feminista, Rosi Braidotti, afirma que “figurações de subjetividade nômade, complexas e mutantes estão aqui para ficar, e propõe abandonar o lar, porque o lar é frequentemente local de sexismo e racismo — um local que nós precisamos retrabalhar política, construtiva e coletivamente.”20 E´ possível sugerir que essa discussão se encontra em parte com as posições que, nos anos trinta, formula Amparo Poch y Gascón, em seu Elogio del amor libre, consciente dos efeitos nocivos e paralisantes da vida doméstica e do modelo romântico de feminilidade: “I. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amável para me guarnecer da chuva e um leito para que descanses e me fales de amor. Mas não tenho Casa. Não quero! Não quero a insaciável ventosa que alinha o Pensamento, absorve a Vontade, mata a Imaginação, rompe a doce linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa.Quero amar no largo ‘além’ que nenhum muro fecha e nenhum egoísmo limita. (...) Eu não tenho Casa, que tira de ti como uma incomprensiva e implacável garra; nem o Direito, que te limi- 145 7 2005 ta e te nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores e horizonte, onde o sol se põe quando tu me olhas...”21 Se pensarmos na casa, como símbolo da domesticidade, associado à idealização romântica da mulher como rainha do lar, nascida para a maternidade e para a esfera do mundo privado, ou da privação, como diz Hannah Arendt, o discurso de Amparo soa totalmente radical e transgressivo, aliás, como foi sua própria experiência de vida. Para Mercedes Comaposada, no entanto, “Mujeres Libres” não era uma “entidade feminista, mas um centro de capacitação da mulher em todos os terrenos cultural, econômico, social...”. Enfim, se há várias posições internas em relação à questão feminista, politicamente se colocam contra o sistema capitalista, pela abolição do Estado, pela direção da economia pelos sindicatos, a favor da implantação do “comunismo libertário”. No entanto, o principal alvo do Grupo foi a questão específica da mulher, acreditando-se que a libertação feminina era condição sine qua non para a mudança revolucionária da sociedade. Daí, as críticas contundentes aos homens anarquistas, que, segundo Lucía, se consideram “o umbigo do mundo”. Em relação à comunidade de mulheres que criaram, todas se referem, em suas memórias, às fortes relações de solidariedade estabelecidas entre elas. Segundo Conchita Liaño: “absolutamente todas as mulheres integrantes de MM.LL. havíamos feito da solidariedade à mulher da Espanha um valor essencial. Tudo girava ao redor da solidariedade, porque, volto a dizer, não havia líderes. (...) Teria sido possível comparar-nos a uma colméia de abelhas, cada qual em seu lugar desempenhava sua tarefa”.22 146 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... É interessante notar como ela questiona o modo pelo qual as mulheres então criavam seus filhos, dando privilégios especiais aos meninos em relação às meninas. Segundo Liaño: “(para) nós, as fundadoras de MM.LL., era imperativo que as mulheres compreendessem que não era impossível sacudir esse condicionamento atávico e deviam começar a modificar os esquemas a partir de si mesmas e de seu próprio lar, começando por sua descendência filial, não outorgando aos varões privilégios sobre as meninas. Por que deviam as meninas serem empregadas de seus irmãos?” Aliás, depois de um ano de existência, o Grupo consegue realizar a Primeira Conferência Nacional, em Valência, em 22 de agosto de 1937, o que revela seu rápido crescimento. Em seguida, constitui uma “Federação Nacional de Mujeres Libres”, em bases anarquistas. A historiadora Mary Nash indica um total de 153 agrupamentos locais de Mujeres Libres, criados entre 1937 e 1938. Não vinculado oficialmente a nenhum organismo político e defendendo tenazmente a autonomia política, “Mujeres Libres” se declarava anarquista e se dizia identificado com a CNT – Confederação Nacional dos Trabalhadores e FAI – Federação Anarquista Ibérica, também anarquistas. Nem por isso as relações que mantiveram com esses grupos políticos deixaram de ser tensas. “Os militantes das Juventudes Libertárias”, em especial, tiveram muitas restrições ao grupo, visto como separatista, pois temiam sua concorrência na cooptação das jovens militantes femininas. Em suas memórias, uma das participantes do grupo, Conchita Liaño, estranha essa atitude, afirmando que a reação dos anarquistas em não querer reconhe- 147 7 2005 cer politicamente o grupo havia sido muito decepcionante, pois até mesmo os comunistas tinham criado uma organização feminina, a “Mujeres Antifascistas”. No entanto, também admite que isso não os impedia de dar-lhes um importante apoio econômico. Outra ativista, Pepita Cárpena, afirma em suas memórias: “Tampouco entendo o porquê da rejeição de Mujeres Libres, que nunca os companheiros quiseram integrar em seu seio (como fizeram com a F.I.J.L. – Federação Ibérica de Juventudes Libertárias) apesar do apoio de nossa querida Emma Goldman, que intercedeu em nossa causa”. Em seguida, valoriza a fundação da organização: “Quando estive entre as companheiras pude compreender quão bem-fundado foi esse grupo, a visão que tiveram e como entre todas era mais fácil expressarse. Não esqueçamos que ainda pesavam os preconceitos sobre nós. Não é em vão que se recebe uma educação permanente para que de repente caiam todos os tabus.”23 Maria Rodrigues Gil, também militante, estabelece a diferença de seu grupo com outros do mesmo período: “À diferença dos setores femininos dos partidos políticos, Mujeres Libres foi sempre uma organização completamente autônoma da CNT e do movimento anarquista em geral. Também, à diferença dos setores femininos dos partidos ( e de todos os grupos de feministas que eu conheci, em Mujeres Libres, assim como na CNT, não existiu hierarquia de nenhum tipo, sendo uma organização verdadeiramente anarquista e democrática em seu mais puro sentido, sem permitir que a adesão ao poder ao controle frustasse seus esforços para ajudar a mulher e a humanidade em geral”. 24 148 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... Valendo-me de alguns conceitos de Foucault, creio que se pode afirmar que com suas artes da existência, ou técnicas de si e de relação com o outro profundamente renovadas, feministas e libertárias, as práticas do Grupo “Mujeres Libres” se conectam com nossas preocupações atuais e podem, por isso mesmo, constituir-se num importante repertório para nossa atualidade. Vale notar que, num momento em que as portas têm-se aberto para a participação feminina no mundo político, cultural e social e em que o feminismo é considerado, até mesmo por aqueles que pouco se ocuparam com as questões femininas, como a única revolução que deu certo no século XX, também causa polêmica a emergência de subjetividades ambiciosas, autoritárias e até mesmo bélicas, que contrariam as propostas libertárias do feminismo. Afinal, a aposta maior do feminismo na importância de libertação das mulheres, na conquista de seu direito à cidadania vinculava-se à crença de que as mulheres haviam passado por experiências muito diferenciadas das masculinas, o que as aproximava mais dos valores positivos de construção social. Finalmente, se como propõe Gaddis, uma maneira de valorizar a história e de mostrar suas valiosas contribuições decorre de sua capacidade de oferecer mapas, um pouco como os geógrafos, transmitindo experiências do passado, “único banco de dados que possuímos”25, então faz todo sentido ouvir atentamente o que as “Mujeres Libres” têm a nos contar, pelo que podem nos enriquecer e aumentar nossa capacidade de crítica e de invenção ética. Tradução de Elogio del amor libre, por Paula Sibilia. 149 7 2005 Notas 1 Shirley Mangini. Memories of resistance: Female Activists of the Spanish Civil War. Chicago, University of Chicago Press/Signs, 1991, p.171. Refiro-me à entrevista realizada em Barcelona, em agosto de 2001, com o anarquista espanhol Heleno Iturbe, filho da militante anarquista Lola Iturbe, do Grupo “Mujeres Libres”, já falecida. 2 Maurício Tragtenberg. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo, Ed. Unesp/ Escuta/Fapesp, 1999, p. 57 . 3 Patricia Greene. “Federica Montseny: Chronicler of an Anarco-feminist Genealogy” in Letras Peninsulares. USA, Davidson College, fall 1997. 4 Luz D´Alba (pseudônimo de Luce Fabbri). Antologia de la Revolucion Espagnola. Montevidéo, Colección Esfuerzo, 1937. 5 Federica Montseny. Mis Primeros Cuarenta Años. Barcelona, Plaza e Janes Ed. S.A.,1987, p. 107. 6 7 Margareth Rago. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo contemporâneo. São Paulo, Editora da UNESP, 2001, p. 188. É de 1991 o principal estudo sobre as “Mujeres Libres”, escrito pela historiadora norte-americana Martha Ackelsberg, e traduzido para o espanhol apenas em 1999. 8 Recentemente foi publicada uma cuidadosa biografia de Amparo Poch y Gascon por Antonina Rodrigo. 9 10 Edson Passetti. Éticas dos Amigos. São Paulo, Editora Imaginário, 2003. 11 Murray Bookchin. Los anarquistas españoles en los heroicos 1868-1936. Valencia, Numa Ediciones, 2000. Depoimento de Pura Perez, em 1993, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias. Madrid, Fundación Anselmo Lorenzo, 1999, p. 65. 12 13 Carta de Mujeres Libres a Hernandez Domenech, 27 de maio de1936, apud Nash, 1981, p. 86. Michel Foucault. História da sexualidade III. O cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal, 1985, cap.II. 14 Temma Kaplan. “Other scenarios: Women and Spanish Anarchism”. In Renate Bridenthal; Claudia Koonz. Becoming Visible. Women in European History. Atlanta, Houghton Miffling Company, 1977, p. 418. 15 16 Margareth Rago. “ Es que no es digna la satisfacción de los instintos sexuales? Amor, sexo e anarquia na Revolução Espanhola.”, in Carmen L. Soares (org.). Corpo e História. Campinas, Editora Autores Associados, 2001, pp. 145-161. 17 Lucía Sanchez Saornil, CNT, 1937, In Mujeres Libres: luchadoras libertarias. op.cit, p. 41. 150 verve Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade... 18 Idem, p. 101. Elizabeth Grosz. “Futuro feminista ou o futuro do pensamento”, in Labrys, estudos feministas, nos.1-2, jul-dez.2002. 19 20 Rosi Bradotti. “Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade”, in Labrys, estudos feministas, nos.1-2, jul-dez,2002, p. 14. Amparo Poch y Gascón, Mujeres Libres, no.3, julio 1936, in Antonina Rodrigo, op. cit., p. 95-101. 21 “I. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-te de la lluvia y un lecho para que descanses y me hables de amor. Pero no tengo Casa. No quiero! No quiero la insaciable ventosa que ahila el Pensamiento, absorbe la Voluntad, mata el Ensueño, rompe la dulce línea de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar en el anchucroso ‘más allá’ que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. (...) Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e implacable garra; ni el Derecho, que te limita y te niega. Pero tengo, Amado, un carro de flores y horizonte, donde el Sol se pone por rueda cuando tú me miras.” 22 Conchita Liaño Gil, 1994, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias, op. cit. p. 60. 23 Idem, p. 76. 24 Ibidem, p. 102. 25 John Lewis Gaddis. Paisagens da História. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2003, p. 23. 151 7 2005 RESUMO Partindo das questões levantadas pelas teóricas feministas pósestruturalistas, relativas à produção da subjetividade, focalizo a experiência das militantes anarquistas do Grupo Mujeres Libres, durante a Revolução Espanhola, entre 1936-39. Considerando a ampla e revolucionária experiência política do Grupo, pergunto se e como o anarco-feminismo praticado por elas criou um modo específico de existência, mais integrado e humanizado, já que crítico das oposições binárias como a que hierarquiza razão e emoção, masculino e feminino; se e como inventou eticamente; se e como pode operar no sentido de reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Na direção dessas colocações, os conceitos de “subjetivação” e de “artes da existência”, que norteiam as problematizações de Foucault sobre a produção da subjetividade e inspiram as reflexões do feminismo pós-estruturalista são de fundamental importância. Palavras-chave: anarco-feminismo, subjetividade. artes da existência. ABSTRACT Drawing on the issues raised by post-structuralist feminist thinkers, in relation to the production of subjectivity, I concentrate on the experience of anarchist activists from the group Mujeres Libres, during the Spanish Revolution from 1936-39. Considering the wide and revolutionary political experience of the Group, I raise the question of why and how the anarchic feminism developed by them has created a particular way of existence, more integrated and humane, critic of binary oppositions such as the one that hierarchizes reason and emotion, masculine and feminine. I also present the question on if and how anarchic feminism has invented ethically; on if and how can it operate re-updating the political and cultural imaginary of our time. In this way, the concepts of “subjectivation” and “arts of existence”, which direct Foucault’s problematizations on the production of subjectivity and inspire reflections of the post-structuralist feminism, are of utmost importance. Keywords: Anarchic feminism, subjectivity, arts of existence Recebido para publicação em 26 de junho de 2004. 152 verve A educação anarquista na república velha a educação anarquista na república velha eduardo valladares* “Nossa missão é semear o bem, difundir a luz por meio da instrução livre de todos os preconceitos da rotina, criar corações que odeiem a tirania e que desde a infância maldigam todos os exploradores.” Kropotkin Os temas cultura e educação eram, e continuam sendo, de grande importância no projeto de Revolução Social defendido pelos anarquistas. Desde o século XIX, o movimento ácrata internacional vinha se ocupando dessas questões, pensadas fundamentalmente como meios de emancipação. Muitos militantes dedicaram grande parte de suas energias à elaboração de projetos e práticas culturais, dotados de relativa autonomia e caracterizados por uma identidade de classe, por consi* Doutor em História Social pela USP, autor de Anarquismo e anti-clericalismo, São Paulo, Imaginário-Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, v. 12, 2000. Co-autor de Revoluções do século XX, São Paulo, Scipione, 1995. verve, 7: 153-177, 2005 153 7 2005 derá-los possuidores de um valor social indispensável para a construção do mundo novo. A preocupação singular, e até obsessiva, pela educação deve-se ao fato de que a ação pedagógica era vista como um dos instrumentos fundamentais para a efetivação da ação direta. O analfabetismo generalizado entre os trabalhadores dificultava a divulgação das idéias ácratas nas camadas trabalhadoras. Em muitas ocasiões as vanguardas anarquistas responsabilizavam a pouca instrução escolar pela fraca atuação dos trabalhadores no processo das lutas sociais.1 Por isso, a ênfase dada à disseminação da instrução como fundamental para a ampliação do movimento operário. A imprensa libertária brasileira traduzia e publicava artigos de educadores próximos às suas posições ideológicas, noticiava as experiências educacionais de outros países e divulgava as informações que chegavam à redação sobre assuntos culturais. O internacionalismo característico dos libertários, aliado à composição nitidamente de origem imigrante do operariado brasileiro no início da República, fazia com que os jornais, revistas e livros editados no exterior logo fossem divulgados aqui. O fácil acesso à literatura pedagógica permitia que os militantes tivessem sempre um conhecimento atualizado das tendências libertárias no campo da educação. A escola como dominação ideológica Camaradas! arranquemos a criança ao padre e ao governo!2 Educar é uma ação distinta de instruir. A instrução é apenas um instrumento, não possuindo valor em si mesma. A instrução não estava desvinculada da luta mais geral. Pelo contrário, “a instrução só se difunde no 154 verve A educação anarquista na república velha seio dos trabalhadores à medida em que estes vão avançando no campo de sua emancipação”.3 Embora o domínio de vários saberes seja importante no processo educativo, contribuindo para a compreensão do funcionamento do mundo, a educação deve ir além disso. O papel da educação é o de criar novos costumes, transformar a consciência humana. Em suma, contribuir para a emancipação humana e a construção de uma sociedade igualitária. As pessoas educadas para a liberdade e igualdade enxergariam o mundo a partir de uma outra ótica, bastante distinta daquela filtrada pela ideologia que justificava a dominação e a exploração. O fato de poder enxergar um outro tipo de sociedade é o primeiro passo para a transformação. Dessa forma, a educação libertária não prepara a revolução, ela em si mesma já é a revolução. Os libertários conseguiam perceber com clareza que todo projeto educacional é carregado de mensagem política. As escolas atuavam como agentes de reprodução econômica e cultural de uma sociedade cindida, servindo de instrumento de difusão ideológica. A educação tradicional tinha como corolário inevitável a formação de indivíduos padronizados, dóceis, profundamente autoritários e carregados de preconceitos e superstições. Por isso, a escola oficial, fosse laica ou não, era refutada. Ela servia apenas para incutir os valores sociais e morais das classes dominantes. A simples laicização do ensino também era considerada de pouca utilidade. Em alguns momentos, o Estado e a Igreja eram vistos como “aliados satânicos”, capazes da mais íntima colaboração. Em outras ocasiões, quando as divergências entre o clero e os políticos cresciam, os anarquistas procuravam definir a atuação de ambos como uma competição fraternal, como duas instituições que disputavam o mesmo rebanho de explorados. As di- 155 7 2005 vergências entre o Estado e a Igreja não passavam de uma luta pela hegemonia entre os setores dominantes. As escolas laicas eram acusadas de simplesmente substituírem o ensino religioso pelo político. No lugar da dogmática catequese, as crianças escutariam a cantilena patriótica. A destruição de todas as manifestações autoritárias na sociedade incluía também as religiões institucionais. A Igreja Católica, pela força e ligação íntima que mantinha no sistema de poder, era sistematicamente atacada. Uma das formas de lutar contra o obscurantismo do clero era a criação de escolas libertárias. O jornal anticlerical A Lanterna, em 1913, afirmava: “O mais formidável de todos os obstáculos que se antepõem à nossa propaganda de emancipação social é a instrução clerical, mais ou menos disfarçada, que recebemos na primeira infância. (....) Pois bem, depende de nós evitar desde já que os nossos filhos contraiam o mal; é criarmos nossas escolas, isolando-os do ambiente corrompido.”4 A instrução pública generalizou-se na Europa, durante o século XIX, como um importante instrumento de promoção da nacionalidade. A nacionalidade é algo puramente abstrato e artificial, sendo necessária à recriação permanente do pacto que a fundou. Dessa forma, a educação incorporou uma importante função: a de fomentar continuamente os laços de civismo que representam o próprio orgulho da nacionalidade. O objetivo era reunir povos de determinadas regiões sob um governo comum. No contexto da época, tratava-se de incutir nas amplas massas um sentimento cívico que estreitasse os laços políticos presentes na consolidação dos Estados Nacionais. “A educação pública tinha, pois, no momento de sua origem, uma função política específica e importante a cumprir — significava a manuten156 verve A educação anarquista na república velha ção e crescimento do próprio Estado — além de, é claro, acalmar os ânimos das massas que reivindicavam melhores condições sociais de vida”.5 A escola do Estado, apesar da aparência de ensino científico e do mérito de ensinar a ler e escrever, realizava uma completa sistematização da violência. O objetivo era a formação de cidadãos prontos a obedecer e defender a ordem estabelecida, seres que reproduzem sistematicamente a ideologia que sustenta o regime de dominação. Os libertários brasileiros não pouparam críticas à política educacional da República Velha. Mas, apesar de denunciarem abertamente o descaso dos poderes públicos em relação à educação, não reivindicavam verbas públicas ou uma maior atuação do Estado no ensino. Fiéis às suas convicções, não empunharam a bandeira do ensino público e gratuito. Mesmo as legislações e medidas que as demais correntes socialistas consideravam um avanço eram satirizadas: “Tem-se dado ligeiramente um grande passo declarando a instrução primário gratuita, obrigatória e laica, fechando ao padre a porta da escola, criando colégios e liceus para meninas e senhoritas... Ninguém ignora porém que se pode ensinar muitos erros e tolices de um modo gratuito, obrigatório e laico”.6 Apesar da firme recusa da escola mantida pela esfera pública do Estado e das instituições privadas, quase todas bancadas pela Igreja, não se tratava, em absoluto, da defesa da desescolarização da sociedade. Ao recusar a iniciativa da educação como uma obrigação do Estado ou da Igreja, os libertários pretendiam aproximá-la da sociedade. A posição de Bakunin é bastante esclarecedora sobre esse aspecto: “Será preciso, pois eliminar da sociedade toda a educação e abolir todas as escolas? Não, de modo algum; 157 7 2005 é preciso espargir as mãos cheias a educação nas massas, e transformar todas as igrejas, todos estes templos dedicados à glória de Deus e à submissão dos homens, em outras tantas escolas de emancipação humana. (...) e para que se convertam em escolas de emancipação e não de submissão, terão que eliminar toda essa ficção de Deus, o eterno e absoluto escravizador, e deverão fundamentar toda a educação das crianças e a instrução no desenvolvimento científico da razão, não sobre a fé; sobre o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoais, e não da piedade e da obediência; sobre o culto à verdade e à justiça, e antes de tudo sobre o respeito humano, que deve substituir em tudo e por todas partes o culto divino”.7 Os revolucionários deveriam ter seu próprio projeto social, o que significava, entre outras coisas, um projeto educacional. O discurso libertário era bastante distinto do de setores das elites intelectuais da época, defensoras da instrução popular como fundamental para garantir o “desenvolvimento harmonioso do país”. A especificidade da pedagogia libertária estava na sua procura em formar indivíduos livres e preocupados com o bem-estar social, capazes de contribuir no caminho da transformação social. O desenvolvimento das capacidades individuais não tinha como objetivo proporcionar a ascensão social individual, nem, muito menos, a harmonia entre as classes sociais. O objetivo último era preparar o homem para viver na futura sociedade ácrata. As crianças e os adultos eram incentivados a serem solidários e se comportarem como irmãos. O estímulo às atitudes fraternais estava em consonância com o princípio da solidariedade, ou ajuda mútua, que norteava a teoria e a prática anarquistas. A luta pela educação das massas trabalhadoras era vista como um importante elemento na recuperação de 158 verve A educação anarquista na república velha instrumentos de ação social historicamente monopolizados pelas classes dominantes. A educação só poderia estar inserida no bojo de um projeto revolucionário de ruptura social. A proposta de Revolução Social implicava negação das instituições criadas pela burguesia e seus aliados. A invenção de uma sociedade de homens livres não podia estar alicerçada nas fundações do mundo que se pretendia destruir. A explicação dos objetivos básicos da necessidade de fundar escolas libertárias pode ser encontrada neste artigo do jornal O Amigo do Povo, de 26 de novembro de 1904: “Trabalhadores! Alquebrados pelo exaustivo trabalho da oficina, do campo ou da rua: privados de recursos, míseros, famintos no meio da opulência; mistificados pelo padre, iludidos pelos velhacos, perseguidos, encarcerados, vitimados pelos malsins a soldo do Capital, deveis necessariamente velar com cuidado pelo desenvolvimento intelectual de vossos filhos, a fim de impedir a todo custo que neles se inocule o veneno da resignação aos sistemáticos vexames, às costumadas infâmias (...) Trabalhadores, despertai! Nas escolas subsidiadas, ortodoxas, oficiais, esgota-se a potencialidade mental e sentimental dos vossos pequeninos com a masturbação vergonhosa e constante de mentirosa solidariedade no trabalho, na expansão e nas calamidades pátrias. Depois, quando adultos, guiados pelos nefastos ensinamentos burgueses, serão colhidos em todas as insídias, irão lacerar as carnes em todos os espinhos da luta brutal pelo pão: escarnecidos e vilipendiados pelos próprios pastores da desgraça que — com seu método interessado de inibição mental — vo-los tornarão toupeiras impotentes (...) 159 7 2005 Animai os promotores ou regentes de escolas racionalistas, das quais sejam rigorosamente banidas as superfluidades e traições do ensino ortodoxo.”8 As duas primeiras décadas do século XX foram ricas em experiências educacionais libertárias. O projeto anarquista era bastante ambicioso. O objetivo era a criação de um completo sistema de ensino paralelo e em clara oposição ao sistema oficial e privado. O plano incluía a criação de escolas para crianças e adolescentes, o ensino elementar para adultos e até mesmo a fundação de universidades. A educação seria feita por meio de uma série de iniciativas. A escola, apesar de sua importância, era vista apenas como uma das formas possíveis do processo educativo. Além da criação de instituições escolares, desenvolveram intensa atividade cultural nos sindicatos e em outras associações por eles criadas. Grupos de militantes formaram bibliotecas, editaram livros e jornais, organizaram grupos de teatro e música, realizaram excursões de propaganda, incentivaram a criação de “Centros de Estudos Sociais”. Os Centros foram bastante numerosos e espalharam-se por vários pontos do país. Nas cidades mais populosas, como Rio de Janeiro e São Paulo, surgiram em diversos bairros. Destinavam-se principalmente à educação de adultos, empregando o método do “ensino mútuo”. Entre as atividades mantidas, destacavam-se: a organização de cursos regulares, conferências e representações teatrais, salas de leitura e manutenção de bibliotecas. A montagem de um Centro de Estudos Sociais era relativamente simples e não envolvia nenhuma burocracia. Para a sua organização bastava um pequeno número de militantes e simpatizantes dispostos a encontrarem um local de funcionamento, alguns móveis, organizarem uma biblioteca e uma lista de subscrição. 160 verve A educação anarquista na república velha A declaração de princípios do “Centro de Estudos Sociais Jovens Libertários”, instalado no bairro da Barra Funda em São Paulo, deixava claros os objetivos dessas organizações: “Este Centro de Estudos Sociais propõe-se à divulgação das teorias libertárias na massa operária, incitando à reivindicação dos seus direitos conculcados e da sua dignidade ofendida pelos parasitas do capitalismo. A ação direta, sem intermediários, nem capitães, sem a intervenção dos mercantes da política (verdadeiros adormentadores de consciências e mistificadores do povo) eis a nossa tática. A nossa ardente sede de combate pela conquista do Direito universal, do bem-estar e da liberdade para todos, num mundo governado pela liberdade, fortificado pela verdade e coroado pela igualdade, nos fará procurar todos os meios capazes de apressar a realização do nosso ideal e antes quebrar do que torcer perante os obstáculos opostos pela animosidade dos governos. Camaradas! dediquemo-nos com ardor ao estudo do problema social, deixemos de embrutecer a inteligência com o álcool, boicotemos os bailes públicos, verdadeiros focos de corrupção – e teremos contribuído para dissipar as densas trevas da ignorância, teremos feito alguma coisa de prático.”9 Deve-se salientar também o esforço empreendido na fundação da “Universidade Popular de Ensino Livre”, em março de 1904, no Rio de Janeiro. A Universidade, que foi uma das mais arrojadas iniciativas dos anarquistas, tinha por objetivo ministrar um ensino superior e funcionar como centro de lazer e cultura para o proletariado. Contudo, teve curta duração, em outubro a imprensa libertária anunciava o seu fechamento. A preocupação com a criação de associações de caráter educativo era apresentada como alternativa aos locais considerados como templos da perdição: as tabernas e as igrejas. 161 7 2005 “(...) um pequeno ponto de apoio poderia ser a criação de um Centro de Estudos Sociais, onde o operário trocará seus hábitos de tavernas, igreja e jogos de todas as classes, trindade estúpida que o embrutece e o desmoraliza, pelo estudo constante da Sociologia.”10 Na base da sociedade ácrata, encontra-se o princípio do acordo livre. A capacidade de “agir por si mesmos”, sem qualquer determinação e tutela de chefes era um dos principais elementos na formação da consciência anárquica. A aplicação do princípio da autogestão11 das organizações escolares só podia ser um dos aspectos centrais do projeto pedagógico anti-autoritário. A tarefa de educar, com todas as responsabilidades que isso significava, era algo que deveria ser assumido pela própria comunidade. Os conteúdos, a carga horária, a metodologia, as taxas, os pagamentos dos professores, enfim, tudo que se referia à escola deveria ser resolvido por aqueles que estavam envolvidos no projeto escolar. Outro aspecto importante da autogestão pedagógica é que, ao mesmo tempo em que se realiza o ensino formal propriamente dito, também se faz o aprendizado sócio-político da construção coletiva da liberdade. A dependência dos cofres públicos era considerada uma heresia. Por outro lado, as mensalidades cobradas não eram suficientes para cobrir as despesas. As taxas não podiam ser muito altas, já que isso dificultaria o acesso dos filhos do trabalhador. A necessidade de envolver os alunos, os pais e a comunidade em geral na manutenção financeira das instituições escolares era a única maneira de garantir a autonomia do projeto pedagógico libertário. Os meios para angariar fundos eram aqueles tradicionalmente usados pelo movimento para manter as suas associações: festas, quermesses, conferências, listas de subscrição, venda de livros, etc. 162 verve A educação anarquista na república velha “Em 1914, as mensalidades na Escola Moderna nº 1 eram de 3$, 4$, 5$, de acordo com o grau de adiantamento do aluno (O Início, nº 1, 5/set/1914). Em 1915, os preços continuavam os mesmos. A Escola Moderna n.º 2 cobrava 3$ para o 1º ano primário e 4$ para os demais. Os preços das aulas noturnas eram estipulados em comum acordo entre o professor (Adelino de Pinho) e os alunos. Na Escola Nova, de Florentino de Carvalho, as mensalidades do curso diurno eram de 3$ para o 1º ano, 4$ para os demais e, do noturno: 4$ para menores e 5$ para adultos.”12 Os anarquistas não superestimavam o papel da escola. Ela era apenas uma das organizações sociais capazes de conduzir à sociedade igualitária. O mundo do futuro tinha na escola de pedagogia libertária um ponto de apoio, mas não começava nem terminava nela. A luta pela causa da educação antidogmática tornouse uma das bandeiras de luta dos anarquistas. Porém, apesar da afirmação da neutralidade política das escolas mantidas pelos anarquistas, a prática pedagógica estava impregnada de objetivos políticos. Os alunos eram sensibilizados com os problemas dos oprimidos e incentivados aos trabalhos de propaganda. A educação tinha a importante função de combate à alienação, devendo contribuir para o desmascaramento da ideologia de dominação. Os anarco-sindicalistas valorizavam, e muito, a questão educacional. No jornal A Voz do Trabalhador –— órgão da Confederação Operária Brasileira –— com grande freqüência apareciam artigos sobre a questão educacional e cultural. A educação oficial e confessional era vista como uma ferramenta para a formação do trabalhador disciplinado. A escola tradicional era acusada de ser reprodutora dos preconceitos patrióticos, das convenções sociais, das superstições e dos dogmas religio163 7 2005 sos. O ensino ministrado nessas escolas era pernicioso, deturpado e irracional. A importância da questão pode ser também percebida pelas resoluções e decisões dos Congressos Operários promovidos pelos anarco-sindicalistas. No Primeiro Congresso Operário Brasileiro, em 1906, a preocupação com a questão escolar foi um dos pontos que chamou a atenção dos delegados. Além de denunciar as instituições educacionais burguesas, conclamava os operários a criar escolas da classe, vinculadas a sindicatos e federações. “Tema 7: Conveniência de que cada associação operária sustente uma escola laica para os sócios e seus filhos, e quais os meios de que deve lançar mão para esse fim? Considerando que o ensino oficial tem por fim incutir nos educandos idéias e sentimentos tendentes a fortificar as instituições burguesas e, por conseguinte, contrárias às aspirações de emancipação operária, e que ninguém mais que os próprios operários interessam-se em formar livremente a consciência de seus filhos; O ‘Primeiro Congresso Operário Brasileiro’, aconselha aos sindicatos operários a fundação de escolas apropriadas à educação que os mesmos devem receber, sempre que tal seja possível; quando os sindicatos não puderem sustentar escolas, deve a Federação local assumir o encargo.”13 O II Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913, também adotou posições claramente contra o ensino fornecido pelas escolas mantidas pelo Estado e pela Igreja, aprofundando a questão em alguns pontos. O próprio título adotado — Educação e instrução das classes operárias — já demonstra o interesse em ampliar o debate, tratando o 164 verve A educação anarquista na república velha assunto a partir de duas categorias distintas mas interligadas. Os delegados presentes reafirmaram a necessidade dos sindicatos em assumirem a educação dos adultos e das crianças. A utilização do “método racional e científico das escolas racionalistas” foi explicitamente aconselhado. Porém, apesar da resolução aprovada, defender a adoção dos princípios de Ferrer descartava um dos pontos mais importantes na concepção pedagógica do pensador espanhol: a co-educação de classes. A preocupação era basicamente com a educação e instrução das classes operárias. O aditivo aprovado, de autoria de José Romero e Astrogildo Pereira, demonstra um certo cuidado em incluir pressupostos de outros educadores anarquistas. A preocupação com uma educação complementar técnica e artística, que vinculasse a atividade manual ao trabalho intelectual, está mais próxima do pensamento pedagógico de Paul Robin. “Décimo Primeiro Tema: Educação e instrução das classes operárias Moção Aprovada Considerando que a instrução foi até época recente evitada pelas castas aristocráticas e pelas igrejas de todas as seitas, para manterem o povo na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade, para melhor explorarem-no e governarem-no; Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo, nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas, sabiamente invertidas pelos cientistas burgueses, os quais metamorfoseiam a ciência, segundo os convencionalismos da sociedade atual, e monopolizam a instrução, e tratando de ilustrar o operariado sobre artificiosas concepções que enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas escolas, desequi- 165 7 2005 librando-os com os deletérios sofismas que constituem o civismo ou a religião do Estado; Considerando que esta instrução é ministrada juntamente com a educação prática de modalidades que estão em harmonia com a instrução aplicada; Considerando que esta instrução e educação causam males incalculavelmente maiores do que a mais suína ignorância e que consolidam com mais firmeza todas as escravizações, impossibilitando a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado e da humanidade; Considerando que este ensino baseia-se no sofisma e afirma-se no misticismo e na resignação; este Congresso aconselha aos sindicatos e às classes trabalhadoras em geral, tomando como princípio o método racional e científico, promova a criação e vulgarização de escolas racionalistas, ateneus, revistas, jornais, promovendo conferências e preleções, organizando certames e excursões de propaganda instrutiva, editando livros, folhetos, etc, etc. João Crispim e Rafael Serrano Muñoz, da Federação Operária de Santos. Antonio Venosa, do Sindicato dos Pedreiros e Serventes, de Santos. Artur Conde, do Sindicato dos Canteiros, de Ribeirão Pires. Pedro Vila, do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos. do Rio.” Essa moção foi aprovada com o seguinte aditivo: “Propomos que, além de escolas racionalistas, seja aconselhada a criação de cursos profissionais de educação técnica e artística. Jozé Romero, do Sindicato Operário de Ofícios Vários. de S. Paulo. Astrojildo Pereira, de O Trabalho, de Bajé.”14 O sistema educacional criado e mantido pelos anarcosindicalistas sofreu patrulhamento constante, tanto pela Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum. 166 verve A educação anarquista na república velha As experiências educacionais foram atingidas pela repressão policial, incentivada pelo clero. A escola era denunciada como instrumento de dominação ideológica e de disciplina da criança, transformando os educandos em seres passivos. Os pequenos eram desde as primeiras letras amalgamados para crer, obedecer e pensar de acordo com os ditames dos dominadores.15 Os conteúdos eram também denunciados como moralistas e descompromissados com a realidade dos trabalhadores. Nas escolas anarquistas existia a preocupação em manter viva a memória das datas significativas para a história dos oprimidos. Os libertários procuravam construir sua própria concepção de passado através de palestras, recitais de poesia, redações publicadas nos jornais da própria escola, da ação de grupos teatrais libertários, corais e grupos musicais. As datas mais festejadas ou lembradas foram: o 1º de maio (Dia do Trabalhador), o 18 de março (Comuna de Paris), o 13 de maio (Libertação dos Escravos1), o 14 de julho (Tomada da Bastilha), o 13 de outubro (Fuzilamento de Ferrer).16 Francesc Ferrer As idéias do catalão Francesc Ferrer i Guàrdia (18591909) ocuparam um espaço destacado na imprensa libertária internacional, com praticamente todos os jornais fazendo referências às suas obras e incentivando a criação de Escolas Racionalistas. Para Ferrer, as salas de aula, além de terem ambos os sexos convivendo e aprendendo juntos, deveriam abrigar crianças de classes sociais diferentes. O ódio de classes, a revolta ou adesão não deveriam ser incutidos nos cérebros dos pequenos, pois são sentimentos adultos que exigem um determinado conhecimento social, inacessível para eles. A educação de crianças burguesas e 167 7 2005 proletárias deveria ser feita conjuntamente e tendo como base um ensino racional. Dessa forma, elas seriam capazes de descobrir juntas as injustiças sociais e desenvolveriam o sentimento de solidariedade entre elas. Ao se tornarem adultas, ricos e pobres, teriam clareza das desigualdades e se rebelariam contra elas. Os grupos ácratas que se apropriaram da obra pedagógica de Ferrer descartavam ou davam muito pouco destaque aos aspectos considerados ranços liberais do pensador catalão. As prioridades eram a divulgação dos princípios mais combativos em favor da luta pela emancipação do proletariado e os pronunciamentos que atacassem abertamente o papel reacionário da Igreja e do Estado. Ferrer fundou, em outubro de 1901, a primeira Escola Moderna em Barcelona. O clero reagiu com indignação, com o bispo de Barcelona chegando a afirmar que preferia ver os filhos de seus fiéis num bordel do que numa Escola Moderna. As aulas tiveram início com 30 alunos, 12 meninas e 18 meninos. “No ano de 1905, a Escola Moderna tinha 147 sucursais, na província de Barcelona, três anos depois, 1 mil alunos em 10 escolas de Barcelona e Capital. Criaram-se escolas na Espanha (Madri, Sevilha, Málaga, Granada, Cadiz, Córdoba, Palma, Valência), Portugal, Brasil, Lausane e Amesterdam.”17 Em 31 de maio de 1906, em Madri, uma bomba foi atirada contra o carro do rei espanhol Afonso XIII. O autor do atentado, Mateo Morale, era um ex-funcionário da Escola Moderna de Barcelona. Ferrer foi preso, acusado de envolvimento, e a escola teve de cerrar suas portas. A imprensa conservadora, principalmente a clerical, moveu intensa campanha contra o pedagogo, exigindo a pena de morte. Devido à falta de provas, um tribunal civil o absolveu e, em junho de 1907, foi libertado. Porém, não lhe permitiram reabrir a escola pioneira. 168 verve A educação anarquista na república velha Livre das acusações, colocou-se à testa de movimento internacional de grande envergadura e repercussão que procurou romper com os moldes conservadores que imperavam no processo ensino-aprendizagem. Em Bruxelas, em abril de 1908, passou a publicar a revista L’ École Renouvée, considerada “extensão internacional da Escola Moderna de Barcelona”. Por sua iniciativa foi criada, no mesmo ano, a Liga Internacional para Educação Racional da Infância, com sede em Paris. A Liga recebeu o apoio de grandes personalidades: Máximo Gorki, Anatole France, Bernard Shaw, o líder socialista Aristide Briand, o biólogo Ramón y Cajal (Prêmio Nobel), o historiador do sindicalismo espanhol Anselmo Lorenzo e outros. Além de possuir um órgão próprio na França, L’ École Renouveé, e na Itália, Scuola Laica, possuía também seções na Suíça, Bélgica, Alemanha, Inglaterra, Holanda e Portugal. No entanto, as forças conservadoras não desistiram e continuaram acusando Ferrer de ser instigador de vários complôs, além de ensinar e recomendar em suas escolas o uso de bombas de dinamite.18 Após encontrar-se com Kropotkin em Londres, retornou, no início de 1909, com sua família para a Espanha, fixando residência em Alella. Porém, não teria muito tempo para desfrutar o retorno ao seu local de nascimento. A Catalunha logo levantou-se numa sangrenta e radical rebelião. Acusado de liderar os acontecimentos revolucionários da “Semana Trágica de Barcelona”, foi julgado por um Conselho de Guerra e condenado à morte. No dia 13 de outubro de 1909 foi fuzilado. Após a sua morte, o criador da Escola Moderna tornou-se um grande “mártir do pensamento livre”, em particular do movimento anarquista internacional. O ato brutal do governo espanhol incentivou ainda mais a discussão de suas concepções pedagógicas. Manifestações 169 7 2005 e homenagens à sua memória foram constantes nos jornais anticlericais e anarquistas. As escolas modernas no Brasil Nas escolas criadas pelos anarquistas brasileiros nas primeiras décadas do século XX, encontra-se de maneira marcante a influência da obra de Ferrer. As propostas da Escola Moderna entravam em choque frontal com a Igreja, detentora de um grande aparato educativo. O Ensino Racional era baseado exclusivamente nas ciências positivas, as únicas capazes de apontar em direção à liberdade e ao desenvolvimento. O ideário pedagógico tinha como principais eixos a valorização da Ciência, da Liberdade e da Solidariedade. O ensino religioso, assim como qualquer tentativa de imposição dogmática ou explicação metafísica, seria rechaçado. A crença e a educação religiosas encaminhariam o homem em direção à escravidão e levariam à estagnação da sociedade. O objetivo era a formação de pessoas instruídas, justas e livres de todo preconceito. Numa conferência realizada em 1910, Maurício de Medeiros apontou o combate aos preconceitos religiosos como um dos elementos da superioridade do Ensino Racionalista. “Ele combate o preconceito religioso, o obscurantismo aviltante da alma humana, preso às criações fantasistas sobrenaturais. Que importa ao homem a moral religiosa se ela não o inibe de cometer atos degradantes à natureza humana? Na moral religiosa é bom quem crê, e mau quem não crê; no entanto aí estão os fatos a provarem a insanidade dessa afirmação.”19 170 verve A educação anarquista na república velha Ou como afirmava o Boletim da Escola Moderna, de maio de 1919: “Banir dogmas é um dever que se impõe. A escola não é um templo religioso nem um centro político. É um cadinho onde são purificados os espíritos para se tornarem livres e independentes e não sectários de mentiras e embustes. O seu fim é esse: a perfeição do indivíduo.”20 O desenvolvimento da aptidão individual era o centro do processo educativo. O respeito às iniciativas da criança eram o pré-requisito fundamental no processo de aquisição do conhecimento. A individualidade de cada uma delas deveria sempre imperar. A cooperação deveria sobrepujar sempre as tendências de competição, a solidariedade substituir o egoísmo. O processo educacional tradicional, que busca moldar todas elas de acordo com os dogmas religiosos e seculares, era visto como prejudicial e radicalmente refutado. A valorização da criança e o respeito às suas iniciativas teve como conseqüência a necessidade de repensar o papel do professor na sala de aula. A diminuição da autoridade do professor implicava na valorização do educando. O papel do educador era de auxiliar seus alunos para que eles pudessem realizar as suas aptidões naturais. “O mestre deixa de ser na Escola Moderna a autoridade ríspida, que ordena, para ser o companheiro carinhoso que guia. Os ensinamentos são vindos ao acaso dos fatos, guiados por estes. Ao mestre cabe, então, habilmente ir preparando as oportunidades de tais ensinamentos. A criança por si, deduz do fato as conclusões que lhe parecerem justas, se a tanto chega a sua inteligência, ou, em caso contrá- 171 7 2005 rio, limita-se a registrá-las. Nunca, porém, intervirá o juízo formado pelo professor desviando o julgamento da criança, antes que este se faça. Assim se evitarão os preconceitos.”21 O tom anticlerical e cientificista presente na proposta pedagógica das Escolas Racionalistas também atraía pessoas não necessariamente ligadas às correntes anarquistas. Por comungarem com alguns destes pontos de vista, pequenos comerciantes, intelectuais das classes médias, jornalistas da imprensa operária, etc., também incentivaram e colaboraram na manutenção das escolas. As Escolas Modernas, assim como as demais organizações libertárias, enfrentaram oposição cerrada da Igreja e do governo.22 A imprensa católica desencadeou uma verdadeira guerra contra tais estabelecimentos. Os ataques foram constantes durante todo o período em que as escolas existiram. No folheto “Ferrer X Mártir ou Patife”, de Frei Pedo Sinzig, relata-se a presença desse religioso numa reunião anarquista realizada em Petrópolis, quando foram feitas denúncias contra o pensador espanhol que os promotores do encontro, segundo o autor, não foram capazes de responder. No final do opúsculo, o Frei Pedo vangloriava-se de ter impedido a criação de mais uma Escola Moderna: “(...) Sabem o que quer dizer escola moderna? Releiam a transcrição na página 6 da circular de Ferrer, que aí bem explica o que pretende ensinar à infância. ‘Para não assustar a gente escreve Ferrer, em 1901, a um seu amigo para evitar a intervenção do governo, chamo minhas escolas de modernas em vez de anarquistas. Minha propaganda tem por fim, confesso francamente, educar nestas escolas anarquistas convencidos. Meu desejo é preparar a revolução. Por enquanto 172 verve A educação anarquista na república velha temos de contentar-nos em plantar nos cérebros da mocidade a idéia de transformação violenta. Ela deverá aprender, que contra a polícia e a tortura há um só meio: a bomba ou o veneno.’ E esta escola moderna, já funcionando no Rio, em São Paulo, e em Minas, devia ser fundada, a 12 de outubro de 1913, também em Petrópolis! Graças a Deus que por enquanto isso não foi feito.”23 A imprensa libertária e anticlerical revidava os ataques, acusando os conservadores de detratores e mentirosos. O clero era denunciado como responsável pela difusão de valores que serviam apenas ao interesse dos dominadores. Na defesa dos seus privilégios, os padres negam a ciência e a “verdadeira cultura”. No primeiro número do Boletim da Escola Moderna, publicado em 13 de outubro de 1918, havia um texto de Ferrer escrito em 1907: “(...) Primeiro que tudo desejamos advertir o público que, sendo a razão e a ciência antídoto de todo o dogma, na nossa escola não se ensinará religião alguma. Sabíamos que esta declaração provocaria o ódio da casta sacerdotal.”24 O recrudescimento nas manifestações operárias, no final da década de 1910, fez com que os setores conservadores ampliassem sua oposição às organizações operárias e, em especial às lideranças libertárias. As greves e outras manifestações foram duramente combatidas. As autoridades procuravam um pretexto para justificar o endurecimento policial. A explosão de uma bomba, em outubro de 1919, no bairro do Brás em São Paulo, causou a morte de quatro militantes anarquistas. O jornal libertário A Plebe apresentou a tese de que poderia tratar-se de uma provocação policial. Por sua vez, a imprensa paulista conserva- 173 7 2005 dora não perdeu a oportunidade: denunciou a existência de uma trama revolucionária e exigiu providências. As autoridades policiais, alertadas, iniciaram uma grande campanha de perseguições, prisões e deportações.25 A repressão acabou atingindo as escolas mantidas pelos libertários. A Secretaria de Justiça, em 1920, através de um ofício assinado por Oscar Thompson, fechou as duas Escolas Modernas de São Paulo. O motivo apresentado foi que as referidas escolas, “visando a propagação das idéias anárquicas e a implantação do regime comunista, ferem de modo iniludível a organização política e social do país, além de não cumprirem as exigências legais de funcionamento.”26 As Escolas Modernas funcionaram por um período relativamente curto no Brasil. Porém, devido ao radicalismo e ousadia de suas propostas, merecem ser lembradas. Mesmo depois de todos esses anos, algumas de suas preocupações pedagógicas continuam extremamente atuais. Notas “Mas se deixados única e exclusivamente a sua experiência, sem a luz esclarecedora da doutrina, sem as explicações da ciência sobre as leis sociais e da natureza, os indivíduos poderão acomodar-se ou enveredar por caminhos reformistas, uma vez que estão profundamente envolvidos por formas burguesas e católicas de pensar, habituados às explicações metafísicas da vida e das sociedades e às disciplinas impostas pelas organizações sociais autoritárias.” Yara Aun Khoury. “A Poesia Anarquista” in Sociedade & Cultura (Revista Brasileira de História). São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n. 15, setembro de 1987/fevereiro de 1988, p. 216. 1 2 O Amigo do Povo, São Paulo, 7 de junho de 1902. 3 A Voz do Trabalhador, n. 68, 5 de março de 1915. 4 A Lanterna, n. 214, 25 de outubro de 1913. 5 Silvio Gallo. Educação Anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba, Editora UNIMEP, 1995. pp. 124/125. 174 verve A educação anarquista na república velha “Que Deve Ser a Educação” in Na Barricada.. Rio de Janeiro, suplemento, 01/05/ 1913. 6 7 Miguel Bakunin. Dios y el Estado. Madrid, Jucar, 1976, pp. 74-75. 8 O Amigo do Povo. 26 de novembro de 1904. 9 O Amigo do Povo. São Paulo, 30 de janeiro de 1904. 10 O Despertar. Rio de Janeiro, n. 3, 03 de dezembro de 1898. “Autogestão: É o controle direto dos meios de produção pelos produtores autoorganizados em comitês de fábrica, comitês de interfábricas, federação ou confederação de comitês. Significa a integração do econômico com o político, através do controle operário da produção e da democracia direta, substituindo, assim, o tecnocrata administrador e o político profissional da democracia representativa.” Maurício Tragtenberg. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo, Moderna, 1986, p. 91. 11 12 O Início, n. 2, 4 de setembro de 1915 apud: JOMINI, Regina Célia Mazoni. ‘Educação Anarquista na República Velha: algumas idéias e iniciativas pedagógicas.’ Campinas. Pro-Posições, nº. 3. Revista da Faculdade de Educação/ UNICAMP, dezembro de 1990, p. 47. 13 Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de janeiro, Edições Mundo Livre, 1979, p. 109. 14 A Voz do Trabalhador, 1 de outubro de 1913, p. 4. “Os Estados modernos, compreendendo perfeitamente que com a decadência da religião e com o desenvolvimento industrial era impossível manter na ignorância suína, dos tempos idos, as multidões, (...) trataram de ir abrindo escolas e de preparar programas adequados não às necessidades reais da mente infantil, mas necessários à conservação perpétua e indefinida dos governos, com os regimes de castas, explorando o povo, e defendido por soldados, filhos do povo, mas obliterado as suas idéias pela influência nefasta da escola.” Adelino Pinho. “A escola, prelúdio da caserna”. A Vida, Rio de Janeiro, n. 5, 3 de março de 1915 apud:, Regina Célia Mazoni Jomini, op. cit., p. 48. 15 “A cada 13 de outubro havia sempre homenagem ao ferroviário Francisco Ferrer, em comemoração à data do seu fuzilamento, com apresentação de peças teatrais.” Eduardo Maffei. ‘Gigi Damiani e Outros.’ in Temas de Ciências Sociais. Volume 5 (Marco Aurélio Garcia e outros - organizadores). São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 114. 16 Edgar Rodrigues. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia. Rio de Janeiro, Achiamé, 1992, p. 15. 17 “Em todas as suas 121 escolas modernas ensinava e recomendava o uso de bombas de dinamite”. Frei Pedo Sinzig O. F. M. Folheto: “Ferrer - Mártir ou Patife quatro horas entre os anarquistas.” Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 7. 18 175 7 2005 O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício de Medeiros e publicada por sugestão da Associação Escola Moderna. Rio de Janeiro, 1910, Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 22. 19 20 A Instrução Racional. Boletim da Escola Moderna, n. 4, 1 de maio de 1919. Arquivo E. Leuenroth/ Campinas. 21 O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício de Medeiros e mandada publicar pela Associação Escola Moderna. Rio de Janeiro, 1910. Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 20. “A educação criada e mantida pelos anarco-sindicalistas sofria patrulhamento constante, tanto pela Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum.” 22 23 Frei Pedo Sinzig O. F. M., op. cit., p. 13. 24 Boletim da Escola Moderna. São Paulo, Escola Moderna N. 1, n. 01, ano I, 13/10/ 1918. “Em outubro de 1919 ele se achava metido numa conjura para tentar uma insurreição popular (quanto sonho!) em São Paulo. Eis quando o depósito de bombas que se estava organizando na Rua João Boemer foi, acidentalmente, pelos ares. Daí resultou o empastelamento de A Plebe e a prisão dos líderes anarquistas e, entre eles, Gigi. (Damiani) , que foi deportado. Eduardo Maffei. op. cit., p. 111. 25 Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de Janeiro, Edições Mundo Livre, 1979, p. 317. 26 176 verve A educação anarquista na república velha RESUMO Durante a República Velha (1889-1930), os libertários brasileiros promoveram várias experiências educacionais, muitas delas inovadoras. O discurso que valorizava a educação como forma de emancipação não estava, em nenhum momento, desvinculado de uma prática revolucionária. Os anarquistas brasileiros mantiveram contato freqüente com os seus colegas ácratas da Europa. Os livros e as práticas dos mais fecundos pensadores da pedagogia libertária, destacando-se o educador catalão Ferrer, eram acompanhados e adaptados pelos militantes daqui. Palavras-chave: República Velha (1889-1930), anarquistas brasileiros, educação. ABSTRACT During the Old Republic - Repúnlica Velha 1889-1930 - Brazilian libertarians promoted several pedagogic experiences, many of them quite innovative. The teories that valued education as a tool to emancipation were never disconnected of a revolutionary practice. The Brazilian anarchists maintained frequent contact with their European comrades. The books and practices of the most fertile thinkers of the libertarian pedagogy, standing out among them the Catalan educator Ferrer, were accompanied and adapted by militants here. Keywords: Old Republic (1889-1930), brazilian anarchists, education. Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 2004. 177 7 2005 os pedreiros da anarquia edgar rodrigues* Hoje meu encontro é com os carregadores das pedras que serviram para construir os alicerces, formar as bases do palácio da anarquia.1 No Brasil e/ou nos países europeus, asiáticos e africanos “exportadores” de mão-de-obra, nas últimas décadas do século XIX e em mais da metade do século XX, as escolas de alfabetização eram escassas, e para os filhos dos trabalhadores braçais, praticamente inalcançáveis! As famílias pobres (muito numerosas na época) tinham de empregar seus filhos, aos sete anos de idade, nas fábricas, nas oficinas, na construção civil e no comércio como ajudantes. Salvo poucas exceções, sem receber ordenados, aprendiam ofícios à força de pescoções e outras violências físicas e psicológicas. * Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos mais importantes arquivistas dos movimentos anarquistas no Brasil e em Portugal. Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais de quarenta livros e cerca de mil artigos. verve, 7: 178-193, 2005 178 verve Os pedreiros da anarquia A alfabetização dos imigrantes e trabalhadores nativos começava nos locais de trabalho, ouvindo seus companheiros, mais preparados e experientes, ler jornais sindicalistas e anarquistas, em voz alta na hora do almoço, e fazer refeições, quando o ambiente permitia. Depois iam assistir aos debates e palestras nas associações de classe profissionais, e os mais aplicados participavam de cursos de alfabetização, profissionalizantes e de militância ideológica. No Brasil, as associações operárias, depois sindicatos, foram as escolas e as Universidades do proletariado! Dir-se-ia que aprendiam simultaneamente profissões e o ler e escrever. E ainda sindicalismo, luta de classes e anarquismo. Seus redutos de resistência (sindicatos), eram também escolas profissionais, de solidariedade, tornando-se ainda veículos de ajuda mútua, uma prática que servia para sustentar sedes quando um só sindicato não podia pagar o aluguel; para socorrer companheiros doentes, desempregados e presos; para custear publicações de boletins, jornais, opúsculos e até livros de idéias avançadas. Entre as reivindicações dos assalariados estavam a redução da jornada de trabalho de 14, 12 e 10 para 8 horas diárias, seguros de acidentes no trabalho e de invalidez, das mulheres operárias poder ter seus filhos em casa e dispor de alguns dias para amamentá-los; lugar para comer nas fábricas, o fim do carrancismo patronal, espancamento de menores e até de mulheres, melhorias salariais.2 Aos poucos, o proletariado compreendeu também que seus filhos iam trabalhar na idade que deviam freqüentar as escolas (aos sete anos de idade); entravam na adolescência, passavam a juventude e a fase adulta como seus pais. 179 7 2005 No Brasil, a questão social era tão implacável com os assalariados quanto nos países de onde tinham vindo os imigrantes para desbravar e produzir a riqueza que faz deste país uma grande nação, que só não é boa para todos os seus habitantes, porque existem políticos, gerados nas incubadoras das Igrejas e do Estado! No 1° Congresso da velha A.I.T (Associação Internacional dos Trabalhadores), realizado de 3 a 6 de Setembro de 1866, em Genebra (Suíça), e nos subseqüentes de 1867, 1868, 1869 e 1872, os congressistas discutiram métodos racionalistas de ensino e educação que deviam ser postos em prática pelos trabalhadores e outros que o desejassem. O eco do novo ensino e da escola nova atingiu o proletariado na Europa. Chegou ao Brasil, nas cabeças dos imigrantes. E não obstante a demora, abriu novos horizontes ao produtor de riquezas, despertando a imaginação de muitos que não queriam ter deveres sem direitos e agitou esse entendimento nas associações operárias e nos locais de trabalho. Seguindo os exemplos de seus companheiros europeus, os trabalhadores imigrantes formaram escolas racionalistas no Rio Grande do Sul, nos subúrbios do Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras localidades do Brasil. Inicialmente, o propósito era alfabetizar operários (pais e filhos) e, logo mais, proporcionar-lhes conhecimentos gerais, sociologia, sindicalismo, anti-clericalismo; capacitá-los intelectualmente, inclusive com ajuda da Arte de Talma, desenvolvida nos teatros operários. No Rio de Janeiro, em 1904, e em São Paulo, em 1915, também, foram implantadas Universidades Populares e ministrados cursos profissionalizantes, sociológicos, 180 verve Os pedreiros da anarquia envolvendo a emancipação social e a autogestão, em tempos idos conhecida como ajuda mútua. Exemplificamos na seqüência com os pedreiros da anarquia, residentes em Campinas, no ano de 1908, implantando uma Escola Livre, apoiada no documento (raríssimo) que se reproduz. “A Liga Operária de Campinas tomou uma iniciativa bem digna de simpatia, a aquisição de um prédio para o funcionamento da escola infantil que ora está em prédio impróprio e acanhado, procurando baseá-lo o mais possível nos modernos princípios pedagógicos. A escola não deve ser um lugar de tortura psíquica ou moral para as crianças, mas um lugar de prazer e recreio, onde elas se sintam bem, onde o ensino lhes seja oferecido como uma diversão, procurando aproveitar a sua natureza irrequieta e alegre, falando-lhe mais às suas faculdades e sentimentos, ao olhar do que ao ouvido, dedicando-se mais à inteligência do que à memória, esforçando-se em desenvolver harmônica e integralmente os seus órgãos. A experiência, a observação direta, a recreação instrutiva serão muito mais favorecidos pelo professor que compreende a sua missão, do que as longas e fatigantes preleções e as recitações fastidiosas e sem sentido. O que é verificável pelo próprio aluno, o que é demonstrável, claro, lógico para a criança, o que ela por si mesma descobrir ou desenvolver — isso será preferido a todas as divagações metafísicas ou filosóficas, a todas as afirmações impostas pela autoridade do pedante, que não pode senão favorecer a preguiça intelectual. E por isso a escola não será religiosa nem anti-religiosa, não será política, não será dogmática, mas irá buscar a lição de coisas, a natureza vivida e provocada, 181 7 2005 ao vasto campo das ciências exatas, ao raciocínio espontâneo e fácil, os motivos de agradável estudo para as inteligências que desabrocham e da larga e salutar expansão para os organismos tenros. Tal é o plano, tal o intuito que anima e inspira nossos atos, esforçando-nos pela realização desse melhoramento, que até o presente não foi tratado com o devido carinho, pela falta de fundos, que desaparecerá com a medida que acabamos de tomar, o lançamento de um empréstimo operário, para o qual esperamos o vosso apoio e ajuda trabalhadores. Regulamento: Art. I – Fica criada entre os sócios da Liga Operária de Campinas e outras pessoas que queiram coadjuvar esta associação e sua escola, uma emissão de 2.000 ações, no valor de R$ 5.000 cada uma. Art. II – Estas ações receberão 3% anualmente de dividendos, sendo sorteadas quando houver fundos. Art. III – Para garantia dos resgates e dividendos, a Liga, contribuirá com R$ 1.200.000 anualmente e título de aluguel do prédio, (R$100.000 por mês) pelo que se abriga Das Ações. Art. IV – As ações serão intransferíveis, podendo porém, em caso de morte do acionista, gozar todas as regalias delas: § 1° - A viúva do acionista, enquanto assim se conservar. § 2° - A mãe do acionista, se for viúva, enquanto assim se conservar. § 3° - Os filhos do acionista. 182 verve Os pedreiros da anarquia § 4° - Em qualquer dos casos dos § antecedentes, o herdeiro ou herdeiros estão sempre sujeitos ao expresso no Art. IV, bem como os possuidores de ações legalmente constituídos, na falta destes. Do Fundo de Reserva. Art. V – O fundo de reserva constituir-se-á pela forma seguinte: a) Pelo que se refere o artigo III. b) Pelas importâncias que os acionistas quiseram doar à escola ou à sociedade, com ofertas de ações ou dividendos destas. c) Pelas ações e dividendos prescritos de acordo com o artigo VI. Art. VI – Serão considerados prescritos os dividendos e ações que não forem reclamadas dois anos depois dos respectivos sorteios. Direitos e Regalias dos Acionistas. Art. VII – Todos os acionistas estão em pleno gozo de seus direitos e fazem jus: § 1° - Os acionistas, membros da Liga pelo que regem os Estatutos sociais. § 2° - Os acionistas externos não têm o direito de serem votados, a não ser para comissões especiais, que nada tenham a ver com a questão da Liga. § 3° - Assistem-lhes os direitos de: a) Participar das assembléias gerais, relativas ao que diga respeito a negócios das ações, podendo propor medidas, votá-las. b) Requisitarem, por escrito, do Conselho Administrativo, permissão para examinarem os livros da escri- 183 7 2005 tura especial dos negócios das ações, na sede social e em presença do Tesoureiro ouvir as devidas explicações. c) Fazerem qualquer reclamação ou representação ao Conselho Administrativo. d) Proporem o que julgarem de vantagem nas assembléias gerais, convocando-as, porém, em número nunca inferior a 30 acionistas. Dos Diretores. Art. VIII - Os negócios das ações serão regidos pelos mesmos conselheiros eleitos da Liga Operária, com as obrigações que já lhes são impostas nos Estatutos Sociais. Da Escrituração. Art. IX - Haverá para os casos especiais desse regulamento: § 1° - Um livro especial de registro de assinatura dos acionistas, encimado com este regulamento, descriminando neste livro o número das ações de cada um. § 2° - Talões numerados e rubricados pelo Contador e Tesoureiro, com as ações impressas, devendo cada portador deixar no canhoto respectivo sua assinatura ou autorização. § 3° - Livros ou quaisquer outros impressos auxiliares, à ordem do Conselho. Disposições Gerais. Art. X – Todo o acionista, que assinar no canhoto do Talão das ações ou no livro especial, (Art. IX § 1°), fica aceitando, para todos os seus efeitos, este Regulamento. Art. XI – A escrituração especial de quantias e quaisquer valores, fica a cargo de pessoa competente de conformidade com o Art. IX e seus §, bem como o desempenho de expedientes e execuções de tudo ao que se refere 184 verve Os pedreiros da anarquia este Regulamento ou for determinado por Assembléia Geral. Art. XII – Seja qual for o número das ações ao portador, o Possuidor ou acionista tem direito a um único voto. Art. XIII – Em assembléia geral é permitido o voto por procuração legal. Art. XIV – Revogam-se as disposições em contrário. Sala de Conselho Administrativo da Liga Operária de Campinas, em 22 de Agosto de 1908. O Relator, José Fonseca. O Secretário, Joaquim Ribeiro. A Comissão: Max Stephan, José Piovesan, Carmine D. Abruzzi, Vittorio Maggalira, Ramón Durán.” Estes e outros pedreiros da anarquia projetaram, carregaram as pedras, fixaram-nas “argamassadas” com “anarquismo” uma sobre as outras simetricamente e a obra ganhou forma, proliferou com maior ou menor intensidade em parte do território brasileiro, muitas vezes dificultada pelas autoridades que desejavam um trabalhador ignorante, submisso!!! Foi uma penosa edificação interrompida, periodicamente, pelos governantes dispostos a impedir a emancipação social, cultural, e humana do proletariado. Por força de uma educação libertária e de um aprendizado ideológico, o trabalhador realizou uma gigantesca obra, obrigando os poderosos e os políticos a alterar leis primitivas, tornando suportável a mão-de-obra nas fábricas, nas oficinas, e a questão social entrou nos romances. Como pensavam grande esses trabalhadores braçais! Se tivessem sido escutados hoje não estaríamos cer- 185 7 2005 cados de pobreza, favelas, drogas, violência, as casas de muralhas e janelas com grades como cadeias. Dezenas, centenas de pedreiros da anarquia nascidos na Europa, na América e no Brasil aprenderam quase tudo que sabiam nas sedes dos sindicatos, dos Centros de Cultura Social, nos Grupos de Teatro Libertário e/ou estudando em Escolas Livres, lendo a imprensa operária, ácrata e exercitando seus conhecimentos intelectuais, exercendo ofícios vários, falando aos que sabiam menos e/ou tinham receio de demonstrar o que haviam aprendido na escola da oficina, na Universidade da vida... Conheci e soube de Pedro Catalo, Jaime Cubero, Manuel Joaquim de Sousa, Manuel Silva Campos, Antônio Corrêa, Artur Modesto, Carlo Aldegheri, Serafim Cardoso Lucena (tinha escola livre e abastada biblioteca em casa), José Sarmento Marques (responsável pelo jornal anarquista O Despertar, Rio de Janeiro, 1898), Pedro Matera (fundador do jornal Liberdade, 1917, da Escola Livre 1° de Maio, inicialmente em Vila Isabel e depois em Olaria, Rio de Janeiro, década de 20), João Peres Boucas, Antonio Dominguez, Ricardo Cipolla, Afonso Festa (expulso em 1919), Daniel Conde (diretor de A Luta, Porto Alegre), Antonio Orellana (livreiro do anarquismo, em São Paulo, na primeira década do século XX), todos operários sapateiros. Muitos destes pedreiros da anarquia, falavam como Tribunos, defendiam idéias na imprensa anarquista e sindicalista. Outros escreveram poesias, opúsculos, livros (caso de Pedro Catalo e Manuel Joaquim de Sousa), defenderam teses de muito valor cultural e libertárias em congressos. Foram diretores e escreviam em diários, semanários e periódicos. Redigiram peças para o teatro, foram excelentes atores/amadores. Lembro e conheci operários marceneiros e carpinteiros: J. Marques da Costa (orador dos maiores que andou 186 verve Os pedreiros da anarquia por Manaus, Pará e foi expulso do Rio de Janeiro em 1925, por falar no 1° de maio, na Praça Mauá, sem ordem da Policia Carioca). Foi diretor/fundador da revista Renovação (1922-1923) do jornal O Trabalho, Rio de Janeiro. Aqui trabalhou como jornalista contratado nos diários A Pátria, A Vanguarda e outros). Domingos Passos (O Bakunin brasileiro, um dos mais ativos anarquistas e das maiores vitimas das autoridades brasileiras). Manuel Perez Fernandez (diretor do porta-voz do marceneiros cariocas). Expulso do Brasil em 1919, Perez foi para a Espanha, esteve refugiado em Lisboa, na França, voltou a Espanha e foi condenado à morte nos anos 1937-1939. Salvo por adido comercial brasileiro, voltou ao Rio de Janeiro e, em 1946, com Oiticica, Roberto das Neves e outros, ajudou a fundar Ação Direta: escrevia e falava muito bem (deixou um livro de memórias inédito comigo). Victorino e Luciano Trigo, José Oliva (o faz tudo em “Nossa Chácara”/Nosso Sítio), José Martins (autor de monumental obra histórica em dois volumes: História das Riquezas do Clero Católico e Protestante), Joaquim Moreira da Silva, poeta popular, cuja obra foi transformada em tese antológica com cerca de 600 páginas. As marcas destes pedreiros aparece na imprensa operária, na anarquista e/ou em atividades de educação racionalista e ainda incomodaram intelectuais, muitos políticos e autoridades. E fundaram a União dos Operários em Construção Civil, primeiro num quarto, em casa de família na rua Senador Eusébio, em 1917, e depois num prédio com espaço para escola e grupo de teatro social, educando e preparando anarquistas e atores. Ficava na rua Camari, 119. Encenaram peças como Gaspar, O Serralheiro, de Batista Machado, Amanhã, de Manuel La- 187 7 2005 ranjeiras, entre outras que sacudiam as teias de aranha dos “Casacas Velhas” do jornalismo e dos intelectuais e irritou a burguesia e as autoridades. Ainda na construção civil, conheci Diamantino Augusto, José Augusto de Castro, Manuel Lopes, Rodozinho Colmenero (diretor de A Voz Humana), Venâncio Pastorini (autor de opúsculos, como Cartilha Libertária), Luis Saturino, Augusto Godinho, Armindo Sarrilho, Fernando Neves, Manuel Correia, Manuel Marques Bastos, Pascula Gravina, José Salgueiro, João Perdigão Gutierrez fundador do jornal Dor Humana), Francisco Fernandes, Albino Soares; soube de Eládio César Antunha, e Antônio Julião (o cérebro da greve pelas 8 horas diárias em Santos) e quantos mais que deflagaram e orientaram greves, distribuíram manifestos, poesias revolucionárias, discursavam em comícios na praça pública, escreviam (e alguns dirigiam periódicos e distribuíam-nos nos locais de trabalho, dando inigualável colaboração ao teatro anarquista (Pascula Gravina, Manuel Marques Bastos, José Augusto de Castro). Os operários gráficos também escreveram livros, foram diretores de jornais e publicaram obras, participaram de congressos anarquistas, operários e pacifistas (contra a guerra, 1917): Carlos Dias (primeiro Diretor do diário Voz do Povo, autor da obra Contra Perpetuidade do Erro e da Mentira, dentre outras); Antônio Alves Pereira (diretor de A Aurora, tradutor de O Estado e seu Papel Histórico, de Kropotkin, autor do volume O Proletariado Militante); Alexandre Belo (fundador de Ação Sindical, São Paulo, 1958); Manuel Moscoso (diretor/fundador de A Liberdade e redator do Órgão da C.O.B, A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 1908, com Cecílio Vilar e outros); Polidoro Santos (publicou a revista Renovação, no Rio de Janeiro, 1905); Clemente Vieira dos Santos; Antônio Teixeira de Araújo e deze- 188 verve Os pedreiros da anarquia nas, centenas de operários ilustres, gráficos, jornalistas e carregadores de pedras para edificar o palácio da anarquia!!! Foram ao mesmo tempo escritores, jornalistas atores, oradores, contribuintes, distribuidores de imprensa pelo correio, de mão em mão, colaram nas paredes, foram presos, espancados e alguns expulsos. Conheci e visitei o camponês Elias Iltchenco, em Erebango, Rio Grande do Sul. Veio da Ucrânia, conheceu o anarquismo, aprendeu sem mestre, português, espanhol e esperanto; os ex-camponeses Maria Valverde, Cecílio Dias Lopes, Diego Gimenez, Aldigo Agostani, Gumercindo Alvarez, Emilio Tesoro e Vicente de Caria.3 Soube ainda de militantes pintores como Gigi Damiani (autor de peças de teatro anarquista, expulso para a Itália em 1919); José Romero (expulso para a Espanha em 1919, esteve em Lisboa, retornando clandestinamente para o Rio de Janeiro; foi um dos redatores de A Terra Livre, A Lanterna e, em Lisboa, de A Batalha: escrevia e falava bem); Rodolfo Felipe (dirigiu A Plebe muitos anos), João Navarro, um grande colecionador de obras, inclusive da Revista Blanca, que deu de presente. Damiani, Felipe e Romero foram dos melhores jornalistas operários que o movimento anarquista já teve. Conheci e soube de operários barbeiros, Amílcar dos Santos, Adalberto Viana (bom poeta libertário), Daniel Montalvão, Zacarias de Lima, e empregados do comércio: Adelino Tavares de Pinho4, Antônio Duarte Candeias5, Atílio Pessagno, Aquilino Massena, F.G. Sousa Passos (autor de vários opúsculos e deixou uma excelente obra inédita, O Sentido Artístico do Anarquismo). Podem-se juntar ainda outros pedreiros da anarquia, como Hilário Marques (caldeiro, fundador/diretor da revista A Sementeira, duas fases); Alexandre Zanella, José 189 7 2005 Rodrigues Reboredo (confeiteiro, tradutor do francês, espanhol e do alemão); Júlio Gonçalves Pereira, João Castanheira, Joana Buelo (têxteis), Aníbal Dantas (correeiro), Virgilio Dall’Oca (taxista), Frederico Kniested (vassoureiro, diretor de Aktíon, Der Freie Arbeiter, Alarm, em alemão e, em português, de O Sindicalismo, e deixou textos para o volume Memórias de um Imigrante Anarquista, 157 páginas, Rio Grande do Sul. Conheci, pessoalmente, Rafael Fernandez, amolador de tesouras e facas, em Porto Alegre. Nascido na Espanha veio menino para o Brasil. Nos últimos anos de vida muitos intelectuais iam à casa de Rafael, ouvi-lo falar, e só o conheciam como “El Paragüero”. Ajudou a fazer A Luta (2° fase) e vendeu jornais; também convivi com Margarida Barros, Virginia Dantas, Elvira Boni, costureiras, e soube de Teresa Nandes, Maria Rodrigues, Alfredo Vasquez (alfaiate); Isidoro Augusto (marmorista); José Reis Segueira (corticeiro); Antônio José do Amaral (cocheiro), Balezário Pereira (carvoeiro), e centenas e centenas de operários e operárias. Muitos nomes encontrei nas atas, na imprensa operária e no noticiário policial, acusados de subversão e só lutavam pela liberdade, pela Anarquia!!! Estivadores como Manuel Campos, diretor de O Protesto, e algum tempo de A Plebe; o vidreiro Belmiro da Silva Jacintho, pescadores João Franco e Jaime Rebelo; e o mineiro Valentim Adolfo João. A maioria desses pedreiros da anarquia estudou nos sindicatos e nos Centros de Cultura Social e aprenderam (sabiam) que Revolução é antes de tudo uma idéia, um sentimento, uma vontade cultural e sociológica; é trabalho e bem-estar social distribuído eqüitativamente por todos, por cada um. 190 verve Os pedreiros da anarquia Que Revolução principia nos cérebros, evolui livremente fundamentada numa filosofia de vida generosa e positiva, baseada em sentimentos de solidariedade e ações que equilibram atitudes e movimento, na harmonia que “funde” a natureza e o homem, que concebe e prepara personalidades, profissional e emocionalmente, para incorporar esforços e capacidades, caracteres bem formados, cidadãos tolerantes que aceitem seus companheiros como são e não como queriam que fossem, à sua imagem e semelhança, capazes de produzir, participar, dar e receber. Que Revolução consciente fomenta e desperta a grandeza de sentimentos, a solidariedade entre as pessoas, entre povos, cultiva todos os dias o Amor ao próximo, à Humanidade, com o mesmo carinho e seriedade como que cultiva a vida, ao mesmo tempo em que demonstra que o anarquismo não é estático, evolui sempre até tornar o trabalho agradável para todos, cada vez mais produtivo, menos desgastante até à perfeição. Que Revolução começa em cada cérebro humano! Nos cinco volumes Os companheiros6 evocamos 582 militantes (não consegui os nomes de todos os colaboradores) e destes menos de 2% eram intelectuais. Dos mais de 98% de trabalhadores braçais, de variadas profissões e ofícios, referenciados nos cinco volumes e neste texto, todos deram a sua colaboração ao anarquismo embasados nas idéias sindicalistas e libertárias. Ainda assim, estes artífices raramente são notados pelos que escrevem hoje revistas e livros, “demonstrando erudição acadêmica”. E, no entanto, pedreiros da anarquia têm a sua História escrita com, suor, lágrimas, sangue e fome! Deixaramna registrada em centenas de jornais, de manifestos, opúsculos, em atas, teses defendidas em Congressos 191 7 2005 Libertários, alguns nas praças públicas e/ou nas portas das fábricas. Em certa medida acabaram com a ortodoxia política em locais de trabalho, em vigor nos anos 20/30. Deixar apagar pelo tempo e pelo silêncio dos que escrevem hoje os construtores do palácio da anarquia é negar a igualdade do anarquismo. (Como ficaram dezenas, centenas de pedreiros da anarquia sem a nossa homenagem e nosso “protesto”, ainda voltarei ao tema!). Notas Esta denominação tomei-a “emprestada” do médico e anarquista Fábio Luz. Segundo este produtivo escritor e militante, após ler Palavras de um Revoltado, de Kropotkin, tornou-se um defensor do que chamava “O palácio da Anarquia, sempre de portas abertas para entrar e sair quem quisesse”. 1 Os anarquistas não viam com bons olhos as greves por aumentos salariais, pois quase sempre originavam aumentos de custo de vida e eternizavam a pobreza. Os anarquistas advogavam o fim do salariado, patronato, e o trabalho em autogestão: o fim do Estado que seria também o fim do capitalismo. 2 3 Italiano, anarquista, plantava cebolas em Sorocaba; deu aos seus filhos/filhas, os nomes de Anarquia, Progresso, Liberdade, Harmonia, Aurora, Círio, Germinal e Espartaco de Caria. Conheci Anarquia de Caria, companheira de João P. Gutierrez. Autor de vários opúsculos como Quem não trabalha não come e fundador/professor da Escola Moderna 2, São Paulo. Viveu dando aulas até ter fechada sua escola em 1919. Depois foi dar aulas de ensino livre no interior de São Paulo. 4 5 Autor com Edgar Leuenroth do livro O que é Maximalismo ou Bolchevismo, 1919. Antônio Duarte Candeias usou o pseudônimo de Hélio Negro. O 1° e 2° volumes foram editados no Rio de Janeiro por Editores Associados, 1994, e o 3°, 4° e 5° pela Editora Insular, Santa Catarina, 1997. 6 192 verve Os pedreiros da anarquia RESUMO Anarquismos são desenhados tecendo vidas de anarquistas que inventaram soluções libertárias no Brasil, no começo do século XX. Os Pedreiros da Anarquia, de Campinas, aparecem no interior de uma série de trabalhadores libertários que interromperam a continuidade da submissão, inventando novos costumes e novas formas de educação. Palavras-chave: Anarquia, Brasil, Educação. ABSTRACT Anarchisms are developed by the lives of anarchists that created libertarian solutions in Brazil, in the early XXth century. The Pedreiros da Anarquia (The bricklayers of anarchy), in Campinas, are inside a great amount of libertarian workers who refused the submission, inventing new custom and new ways of education. Keywords: Anarchy, Brazil, Education. Recebido para publicação em 17 de novembro de 2004. 193 7 2005 anarquia e anarquismo eduardo colombo* Nossa época, aberta às contradições e paradoxos, massacrada pela chapa de chumbo de um pensamento politicamente correto, aprendeu a deixar um espaço de gueto para a divergência e a marginalidade, desde que não se ultrapasse um certo umbral para além do qual as idéias tornam-se ação, e a heresia subversão. Assim, a anarquia exala um pouco menos a enxofre que antes e, edulcorada sob o qualificativo de “libertária”, saiu dos bas-fonds proletários para tornar-se uma palavra leve, e mesmo de bom tom nos salões e na imprensa, principalmente quando desliza em direção à direita e é acoplada ao adjetivo “liberal”. No entanto, as definições dos dicionários são interessantes por deixarem transparecer a persistência do pano de fundo semântico no qual a anarquia é incompatível com a ordem social estabelecida. * Anarquista argentino, foi professor da Universidad de la Plata y Buenos Aires, onde editou La Protesta. Radicado em Paris, desde os anos 1970, é psicanalista, participou de diversas publicações e atualmente edita Réfractions. “Anarchie et anarchisme”, Paris, Réfractions, 2001, no. 7. verve, 6: 194-207, 2004 194 verve Anarquia e anarquismo Textos antigos como o Dicionário da Academia Francesa, de 1694, estabelecem: “Anarquia: estado desregrado, sem chefe ou qualquer tipo de governo” , e a Enciclopédia de 1751: “Anarquia é uma desordem num Estado, e consiste no fato de que ninguém tem suficiente autoridade para comandar e fazer com que as leis sejam respeitadas, e onde conseqüentemente o povo se conduz como quer, sem subordinação e sem polícia”. O Littré, edição de 1885, diz: “Anarquia: ausência de governo e, em conseqüência, desordem e confusão”; “Anarquista: promotor de anarquia, perturbador”. A palavra “anarquismo” não figura no Littré. Contudo, o Grande Dicionário Universal do século XIX, de Pierre Larousse (1866), entre as definições habituais da anarquia, reconhece um outro tom, e cita: “Como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade busca a ordem na anarquia (Proudhon)”. E Larousse faz a seguir o seguinte comentário que, diga-se de passagem, lhe valeu o reconhecimento de Pierre-Joseph Proudhon: “O sr. Proudhon deu o nome, aparentemente paradoxal, de an-arquia, a uma teoria social que se baseia na idéia de contrato, em substituição àquela de autoridade. É preciso esclarecer que a anarquia proudhoniana não tem nada em comum com aquela da qual falamos acima. Sob esse nome, o célebre pensador apresenta uma organização da sociedade onde a política encontra-se absorvida na economia social, e o governo na administração, onde a justiça comutativa, estendendo-se a todos os fatos sociais e produzindo todas as suas conseqüências, realiza a ordem pela própria liberdade, e substitui completamente o regime feudal, governamental, militar, expressão da justiça distributiva.”1 Isto não o impede de colocar como antônimos de anarquia: “ordem, paz ou tranquilidade pública” e não “ Estado, poder político, autoridade”. A Encyclopaedia Britannica dá, em sua 11ª edição de 1910, a palavra a Kropotkin para explicar o verbete 195 7 2005 anarquismo: “ Nome dado a um princípio ou a uma teoria da vida e da conduta segundo os quais a sociedade é concebida sem governo”. “Os anarquistas consideram — diz ele — o sistema salarial e a produção capitalista como um obstáculo ao progresso. Mas eles também ressaltam que o Estado foi e continua a ser o principal instrumento que permite a alguns monopolizar a terra e aos capitalistas apropriarem-se de uma parte completamente desproporcional da mais-valia acumulada no ano da produção.” Entretanto, como o Estado encontra-se sempre presente, as idéias que o sustentam permanecem sem poder, sociedade política, nomoi, regras. No Petit Robert de 1970, encontramos a mesma definição tradicional “Anarquia: polit. Desordem resultante de uma ausência ou carência de autoridade”, mas com a palavra “anarquismo” chegamos a uma formulação quase correta: “Concepção política que tende a suprimir o Estado, a eliminar da sociedade qualquer poder dispondo de um direito de coerção sobre o indivíduo.”. Assim, a anarquia, é a desordem em conseqüência da carência de um poder estatal de coerção, definição eminentemente ideológica que estabelece uma relação de causalidade entre a ausência de governo e desordem, relação que o anarquismo precisamente nega. Evidentemente, o anarquismo busca a anarquia, afirmando que uma sociedade sem poder político institucionalizado, sem Estado, é a mais alta expressão da ordem. Bakunin escreveu em Estatismo e Anarquia2, livro que acompanha o nascimento do movimento no interior da vertente anti-autoritária da Primeira Internacional: “Pensamos que o povo não poderá ser feliz e livre senão quando, organizando-se de baixo para cima, por meio de associações autônomas e inteiramente livres, fora de qualquer tutela oficial, mas de forma alguma fora de influências diversas e livres numa igual medida de individualidades e partidos, ele próprio criar sua vida”. Ele afirmara no pa- 196 verve Anarquia e anarquismo rágrafo precedente que: “Qualquer poder de Estado, qualquer governo, colocado por sua natureza e posição fora ou acima do povo, deve necessariamente esforçar-se para submeter este último a regras e a objetivos que lhe são exteriores”. Portanto, “nós nos declaramos inimigos de todo poder de Estado, de todo governo, inimigos do sistema estatal em geral.” E conclui: “São essas as convicções dos revolucionários-socialistas, e é por isso que são chamados anarquistas. Não protestamos contra esse epíteto, pois somos, de fato, inimigos de qualquer autoridade, e sabemos que esta exerce o mesmo efeito perverso tanto sobre aqueles que dela são investidos quanto sobre aqueles que devem a ela se submeter. Sob sua ação deletéria, os primeiros tornam-se déspotas ambiciosos e ávidos, exploradores da sociedade visando lucro pessoal ou de casta; os outros, escravos.” Desde o congresso de Saint-Imier e esse escrito de Bakunin, passaram-se mais de cento e vinte anos e, com o vigor da experiência do movimento anarquista, de seus avatares, de sua sorte muitas vezes trágica, do medo que ele sempre suscitou nos proprietários e donos deste mundo, e da violenta repressão que eles lhe opuseram, nós, os anarquistas de hoje, orgulhosos da vivacidade de nossas idéias, podemos continuar a afirmar a anarquia como uma proposta para o futuro, como um caminho para as gerações vindouras. Diremos, então, que a anarquia designa um regime social baseado na liberdade individual e coletiva, regime do qual é banida qualquer forma institucionalizada de coerção e, conseqüentemente, qualquer forma instituída de poder político (ou de dominação). A liberdade anarquista, enquanto princípio positivo de organização política da sociedade, é a outra face da negação do princípio de autoridade, negação constitutiva do conceito de anarquia que atrai o acordo geral de todos 197 7 2005 aqueles que se reconhecem no anarquismo em todas as suas variantes, do individualismo ao comunismo (deixaremos aqui de lado este monstro híbrido e contra-natureza chamado anarquismo de direita). Se falamos de liberdade anarquista é porque dois elementos dão sua especificidade a essa liberdade própria a uma sociedade anarquista; um é a ruptura radical com a continuidade sócio-histórica do princípio do comando-obediência constitutivo de qualquer poder instituído, de qualquer “Estado” (paradigma tradicional da dominação justa). O outro é que, para os anarquistas, a liberdade não pode ser separada de uma sinergia dos valores, na qual a igualdade é sua condição necessária. Assim, a liberdade é uma criação social historicamente determinada, como aliás a dominação; apenas a negação escapa desse determinismo da ação acabada e torna-se a força criadora, a vontade de inovação. Proudhon escreve: “A negação em filosofia, em política, em teologia, em história, é a condição prévia da afirmação. Todo progresso começa por uma abolição, toda reforma se apóia na denúncia de um abuso, toda nova idéia repousa sobre a insuficiência demonstrada da antiga.” Da negação do governo surge a idéia positiva “que deve conduzir a civilização a sua nova forma”.3 Dito com as palavras de Bakunin: “A vontade — ou a paixão — de destruir é ao mesmo tempo uma vontade criadora.”4 Segue-se a crítica sem concessões ao contrato social dos liberais, tanto na linha lockeana quanto rousseauniana. Os “doutrinários liberais” afirmam que a liberdade individual é anterior à sociedade política e que cada indivíduo aliena-se no “pacto social”, na ficção de uma unidade coletiva abstrata depositária da soberania. Para os anarquistas, ao contrário, a liberdade advém na história. A idéia liberal que pressupõe os homens como “todos naturalmente livres, iguais e independentes”5, antes da sociedade política, serve para legitimar a existência do Estado. A partir 198 verve Anarquia e anarquismo de um pacto ou contrato primitivo teorizado como um ato de fundação do poder político “que supõe ao menos por uma vez a unanimidade”, os liberais justificam o dever de obedecer àqueles que comandam e de aceitar as leis impostas pelos diferentes regimes. “De fato, se não houvesse qualquer convenção anterior onde estaria”6 a obrigação de submeter-se ao Governo ou de obedecer à lei? De onde viria o direito de coagir do Estado? “O homem só chega com muita dificuldade à consciência de sua humanidade e à realização de sua liberdade.” É no interior da sociedade, com os outros seres humanos, que a idéia de liberdade aparece e se desenvolve como um valor a ser conquistado. A liberdade é “a grande meta, o fim supremo da história.”7 Dessa proposição decorre que, sendo a liberdade uma criação sócio-histórica, ela é a obra do coletivo humano. Nem nada, nem ninguém, nem deuses nem a natureza, dão ao homem sua liberdade. Ele se dá a si próprio, ele institui seu nomos, sua regra, sua “lei”. A anarquia estabelece, de início, um corte radical com qualquer heteronomia. A anarquia é, portanto, a figura de um espaço político não hierárquico organizado para e pela autonomia do sujeito da ação (a autonomia do sujeito humano, sujeito construído como forma individual ou coletiva). A construção desse espaço público, e das instituições que o tornarão possível, é uma tarefa sempre inacabada. Mesmo na sociedade mais aberta e mais livre que se possa conceber, o anarquista será um transgressor da norma; contra aquilo que é, ele estará ao lado daquilo que, ainda não sendo, tem a possibilidade de advir. “Tudo está na história, no social-histórico, mas o anarquismo não é historicista”.8 Errico Malatesta escreveu: “Não se trata de fazer a anarquia hoje, ou em dez séculos, mas de avançar na 199 7 2005 direção da anarquia hoje, amanhã, sempre.” Ele pensava que a anarquia somente seria possível se o homens a desejassem e se colocassem em ação uma vontade revolucionária. “A existência de uma vontade capaz de produzir efeitos novos, independentes das leis mecânicas da natureza, é um pressuposto necessário para aqueles que sustentam que é possível reformar a sociedade.”9 E para ir na direção de um “estado de sociedade sem governo, sem poder, sem autoridade constituída”10 é preciso, então, pensá-lo e querê-lo. Assim concebida, a anarquia inscreve-se na longa duração da História, ela se identifica com o espírito de revolta e com o desejo de liberdade, mas acrescenta um conteúdo conceitual, uma imagem de sociedade que lhe é própria. Com um certo anacronismo, autores diversos pensaram ver no passado longínquo o sopro da anarquia: mesmo Max Nettlau, o Heródoto da anarquia como é chamado por Rudolph Rocker, vai buscar na Antiguidade a “lembrança de revoltas e até de lutas, que nunca atingiram seus fins, levadas a cabo por alguns rebeldes contra mais poderosos” e, segundo o mito dos Titãs ou de Prometeu, passando pelos heréticos contra os dogmas do papado romano, os Irmãos do livre espírito, os discípulos de Huss, os libertinos, os mártires como Servet ou Bruno, a Abadia de Telemo, os furiosos, Babeuf e Maréchal, até a Enquiry concerning Political Justice de Godwin, ele irá encontrar aí os precursores desses anarquistas que talvez um dia darão fim à “longa noite da era autoritária”. Todas essas lutas, esses esforços, esses sofrimentos, as aspirações desses vencidos muitas vezes mergulhados em sangue, são momentos formidáveis no caminho da liberdade; eles abriram o caminho para o anarquismo, mas ainda não fazem parte da idéia da anarquia. O trono desmorona e o altar treme, a república substitui a monarquia de direito divino, mas a luta contra a au- 200 verve Anarquia e anarquismo toridade instalada não significa em si a negação de toda autoridade, nem se alinha necessariamente com a imagem de uma sociedade sem coerção. Como diz Claude Harmel, em sua Histoire de l’anarchie: “Se incluíssemos na linhagem anarquista todos aqueles que se revoltaram contra o poder, contra a idéia de poder, a história da anarquia se confundiria com a história dos homens: ela seria o avesso da história universal.” Imaginar a anarquia como a definimos, pensar a teoria ou o projeto de uma sociedade anarquista, é uma possibilidade que aparece em um momento particular da história do Ocidente e que não surge, acabada e por acaso, da cabeça de um rebelde genial; ela é o produto das condições reais da exploração e da dominação de classe, da forma estatal do poder político e das lutas sociais conexas. Ela é filha da Luzes e da Revolução Francesa. Mas, uma vez concebida, ela não se reduz às condições que determinaram seu nascimento. Sua força expansiva propaga-se como um valor à disposição de toda a humanidade. Além disso, as idéias em geral não tem uma origem identificável, elas existem em embrião, ou em fragmentos, aqui e ali, mas elas se solicitam, reúnem-se, reorganizam-se e adquirem, retrospectivamente, um sentido novo quando uma nova situação social as faz viver. A idéia surge da ação e deve voltar à ação, afirmava Proudhon11, e Bakunin vai mais longe12: é preciso ir da vida à idéia. “Quem se apóia na abstração, aí encontrará a morte”. Quando o movimento anarquista se constitui como tal — origem que podemos situar historicamente, para dar uma data simbólica, no congresso de Saint-Imier —o anarquismo irá se tornar um corpus teórico que organiza, sistematiza, representa e justifica a luta, e os métodos de luta, para chegar a uma transformação profunda da sociedade visando construir um espaço político — ou regime político — concebido como anarquia. 201 7 2005 A anarquia é a meta, a finalidade do anarquismo. No entanto, o conteúdo socialista do anarquismo não se concentra em uma única tendência e, de acordo com os momentos da história e as regiões do globo, as correntes anarco-individualistas, mesmo minoritárias, sempre irão manifestar sua presença. Evidentemente, pela própria lógica que emana de suas premissas, e também pelo espírito iconoclasta que lhe é inerente, o anarquismo nunca será redutível a uma única doutrina, nem a um pensamento justo ou correto. Sem centro, sem dogma, combatendo sem trégua qualquer grupo que em seu nome pretender definir uma ortodoxia, o anarquismo será múltiplo, diverso, multicolorido. Por essas mesmas razões, Malatesta dava, ou melhor, acrescentava, uma outra interpretação para a distinção entre anarquismo e anarquia. Ele queria liberar o anarquismo de qualquer ligação com um espírito de sistema, sempre restritivo, que o faria depender de uma “verdade” científica ou uma demonstração filosófica. “O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais”, da luta contra a exploração e a opressão; somente o desejo e a vontade de mudar justificam a anarquia. “A anarquia [...] é o ideal que talvez nem mesmo se realize, assim como nunca se atinge a linha do horizonte, que se distancia conforme nos aproximamos dela, [em contrapartida] o anarquismo é um método de vida e de luta, e deve ser praticado hoje e sempre, pelos anarquistas, no limite das possibilidades que variam de acordo com os tempos e as circunstâncias.”13 O anarquismo, como teoria da sociedade e da revolução ou como método de ação, pertence à épistémè de sua época e depende do clima social onde ele se desenvolve. A anarquia, como valor, é mais ligada à negação do presente e à aspiração, que gostaríamos de acreditar universal, a um mundo de livres e iguais. 202 verve Anarquia e anarquismo Assim, se a idéia, e mesmo a palavra “anarquia” podem ser encontrados na palavra de alguns precursores — Willian Godwin, Pierre-Joseph Proudhon, Anselm Bellegarrigue, Ernest Coeurderoy, Joseph Déjacques — o anarquismo revolucionário e socialista é construído assim que termina a Comuna. O pensamento coletivo elaborado no interior da velha Internacional vai se desenvolver, para os anarquistas, sobre algumas linhas de força maiores: o enfrentamento e a não-colaboração das classes, o internacionalismo, o federalismo, a ação direta. Os prodhonianos haviam se tornado minoria — os marxistas também o eram, como sempre o foram — no interior da Primeira Internacional — quando Eugène Varlin escreveu a James Guillaume (dezembro de 1869): “Os princípios que devemos nos esforçar para fazer prevalecer são aqueles da quase unanimidade dos delegados da Internacional no congresso de Bâle (setembro de 1869), ou seja, o coletivismo ou o comunismo não-autoritário.”14 Na época, o que fora afirmado e representado pelo coletivismo era que a terra e os instrumentos de trabalho, todos os meios de produção, deveriam ser propriedade coletiva. Que o Estado seria substituído pela livre federação dos produtores, e o assalariado pelo trabalho associado, que garantiria a todos e a cada um o produto integral de seu trabalho. “De cada um segundo seus meios, a cada um de acordo com seu trabalho.” Para os primeiros internacionalistas, para Bakunin e Guillaume, para os jurassianos, este princípio dito coletivista era suficiente; os espanhóis permaneceram ligados a ele até o fim do século. Eles pensavam que após a revolução, cada grupo ou coletividade avaliaria, em função de suas possibilidades, qual modo de distribuição do produto poderia ser adotado. Guillume reconhecia que a repartição (ou a divisão) era “talvez o pon203 7 2005 to mais delicado de toda a organização social...” e nunca quis abandonar o ponto de vista coletivista. Mas ninguém tinha uma idéia clara — pensava Malatesta em sua polêmica com Nettlau em 192615 — quanto ao modo de atribuir a cada indivíduo, ou a cada associação, a parte do solo, a matéria prima e os instrumentos de trabalho que lhes caberia, nem como medir o trabalho de cada um, nem como estabelecer um critério de valor para a troca. A seção italiana da Internacional, no congresso de Florença de 1876, será a primeira a adotar o comunismo anarquista para resolver esse problema. Os delegados pensaram que a única solução para realizar o ideal da fraternidade humana escapando de qualquer embrião de governo, e ao mesmo tempo, eliminando as insolúveis dificuldades da medida do esforço do trabalho e do valor do produto, era a organização comunista na qual cada um daria, voluntariamente, sua contribuição à produção e consumiria livremente aquilo que necessitava.16 Essas opiniões foram rapidamente difundidas no Jura e em Genebra por François Dumartheray, Carlo Cafiero, Elisée Reclus, Piotr Kropotkin e outros, retomadas em seguida pelo Révolté de Genebra e de Paris e, a partir dos anos 1879-80, elas se generalizaram para a quase totalidade do movimento anarquista. Assim, o anarco-comunismo propagou o lema: “De cada um, segundo suas forças, a cada um segundo suas necessidades.” Alguns, como Nettlau, que cita a seu favor os “corajosos anunciadores de um anarquismo sem hipótese econômica, como Ricardo Mella e Voltairine de Cleyre”, continuaram a defender o anarco-coletivismo e a recriminar os anarco-comunistas por seu desejo de ir o mais longe possível sem ver que o comunismo exigia a abundância, e que a Revolução deve resolver, assim que terminada, o problema do abastecimento de todos, sendo 204 verve Anarquia e anarquismo certo que isso se dará em meio à penúria. “Tomar indistintamente” seria um desastre para os revolucionários. É possível, reconhece Malatesta, que “no entusiasmo dos iniciadores nós tenhamos imaginado as coisas mais simples e mais fáceis do que elas são na realidade, mas não deixamos de compreender e de ressaltar que a abundância é uma condição necessária do comunismo, e que essa abundância não pode ser produzida num regime capitalista.” [...] “O talento literário e o grande prestígio de Kropotkin tinham tornado aceitável a infeliz fórmula della presa nel mucchio (tomar indistintamente), mas “retornando da América do Sul (1890), chamei a atenção para o absurdo da crença na abundância, e tentei demonstrar que o prejuízo provocado pelo regime capitalista não é tanto a criação de um enxame de parasitas, mas o de impedir a abundância possível, detendo a produção ali onde se detém o lucro do capitalista.”17 O anarquismo revolucionário permaneceu comunista mesmo sabendo que nem a anarquia nem a passagem de uma economia de sobrevivência para uma economia de abundância podem ser feitas em um dia, mas que a luta para chegar a isso é de hoje, de amanhã e de sempre. Tradução do francês por Martha Gambini. Notas 1 “Distinguem-se comumente a justiça distributiva e a justiça comutativa. A primeira, exercida por via de autoridade, consiste na repartição dos bens e dos males segundo o mérito das pessoas. A justiça comutativa, ao contrário, consiste na igualdade das coisas trocadas, na equivalência das obrigações e das cargas estipuladas nos contratos. Ela comporta a reciprocidade, e se fosse realizada em estado 205 7 2005 puro, excluiria a intervenção de um terceiro, ao passo que essa intervenção é a própria condição do exercício da justiça distributiva. “1. Commutative (justice), in Vocabulaire technique et critique de la philosophie de André Lalande (1991). 2 Michel Bakounine, Étatisme et Anarchie. Œuvres complètes, éd. Champ libre, Paris, 1976, vol. iv, p. 312 (escrito em 1873, Estatismo e anarquia é o último texto de Bakunin publicado antes de sua morte, ocorrida em 1876). Há publicação em protuguês como Estatismo e anarquia, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São Paulo, Imaginário/Nu-Sol/Ícone, 2003. (N. E.). Pierre-Joseph Proudhon, Du principe d’autorité – Idée générale de la révolution au XIXe siècle, Paris, éd. de la Fédération anarchiste, 1979, p. 82 (ver crítica de Rousseau: pp. 94-96). 3 Michel Bakounine, “La Réaction en Allemagne” [1842], in l’Anarchisme aujourd’hui de Jean Barrué, Paris, Spartacus, 1970 (A tradução feita por Barrué da célebre fórmula é: “A volúpia de destruir é ao mesmo tempo uma volúpia criadora!!!!), p. 104. Lemos essas linhas estranhamente semelhantes trinta anos após em Estatismo e anarquia : “Essa paixão negativa da destruição está longe de ser suficiente para levar a causa revolucionária ao nível desejado; mas sem ela essa causa é inconcebível, e mesmo impossível, pois não há revolução sem destruição profunda e apaixonada, destruição salvadora e fecunda, porque precisamente dela, e somente por ela, são criados e produzidos novos mundos.” 4 5 John Locke, Traité du gouvernement civil, chapitre VIII: Du commencement des sociétés politiques. 6 Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, livre I, chapitre V. 7 Michel Bakounine, “l’Empire knouto-germanique [ Dieu et l’État ]”, in Bakounine, Œuvres complètes, vol. viii, éd. Champ libre, Paris, 1982. Publicado em português como Deus e o Estado, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São Paulo, Imaginário/ Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, 2000, v. 9. (N.E.). 8 Por “historicismo” entendemos o ponto de vista que toma como norma aquilo que é historicamente consagrado; Feuerbach denuncia no historicismo uma forma de relativismo histórico levando à aceitação não crítica do mundo presente. Se o historicismo torna-se prospectivo, ele verá no fim da história o cumprimento de uma finalidade: o advento do reino de Deus, ou o triunfo do proletariado. 9 Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 2, Roma, 1926. “Ancora su scienza e anarchia”, in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 211. A. Hamon. Socialisme et Anarchisme, Paris, éd. E. Sansot et Cia, 1905 (Definição de anarquia, p. 114). 10 Pierre-Joseph Proudhon. De la Justice dans la Révolution et dans l’Église, Paris, Garnier Frères, 1858, tome II, p. 215. 11 206 verve Anarquia e anarquismo 12 Michel Bakounine. Étatisme et Anarchie, op. cit., p. 309. Errico Malatesta. “Repubblicanesimo sociale e anarchismo”, Umanità Nova, n° 100, Roma, 1922, in Scritti, Ginevra, 1936, vol. II, pp. 42-43. 13 James Guillaume. l’Internationale. Documents et souvenirs, édit. Grounauer, Genève, 1980, vol. I, p. 258 14 Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 14, Roma, 1926. “Internazionale collettivista e comunismo anarchico” in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 253 e sgs (ver também os dois artigos de Max Nettlau publicados no Suplemento de La Protesta de Buenos Aires : “Colectivismo y comunismo antiautoritario en la concepción de P. Kropotkin”, 20 de setembro de 1928; “Algunos documentos sobre los orígenes del anarquismo comunista” [1876-1880], 6 de maio de 1929). 15 16 Idem, p. 260. 17 Ibidem, pp. 263-264. RESUMO A importância do comunismo anarquista, situado historicamente, no interior dos anarquismos. Palavras-chave: Anarquismos, comunismo anarquista, anarco-sindicalismo. ABSTRACT The importance of the anarchist communism, historically located inside the anarchists practices. Keywords: anarchism, anarchist communism, anarco-syndicalism. Indicado para publicação em 15 de março de 2004. 207 7 2005 quando se anda de costas para a lua a sombra chega antes Sergio Cohn 208 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista centro de cultura social, uma prática anarquista entrevista com josé carlos morel Apresentação Estamos na nova sede do Centro de Cultura Social, associação anarquista criada em 1933, situada na Rua Inácio Araújo, 191-A, em frente a estação Bresser do Metrô, na cidade de São Paulo. Sentados em roda, estão José Carlos Morel e alguns companheiros do Centro de Cultura Social — CCS (Nildo Avelino, Anamaria Salles, Fabrício Martinez, Francisco Cuberos Neto, Francisco Romero Ripó Neto, Nilton César dos Santos Melo). Entre eles Edson Passetti, Acácio Augusto e Thiago Parafuso Sousa Santos, pilotando a câmera. É sábado, 31 de janeiro de 2004, à tarde, durante uma forte chuva de verão. A longa conversação atravessa a tempestade entre cafés, risadas, interrupções, trocas de concepções. Uma parte desta conversação foi transcrita para cá. verve, 7: 209-223, 2005 209 7 2005 Nu-SoL — Como é que aconteceu o anarquismo na sua vida? Morel — A primeira vez que eu ouvi falar de anarquismo, de uma maneira não pejorativa, foi em 68, num artigo da revista Manchete. Maio de 68, aquela coisa toda. A Manchete publicou um artigo que falava dos jovens anarquistas com uma foto de uma passeata enorme em Paris. Aquela em que os caras estavam derrubando os carros, com umas bandeiras pretas em cima da barricada feita com automóveis. Esta foi a primeira vez que ouvi falar de anarquismo. Eu já tinha uma inquietude em relação a isso. A minha família era muito politizada. Os anos sessenta, no Brasil, foram anos de muita polarização política. Eu me sentia, instintivamente, próximo do socialismo, mas aquelas coisas que o partido comunista fazia eu achava muito, muito chato, uma merda! Eu procurava alternativas e, na época, tinha muita coisa rolando. O anarquismo aconteceu politicamente aí, fazendo uma proposta de mudança, de revolução, que não passava pelo partido, pela organização centralizada. Logo a seguir, achei num sebo aquele livro do George Orwel sobre a Espanha, editado pela Civilização Brasileira. E lá se falava um pouquinho de anarquismo, mas o Orwel nunca desceu do muro. Ele era simpático aos anarquistas, mas não explicava muita coisa. Mesmo assim, comecei a me interessar, a buscar coisas. Um ano e meio depois, encontrei três livros que foram importantes. Um eu encontrei num sebo que ficava lá perto do largo São Francisco. Era o livro de um português chamado Silva Mendes, de 1892, chamado: Socialismo Libertário ou Anarquismo. Na livraria Hemus, que ficava na São João encontrei dois livros que o Roberto das Neves tinha editado: O Anarquismo, uma coletânea de artigos do Edgar Leuenroth, e a tradução de O Anarquismo do Daniel Guérin. Então, comecei a ler e a descobrir. Tinha aquele negócio que o Karl Marx era o grande pen210 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista sador do socialismo, e o Silva Mendes descrevia toda aquela luta do Marx contra o Proudhon, do Marx com o Bakunin; um livro muito bem feito, uma tese defendida na Universidade de Coimbra. Escrevi para o Roberto das Neves, que tinha uma caixa postal impressa na orelha do livro. Ele me deu o endereço do Centro de Cultura Social, lá no Brás. Lá bati, mas estava fechado. Eu fiquei meio perdido. Só fui encontrar o Jaime Cubero em 1971, por meio de um colega meu de universidade, o Marcelo Guimarães da Silva Lima. Comecei a me envolver com o movimento. É mais ou menos esta a história... — Em 1971, o Centro de Cultura estava fechado... — Tinha ocorrido aquela repressão toda em 68. O pessoal do Rio de Janeiro tinha dançado, estava meio mundo ainda preso; acho que em 1970, o Ideal Peres estava saindo da cadeia. O pessoal aqui em São Paulo quando soube que eles tinham sido presos, achou prudente fechar. Fecharam as atividades na cidade, o Centro de Cultura, e passaram a fazer movimento clandestinamente. — Quantas pessoas estavam envolvidas na época com o Centro de Cultura Social? — Olha, aqui em São Paulo tinha bastante gente. Quer dizer... A gente se reunia lá na loja do Jaime, na Celso Garcia, 727, lá no sítio... — O sítio que você está se referindo é a “Nossa Chácara”? — É, a “Nossa Chácara”. — Já era em Mogi? — Já era em Mogi. Chegávamos a fazer reuniões com 40, 50 pessoas. Naquele tempo tinha muita gente do 211 7 2005 antigo movimento ainda viva. Foi no contato com estas pessoas que fui me formando. — E estas pessoas atuavam em quê? — Olha, basicamente a gente tentava fazer o que era possível; era muito pouco. Uma atividade importante era manter o sítio. Uma outra foi a solidariedade aos companheiros presos no Rio de Janeiro. O processo custou muito caro, teve de ser contratado um bom advogado, subornar gente pra sumir com provas... A coisa foi complicada! Custou muito dinheiro. No começo dos anos 70, esta era, digamos, uma atividade importante: tirar os caras da cadeia. Depois começou a haver um interesse sobre o anarquismo, cultivado por várias coisas. Uma delas foi a venda do arquivo Edgar Leuenroth, que aliás essa é uma história que tem que ser contada direitinho, noutra ocasião. O arquivo nunca foi propriedade pessoal da família do Edgar Leuenroth, mas sim do movimento anarquista. Mas, enfim, a família do Edgar Leuenroth vendeu o arquivo pra UNICAMP, aí começou a haver um certo interesse. Era 1973. O Azis Simão, que foi professor de Sociologia da USP, queria levar o arquivo para lá, mas naquele tempo o reitor era o Miguel Reale, que era um fascista, etc e tal. E aí, acabou indo pra UNICAMP, porque o Zeferino Vaz, embora sendo um homem de direita, era um cara com uma cabeça universitária mais aberta e percebeu a importância do acervo. Enquanto isso, começou a haver interesse pelo anarquismo e vinha muita gente procurar o Jaime, o Germinal, os velhinhos para saber de coisas sobre a história do movimento. E se fazia isso, além de manter o trabalho de correspondência com grupos de fora e o de articulação dentro do Brasil. Até 1976, havia basicamente um grupo atuante aqui em São Paulo, que tinha a “Nossa Chácara”; o pessoal do Rio que se rearticulou depois de sair da prisão; e tinha o pessoal no Rio Grande 212 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista do Sul, em Porto Alegre, que eram o Puig, o nosso companheiro Augusto, já falecido, e que era um militante exilado da revolução espanhola. O Salvador também. Nós nos correspondíamos, fazíamos alguns encontros, e atuávamos, na medida do possível, no movimento estudantil, alguma coisa no movimento sindical, muito pouquinho. Foi só no final dos anos setenta que a gente conseguiu aumentar os grupos. Bom, no começo foi assim. — A tua formação foi dentro do Centro de Cultura Social? — Foi dentro do Grupo Projeção. O Centro de Cultura foi organizado só em meados dos anos oitenta. A gente formou, naquela época, o Grupo Projeção. — Você era o caçula? — Eu era o caçula... foi em 1974, um pouco depois do desfecho do processo lá no Rio. Do Grupo Projeção faziam parte: Diamantino Augusto, que é uma excelente figura, um cara das greves de Santos, botava bomba no forno de padaria, excelente companheiro; o Edgar Rodrigues; o Fernando; o Matos; o Ideal — Ideal Peres; Ester Redes; Jaime Cubero; Francisco Cuberos; o Nito Lemos Reis; o Liberto Lemos Reis... — O Martinez? — Antônio Martinez, também um excelente companheiro, operário metalúrgico e veterano dos combates contra os fascistas na Praça da Sé em 1933, um cara de muito valor, e eu, doze. Era essa era a formação inicial do Grupo Projeção. Eu tinha lido um pouco sobre anarquismo, mas a formação prática eu tive dentro do Projeção, dentro do sítio, onde as coisas se faziam. — Por que criar o Grupo Projeção? 213 7 2005 — O Projeção foi fundado com uma dupla finalidade: preservar e resgatar o que tinha sobrado da memória, porque grande parte tinha ido embora para UNICAMP; foi fundado com a idéia de se rearticular o movimento naquela etapa, era o finzinho dos anos Médici, uma conjuntura muito difícil. A gente tinha de começar a fazer alguma coisa. Tinha o sítio e afinal de contas, havia alguns grupos remanescentes, uma intensa correspondência. Naquele tempo ainda não tinha entrado a ditadura pra valer na Argentina. Lá e na Venezuela havia muitos grupos anarquistas com os quais nos correspondíamos. Tentava-se fazer alguma coisa, na medida do possível, de apoio a esses grupos. Atuar na conjuntura política local era muito difícil, porque você tinha de um lado a ditadura fascista, e de outro lado a esquerda dominada pelo Partido Comunista. Até os trotskistas, naquele tempo eram extrema esquerda. Você compara, por exemplo, o Pallocci, hoje alinhado com o FMI e..., pensar que nos anos setenta os troscos se diziam de extrema esquerda, soa gozado hoje em dia!... Então, foi aí que a gente começou. O Projeção teve um papel, acho que muito importante, na rearticulação do movimento anarquista no Brasil e, também, na continuidade desse movimento. Existe um erro cometido pelos historiadores ao afirmarem, desde os anos sessenta que “o anarquismo morreu quando se fundou o Partido Comunista em vinte e dois”. Mas a pesquisa histórica avançou e mostrou que até trinta e cinco, trinta e sete tinha anarquista atuando; daí o enunciado se redimensionou, passando-se a decretar a morte do anarquismo no final dos anos trinta. Mais tarde, passaram a afirmar que o anarquismo acabou depois da ditadura Vargas; aí a pesquisa histórica vai lá, vai olhar, e vê que os anarquistas não morreram, até sessenta e oito, setenta eles estavam fazendo coisas. De fato, no começo da década de setenta a gente estava meio por baixo, quer dizer, não tinha 214 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista muito movimento, não havia uma juventude... No meu tempo de estudante, eu era considerado, assim, uma coisa bizarra. Ser anarquista e ser universitário era uma coisa complicada. E a malhação era pesada, também. Acusavam o anarquismo de pequeno burguês, de instrumento objetivo da burguesia, de fóssil ideológico. Organizar o movimento era muito difícil. Só começou a acontecer efetivamente a partir de 1975. O panorama começa a mudar, mesmo na Europa e nos EUA. Ocorre a Revolução dos Cravos, em Portugal. Tinha-se derrubado o fascismo por uma revolução levada pelos grupos de extrema esquerda, autonomistas. E os anarquistas começam a se rearticular em Portugal, e a gente começou a apoiar o movimento português, com algum material de propaganda que restava — brochuras do Faure, do Malatesta, folhetos anarco-sindicalistas, etc.) O Jaime nesse ponto teve um papel importantíssimo. Ele e o Chico [Francisco Cuberos], porque era através da loja de sapatos que eles tinham que se despachava material, driblavam a censura... Então, no comecinho foi assim. Em meados da década de setenta o movimento começa a crescer um pouco. O Ideal entra em contato com o Renato Liper na Bahia, por volta de setenta e cinco, setenta e seis. E dois anos depois, em setenta e sete, a gente faz um congresso na “Nossa Chácara” e se lança o jornal Inimigo do Rei, que já tinha dois números e era uma iniciativa dos baianos. No carnaval de setenta e sete a gente resolve transformar o Inimigo do Rei no porta voz dos anarquistas no Brasil. E aí eu acho que há uma marca e o anarquismo toma um novo impulso no Brasil, muita gente jovem aparece; começa a se criar grupos em vários locais do Brasil: no Nordeste, em Mato Grosso, e mesmo aqui em São Paulo, com grupos feministas e estudantes muito ativos. São estabelecidos vínculos mais fortes com o movimento sindical e criados grupos anarco-sindicalistas, grupos de homossexuais, grupos ecoló- 215 7 2005 gicos... Eu me lembro que teve uma manifestação que nós fizemos em setenta e oito contra aquele negócio de Angra II, enriquecimento de urânio pra fazer a bomba, etc e tal; os anarquistas, eles eram a maioria da passeata na praça da Sé. O Inimigo do Rei, chegou a vender, só aqui em São Paulo, com o esforço dos militantes mesmo, quatro mil exemplares. Então, acho que a partir daí entra uma outra fase. Eu acho que são dois momentos: começo dos anos setenta até final da década e o Inimigo do Rei. Ele mostra claramente a vitalidade do anarquismo, que era insuspeita, e começa a atrair a atenção de muita gente jovem; é então que se pensa em rearticular o Centro de Cultura Social. — E como isso aconteceu? — Houve várias tentativas. Entre 1977-1978, o pessoal aqui em São Paulo estava pensando em rearticular o Centro de Cultura; me lembro de uma reunião do Projeção que a gente fez, o Ideal até defendeu uma posição contrária, porque ele achou que na época, se a gente fundasse o Centro de Cultura, a gente ia se fechar, quer dizer, a gente estava na época atuando em vários movimentos sociais. O Ideal começou a atuar em movimentos de bairros com uma força muito grande no Rio de Janeiro. Depois o Brizola se apropriou, mas realmente foi um impulso... Eu cheguei a participar de um congresso lá com o Ideal em setenta e nove aonde havia dois mil e poucos delegados de bairro: o congresso se deu sem mesa. Uma pessoa pra tomar conta das inscrições, um microfone no canto, a pessoa pegava seu número na hora de falar, quer dizer: um congresso com duas mil e quinhentas pessoas, dois dias e meio de congresso que aconteceu sem mesa, discutindo os problemas da cidade. Então, naquele momento o Ideal foi contra a gente tentar fundar o Centro de Cultura, porque ele achava que a gente ia deixar de fazer o trabalho de 216 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista propaganda e divulgação, que estava indo muito bem e iria se fechar em torno de uma organização. Somente retomamos a idéia de reabrir o Centro de Cultura Social por volta de 1982. Aí a conjuntura já era outra. O anarquismo nesses anos se consolida. Uma das vantagens (vantagem entre aspas) da ida do arquivo para UNICAMP foi que as pessoas começaram a pesquisar naquele arquivo, e começou a se desmistificar uma imagem que os marxistas faziam do anarquismo, começou a se ver que não era nada daquilo, que o anarquismo era um movimento político forte, atuante, que tinha presença não só no meio dos trabalhadores, mas em vários outros meios, tinha presença entre os intelectuais, uma visão ampla do mundo, não era só uma questão economicista, não era só uma questão de classe apenas. Isso tudo foi sendo descoberto, entre três aspas também, pelo pessoal que faz os trabalhos lá no arquivo Edgar Leuenroth, na minha opinião muito contra vontade; se você for pegar a bibliografia destes trabalhos os caras citam Marx, citam Trotski, citam Althuser, citam Che, etc. e tal, mas ler texto anarquista que é bom é uma minoria que lê. Mas mesmo assim os fatos existem e não podem ser negados. Naquela antologia que o Paulo Sérgio Pinheiro fez, A Classe Operária no Brasil, ele faz o possível pra dizer que não teve anarquismo no Brasil, mas os textos que ele junta mostram que não só você teve anarquismo, como tinha o anarquismo forte, atuante, com uma proposta de mudança social totalmente diferente do que o Partido Comunista teria, e que tinha penetração social. Então, foi esse fato, no meu entender pelo menos, que começou a despertar na cabeça das pessoas a questão da viabilidade. Então, o anarquismo não é mais uma idéia, não é uma coisa gostosa de se pensar, não é uma bela utopia, mas é alguma coisa que você pode construir. 217 7 2005 — No que você diferencia o anarquismo de todas as outras concepções de socialismo? — Eu não vejo o anarquismo só como um ativismo sem meta. O anarquismo aponta para uma transformação da realidade social. Ele aposta na capacidade das pessoas de se auto-organizarem, mas isso não quer dizer que é uma explosão, um “vamos ver pra onde a coisa vai”, não. Eu acho que existe a questão organizativa. Mas o anarquismo não é messiânico, não aponta para um estágio final de sociedade. Desde Proudhon o anarquismo pensa que as contradições estão aí, podem ser superadas, mas que não há um fim da história. A história é um contínuo construir. E nesse sentido a concepção que você vai ter de revolução é outra. Se você falar: eu quero o anarquismo para o ano três mil, até o George Bush vai querer, porque não vai mudar nada aqui e agora. Entretanto, se você falar: bom, eu não posso fazer o anarquismo para semana que vem, mas eu gostaria de ver até o final da minha vida a sociedade se encaminhar para um estado menos autoritário, uma participação mais direta das pessoas, aí você começa a mexer com interesses concretos. Eu acho que tem essa polaridade entre a evolução e a revolução, que para mim é característica do pensamento anarquista. — De onde vem a prática do Centro de Cultura? — O Centro de Cultura vem da necessidade de formar um espaço onde a informação política e a informação técnica, estejam disponíveis. Em segundo lugar que essa informação seja submetida continuamente ao debate, porque a partir desse debate, realmente, não só você aprende, como você começa a perceber o limite dessa informação, você começa a criar os fatos novos. Eu vejo o Centro de Cultura como um herdeiro dessa tradição. É claro, que o momento no qual ele é criado, é um momento de crise. Nos anos trinta o anarco-sindi218 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista calismo no Brasil está sendo acossado. Na I Internacional a idéia dos ateneus estava ligada à idéia de sindicato; então, sindicato, bolsa de trabalho, escola racionalista e ateneu libertário, seriam os quatros vértices, o quadrilátero de ação política dos anarquistas. Nos anos trinta isso não é mais assim, eu acho que a organização sindical dos anarquistas está sendo acossada, de um lado pela repressão policial, de outro lado, pela burocratização, pela legislação... pela formação dos sindicatos atrelados ao governo. Os comunistas entram direto nisso aí, e esta é uma história que precisa ser contada. Nenhum historiador se debruçou, ou teve a curiosidade de se debruçar sobre os fatos para saber qual foi a compactuação dos marxistas com o modelo vertical de sindicato, qual foi a compactuação dos marxistas com o controle do trabalhador. Eu conheci, na loja do Jaime e do Chico, um cidadão chamado J. Antônio. Acho que nos anos setenta ele já tinha noventa anos. O J. Antônio se recusou até noventa e tantos anos a ter carteira de trabalho assinada. Ele morreu vendendo creolina no Largo da Concórdia [no bairro do Brás-SP], naqueles hoteizinhos ali embaixo, no Largo da Concórdia. A sua profissão até noventa e tantos anos, era a de vendedor de creolina. Não tinha aposentadoria, não tinha carteira de trabalho assinada. Porque ele se recusava a prestar satisfações ao Estado. Então, era esse tipo de gente, não só os famosos, que formava o Centro de Cultura. Era esse tipo de gente que formava a “Nossa Chácara”; que formava o sindicato anarco-sindicalista em São Paulo e no Rio de Janeiro, até 1935, 1937. Nesse momento de crise, em 1933, o Centro de Cultura é fundado porque há uma percepção da parte do Edgar e dos outros militantes, que a atuação sindical precisava ser modificada. Era preciso mudar um pouco a tática. Mas eu acho que basicamente o projeto que o Centro de Cultura tem ainda nos anos trinta, é um projeto que você pode ver 219 7 2005 na I Internacional. Em 1945, a conjuntura mudou bastante. A ênfase principal do trabalho dos anarquistas passa a ser a atuação dentro do Centro de Cultura; o Centro de Cultura passa a adquirir um caráter, então, não só, digamos, de universidade popular, mas passa a adquirir um caráter também de instrumento político dos anarquistas. E aí, o que há de notar nessa fase, de quarenta e cinco a sessenta e oito, coisas realmente que são, no meu modo de entender, revolucionárias. Em 1946, o Centro de Cultura promove, além das atividades de teatro, um curso de educação sexual. Imagine o que não deve ter sido isso para uma São Paulo provinciana de setecentos mil habitantes. E as pessoas iam, vinha a família a esse curso, e vinham psicanalistas, etc. O Centro tenta organizar até com algum sucesso, durante um ano, um ano e meio, a Universidade Popular Presidente Roosevelt. Promove três versões de um curso de doutrinas políticas. Já nos anos sessenta tem a grande experiência do Laboratório de Ensaio, que é naquele tempo uma experiência de teatro político revolucionária. Eu tenho aqui ao lado o Chico, que é um cara que participou das grandes revoluções do teatro paulista, desde quarenta e sete até os anos oitenta. O Centro de Cultura Social passa a ter, nessa segunda fase de quarenta e cinco a sessenta e oito, um cunho de resistência cultural, mas não se engane, tem gente que fala: anarquismo culturalista, anarquismo isto, anarquismo aquilo... Anarquismo é anarquismo. O Jaime gostava de falar: “o anarquismo é um conjunto de postulados convergentes”. Isso para mim é o anarquismo, é a base, é o método. Não é porque o sujeito faz um trabalho assim, ou assado, que ele é menos ou mais anarquista, do que o cara que faz um trabalho assado ou cozido. O cara tem de ter o mínimo de modéstia, tem de sentar o rabo numa cadeira e estudar, e se debruçar sobre a história do socialismo, sobre a história do anarquismo. Verá então que 220 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista os caminhos são múltiplos. Verá que a gente tem de se preocupar em trilhar bem o nosso caminho, que a gente deve se preocupar com a meta que se quer atingir. É claro que a ação é a contrapartida do estudo: ninguém se esforça em aprender por nada. É preciso uma meta! Se você considerar as coisas corretamente, do ponto de vista da história e das lutas políticas e sociais dos anarquistas, verá que a teoria sem a ação é manca e que a ação sem a teoria é cega! É pensar globalmente, e agir localmente. Eu acho que nesse sentido o Centro de Cultura, na república de quarenta e cinco até sessenta e oito, tem um papel que não é mais o papel do anarcosindicalismo clássico, mas é um papel importante no sentido de ressoar o anarquismo junto à sociedade global. — Os anarquistas não aceitam qualquer tipo de ditadura. — Acho que qualquer ditadura faz um estrago inominável. Não só pelo que ela reprime, mas pelos mitos que ela cria. Nem todo mundo que é perseguido por uma ditadura é um sujeito de esquerda. Tem muito cara que foi perseguido pela ditadura e é um filho de uma puta. A ditadura, de certa maneira, apaga fronteiras e põe todos os gatos dentro do mesmo saco. E isso é uma coisa terrível, porque interrompe, quebra movimentos e desenvolvimentos, mistura coisas que estavam começando a se clarificar, a se separar. Veja, quando a gente retoma a idéia de Centro de Cultura em 1984, a gente retoma em qual contexto? Já não dá para falar como se falava no final dos anos sessenta, e no começo dos anos setenta, que o anarquismo é uma invenção de pequeno burguês, que o anarquismo é de uma mentalidade artesanal. Porque o próprio socialismo real, está fazendo água. Eu conheço muito marxista que foi parar no psiquiatra quando o Vietnã entrou em guerra com o Camboja. A briga da linha chinesa com a linha soviética... Então, em mea- 221 7 2005 dos dos anos setenta não dá mais para tapar o sol com a peneira, o socialismo real que veio da concepção marxista, mostrou a que veio. É uma sociedade totalitária, absolutamente indiferente para com as necessidades individuais, uma sociedade militarizada e autocrática que se formou com o pretexto da libertação do proletariado e funciona como máquina de opressão e de exploração. O eixo desta sociedade, tanto na China quanto na Rússia estava na produção militar-industrial. Nos anos oitenta não dá mais para o anarquismo ser taxado de uma série de coisas. Ele passa a dar até um certo prestígio. Os estudiosos do arquivo Edgar Leuenroth, como me referi anteriormente, ao produzirem os seus estudos começaram a mostrar que o anarquismo não era aquilo que a vulgata marxista dizia que era. Começa a aparecer, então, uma geração mais jovem, interessada em fazer, em atuar com o anarquismo. Eu acho que o Centro de Cultura, em São Paulo, se organiza em 1984, mais ou menos em cima disso, com um grupo que trabalhava há alguns anos junto ao Inimigo do Rei. Houve também aquele curso que nós organizamos na PUC-SP, em 1979. Foi uma coisa... A mim me surpreendeu muito. Porque foram seis sábados discutindo anarquismo, e você não conseguia lugar no maior auditório da PUC-SP [sala 333, para 350 pessoas sentadas] mesmo chegando duas horas antes. No nosso caso, em particular, aí eu falo do grupo de militância mais anarco-sindicalista dentro do Centro de Cultura, do qual eu fazia parte, a gente estava muito envolvido com a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, com uma série de outras atividades. Resolvemos fundar o Centro de Cultura nesse sentido: ter um instrumento, ter um local nosso, que a gente pudesse levar as nossas discussões, fazer as nossas propostas, e não ficar dependendo de acordos. Em janeiro de 1984, o Jaime falou: “olha a mesma sala está para alugar, aqui na Rua Rubino de Oliveira, a mesma 222 verve Centro de cultura social, uma prática anarquista sala igualzinha, nós vamos ter de fazer apenas a reabertura em cartório... não precisa nem jogar fora os impressos.” Então estava marcada uma reunião do sindicato dos geólogos para discutir o Centro de Cultura. E começou-se a discutir como é que ia ser, como é que não ia ser, a gente chegou e falou, o Jaime tomou a palavra e falou: “Olha eu queria informar que o Centro de Cultura já foi reaberto, está situado em tal e tal lugar, e a gente está tomando as adesões para sócios efetivos até tal dia”. Isso foi uma bomba no lugar. A gente conseguiu minimamente se renovar, não estou dizendo que isto aqui é um mar de rosas: não é! Tem problemas sim, mas eu acho que estamos conseguindo uma renovação do quadro social, conseguindo atingir pessoas novas, sensibilizá-las para nossa idéia. Isso é o que importa. Tem de haver continuidade, porque você não vai conseguir implantar o anarquismo depois de amanhã. Há muita briga pela frente, e as nossas organizações têm de crescer, têm de estar antenadas no que está acontecendo agora e no futuro. Eu acho que nesse sentido o Centro de Cultura Social foi sempre muito presente. O importante é saber aliar a tradição anarquista com os desafios políticos do momento. Se você for acompanhar a movimentação do Centro de Cultura isso é claro, acho que desde o comecinho isso é uma tradição, é uma contribuição que a gente gostaria de passar para as novas gerações. 223 Over the old wooden bridge No traveller Crossed Henry D. Thoreau Além da velha ponte de madeira Viajante algum Cruzou Tradução de Thiago Rodrigues 7 2005 anarquismo na vida e na obra de eugene o’neill pietro ferrua* Um estudo sistemático das atividades anarquistas do grande dramaturgo, que eu saiba1, ainda não foi empreendido, porém há muitos ensaios sobre ele e os dados colhidos permitem estabelecer uma trajetória, senão completa, pelo menos suficiente. A mais pormenorizada das biografias interessantes para o nosso assunto é sem dúvida a do casal Gelb2, que chega quase a mil páginas, mais duas obras de Sheaffer3, também oferecem uma grande quantidade de informação. Descobre-se assim que um dos primeiros contatos que O’Neill teve com anarquistas data de 1907, quando conheceu Benjamin Tucker e começou a freqüentar a sua livraria, em Nova Iorque, a The Unique Bookshop situada na Sexta Avenida. Eugene não tinha ainda vinte anos, enquanto o pensador e escritor anarquista alcançara já os cinqüenta, com mais de trinta anos de experiências como *Professor emérito do Lewis Clark College, Portland, fundador do CIRA (Centre International de Recherche sur l’Anarchisme), viveu no Brasil entre 1963 e 1969. verve, 7: 226-243, 2005 226 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill propagandista, redator de periódicos, autor de ensaios. Foi através de Tucker que O’Neill travou conhecimento com a obra de Bakunin e Kropotkin, Proudhon e Tolstoi, Stirner e Nietzsche. Definiu-se, então, “anarquista filosófico”, uma etiqueta pouco usada em outros países, mas que se tornou comum nos Estados Unidos e que equivale ainda hoje — a “anarquista não-violento”. Distinção necessária, pois a opinião pública tende a misturar anarquismo e terrorismo. Cabe reconhecer que naquela época era comum a associação com Leon Czolgosz (que tinha matado um Presidente) e Alexandre Berkman (que atirara contra um capitalista inflexível e cruel contra operários grevistas). Quem apresentou O’Neill ao Tucker foi Paul Holliday, outro anarquista, irmão de Polly Holliday, gerente de um café boêmio no Greenwich Village, companheira de vida de outro militante ativo muito conhecido, Hippolyte Havel. O Paul foi um grande amigo de O’Neill até sua trágica morte poucos anos depois. Outro grande amigo anarquista (e futuro personagem de sua obra) foi Terry Carlin (verdadeiro nome Terence O’Carolan) que tinha a qualidade adicional de ser de origem irlandesa, como O’Neill. Companheiro de bebedeira, o escritor nunca o renegou quando ficou famoso, e passou a mandar-lhe cheques mensais para que nunca lhe faltasse a bebida. Os Gelb escrevem: “o Carlin teve uma influência maior na filosofia de O’Neill do que qualquer outra pessoa”.4 Não devemos estranhar, pois Carlin foi admirado por escritores importantes como Jack London e Theodore Dreiser. Mais uma amizade importante — e que durou até o fim da vida — foi com Saxe Commins (verdadeiro nome Isidore Cominsky), dentista que se tornou autor teatral, e sobrinho de Emma Goldman. A ele O’Neill se dirigiu para que lhe procurasse documentação sobre algumas personagens anarquistas em suas peças. Em gratidão pela hospitalidade dele recebida, e de toda a família, e por lhe ter cuidado dos dentes de graça, O’Neill forçou sua contratação à Random House, onde se tornou 227 7 2005 seu editor pessoal. Saxe foi também quem manteve contatos indiretos entre O’Neill e as duas primeiras esposas e os filhos que com elas teve. Quando fugiu para a França, onde vivia incógnito com Carlotta, que se tornou sua terceira mulher, um dos poucos que sempre sabia onde ele se encontrava era justamente Commins. Aliás, O’Neill não era o único que o estimava, pois tornou-se também amigo de Albert Einstein, que conheceu quando ambos ensinavam em Princeton. Hippolyte Havel, anarquista europeu que veio aos Estados Unidos junto com Emma Goldman, e que o conheceu em Londres, foi também admirado por Dreiser, inspirou John Cage e deu vida a um dos personagens da peça The Iceman Cometh. O’Neill conservou algumas fotografias dele, uma das quais os reúne nos ensaios de uma peça para o Provincetown Theater. A galeria de personagens anarquistas ao redor de O’Neill é muito rica e compreende ainda outro escritor da época: Hutchins Hapggod. Autor de An Anarchist Woman ele tinha se aposentado no Cape Cod e colaborara estreitamente com John Reed, Louise Bryant e outros nas encenações do Provincetown Theater. Entre as mulheres pelas quais O’Neill talvez se apaixonou, emerge a figura de Dorothy Day, que mais tarde se converteu ao catolicismo sem abandonar o anarquismo, e tornou-se co-fundadora do movimento Catholic Worker (uma derivação comunitária da filosofia personalista de Emmanuel Mounier), que ainda hoje existe e tantas páginas gloriosas acrescenta aos anais da luta contra a segregação racial, as guerras, o serviço miltar, o pagamento dos impostos ao Estado, etc… Christine Ell, amante passageira do O’Neill, foi outra anarquista inspirada por Emma Goldman, e também tornar-se-ia personagem teatral do autor. Não há mui- 228 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill tos vestígios de encontros entre Emma Goldman e Eugene O’Neill, mas sabe-se que ele lia Mother Earth (revista em que publicou um dos primeiros poemas antimilitaristas), freqüentava as palestras do Ferrer Center, e foi grande amigo de Lena Cominsky (irmã da Emma) e de Stella Ballantine (sobrinha de Emma), e de Mary Eleanor Fitzgerald (secretária do Provincetown Theater, depois de ter trabalhado na redação de Mother Earth). De Emma Goldman se sabe que conhecia as primeiras peças de O’Neill e fez palestras sobre elas. Apesar dos poucos contatos pessoais Emma foi uma grande fonte de inspiração, como veremos logo, em duas das peças que comentaremos. Outro anarquista muito conhecido que ele pouco frequentou, mas cuja personalidade, pensamento e ação inspiraram o O’Neill, que, anos depois, ele o declara numa carta, é Alexandre Berkman. Em 29 de janeiro de 1927, numa carta de Hamilton Bermuda, O’Neill escreve a Berkman: “Passou muito tempo desde aquela noite em Romany Marie mas estou certo que você não se lembra de mim melhor do que eu de você. Tenho uma imagem muito clara de você na minha mente desde então. Eu já tinha uma profunda admiração por você há vários anos e aquele encontro foi um acontecimento inesperado. Quanto à minha fama…e sua infâmia, gostaria de trocar muita da minha por um pouco da sua. Não é tão difícil escrever o que se considera ser a verdade. Mas é muito difícil vivê-la.”5 Essa admiração desenfreada por um homem então muito mais conhecido como homem de ação do que como teórico do anarquismo nos leva a notar que O’Neill não teve como amigos só intelectuais e artistas, anarquistas “filosóficos”, mas freqüentou, também, militantes sindicais. Um destes foi James Joseph Martin (dito Slim Martin), marinheiro e operário especializado, que era 229 7 2005 militante da IWW (Industrial Workers of the World) e a quem O’Neill pediu que o levasse a reuniões sindicalistas. O resultado foi pelo menos duas peças (The Personal Equation e The Hairy Ape) acabadas, publicadas e produzidas, e algumas outras só começadas e abandonadas por várias razões. Também tornou-se propagandista ativo quando passou anos navegando na marinha comercial. Estar rodeado de amigos anarquistas, ter lido livros de autores anarquistas, assinar obras de conteúdo anarquista talvez não seja suficiente para traçar um retrato completo de uma pessoa. Foi o comportamento dele na vida pública e particular condizente com a ética anarquista? As lembranças dos que o conheceram durante a juventude sugerem a imagem de um bêbado inveterado. Como tal é representado pelo menos em dois filmes: Reds, de Warren Beatty e Entertaining Angels, de Michael Ray Rhodes. No primeiro ele é o amante de Louise Bryant e no segundo um amigo de Dorothy Day. Esta última, companheira de bebedeira antes de se tornar apóstola social e religiosa explica assim o vício do O’Neill: “eu tinha a impressão que ele considerava beber como um ensaio para a morte. Bebia o uísque puro, de um só gole, não para ficar bêbado mas para ver se agüentava”. Muitos anarquistas do século XIX consideravam o alcoolismo como uma das piores pragas sociais, como as drogas no século XX. A doutrina, a esse respeito, não é fixa e varia de um país a outro, e de uma geração a outra. Pode-se deplorar a dependência de Eugene do álcool, mas não usála como um argumento contra ele (ele mesmo se deu conta que a bebida o destruía e acabou se tornando sóbrio) tomando em consideração que o pai e o irmão mais velho eram alcoólicos, enquanto a mãe tinha se tornado morfinômana, desde o seu nascimento. Mais repreensível, talvez, tenha sido seu comportamento de marido e de pai. Casou com a primeira mu- 230 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill lher e sumiu, logo depois, deixando-a grávida. Kathleen pediu e obteve o divórcio três anos mais tarde. Foi só aos doze anos que o filho conheceu o pai. Sua atitude para com a família não melhorou com o segundo casamento (núpcias de amor com bastante anos de convivência) do qual ele fugiu de repente, sem nenhuma explicação, ignorando os filhos durante anos. Foi assim que Oona casou com Charlie Chaplin, que tinha três vezes a idade dela, mas representava, justamente, uma figura paterna que substituía o pai que ela nunca tinha tido. Como conclusão provisória digamos que O’Neill praticou a solidariedade do anarquismo social fora de casa, mas na família praticou mais o comportamento individualista à maneira de Nietzsche, seu autor de cabeceira. Nestas alturas cabe formular a pergunta: como é que O’Neill via a si mesmo? Numa carta de 1939 a Bernard Cerf o dramaturgo escreve: “Diga ao Saxe que estou me reconvertendo a um anarquismo de aço”. Isto foi às vésperas da Segunda Guerra Mundial, durante a qual ele compõe The Iceman Cometh que parecia ser um adeus ao anarquismo, e que não foi o caso, como veremos. Disse, também: “Antigamente fui um ativo socialista, e posteriormente um anarquista filosófico”.6 Na última conferência de imprensa que deu, em 1946 (isto é no fim de sua carreira quando já era famoso no mundo inteiro devido às suas peças e ao Prêmio Nobel), poucos anos antes de morrer, declara “sempre ter sido um anarquista filosófico”.7 A obra confirmará tudo isso. O anarquismo na obra do autor Traços do pensamento e da conduta anarquistas se encontram em vários personagens de muitas peças de 231 7 2005 O’Neill. Em algumas os anarquistas são personagens centrais (que às vezes se identificam com o autor e outras são baseadas em pessoas existentes) ou assunto da obra. É de estranhar — como aconteceu com a sua vida — que o seu teatro de cunho anarquista não tenha interessado aos historiadores do anarquismo americano. Quem mais o cita — como era de se esperar — é Paul Avrich que, pelo menos em duas de suas obras8, o apresenta como freqüentador do Centro Ferrer de Nova Iorque, colaborador ocasional de Mother Earth, amigo de vários companheiros, confirmando o que foi dito pelos Gelb e Sheaffer, e acrescentando alguns pormenores. É bem provável que o Avrich volte a falar do assunto no próximo livro dele, dedicado a Alexandre Berkman, que foi um dos “ídolos” e também o tradutor russo de O’Neill. Na maior parte das peças O’Neill se fantasia de personagem expressando idéias anti-militaristas, anti-capitalistas, pró-sindicalistas ou abertamente anarquistas. Junto a ele uma galeria numerosa de companheiros conhecidos, admirados de longe ou de convivência direta. Limitar-me-ei a examinar quatro das peças de maior importância para as idéias anarquistas. A primeira com forte conteúdo anarquista é The Personal Equation9, de 1915, contendo, como sempre, no teatro de O’Neill, elementos autobiográficos combinados a elementos imaginários. Entre os primeiros está Tom, que pode ser o autor como fôra na realidade (devemos lembrar que ele navegou profissionalmente e ocupou empregos humildes nas estivas), ou como ele teria desejado ser. Na peça há também conflitos entre pai e filho bastante parecidos com os que ele vivia com o próprio genitor, conhecido autor teatral. A crítica discorda se o Hartman da peça corres- 232 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill ponde a Sadakichi Hartman (que realmente existiu) ou se é um pseudônimo para Hippolyte Havel, o anarquista tcheco que aparecerá como Hugo Kalman, na peça posterior, The Iceman Cometh. Olga Tarnoff, o papel feminino mais importante, foi inspirado em Emma Goldman.10 Esta peça é inteiramente dedicada ao anarquismo e contém toda a problemática contemporânea: os desentendimentos entre as várias facções da esquerda (os socialistas confiando no processo eleitoral e os anarquistas na ação direta), a denúncia da exploração capitalista, o direito de greve, a oposição dos revolucionários à Primeira Guerra Mundial que já tinha estourado na Europa e na qual a América está a ponto de participar, a dramática alternativa entre meios violentos e nãoviolentos de libertação social, a união livre ou o casamento, e assim por diante. Apesar disso não se trata de teatro de pura propaganda, mas de uma peça em quatro atos em que são criadas situações dramáticas de alta tensão e credibilidade. A primeira cena tem como fundo a sede de um sindicato da IWW onde as conversas se desenrolam no nível público (planos de greve) e no nível individual (Olga que ama Tom mas rejeita a idéia do casamento e da maternidade). Tom, bastante parecido com O’Neill, acabou de perder o emprego por ter feito propaganda “subversiva” no lugar de trabalho. O segundo ato situa-se na casa de Thomas Perkins, mecânico de navios, viúvo e pai de Tom. A empregada de Perkins informa das más freqüências políticas e sentimentais do filho. Na discussão que sobrevêm entre pai e filho, este admite viver maritalmente com Olga, porém sem estar casados. Perkins desaprova. Eles discordam também sobre o uso da força nas reivindicações sociais e políticas. A posição do pai é que Tom deveria não só abandonar Olga com a qual ele vive no pecado, mas também pedir desculpas aos donos 233 7 2005 da companhia por estar assistindo a reuniões anarcosindicalistas. O terceiro ato acontece em Liverpool, em parte a bordo do navio S. Francisco — onde se encontram Thomas Perkins de serviço nas máquinas, o filho (escondido sob o nome de Tom Donovan), que se encarregaria de dinamitar os motores do navio se a reunião sindical que está tendo lugar não decretar a greve), e Olga, fantasiada de homem, como se fizesse parte da tripulação. Os sindicalistas burocráticos, corrompidos pelos patrões, se declaram contra a greve e os anarquistas resolvem então passar à sabotagem. O companheiro que devia fornecer a dinamite, porém, foi preso e os grevistas terão que encontrar outra solução para impedir o navio de zarpar. Tom decide imobilizar os motores mas, para isto, tem que enfrentar o próprio pai. Nesse encontro terrível, cada um procura proteger o outro, mas, ao mesmo tempo, desempenhar tarefas contrárias. O pai, sem querer, atira contra o filho. O ato seguinte se passa num hospital. O pai, bem como a namorada, querem tomar conta de Tom, reduzido a uma existência vegetativa. Ele não pode se expressar, parece não reconhecer ninguém, e só repete frases como um papagaio. Olga e Perkins, depois de brigarem, chegam a um compromisso: ambos se amam e tomarão conta de Tom e da criança que Olga traz na barriga. A peça conclui com Tom, que mentalmente voltou à infância, repetindo o slogan: “Viva a Revolução!” A moral resumida por Olga (Emma Goldman) é a seguinte: “…lutamos e caímos frente ao poder da Sociedade, mas a revolução continua sobre nossos cadáveres. Vai adiante mesmo se talvez não o vejamos. Nós somos a ponte. O nosso sacrifício não é inútil. É-nos suficiente 234 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill saber que estamos fazendo a nossa pequena parte e que as nossas pequenas vidas e pequenas mortes, apesar de tudo, valem algo”. A segunda peça que examinarei é de 1922 e intitulase The Hairy Ape.11 Está ambientada, novamente, em meios anarco-sindicalistas mas, desta vez, em tons de comédia. Os dois protagonistas principais são membros da classe proletária que se queixam de sua condição social. Fazem parte da tripulação de um navio e falam a gíria dos marinheiros. Apesar da falta de cultura que revelam no decorrer dos acontecimentos, não lhes falta o sentido da dignidade humana. Além de serem explorados pelos donos do navio e apesar de sujos devido ao trabalho que exercem na barriga do navio, ao redor das máquinas e no meio do carvão, eles gostariam de ser considerados seres humanos e não animais, “macacos peludos” (nome da peça mas também insulto de visitantes ocasionais, como a filha do patrão). Feridos em sua honra, Yank, o mais primitivo, o mais violento mas, talvez, também, o mais sensível deles, reclama vingança. Isto poderia se efetivar numa visita aos bairros elegantes e numa provocação na saída da missa do domingo, contra a mesma Mildred Douglas, filha do armador, que tão severa se mostrou com ele durante a visita ao navio. No bairro nobre da cidade, cheio de lojas de luxo onde se vendem jóias e casacos de pele cujo preço é assombroso, Long e Yank observam que uma família de trabalhadores ou de gente pobre e desempregada poderia viver um ano com o que os ricaços gastam comprando um desses objetos. A irritação de Yank cresce e o leva à inevitável agressão de classe. Acaba sendo preso, pois seu lugar não é na frente das casas dos poderosos mas num calabouço. Durante sua prisão alguém lhe lê um artigo de jornal sobre os Wobblies, os assim chamados membros do sindicato Industrial Workers of the 235 7 2005 World. O recorte reproduz o discurso de um senador antirevolucionário que denuncia o anarco-sindicalismo como a maior chaga da nação. O Yank se sente atraído por esse movimento e decide aderir a ele. Na próxima folga ele visita a sede dos portuários da IWW. Bate na porta e os companheiros estranham este comportamento, pois a particularidade deles é de deixar a porta sempre aberta: é só empurrar e entrar. Pede admissão que é aceita logo sem nenhuma formalidade e pagando só um centavo. O secretário sugere que ele leve um pacote de folhetos revolucionários, mas o adverte a ser prudente, pois essa propaganda é considerada ilegal pelas autoridades. Mas não é propaganda que ele quer fazer, senão ação direta, que ele associa a violência contra a propriedade. Os Wobblies começam a desconfiar desse desconhecido que aparece de repente e propõe dinamitar os estaleiros ou os navios de Mr. Douglas. Isso cheira a provocação. Assim o imobilizam e o põem para fora. Rejeitado por todos ele acaba se refugiando no jardim zoológico onde, depois de ter um diálogo incomunicável com um gorila, acaba entrando na sua gaiola, deixando livre o animal perplexo. Agora, sim, ele pode ser considerado um verdadeiro “macaco peludo”. A linguagem é dura, a alegoria é pesada, mas a moral da comédia é em favor de uma visão individualista. A mais importante das peças porém, é The Iceman Cometh12, que ele começa a escrever em 8 de junho de 1939 e finaliza em 26 de novembro do mesmo ano. Relê o texto, faz algumas mudanças e assina a versão final, em 3 de janeiro de 1940. O assunto da peça é a validade ou não das teorias anarquistas. Para ilustrar o assunto ele se pauta em documentos e pede ao amigo de juventude, Saxe Commins13, que trabalha na editora Random House, para lhe mandar a velha literatura anarquista. Recebe, assim, cópia de velhos periódicos dirigidos por 236 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill Hippolyte Havel (anarquista tcheco escolhido como personagem da peça com o nome de Hugo Kalmar) e obras de Bakunin e de Kropotkin. Outro personagem anarquista é Larry Slade, inspirado em Terry Carlin (Terence O’Carolan), outro amigo de juventude que o autor ajudou até o fim da vida. O terceiro, mas não último anarquista, seria Don Parritt, que se apresenta como tal. Na realidade é um traidor que veio da Califórnia para Nova Iorque, sob o pretexto de estar envolvido num atentado, mas que trabalha para a polícia, procurando provas para ajudar a prender os culpados do atentado contra o Los Angeles Times, fato que, historicamente, aconteceu. O enredo leva Don ao encontro de Larry, por ter sido o único, quando era criança, que sempre o tratou com carinho e o escutou como se fosse um adulto. Larry, para Don, é uma figura paterna e, talvez, seu verdadeiro pai (foi amante de sua mãe). Mas Don é torturado, mente e acaba admitindo que traiu, para salvar a mãe, diz ele no começo. A mãe, Rosa (inspirada em Gertire Vose e em Emma Goldman) está presa. O filho acaba confessando que a denunciou por ciúme, pois ela o traía com as próprias idéias que colocava acima de seus deveres de mãe. No fim, revela a Larry ter traído por dinheiro. Angustiado ele medita sobre o suicídio, ao qual Larry, sem compaixão, o empurra. Devemos lembrar que na vida real, na época em que O’Neill freqüentava a boemia do Greenwich Village, ele tentara o suicídio num local muito parecido com o Hell Hole.14 Na peça, as discussões sobre anarquismo são estéreis e negativas, mas deve-se considerar que os tempos em que este drama foi concebido assiste a uma dupla derrota: a do sonho anarquista na Espanha de 1939 e o início da Segunda Guerra Mundial. Contudo o anarquismo não é o único assunto da peça. Em primeiro lugar, numa polêmica com o comunista Mike Gold (que 237 7 2005 lhe foi apresentado por Dorothy Day), que queria que ele escrevesse obras mais engajadas, O’Neill declarou: “quando um autor escreve propaganda ele cessa de ser artista e torna-se um político”. Além disso, O’Neill sempre insistiu sobre os diversos níveis de escritura. Há quem considere que o elemento religioso, representado por Hickey, é fundamental na peça. De fato, existe um breve estudo de Robert C. Lee que toma em consideração os dois aspectos: “Evangelism and Anarchism in The Iceman Cometh”.15 O’Neill foi criado católico e apesar de ter renunciado à fé (deixou no testamento que não queria padres no enterro), escreveu muitas peças sobre personagens e assuntos religiosos. Há outra interpretação do The Iceman Cometh como se fosse uma “Última Ceia” tendo doze personagens na mesa incluindo um Judas. Discordo desta interpretação, pois os personagens, se incluirmos as três prostitutas e os dois policiais superam o número de doze, mas, sobretudo, por outra razão: a presença de duas personagens excepcionais e positivas, que não fazem justamente parte do elenco da distribuição e que ninguém — que eu saiba — percebeu como sendo centrais no enredo. Uma seria Evelyn, mártir de tipo cristão, a mulher que Hickey mata, por ser tão boa, tão compreensiva, tão paciente, tão generosa, tão amorosa, que entende tudo e aceita tudo, e que o marido sente a necessidade de matar, para preservá-la, não decepcionála, não machucá-la moralmente. Outra é uma mártir laica, Rosa Parritt a mãe traída de Don. Ela encontra-se presa ao idealismo, paga pelos erros dos outros, mantém viva a chama do ideal. É uma figura empolgante, a ser reverenciada e imitada. O verdadeiro anarquismo, em suma, não está nos três bêbados, um parasita, um preguiçoso e um traidor, mas nessa bela figura de mulher. O Iceman Cometh soa 238 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill pessimista só depois de uma leitura superficial. Pense nos “pipe dreams”, isto é, nos “castelos no ar” (as utopias, os sonhos irrealizáveis) aos quais se alude amiúde. O próprio autor, numa entrevista declarou: “Bem, o que eu posso dizer é que se trata de uma peça sobre castelos no ar. A filosofia subjacente é que sempre resta ainda um sonho, um sonho final, qualquer seja o nível baixo ao qual se cai, o fim da garrafa, e eu sei, pois eu mesmo vi…”. O’Neill estava satisfeito com esta peça e disse: “é uma das melhores coisas que jamais fiz. De alguma maneira talvez a melhor”. Outros devem ter concordado com ele pois existem duas versões cinematográficas, uma de Sydney Lumet e outra de John Frankenheimer. Aliás temos duas provas contundentes de que o pessimismo aparente de O’Neill não marcou o fim do seu anarquismo. A primeira é a entrevista já mencionada, que terá lugar anos depois de ter escrito a peça, e poucos anos antes de sua morte, em que reitera suas convicções anarquistas. A segunda está no fato que logo depois de ter concluído The Iceman Cometh, ele dá início a outra obra de tema anarquista, e desta vez uma comédia, mostrando que não abandonou as convicções ideológicas da juventude e não aderiu ao pessimismo dos personagens da peça anterior. A última obra que mencionarei nunca foi concluída, mudou de título, mas é a que revela o profundo conhecimento que O’Neill tinha do anarquismo internacional, de seus pensadores, bem como de seus militantes. É dedicada a Errico Malatesta, agitador anarquista italiano mundialmente conhecido. Teria sido uma comédia mas com um fundo ético e político. Não só cronológica, mas também filosoficamente, é uma continuação do Iceman Cometh . Não foi nunca encenada nem terminada, mas o trabalho de pesquisa, as anotações do autor e as 239 7 2005 cenas já compostas foram publicados postumamente. Ele dedicou mais de um ano a esta comédia e revisou constantemente o texto. O título inicial era The Visit of Malatesta16, mas passou a ser Malatesta seeks Surcease. O nome escolhido para o personagem principal era “Cesare”, depois mudado para “Enrico”, se bem que na Itália, onde ele nasceu, a forma preferida é a de “Errico”. A colocação temporal inicial era 1912, mas a data foi adiantada para 1923, para poder justificar a fuga de Malatesta da ditadura fascista, iniciada em 1922. Malatesta, na realidade, não pôde visitar seus amigos americanos até a morte (em 1935) por se encontrar sob vigilância policial especial em Roma, por ordem expressa de Mussolini. Entretanto, Malatesta esteve nos Estados Unidos, em 1899. Há quem diga que O’Neill poderia tê-lo escutado naquela época, mas não há provas disso ter acontecido. Aliás O’Neill teria, na época, 11 anos. A função de Malatesta e da peça é de representar a ESPERANÇA que talvez tivesse sido sacudida pelo pessimismo aparente de Iceman Cometh. Outro intuito era o de lutar contra o alcoolismo que freia as energias revolucionárias dos militantes, mas que também alimenta a cobiça daqueles companheiros ítalo-americanos da comédia, que negligenciam o ideal para ganhar dinheiro imitando os capitalistas. O alcoolismo é um problema que afligiu não só o movimento, mas o próprio O’Neill, vítima desse fenômeno, como o foram o irmão maior e o pai, bem como muitos dos boêmios, anarquistas ou não, que ele conheceu na vida. Aliás não há peça dele na qual não apareça algum bêbado. Na Visita de Malatesta, a mulher de Daniello chamase Rosa, como já se chamava Rosa a mãe presa do Don Parritt, na peça anterior. Pouco importa saber se o nome “Rosa” se refere a Emma Goldman ou não. Um dito da época nos ambientes anarco-sindicalistas é uma das 240 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill reivindicações que vai além das melhorias econômicas: “Queremos pão, mas rosas também”. A “Rosa” torna-se metáfora do amor, da solidariedade, do engajamento, da chama da revolução. No rascunho se prevê que Malatesta acabará casando com uma das filhas de Daniello, Francina, que se gaba por ter se tornado “a rosa da paixão pela revolução”. Não me atrevo a atribuir a O’Neill uma conclusão da peça, mas tudo leva a crer que seria uma confirmação do “sonho anarquista”. Por razões de saúde O’Neill abandona este projeto e vários outros previstos em suas anotações pessoais. Uma tremedeira constante, mal diagnosticada pelos médicos e nunca curada o acompanhará até o fim. Nos últimos dez anos ele viverá uma existência solitária, separando-se temporariamente até da própria mulher (a terceira, a que mais amou) nunca renegando, porém, seus ideais anarquistas. Notas 1 Cheguei a esta conclusão depois de consultar a bibliografia de “First Search”que contém informação sobre todos os livros existentes nas bibliotecas e também as teses de doutoramento. Arthur and Barbara Gelb, ed. O’Neill. New York, Harper and Row, 1974, 990 pp. 2 3 Louis Sheaffer: O’Neill. Son and Artist. Boston e Toronto, Little-Brown & Co., 1973, 750 p., e O’Neill. Son and Playright. Boston e Toronto, Little-Brown & Co., 1968, 543 p. 4 Gelb, 1974, op. cit., p. 286. Carta reproduzida no livro Select letters of Eugene O’Neill, ed. by Travis Bogart and Jackson R. Bryer, New Have & London, Yale University Press, p. 233. 5 6 Idem, p. 387. 7 Interview ao Sunday Times, de 1946. 241 7 2005 Paul Avrich. Anarchist Voices (An Oral History of Anarchism in America). Princeton, University Press, 1995, e posteriormente em The Modern School Movement (Anarchism and Education in the United States), Princeton, University Press, 1980. 8 Ver Eugene O’Neill, Complete Plays., ed. by Travis Bogard, New York, The Library of America, Vol.I: 1913-1920, 1104 p. Trata-se de uma peça em quatro atos, pp. 309-387. 9 E. G. and E. G. O., Emma Goldman and the Iceman Cometh, Grainesville, The University Press of Florida, 1974. 10 11 de Eugene O’Neill, Early Plays, edited with an introduction by Jeffrey H. Richards. New York, Penguin Books, 2001, pp. 355-395. 12 The Iceman Cometh. New York, Vintage Books, 1957, 4 acts. Isidore Cominsky, talvez o mais íntimo de seus amigos. A correspondência entre eles foi tão copiosa que foi publicada em livro. Ver: Love and Admiration and Respect. The O’Neill-Commins Correspondence. Dorothy Commins (ed) Durham. Duke University Press, 1986, 248 pp. 13 O Hell Hole da peça é uma combinação de três locais realmente existentes no Greenwich Village, que O’Neill e outros boêmios freqüentavam durante os dois primeiros decênios do século XX. 14 15 Ver Eugene O’Neill, The Iceman Cometh, Harold Bloom (ed). New York, Chelsea House, 1987, pp 35-48. “Notes for The Visit of Malatesta” In Eugene O’Neill. The Unfinished Plays, edited and annotated by Virginia Floyd. New York, Continuum, 1988, XXVIII, 213pp.); a autora também escreveu o precioso ensaio Eugene O’Neill at Work: Newly Released Ideas for Plays. New York, Ungar, 1981, XXXIX,407pp. 16 242 verve Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill RESUMO O anarquismo na obra do escritor norte-americano Eugene O’Neill, estudado em três peças concluídas e uma inacabada sobre Errico Malatesta, anarquista italiano. Palavras-chave: Anarquismo, teatro norte-americano, biografia. ABSTRACT The anarchism in the work of the American writer Eugene O’Neill studied in three dramas and one unfinished drama about Errico Malatesta, Italian anarchist. Keywords: anarchism, American theater, biography. Recebido para publicação em 31 de março de 2005. 243 7 2005 lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias beatriz scigliano carneiro* Lygia Clark, artista plástica brasileira (1920-1988), fez da atividade artística um elemento capaz de empreender a transformação de si; transformação que se abria para o mundo e para a afirmação de novos valores. Analisando as suas obras, alguns de seus manuscritos e parte de sua produção teórica acerca da arte e das técnicas terapêuticas, é possível estabelecer correspondências com o percurso do personagem trágico de Nietzsche apresentado na obra Assim falou Zaratustra. Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra confluem no trajeto de quem se transforma, de quem “se torna quem se é”, de quem tem como destino “querer o que sabe”. Zaratustra anuncia o além do homem e, ao mesmo tempo, transfigura-se e transcria o percurso da vida-pensamento do próprio Nietzsche. Lygia é uma artista que pensa por meio da arte, e também uma pesquisadora que experimenta por meio da arte e atitudes cotidianas, vi*Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. verve, 7: 244-263, 2005 244 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias sando antes de tudo, inventar a sua vida. Este artigo apresenta uma conversa possível entre estas trajetórias.1 Lygia Clark nasceu em Belo Horizonte em 1920, cursou a escola normal, casou-se e se mudou para o Rio de Janeiro, onde nasceram seus três filhos. Até perto dos trinta anos de idade, vivia como dona de casa comum de uma família abastada. Em 1947, teve uma crise nervosa da qual saiu ao retomar com afinco a pintura e os desenhos, habilidade notória de sua infância. No entanto, a arte consistiu em algo mais do que terapia ocupacional de dona de casa deprimida, ou passatempo como havia sido nos tempos de escola. Arte não foi “repouso para o empobrecimento da vida”, nas mãos de Lygia a arte se tornou ferramenta de transformação de si. Em seus cinco anos de aprendizagem, de 1947 até 1954, exercitou diversos caminhos até se decidir pela composição ordenada da geometria, um estilo que prescindia a figuração, imagens e representação do espaço. Junto ao grupo de artistas Concretos e Neo-Concretos, Lygia realizou importantes trabalhos bidimensionais, hoje considerados referências na arte mundial. Em 1960, em uma mostra de grande impacto, apresentou seus Bichos, esculturas montadas por planos de alumínio ligados por dobradiças, resultantes de suas pesquisas no espaço pictórico. Considerado a obra máxima de sua trajetória artística e o apogeu do Grupo Neo-Concreto, os Bichos têm sido o conjunto mais conhecido de sua produção artística. As possibilidades de cada exemplar destas esculturas dependem totalmente do desdobramento dos seus planos a ser realizado pelos visitantes dos espaços expositivos. Sem esta manipulação da obra, as esculturas permanecem formas estáticas e silenciosas, sem mostrar suas possibilidades formais, rigorosamente construídas. 245 7 2005 Zaratustra se dirigiu à praça do mercado para anunciar a superação do humano e criação de novos valores. Fracassou. “E como falasse a todos não falei a ninguém”.2 As forças reativas predominavam, o próprio NietzscheZaratustra concluiu, já no Prólogo do livro, a estultice de tentar se comunicar com todos. Não caberia uma busca de discípulos, mas de companheiros capazes de ouvir. “Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um rebanho. Atrair muitos para fora do rebanho — foi para isso que vim”.3 Lygia soltou seus Bichos em diversos espaços, inclusive em cidades européias, e por meio deles, foi-se selecionando quem tinha mãos para desvendar suas propostas. Muitos brincavam, outros se constrangiam, muitas vezes o público, apressado por uma curiosidade ligeira pela chamada ‘arte participativa’ que despontava na época, não percebia o alcance da experiência, considerando-a lazer para momentos de ócio. Certa ocasião um comprador da escultura cogitou soldar as dobradiças, congelando apenas uma possibilidade do Bicho, para evitar que os criados mexessem na obra.4 Naquele mesmo ano de 1960, Lygia fôra nomeada professora de arte no Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro. Primeira atitude ao entrar na sala de aula foi despertar interesse “naquelas almas trancadas à comunicação”. Nem palavras nem gestos expressivos circulavam por aquela sala de crianças apáticas. Levou material com reproduções dos grandes mestres da pintura moderna e deixou que os alunos folheassem à vontade. A proposta das aulas era recriar o modelo escolhido a partir da observação, no caso, obras dos grandes mestres da arte. Desse modo, quando selecionava seus modelos, cada criança começava a se individualizar e a descobrir afinidades expressivas e emocionais com o mundo externo. 246 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias Lygia inventou um meio de lidar com crianças qualificadas como anormais por não conseguirem se expressar pela voz e viverem no silêncio. Crianças que apreendiam o mundo exterior pelo olho e pelo tato e pelo sentir a vibração das coisas em seu corpo e se comunicavam por gestos, grunhidos e expressões corporais. No entanto, manteve uma postura de procurar “ir com eles”, de apenas acompanhá-los em suas descobertas, deixando-se surpreender. Em carta para Mário Pedrosa, de 15 de abril de 1961, dois momentos de suas aulas são ali descritos: “outro dia fiz umas experiências para eles com arames e pensei, diante do interesse despertado no momento, que sairiam coisas geniais da parte deles. E qual não foi minha surpresa quando todos eles fizeram óculos e atualmente eles o usam como pessoa adulta. Anteontem dei-lhes massa para modelar e todos fizeram pênis gigantescos. Começou uma pornografia desregrada... era um tal de engolir ou bater com eles na cabeça uns dos outros...culminando com a coisa mais surrealista jamais vista por mim: entrou na sala uma menininha de um ano e meio, linda, cachinhos na cabeça. Deram um pênis para ela segurar e ela saiu, inocência e feminilidade personificada, segurando com uma delicadeza como se fosse uma flor, saindo do meio dos meninos que, numa algazarra infernal aos gritos (porque eles gritam e como...), faziam gestos incríveis, parecendo selvagens de outros planetas...”5 O trabalho como professora ligada a rede oficial de ensino durou apenas um ano, mas lhe deu experiências que se consolidaram mais adiante em seu trajeto. Em 1962, casada com o marchand Jean Boghici, viajou pela Europa, acompanhando-o em visitas “de galeria em galeria”, conhecendo artistas e críticos. Os Bichos, o famoso conjunto de esculturas manipuláveis, ganharam um reconhecimento imenso. Michel Seuphor, artista e crítico, ao manusear o Caranguejo, disse: “jamais espe247 7 2005 rei ver uma obra destas” e continuou: “Isto é importantíssimo. Como o Pevsner gostaria e se divertiria vendo isto! É uma coisa que Gabo tentou fazer antigamente, mas a Sra quem fez agora!”6 Alguns dias depois, se encontrou com Jean Arp que “ficou maravilhado e afirmou: tenho visto muita coisa de arte abstrata, mas jamais vi coisa tão bela”.7 Por esta época, Lygia achou que a criação dos Bichos fôra suficiente para manifestar seu pensamento. Apesar do inegável sucesso e reconhecimento público dos seus trabalhos, a inquietude permanecia. “Porque eu, que já fiz os meus Bichos continuo pensando?…Estou cansada”.8 Apesar do confortável sucesso destes trabalhos, a experiência crucial para uma transformação irreversível da vida e produção de Lygia foi a proposição Caminhando: o simples corte com uma tesoura na fita de Moebius, uma figura topológica conhecida pelos artistas, registrado em fotos de 1963. Cortar a fita, usando uma tesoura em um pedaço de papel, proporcionou a vivência de um fluxo incessante, um contato real, físico, com o ritmo contínuo do tempo em um gesto trivial. O corte da fita pode ser repetido por qualquer um; cada ato de cortar vale por si e consiste em uma experiência única e sempre inaugural. Caminhando de Lygia Clark é uma proposição: dobrar uma tira de papel torcendo-a uma vez ao colar as extremidades e, com uma tesoura, cortá-la a partir de qualquer ponto da fita, mantendo o gesto de corte em linha reta. Com esta descoberta, Lygia retornou entusiasmada à “praça do mercado”, queria que o “homem moderno”, todos enfim, tivessem a vivência. Percebeu, porém, que agora se faziam necessários concentração, interesse e vontade por parte do espectador: “uma vontade ingênua 248 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias de apreender o absoluto pelo ato de fazer o Caminhando, conservando a gratuidade do gesto”. Ela como artista, apenas propôs ao outro que, ao se situar no momento presente, atingisse o “estado da arte sem arte”. “Arte não é mistificação burguesa. O que se transformou é a maneira de comunicar a proposição. Agora são vocês que dão expressão ao meu pensamento, tirando daí a experiência vital que desejam. Esta experiência se vive no instante. Tudo se passa como se hoje o homem pudesse captar um fragmento de tempo suspenso, como se toda uma eternidade habitasse no ato da participação. Este sentimento de totalidade camuflado no ato precisa ser recebido com alegria para ensinar a viver sobre a base do precário. É preciso absorver este sentido do precário para descobrir na imanência do ato o sentido da existência”.9 Caminhando permitiu-lhe esta vivência intensa, fulminante como um raio: a percepção do instante. A intensidade desta vivência foi tão forte que Lygia precisou repousar devido a problemas cardíacos. “Dentro do meu peito mora um leão”, escreveu neste período. Passada a crise cardíaca, ainda se sentia exausta, “me sentia morta, e este sentimento já havia durado quase dois anos”, a saber, de 1963 a 1965. Ao admitir “grandes transformações passando em seu interior”, recuperou momentaneamente, o “mesmo ‘élan’ e encanto que sentia antes de fazer a proposição Caminhando”.10 Zaratustra tinha quarenta anos quando seu coração mudou e ele desceu de sua montanha. “A taça quer transbordar... Vê!’ Assim começou o ocaso de Zaratustra”.11 Seu ponto de partida é a superabundância. O excesso produz um impulso não de preencher um vazio, ou uma ausência dentro de si, mas de esvaziar, de transbordar, de se estender ao abismo e à noite. O ocaso. 249 7 2005 Aos 43 anos, começou o ocaso de Lygia Clark. Na época, gozava as prerrogativas de “primeira dama do concretismo”, “melhor escultora brasileira”, “la jolie madame du Brèsil”, realizadora de obras elaboradas e espalhadas no circuito das artes mundiais: Bienal de Veneza, galerias da Europa. Quando desabafava, em seus textos e cartas, que precisaria abandonar tudo para viver de arte, referia-se ao percurso que a obra e as atividades envolvidas em fazê-la, as quais significavam pensar e saber, exigiam. Só lhe restou o caminho de “tornar-se o que se é”, ou então se cristalizar em uma identidade pacificada e deixar a máscara da “jolie madame” se tornar sua carne. Sempre se pode escolher, mas a possibilidade da liberdade não garante a melhor opção para a vida. A força da escolha não vem da liberdade, mas de uma coragem ética de “querer o que já sabe”.12 Liberdade é prática de exercer a vontade, e a vontade ultrapassa impulsos irrefletidos. Ao deixar de fazer obras bem acabadas, pois com Caminhando vivenciara o precário e se deixara invadir pela experiência, Lygia foi ficando afastada de parte de seu público. Aos poucos, abandonou os metais, material ainda presente em trabalhos como Trepantes de 1965, Bichos sem dobradiças de 1963, nos Abrigos Poéticos de 1964, e passou a empregar materiais precários e efêmeros em trabalhos plásticos que privilegiavam sensações corporais, não apenas a visão, mas tato, olfato, e que exigiam a participação ativa do público para sua realização. Usou borrachas nas Obras Moles, de 1964, sacos plásticos, elásticos, pedras, luvas, na sua série Objetos Sensoriais. Inventou trabalhos vestíveis, como Máscaras Sensoriais, Cesariana, Eu e o Tu (1967) e um labirinto penetrável, apresentado na Bienal de Veneza, a Casa é o Corpo (1968). Não deixou de participar e ser convidada para importantes exposições, ela era um nome consagrado e seus tra- 250 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias balhos, mesmo contando com uma resistência mais contundente de alguns críticos, sempre atraíam interesse. Lygia, porém, tinha momentos de grande desânimo, pois enfrentava incompreensão até de amigos, apesar de não ter dúvidas quanto ao valor de seu trabalho. Lygia assim escreveu neste período: “Urge ter coragem de renunciar a artificiosas compensações,… urge olhar para dentro, com medo, com pavor”.13 Zaratustra enfrentou vários tipos de niilismo, a negação da vida em nome de valores universais, como fazem os sacerdotes e o Estado; o tipo que recrimina os outros e a própria vida por seu sofrimento, numa auto-acusação dos erros; o niilismo passivo que nega qualquer ação, devido à impossibilidade de suportar que “não há futuro para corrigir o instante”.14 E, também, foi-lhe exigido coragem em querer. Mas até que ponto as descobertas de Lygia modificavam sua própria vida? “…no fundo há auto-compaixão por mim mesma. Estou chorando o fixo que já não tem mais sentido em vez de aceitar na maior alegria o precário como conceito de existência”.15 Como esperar de um espectador anônimo o que, talvez, nem ela conseguisse enfrentar? Como ordenar sem a voz do leão? Zaratustra enfrentou sua hora mais silenciosa, enfrentar o que sabia, mas não queria dizê-lo, pois era algo acima de suas forças. “Que importa a tua pessoa Zaratustra! Fala a tua palavra e despeça-te!”16 Em meados de 1968, Lygia deixou filhos, amigos, conforto e foi residir em Paris. Realizou assim o que temera anos antes: “viver para sua arte”, mergulhar em suas experiências com uma liberdade que ela não poderia encontrar no Brasil, não só devido aos militares no governo, mas principalmente porque aqui ela era conhecida e observada. “Ainda precisa tornar-te criança e não sentires vergonha”.17 No percurso da transformação de 251 7 2005 Lygia e Zaratustra, a obra de ambos estava pronta, mas eles não estavam ‘maduros para seus frutos’, assim voltaram à solidão.18 Lygia, andarilha, a partir de seu ateliê em Paris, viajou pela Europa levando seu trabalho. Apresentava-o em galerias, na rua, onde a chamassem. Continuava a formulação de proposições sensoriais, “que agora me parecem bem mais terrificantes que tudo que já fiz”.19 No entanto, ela tinha dificuldade em se comunicar, não apenas nestes eventos, mas até com amigos mais próximos. Isso a deixava em paralisantes crises, durante as quais nada lhe parecia mais valer a pena, nem viver, numa atitude característica do niilismo passivo. Suas propostas sensoriais foram-na levando a regressões a um passado que era presentificado no corpo, nos sonhos, nas alucinações. A palavra emudeceu, perdendo seu espaço na expressão. O mundo noturno se abria, o abismo falava a Zaratustra. “Tu sabes e não queres!” Na obra estética de Lygia, o Abismo ganhou uma máscara, tornou-se portátil, acessível, a Máscara-Abismo (1969), que proporcionava a quem a vestisse uma sensação de queda em um espaço oco. Lygia escreveu sobre o abismo: “O vazio que se apodera de mim só pode ser entendido sentindo e assim creio que sentindo posso entendê-lo, mas não resolvê-lo”.20 Na vida, noites alucinatórias se sucediam, presentificando sensações arcaicas. “Acordei duas vezes durante à noite ... de horror... Acho que coisas começam a se remoer dentro de mim e devo passar ainda por grandes transformações! É duro, mas o que se há de fazer?”21 As transformações se tornam destino quando se adquire coragem para deixálas acontecer. Zaratustra em sua hora mais silenciosa ouviu: “quem quer tornar-se criança deve, também, superar sua juventude!”.22 Em 1972, Lygia foi convidada para dar aulas 252 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias na Universidade de Sorbonne, que, marcada pela abertura exigida pelos estudantes, promovia cursos experimentais e atraía docentes capazes de um trabalho instigante e transformador. Por seu lado, Lygia tinha grande interesse nos jovens, que no mundo inteiro, praticamente, atuavam nas transformações sociais. Uma das metas da filosofia de Nietzsche seria liberar o pensamento do ressentimento, da má consciência.23 O trabalho estético de Lygia, ao longo de sua vida, também manifestou essa luta contra o ressentimento. Zaratustra descobriu em um determinado momento de seu caminho que o passado impedia a redenção pela chegada futura do além do homem. A vontade humana poderia querer para trás? “Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; “Aquilo que foi” é o nome da pedra que a vontade não pode rolar”.24 Presente e passado estavam no futuro, para Lygia, a vivência do Caminhando fôra clara como um raio. No entanto, como em Zaratustra, ainda lhe faltava a força de querer isso que sabia. “Queira esse passado!” Esse foi o impacto do eterno retorno na vida de Nietzsche. Havia algo a vencer: o ressentimento, a reação raivosa da vontade por não conseguir “querer para trás”. A moral do “tu deves” reativa cobrava atitudes morais e distribuía seus castigos. Para Nietzsche-Zaratustra a aranha seria a figura desta moral, criando invisível teia da culpa para capturar a vida e devorá-la. Baba Antropofágica (1973) era uma proposição grupal, inventada no curso da Sorbonne, na qual um dos alunos do grupo ficava deitado, enquanto vários outros o cobriam com linhas de cor que tiravam da boca. A baba escorrendo da boca era a imagem de um sonho recorrente de Lygia, e segunda ela, foi este o único sonho do qual ela expressou a imagem em uma ‘quase’ representação. 253 7 2005 Sobre esta experiência, Lygia relatou: “um aluno vendo a experiência da Baba disse que estava vendo como as aranhas estavam ligando seus machos na sua teia de aranha. Olhei e pela primeira vez tive a impressão de que era exato. Eu, a aranha, que envolvo tudo e todos na minha teia. Tive um grande choque. Já sabia, mas a percepção às vezes é tão intensa que é como se fosse a primeira vez”.25 O veneno estava dentro dela, a má consciência se insinuando, culpando-se da voracidade da teia. Realizar a Baba Antropofágica fez com que Lygia tivesse um último sonho da série recorrente: neste, a baba se transformou em um objeto de borracha e foi engolido. Nos anos da docência na Sorbonne, ela estava em um processo analítico com o psicanalista Fedida, o que a fazia regredir ao que ela denominava arcaico. “Vivências terríveis na Sorbonne, ligadas à análise que eu fazia, parecia que eu ia enlouquecer, Eu virava bichos... uma águia voraz; comia frango como uma águia... depois serpente, via todo mundo como se eu fosse serpente”.26 Coincidência ou não, águia e serpente também eram os animais de Zaratustra. Entretanto, o que importa aqui, seria que ela os incorporou, estes animais deixaram de ser símbolos de forças naturais e arcaicas para se tornarem canais de presentificação destas forças no cotidiano. Zaratustra estava sentado em sua pedra quando ouviu o grito de socorro dos homens superiores, assustados com a morte de Deus e pelas exigências de criar valores humanos.27 Assim, os levou para sua morada, para sua caverna. Entre cantos e ceias, eles se tornaram convalescentes. Aos poucos, Lygia percebeu que os seus alunos na Sorbonne “traziam suas coisas ... depois eles nem me olhavam mais, conversavam entre eles, [...] eu ficava um elemento jogado fora do grupo”.28 A caverna de Zaratustra encheu-se de risadas. Zaratustra, porém, afastou-se com 254 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias seus animais. “Divertem-se”, [...] e mesmo se foi de mim que aprenderam a rir, não foi meu riso que aprenderam”.29 Percebeu enfim que aqueles não eram os companheiros certos. O entusiasmo pelas aulas da Universidade foi arrefecendo, os alunos já não lhe instigavam o pensamento. “Ando péssima. Desanimada, achando que o meu curso na Sorbonne perdeu o interesse para mim”.30 Zaratustra olhou para a grande cidade e deixou esse ensinamento: “Daquilo que não se pode mais amar, deve-se passar além!”.31 Lygia retornou, definitivamente, ao Brasil em 1976, e se dedicou à terapia individual, transpondo suas descobertas na arte para o processo terapêutico, inventando um método de atingir silêncios e trazer sensações arcaicas e mudas para serem compartilhadas. Na Estruturação do Self, nome de sua terapia, misturava técnicas de relaxamento com seus objetos relacionais, utilizados na Sorbonne. Mas agora não fazia mais grupos, o trabalho individual possibilitava maior dedicação a cada caso. Não procurou mais falar a todos. “Só amo trabalhar com borderlines”.32 Fizera uma escolha e dentro da escolha, selecionava. “Recusei pessoas que passaram pelo meu método por achá-las rasas, são neuróticos e nunca entenderiam a linguagem de um borderline ou de um psicótico. Somente quem passou por grandes catástrofes pode entendê-las”.33 Seus Objetos Relacionais faziam emergir uma memória afetiva que a verbal não conseguia abarcar. “Não se trata de um viver virtual, mas de um sentir concreto: as sensações são trazidas, revividas e transformadas no local do corpo, através do objeto relacional ou do toque direto de minhas mãos”.34 A técnica de Lygia permitia fazer a experiência corporal, no aqui e no agora, do que estava congelado na 255 7 2005 memória do corpo de um ser adulto e capaz de se comunicar com outros, permitia um retorno a uma situação primordial, sem tempo, nem contorno: “É no aqui e agora que o acontecimento se dá como se fosse pela primeira vez, embora num passado remoto este acontecimento já se deu através de sensações corpóreas”.35 Durante a sessão inteira, o paciente deveria segurar uma pedra, Lygia a chamou de ‘prova do real’36, seria “o aquilo que foi?” Entretanto, esta atividade a consumia emocionalmente e foi interrompida em diversos períodos, numa oscilação constante até sua morte em 1988. “Me sinto como uma esponja que chupa toda psicose do cliente não tendo a palavra para metabolizar”.37 Tais crises tornavam-se uma abertura total ao outro a ponto dela se sentir dissolver. O dentro se tornava o fora dissolvendo contornos. “Perdi minha identidade e estou dissolvida no coletivo. Vejo-me através de todas as pessoas independente de sexo e de idade. Eu sou o outro”.38 Perceber seu contorno no mundo era um enorme esforço para Lygia, e requeria uma constante reconquista da palavra. A serpente insidiosa e fluída na garganta sufocava, impedindo a voz. Lygia enfrentou o bloqueio do impulso para a comunicação, a mudez que mantinha a sensação encapsulada em si mesma sem ser compartilhada. Mesmo optando pela fluência da vida, pelo “exercício experimental da liberdade”,39 o que fazer com essa baba que escorria sem cessar, nos sonhos e em sessões terapêuticas, ocupando espaço da palavra, emudecendo o pensamento? Naquele último sonho da série recorrente, Lygia engoliu a baba materializada em um tubo de borracha num ato de voracidade. Não mordeu e cuspiu a serpente ressentida como na cena do enigma descrita por Zaratustra, na qual ele tenta arrancar uma cobra da garganta 256 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias de um pastor sufocado e como ela resistisse, gritou para que o pastor a mordesse e a cuspisse fora.40 Lygia, ao contrário, metabolizou o ressentimento em seu corpo. Atitude masculina de cortar fora e inventar novos valores? Atitude feminina de engolir e metabolizar, para daí inventar novos valores? Ou estratégias diferentes para se buscar o ponto persistente desse ressentimento para assim o destruir, seja pela visão — ver a cobra na boca de outro — seja pelo sentir cinestésico que buscaria o fio da baba inscrito no próprio corpo. Um de seus últimos trabalhos artísticos apresentados em público em um evento de arte — IX Salão Nacional de Artes Plásticas, em 1986 — foi Corpo Coletivo, uma série de leotards41 de cores diferentes costurados entre si em alguns pontos e que deveriam ser vestidas pelos espectadores interessados em participar da obra. Surgiu de uma estilização das experiências grupais de Lygia desenvolvidas em Paris, nas quais todos se uniam fisicamente pelo toque, por elásticos ou plásticos. No Corpo Coletivo as malhas costuradas entre si possibilitavam experimentar a sinergia do grupo a partir de uma experiência corporal individual. O movimento de um era alterado pelo movimento do outro e ao mesmo tempo alterava o dos demais, numa corrente cinética. As tentativas de mobilidade acarretavam interações variadas e exigiam atenção às forças desencadeadas. Em alguns momentos, cada um se sentia compungido a seguir o conjunto, em outros, uma resistência se fazia possível e uma força individual modificava o caminho da movimentação. A atenção ao próprio corpo não desviava da atenção aos movimentos e forças desencadeadas pelos outros. O pensamento, vida e obra de Lygia apontam para a invenção de uma sociabilidade desenhada pela convivência, na qual interessam o momento, a situação vivida, a posição dos corpos em tensão e prazer simultâneos, sem 257 7 2005 idealizar a mediação de Deus, Estado e seu Contrato. Seu coletivo era baseado na convivência vivida — relações que se dão em espaços concretos. Sensações arcaicas exigiam palavras para serem comunicadas e compartilhadas. Lygia nunca perdeu a dimensão de que “a comunicação com o corpo abre para o coletivo”. Todavia, passava longe de Lygia propor um mergulho em si ou uma auto-descoberta do ego. Zaratustra encerra sua trajetória de anúncio do além do homem na chegada do leão. “Chegou o sinal!” No entanto, apenas a criança afirma, cria novos valores para superar o espírito humano, o leão é incapaz disso, pois sua vontade ainda diz não ao “tu deves”. “Os meus filhos estão próximos”.42 Transformar-se em criança seria realizar a superação anunciada por ele, seria se tornar o super-homem, seria dizer sim. O futuro anunciado por Zaratustra se encontra na criança. “O princípio do eterno retorno, nos remete às crianças e ao ser criança como formas ininterruptas do ato de guerrear e de instabilizar idealizações. [...] A criança deixa fazer dançar, perde os sentidos pelos sucessivos giros, tonteia, busca eixo, refaz uma suposta normalização estática dada pelo conceito, portanto experimenta”.43 A criança não se deixa definir por estratégias conceituais de pedagogias que visam moldá-la para suportar os fardos da moral. Defini-la a partir do adulto que se quer construir moralmente transformaria o superhomem no burro de carga de hoje. O Leão rugiu e os homens superiores desapareceram. Zaratustra, sozinho agora, compreendeu qual foi sua “última tentação”: “Compaixão! Compaixão pelo homem superior!”. Nessa cena final do livro anuncia-se um outro tempo — o grande meio dia. Lygia preocupava-se com a noção de humanidade, no entanto, em contraposição à imagem ideal de ser humano, investiu no contato estreito com pessoas menores, 258 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias dependentes de tutela, sem a autonomia do maior, mas resistindo a ele. Lygia aproximou suas experiências das crianças surdas-mudas, dos autistas; enfrentou com paciência transferências e contra-transferências de alguns de seus alunos da Sorbonne. Na atividade terapêutica dedicou-se aos casos mais problemáticos: borderlines e psicóticos. Nestas pessoas encontrava o esforço para se comunicar ou para entrar em contato com o sofrimento. “Somente quem passou por grandes catástrofes pode entendê-las” — afirmava Lygia.. Nietzsche teve seu embate com os homens superiores: reis, sacerdotes, feiticeiro, e os levou para sua caverna, pois os considerava indivíduos únicos, afastados do rebanho e junto a eles esperou encontrar a ponte para o além do homem. Lygia, por sua vez, convidou para sua caverna os menores — seres tutelados ou sujeitados. Foram estes os companheiros que ela desprendeu do rebanho. A luta para se comunicar com um coletivo, para se transformar, deu-se com eles, enfrentando inclusive o perigo da compaixão. Todavia, em vez de tentar aperfeiçoá-los em direção a uma maioridade ou condicioná-los por processos pedagógicos, o que, também, resultaria em compaixão, Lygia reconheceu a grandiosidade das experiências deles e de saberes decorrentes. Por meio da arte e da transposição da arte para uma atividade terapêutica, Lygia acabou desprendendo de uma rede normalizadora saberes sujeitados, e muitas vezes desqualificados por um discurso científico maior. A correspondência entre o caminhar de Lygia e o de Zaratustra mostrou seu sentido mais instigante quando Lygia, ao descolar os saberes sujeitados e vivências dos modelos de interpretação uniformizadora, possibilitou introduzir elementos cruciais para a superação do homem. Zaratustra duvidava que os homens superiores recolhidos em sua caverna fossem seus reais companheiros. “Ain- 259 7 2005 da dormem esses homens superiores, quando eu já estou acordado: não são esses os companheiros próprios para mim”.44 Lygia, por sua vez, tinha periódicas dúvidas se conseguiria dar continuidade ao seu trabalho como terapeuta, exatamente pela dificuldade em lidar consigo própria frente a estes parceiros. Como não ceder às tentações da compaixão e conseguir deixar os perdidos entregues a si mesmos? No entanto, ao incorporar, na invenção de um coletivo, aqueles que passaram por extremo sofrimento ou incompreensão — nomeados como bordelines —, e não as crianças saudáveis, nem os rasos neuróticos, Lygia faz emergir uma pergunta nos interstícios das certezas. A invenção de valores e o exercício de uma ética arrasam efetivamente a sujeição destes saberes ínfimos e silenciosos e o mascaramento de seus protagonistas em personagens pacificados? Questão queimada pelo anunciado sol do grande meio dia ou sombra insidiosa deslizando pelo avesso das pedras? Ou ambos? Notas Parte deste artigo foi apresentada no XV Encontro Nietzsche: Colóquio, realizado de 13 a 17 de outubro de 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 1 Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, p. 333. 2 3 Idem, p. 47. Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, fita cassete, gravado em 14 de setembro de 1979. 4 5 Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 15 de abril de 1961, CEMAP/CEDEM/ UNESP. 6 Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 14 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/ UNESP. Michel Seuphor (1901-1999), artista, escritor e crítico de arte belga, 260 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias participou do Surrealismo e da Arte Abstrata. Os irmãos, Antoine Pevsner (1886-1962) e Naum Gabo (1890-1977) foram expoentes do construtivismo russo. Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 18 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/ UNESP. Jean Arp (1886-1966), importante artista francês das vanguardas do começo do século XX: Cavaleiro Azul, Dadaísmo, Surrealismo, entre outros movimentos. 7 Lygia Clark. “Considerações a alguém” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, Rio de Janeiro, Paço Imperial, 1997-1998, p. 145. 8 Lygia Clark. “Arte, Religiosidade, Espaço-Tempo” in Lygia Clark. Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 29, grifo meu. 9 10 Lygia Clark. Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 178. 11 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., pp. 33-34. Roberto Machado. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 112. 12 13 Lygia Clark. “28 de outubro de 1963” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, p. 167. 14 Roberto Machado, 1997, op.cit., p. 131. Lygia Clark. op.cit. p. 168. Friedrich Nietzsche, 1998, op. cit. p. 179. 17 Idem, p. 180. 18 Ibidem, p.180. 19 Lygia Clark. Carta de 26/10/1968 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 19641974. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996, p. 57. 15 16 20 Manuscrito, Pasta 32-produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOCMAMRJ. Lygia Clark. Carta de 11/08/1970 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 19641974, op.cit, pp.170-171. 21 22 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 180. Gilles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. António M. Magalhães. Porto, RésEditora, s/d, p. 54. 23 24 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., p. 172. 25 Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 298. 26 Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro de 1979. 27 Gilles Deleuze, s/d, op.cit., p. 34. 261 7 2005 28 Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro 1979. 29 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 362. 30 Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 298. 31 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 215. Lygia Clark. Carta a Guy Brett, 14/10/1983, Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 338. Os nomeados Bordelines referem-se a autistas, surdos-mudos, psicóticos. 32 Manuscritos Pasta 33 – produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOCMAMRJ. 33 34 Lygia Clark. “Estruturação do self ” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 326. 35 Idem, p. 326. Memória do Corpo, vídeo de 1985, dirigido por Mário Carneiro, mostra uma sessão terapêutica completa com Lygia Clark.. 36 37 Manuscritos diversos, Pasta 46, Arquivo Lygia Clark, CPDOC-MAMRJ. Lygia Clark. “Da supressão do objeto” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 266. 38 Expressão de Mário Pedrosa referente à trajetória de Hélio Oiticica, um dos poucos amigos artistas de Lygia que sempre a compreendeu e apoiou. 39 40 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, pp. 194-195. Designa, literalmente, “malha de balé”, segundo o Dicionário da Moda. A malha foi intitulada assim devido ao seu inventor Leotard, um trapezista francês. (N. A.). 41 42 Idem, p. 380. Edson Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário, 2003, p. 150, grifo meu. 43 44 Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 379. 262 verve Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias RESUMO Este artigo propõe colocar em diálogo dois caminhos de construção de si e de exercício de uma ética. De um lado, a trajetória realizada por Zaratustra, personagem filosófico inventado por Nietzsche para anunciar a chegada do super homem. De outro, a de Lygia Clark que moldou sua vida como obra de arte por meio da própria arte. Algumas correspondências são encontradas, ao mesmo tempo em que algumas questões instigantes surgem dos interstícios desta conversação. Palavras-chave: Lygia Clark, estética da existência, arte contemporânea. ABSTRACT This article proposes to put in conversation two ways of selffashioning and exercise of an ethics. By one side, the trajectory made by Zaratustra, philosophical character invented by Nietzsche in order to announce the arrival of superman. By the other, the one of Lygia Clark who shaped her life as a work of art by means of the art. Some correspondences are found at the same time that some provoking questions emerge from the interstices of this conversation. Keywords: Lygia Clark, aesthetic of existence, contemporary art Recebido para publicação em 13 de fevereiro de 2004. 263 7 2005 jean vigo, a revolta e o devir pablo martins* “Pensamento é o pensamento de pensamento. Claridade tranquila. A alma é de certo modo tudo o que é: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade súbita, vasta, candescente: forma das formas.” James Joyce Há cem anos, em 26 de abril, nascia Jean Vigo, cineasta errante, autor de A Propos de Nice, Zero de Conduite e L´Atalante. Poucos foram tão intensos. Nas menos de duas horas e meia que somam todos os seus filmes juntos, nos fugazes vinte e nove anos que viveu, ele instalou-se de um modo ímpar na história do cinema. História, sim, embora extra-oficial, à margem, veemente pelo teor híbrido que instilou. Vigo tencionou as classificações tradicionais. Um cineasta de fricção, que transgrediu categorias como * Sociólogo, mestrando do departamento de Multimeios da Unicamp. verve, 7: 264-278, 2005 264 verve Jean Vigo, a revolta e o devir documentário e ficção. Um cineasta de vanguarda, que passeava com rara leveza entre os pilares narrativos e poéticos. Certos historiadores insistem em compreendê-lo como um artista que não alcançou um estilo estético definido. Sorte do cineasta. Azar do analista. Independente do rótulo, e por meio do choque das classificações, brota algo, mesmo informe, que enche os olhos do espectador. Cineasta limite, ele limitou as tentativas de abarcar seu universo, seu cineverso. Um limite imposto pelo próprio vigor de sua juventude interrompida. Um limite histórico, herança do conturbado momento em que viveu. Um limite — nossa vã compreensão estética oriunda de um modelo estanque de abordagem das obras da época. Talvez seja contraditório, mas é no encarar desses limites que se pode deslindar uma interpretação. Não para compreendê-lo, tampouco para classificá-lo. Talvez com uma imersão estética balizada por outro mergulho histórico possamos vislumbrar a obra desse cineasta. Falta transe, e olhos bem humorados, para enxergar Vigo. A vida e a obra de Jean Vigo se complementam. A figura do pai, Miguel de Almereyda, o contexto político e artístico dos anos vinte, o surgimento do cinema como forma de expressão e os inúmeros dispositivos vigilantes e normativos que o aparelho estatal desenvolvia ofereceram limites e novos horizontes para o cineasta. Dos filmes à vida, do contexto ao texto. O primeiro elemento que chama a atenção em Zéro de Conduite (1933) é a urdidura de uma certa poética da revolta. Trata-se do segundo longa-metragem de Vigo. Nele percebe-se uma consistente visão de mundo e uma defesa pela ética da experimentação. Pode-se afirmar que Zéro de Conduite narra tentativas de libertação em choque, 265 7 2005 ou atrito, com técnicas de dominação. Tudo a partir da lógica e do mundo infantil. Percebe-se uma rara delicadeza ao retratar esse momento da vida. As crianças não são mostradas apenas como pueris ou sujeitos ingênuos. São indivíduos. Prontos e, simultaneamente, em constante metamorfose. É o regime disciplinar que tolhe, ou ao menos insiste em tolher, a riqueza da fonte infantil. Há uma dicotomia, espalhada e atenuada pela cosmologia de Vigo, entre o mundo dos adultos e o das crianças. O mundo da regra versus o do caos. O da formatação — que diverge em gênero, número e grau com a formação — entra em contraste com o da experimentação. O internato, aos olhos sarcásticos de Vigo, não passaria de uma forma de internalizar as regras disciplinares. Por isso, todos os adultos são conotados de um modo ridículo. São caricaturas de um mundo corrompido. As crianças, por outro lado, caracterizam o universo da pureza — embora tal marca não conote um romantismo. As crianças de Zéro de Conduite são heróicas por refutarem a dominação que lhes é imposta. São sujeitos que dizem o não necessário para a manutenção da dignidade, da autenticidade. Numa palavra: a exaltação da individualidade a qualquer custo. O realçar da revolta difere do entusiasmo da revolução. Dois momentos distintos e, muitas vezes, antitéticos. A revolta consiste numa abrupta negação da realidade externa e uma intensa afirmação da individualidade. Ela é momentânea, imediata. A revolução não prescinde de um prognóstico, um plano de ação, uma organização coletiva e um planejamento a longo prazo — ela possui um inevitável teor teleológico. 266 verve Jean Vigo, a revolta e o devir Até onde se tem notícia, Zéro de Conduite é o único filme do início da história do cinema que eleva a revolta a uma dimensão simbólica. À revolução, ao contrário, não faltam filmes que a enalteçam. Boa parte da obra do cineasta russo Serguei Eisenstein, por exemplo, é um elogio à revolução russa. A Greve (1924) é uma crítica à falta de organização da classe operária. Outubro (1928) narra a trajetória da tomada de poder da revolução de 1917. Embora com inúmeras inovações na linguagem cinematográfica, trata-se de um filme oficial. O Encouraçado Pontemkim (1925), dentro dessas classificações, é um filme ambíguo: oscila entre a revolta, a revolução e a repressão do status quo. Mesmo assim exalta a necessidade da organização para o alcance da revolução. Todavia é no filme O Triunfo da Vontade (1934), de Leni Riefensthal, que vemos o ápice da relação entre cinema, Estado e ideologia revolucionária. O partido Nacional Socialista na sua euforia pré-Auschwitz é captado por enquadramentos sóbrios e geométricos. Há um peculiar casamento entre tecnologia social e auge da técnica cinematográfica. Hitler idolatrado e Gobbels inovando ao inserir o cinema e a propaganda como uma política oficial de Estado. A relação entre cinema e ideologia é ardilosa. E uma simples distinção entre revolta e revolução pode reorientar toda uma classificação cinematográfica. Voltemos a Vigo. Indaguemos sobre suas heranças, sobre o modo como essa revolta adentrou sua biografia. Talvez seja necessária uma breve caracterização de seu pai, o anarquista Miguel Almereyda. Estamos entre as três primeiras décadas do último século. Em meio às ruas de Nice e Paris — ruas escuras, fétidas, prenhes de lirismo para alguns, transbordante de nojo para outros —, entre prisões de colegas e parentes, perpassando barricadas e uma enxurrada de 267 7 2005 ideologias afobadas. À militância política, vidas dedicadas. À militância por outros modos de percepção da vida, outras formas na arte emergiam. Estamos no auge das vanguardas. Contra a métrica clássica, a pintura representativa, o teatro ilusionista e a música tonal experimentavam-se versos livres, traços desgeométricos, a estética da crueldade e seqüências de notas cromáticas, seriais, atonais. Havia uma ânsia por uma liberdade estética, e ninguém — sobretudo os vanguardistas — hesitava em jogar expurgos ao ventilador. O novo era uma imposição. Tudo que soasse clássico sofria de um ferino despeito. Estamos, também, no ápice da empolgação liberal. Zilhões de monumentos erguidos à redenção tecnológica. Ruas varridas por um urbanismo sanitarista onde o limpo e o sujo tornam-se categóricos, distintivos. Consolidado o regime disciplinar e normativo, arquitetado um novo modo de atuação estatal e implementada a forma industrial de organização da vida, a França fervia. Do meio do caldeirão pulula a figura de Miguel Almereyda, um anarquista polêmico, influente, um perfil eminente no ambiente político da época, com ideais diversos e talento de sobra para formar e manipular a opinião pública. Freqüentador assíduo da prisão Petite Rouquette, Almereyda foi perseguido durante toda sua vida. Quando livre, ganha um rápido destaque. Escreve para jornais tão diversos como o Liberátion, o Guerre Sociale ou o satírico Bonnet Rouge. Organiza um congresso internacional centrado no tema do antimilitarismo, uma forte ideologia da época que primava por reverter a lógica estatal a partir do exército. Ameaça aplicar alguns desses princípios perante o contexto da Primeira Guerra Mundial. A mídia debatia a entrada, a atuação e a saída das tropas francesas. O exército, contudo, era basicamente 268 verve Jean Vigo, a revolta e o devir formado por operários, socialistas e anarquistas — justamente o público, os leitores de Almereyda. Com a ameaça de manipulação ganha poder e degusta-o. Confusa e intermitente, a vida desse anarquista condensa um pouco do pano de fundo da época. A agitação política, a explosão de inúmeros estilos de vida, a circulação urbana e moderna permeada por novos símbolos. Destaquemos seu início de carreira: como fotógrafo. Ressaltemos sua principal atuação política: como jornalista. Lembremos de seu maior empecilho de expressão: a prisão. A vida de Almereyda, enfim, resume a atuação de novas tecnologias sociais oriundas do fim do século XIX. A fotografia e os jornais panfletários — juntamente com os folhetins, o melodrama e o cinema — sintetizam o lado periférico da emergência da cultura de massa. Qualquer cidadão ganha um rosto, todo indivíduo tem, teoricamente, o direito de expressar e reivindicar sua opinião. Por outro lado, essa mesma cultura de massa é sabiamente utilizada pela nova elite como uma forma de repressão revestida de discurso democrático. E são justamente os formadores de opinião, como Almereyda, os intermediários, os barganhadores, que exercem um jogo duplo. Eles oscilavam entre a chantagem com a elite e o acirramento dos ideais com a massa. Mais refinada, a lógica carcerária ganha relevância histórica e institui novos modos de normalização, padronização e dominação do indivíduo. A urbes torna-se múltipla: espaço do exercício da liberdade e locus privilegiado da vigilância policial. Almereyda foi uma vítima nervosa e irrequieta dessa lógica. Numa de suas maiores temporadas carcerárias foi obrigado a acatar a lei do silêncio perpétuo. Nenhuma palavra, nenhum ruído, 269 7 2005 soluço, sequer um bocejo poderia ser escutado pelos guardas. Calaram-no. Depois de um ano, quase um terço do seu vocabulário havia desaparecido. A revolta que guiou sua vida, segundo alguns intérpretes, foi resultado dessas prisões. E foi lá, entre as grades, que reverberavam seus primeiros ideais anarquistas. Mesmo com sua inquestionável autonomia, Vigo carregou certas angústias e inquietações do pai, Miguel Almereyda. E foi na incessante simbiose entre estética e política que ele ensaiou resolver tais questões. Há algumas semelhanças, outras continuidades e rupturas sutis entre esses dois personagens. O ambiente de perseguição da vigilância normalizante, mais uma vez, atrita-se com a busca por caminhos alternativos. Há uma mudança de indumentária. O que Almereyda resolvia entre manifestações e negociações políticas, Vigo sublimava com uma complexa rede simbólica. Vigo escolheu o cinema, outro meio de comunicação com as massas. Vigo foi vítima da lógica do internato, outra faceta do regime disciplinar. Vigo foi tolhido pela censura, seu reconhecimento foi póstumo. Contudo, é a índole da revolta que, teimosamente e plena de brios, permanece no menino Vigo. Sua combustão artística era apenas uma questão de tempo. Lembremos que foi nos bairros de periferia, os famigerados vaudevilles, que o cinema obteve seu primeiro público. Sim, o cinema nasceu underground. Antes, muito antes, de alguns movimentos requisitarem tal epíteto. Somente nos meados da década de 1920 houve o profícuo encontro entre o cinema e a miríade de vanguardas da época. E nessa encruzilhada, deveras saborosa, Vigo encontrou-se consigo mesmo. 270 verve Jean Vigo, a revolta e o devir Junto ao brilho das vanguardas e dos cinemas de vaudevilles; junto à ânsia pela experimentação e pela realização cinematográfica, Vigo aglutinou um espírito e uma ética libertária. Desconsiderá-la não passa de um menoscabo ao forte teor simbólico que tal contexto obteve na sua obra. Underground — por que não? — também fôra o ambiente em que cresceu o menino Jean Vigo. Em Zéro de Conduite (1933) e L´Atalante (1934), assim como em boa parte dos filmes da época, emergem personagens típicos do ambiente das vaudevilles. São os desajustados, como os garotos castigados ou Huget, o novo bedel, que não se intimida com as restrições normalizantes das regras do internato. São os desviados, aqueles classificados para permanecerem à margem. É o caso do père Jules do L´Atalante que vive eivado por valores não partilhados pela ascensão burguesa. Ou ainda, o mágico-palhaço-vendedor ambulante desse filme, motivo da briga do casal, que parece ter vindo direto da idade média para a Paris do século XX. Esses personagens estão fora do contexto. Chaplin, René Clair, Fritz Lang e Eric von Stroheim também permearam suas narrativas com protagonistas desviados. Trata-se de um sintoma da época: o desemprego, a índole ambígua do vagabundo (entre o herói e o anti-herói), uma miríade de hábitos e costumes não contemplados pela moral burguesa. Todos esses personagens fogem, zombam e perturbam a normalidade da ordem recém instalada. Há uma mistura de ironia desses diretores com a melancolia dos seus personagens. Outra guinada de valores: o cinema na sua peleja para obter o status de arte. Não fora um processo retilíneo, e, para tanto, o papel das vanguardas foi fundamental. Ela atuou de dois modos: reconheceu no cinema uma nova forma de expressão que merecia uma atenção es271 7 2005 pecífica. Entretanto, a vanguarda manteve e aguçou o espírito vulgar que caracterizou o início do cinema (e a obra de Vigo foi uma das maiores sínteses dessa relação). As gags, por exemplo, eram atrativos indispensáveis para todos os vanguardistas e não possuíam nenhuma intenção em elevar o status do cinema. A vanguarda, o documentário e o cinema social podem resumir as três maiores influências de Jean Vigo. Se fôssemos escolher cineastas da época que deglutiram tais tendências e a legaram a Vigo, citaríamos Dziga Vertov e Luís Buñuel. De um lado a câmera-olho, que capta e registra mais do que o olho alcança. A câmera objetiva que desorganiza o olhar viciado dos homens sobre o mundo. “O mundo visível assim com o mundo invisível — a olho nu”, era o lema de Dziga Vertov. De Buñuel, a explosão do universo onírico. Um quê de surrealismo, como o espaço da liberdade reivindicado pelos artistas da época. Um pouco da poesia que nos falta, ou nos recalca, o dia a dia. Nos três filmes de Vigo essas heranças ganham uma incrível fluência, principalmente, pelo modo como ele as insere à narrativa. A frieza da objetiva cinematográfica é sempre a mesma. A câmera não cria ou distorce o fenômeno — como fizeram os vanguardistas em suas aventuras cinematográficas — ela prima pelo registro quase científico da mis-en-scène. O olhar do instante, o olhar do flagrante: não é outra a base estética de Jean Vigo. A poesia, quase surrealista, emerge dessa projeção do sujeito-espectador aos objetos matematicamente captados por Vigo. O surrealismo de Vigo, portanto, surge calcado numa profunda iluminação profana. A propos de Nice (1929), seu primeiro filme, tem influências diretas dos documentários da época que almejavam captar a alma de uma cidade. Berlim, Sinfonia de uma Metrópole (1927) de Walter Ruttmann e Rien que 272 verve Jean Vigo, a revolta e o devir les Heures (1926) do brasileiro Alberto Cavalcanti são algumas dessas realizações. Nesses filmes, a câmera ainda esboça um ethos documental, como se pudesse registrar o real. Vigo tenta, sim, imprimir o espírito de Nice, a cidade de sua adolescência, nesse seu primeiro filme. Todavia, ele desconfia do real e, diferentemente de suas influências, sua câmera está eticamente orientada para captar fenômenos, eventos e acontecimentos. Nada mais. Não há uma realidade pré-concebida. Para o cineasta francês, mesmo o jogo social, mesmo a documentação de encontros sociais oriundos de um real imediato aparecem como um modo de ficção. “Nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade” observa Walter Benjamim. Vigo certamente concordaria. A representação social como um jogo: por isso sua fixação por bonecos, máscaras e encenações do gênero. Este elemento, o boneco, é recorrente nos três filmes de Vigo. E o que há de real nos bonecos, além de sua imanência física, não é justamente o encarnar realidade àquilo descaradamente imaginário? É desta fricção — do irreal a olho nu com o real que nos é invisível — que emerge a singularidade da poética do cinema de Jean Vigo. Zéro de Conduite (1933) condensa de outra forma as relações entre documentário e ficção. Trata-se, primeiramente, de uma resolução autobiográfica. Num segundo ângulo, percebe-se uma enorme primazia pela descrição: o trem, o pátio, o dormitório, a cidade, a festa de comemoração de aniversário do colégio (que é diretamente contraposta ao êxtase espontâneo — a revolução infantil). Os flagrantes na rua, em Zéro de Conduite, lançam, mais do que um estilo documental. Trata-se de um olhar sobre a cidade, de uma tentativa infantil, pre273 7 2005 coce e semi-reprimida de exercer a flânerie e dar asas aos desvarios inerentes aos passeios urbanos. O ápice desse filme, contudo, está em suspender o instante e o momento da revolta dos internos. Por isso a câmera lenta, as plumas dos travesseiros, o pulo dos meninos mostrado ao reverso remetem à recusa da autoridade, o breve e intenso momento em que exala o halo da liberdade. A descrição do barco e da chegada à Paris são os elementos que dinamizam os devaneios poéticos de L´Atalante (1934), último filme de Vigo. O rádio, o personagem circense, as danças, os gatos, as caminhadas pelas lojas e, sobretudo, o registro do devir urbano captado, congelado, no momento do choque. A narrativa de L´Atalante é quase um documentário de um jovem casal que chega à capital. A câmera de Vigo soube passar o estranhamento que a metrópole causa a qualquer ser que não nasceu nela. Com essa dinâmica de friccionar ficção com documentário, de tratar personagens como objetos e objetos como personagens, a partir dessa mescla, começamos a enxergar Vigo. Afora nosso olhar viciado a uma narrativa previamente anunciada, além de classificações impostas, elucida-se o poder da câmera de cinema. Com Vigo vamos ao cerne dos anos 1920 e 1930 na França. Porque, simplesmente, essa distinção entre poética e realidade não fôra respeitada. *** Um elogio à merda — um ato necessário. Alguns fatos (aparentemente) desconexos: 14 de julho de 1912, o jornal La Guerre Sociale endereça uma mensagem ao governo francês. Com letras 274 verve Jean Vigo, a revolta e o devir garrafais, em negrito, sua manchete estampa: EU VOS MANDO À MERDA! Almereyda, nome político do pai de Vigo, é o anagrama de Il y a merde. Podemos traduzi-lo para algo como ‘Tem merda’. (!) Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o estudante está num devaneio solitário, escreve algo sobre a carteira. O professor chama sua atenção. Ele, com muita naturalidade, o manda à merda. Faltam cinco minutos para os atores entrarem no palco. A coxia treme, alguns pulam, outros, calados, se concentram. Uma tácita evocação de um deus grego, remoto no tempo e vívido como símbolo. Faltariam vinhos, danças e orgias, mas celebra-se a encenação da vida. A coxia estremece com o hálito de figurinistas, maquiadores, iluminadores, atores e diretores. É um uníssono: MERDA — todos gritam, e agora sim, (re)inaugura-se o júbilo de estar em ato. Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o diretor do internato, alguns professores e os bedéis pedem, educadamente, para que o aluno retire a agressão feita ao professor. Com altivez, o aluno se levanta e repete: eu o mando à merda. *** Se em Zéro de Conduite vislumbramos uma poética da revolta, em L´Atalante percebe-se um mergulho à estética do devir. O último filme de Vigo não passa de um fluxo incessante com um rumo indefinido. Toda a magia dos road-movies da década de 1970 já está explorada nesse singelo filme de 1934. Não seriam poucos, aliás, os estilos preconizados por Vigo. Sua relação entre surrealismo e cinema social, por exemplo, muito se assemelha à transgressão do neo-realismo italiano impulsionada por Fellini e Pasolini. 275 7 2005 É com sutileza que a narrativa de L´Atalante não respeita a convenção do casamento. Por isso não é adequada sua classificação como um filme lírico ou romântico. Vigo insere a dúvida e a experimentação num ritual social eivado pela certeza e pela rigidez. Os noivos são dois estranhos e a noite de núpcias, à beira do L´Atalante, causa tanta insegurança como um jogo de loteria. O filme possui quatro momentos narrativos para o casal: a cerimônia, a convivência no barco, os desencontros na cidade e o reencontro. E cada um desses momentos tem um suspense prenhe de reticências. Leia-se: um devir. Todo devir dispensa uma resposta. Na dúvida do casal, a câmera vagueia pelo universo do père Jules, pelas ruas de Paris ou pelos lugares mágicos e novos trazidos pelo fluxo do barco. Em L´Atalante o devir é feminino. É Juliette, a noiva, que ensaia entrar no quarto de père Jules e apreender esse universo. Esta é uma das cenas mais belas do filme. Pére Jules, o beberrão, sujo, rodeado por gatos, cheio de tatuagens, freqüentador de casas de jogos e de prostíbulos: é este ser quase anormal que mostra um mundo novo para Juliette. Seu marido, tomado pela fúria da ordem, a interrompe: Juliette deve se comportar de acordo com o fluxo previsível que lhe é imposto. Análoga, outra guinada de percurso ocorre com o encanto de Juliette pelo vendedor ambulante (que é insuportável para o dono e os clientes do bar). Mais uma vez o que a encanta é a possibilidade de conhecimento de um mundo novo. Este teor de ingenuidade, e de vontade de experiência, lembra o anseio dos ‘jovens diabos’ de Zéro de Conduite. Jean, mais uma vez, faz cara e pose de marido ciumento. Em termos narrativos ele exagera esse sentimento, ele porta a hybris dramática. Nesse episódio temos uma fantástica utilização da narrativa sonora. Ju276 verve Jean Vigo, a revolta e o devir liette, numa espécie de monólogo interior, ouve a voz do convite do vendedor ambulante subitamente contrastada com a voz castradora de seu marido. A sedução dos novos experimentos em choque com a adequação à regra. Aqui o devir fala mais alto e Juliette se permite uma aventura pela cidade. Seu olhar de encanto se contrapõe ao de vingança e desespero de Jean. Seu devir é incessante: da flânerie ela passa ao desemprego e perambula pelo submundo de Paris. A experiência de isolamento dos recém-casados também faz parte desse devir conjunto e instila vontade onde outrora havia dúvida. Depois do reencontro, outro devir: a câmera em plongée sai do L´Atalante e acompanha o fluxo incessante, a imagem de água e luz, um rio — sem destino. Talvez haja um elo entre a noção de revolta e a de devir. Talvez esse elo defina uma forma latente à curta obra de Jean Vigo. Mais forte do que isso está o fato desse jovem cineasta ter captado e expressado a alma desses dois fenômenos complexos. A alma não na sua acepção metafísica. A alma na sua faceta suja, mundana, com holofotes no seu viés profano. A alma como a forma que engendra formas, como o lance do pensamento que remete a outros fatos, outras idéias — ao infinito. Se existe algo entre a revolta e o devir é melhor deixá-lo inominável. Ou ver e rever Vigo — este cineasta centenário. 277 7 2005 RESUMO Na Paris do início do século XX, um pai anarquista e um filho cineasta. O contexto político e estético, as forças repressivas e expressivas são sintetizadas pelas figuras de Miguel Almereyda e Jean Vigo. O legado libertário de Almreyda, um breve retrato do ambiente anarcosindicalista da passagem do século XIX para o XX. As primeiras décadas da história do cinema, a busca por linguagens de vanguarda e o diálogo com as vaudevilles são vistas a partir dos três principais filmes de Jean Vigo: A Propos de Nice, Zéro de Conduite e L´Atalante. As relações entre documentário, cinema social, ficção e cinema independente ou experimental no contexto das décadas de 1920 e 1930. Também vislumbra-se as influências de Vigo à história do cinema e os estilos que antecipou. Palavras-chave: história do cinema, vanguardas, anarquismo. ABSTRACT Paris, beginning of the 20th century, an anarchist father and his movie maker son. The political and aesthetic contexts, the oppressive and expressive forces are concentrated in the characters of Miguel Almereyda e Jean Vigo. The libertarian legacy of Almereyda, a brief view of the anarco-sindicalism environment in the transition from the 19th to the 20th century. The first decades of the history of cinema, the search of avant-gardes languages and its dialogue with the vaudevilles are analyzed through the tree Vigo’s main pictures: A Propos de Nice, Zéro de Conduite and L’Atalante. The relationship between documentary, social cinema, fiction, and independent or experimental cinema in the context of the 1920’s and 1930’s. The article glimpses the Vigo’s influence in the history of cinema and the stiles he announced. Keywords: history of cinema, vanguards, anarchism. Recebido para publicação em 15 de março de 2005. 278 verve Anarquismo e crítica pós-moderna Resenhas anarquismo e crítica pós-moderna| nildo avelino* Salvo Vaccaro. Anarchismo e modernità. Pisa, BFS, 2004, 133 pp. Salvo Vaccaro, professor de Filosofia Política e Ciências Políticas na Universidade de Palermo, Itália, conhecido no Brasil pelo seu artigo “Foucault e o anarquismo” que integra o Dossiê Foucault organizado por Edson Passetti (Margem, n. 5, 1996, pp.157-170), publicou recentemente um outro ensaio no qual propõe confirmar o nexo existente entre anarquismo e modernidade por “um percurso de confronto com âmbitos conceituais, categorias de pensamento, constelações intelectuais que por convenção e comodidade são atribuídos a autores pósmodernos” (p. 7). Para isso o autor re-visitou algumas das posições críticas do anarquismo buscando traçar continuidades, afinidades e prolongamentos, mas sempre num campo de tensão e independente tanto do corpo teórico da ideologia política propriamente dita, quanto das matrizes de pensamento ligadas aos nomes mencionados em seu ensaio. O autor estabeleceu, com isso, * Mestre em Ciências Sociais, doutorando pelo Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sócias da PUC/SP, pesquisador no Nu-Sol e integrante do Centro de Cultura Social, bolsista Capes. verve, 7: 279-285, 2005 279 7 2005 alguns pontos-limites nos quais realiza uma reflexão pontual onde ele faz confrontar anarquismo, modernidade e crítica pós-moderna. Segundo Vaccaro, o pensamento anarquista ao buscar a abolição do poder afirma uma procura interminável, e sempre em sentido móvel, de “vida que retraça livremente ligações sociais expressas experimentalmente, renováveis ou revogáveis à vontade, constitutivamente fluídas, não cristalizadas em corpos institucionais e que, em última análise, caracteriza a relação singularidade/comunidade” (p. 8). É desta forma, diz Vaccaro, que a distância que separa a concepção anárquica do poder, decisivamente negativa porque afirmativa da liberdade como prática prioritária, daquela de Foucault, por exemplo, é menor do que se apresenta à primeira vista. Foucault vai distinguir o “poder que circula nas relações sociais da sua condensação em aparatos de domínios que interrompem sua fluidez, bloqueando a contínua chance de reversibilidade” (p. 9). A saída da menoridade na qual a humanidade se encontra em situação de escravidão tornou-se, de um certo modo, o ponto alto da reflexão de Kant, uma vez que ela implica a clássica idéia kantiana de liberdade, grávida de pressupostos essencialistas, universalistas e opressivos, como obediência aos imperativos morais. Segundo Vaccaro, o anarquismo também é portador desta marca emancipadora da filosofia das Luzes e de uma certa confiança na bondade e na virtude dos homens que lhe é inerente, fazendo reviver o encanto naturalista. De modo contrário se colocam as teses pós-modernas. Elas “rejeitam tanto a pretensa carga inata de bondade dos indivíduos, como se a ética pudesse ser abstra- 280 verve Anarquismo e crítica pós-moderna ída das condições históricas nas quais homens e mulheres vivem, quanto o elemento qualitativo do sujeito que resplandece despertado pela transformação da existência, quando é justamente pelo nascimento do sujeito — ao mesmo tempo “soberano submisso, espectador vigiado” (Foucault) — que na era moderna se articulou uma imensa estratégia de dominação através dos corpos e das mentes, dispostos não somente ao acaso, mas também com implicações cruciais aos exercícios de poder. Sem sujeito não existiria uma prática de assujeitamento (mas de mera e brutal servidão), e a soberania não se reconfiguraria em novas relações autoritárias que colocaram a subjetividade como sua representação histórica” (p. 10). O sujeito, portanto, não é “isento de responsabilidade no exercício das relações de poder que o constitui que o investe de papéis solidamente fundamentados, que o condiciona até mesmo na sua tensão liberalizante”. A partir dessa analítica o anarquismo não apenas deveria “livrar-se do mito da Subjetividade (operária, por exemplo), como deverá individuar uma intensidade libertária que não cristalize os fluxos parciais de liberações em estados molares e gregários” (idem). Se anarquismo e crítica pós-moderna separam-se no que concerne ao Sujeito, aproximam-se na crítica a dialética. No pensamento dialético o novo não pode mais que emergir do velho; contra isso anarquismo e pós-estruturalismo opõem o arbitrário e o excedente, a regra e o acaso, sublinhando “a margem de manobra da vontade rebelde” e a “aposta no ato subversivo de liberação” (p. 12). Mas, aquilo que mais aproximará o pensamento anárquico do pós-estruturalismo, sobretudo de matriz nietzschiana, é o fato dele ser um pensamento “programaticamente instável, que não busca repouso, mas devir incessante” (Idem). 281 7 2005 Por meio dessas ligações perigosas o autor procurou desfazer o nó entre anarquismo e pós-estruturalismo, sem incorrer na “representação fiel de dois gêmeos siameses”, mas fazendo pontuar confluências que provocam efeitos “de deslocamento que muda-lhe a configuração acrescentando uma potência dissonante” (p. 14). Segundo Vaccaro, a estreita relação que se estabelece entre anarquismo e modernidade não ocorre apenas por paralelismo histórico ou por genealogia do modelo teórico, mas sobretudo porque as vicissitudes de ambos pensamentos estão indissoluvelmente intrincadas. O anarquismo ganhou visibilidade pública “quando se conjugou uma série de processos sociais, políticos, econômicos, tecnológicos, culturais, demográficos, cuja condensação toma o nome de modernidade”. Isso permite que o seu fundo teórico esteja intimamente ligado “às principais conotações que o identificam ao moderno, ainda que com diferentes ênfases” (p. 15). Contudo, no âmbito da modernidade, “o anarquismo é uma variante menor, situado nos limites do estranhamento, o parente repudiado porque pobre (ou incômodo), quase um elemento espúrio” (idem). É o que ocorre com a noção de crítica tipicamente normativa relegada pela modernidade, enquanto o pensamento anárquico lança mão de uma faculdade crítica não normativa, re-elaborando “retoricamente as categorias do iluminismo moderno excedendo-o” (p. 17). Se modernidade e Iluminismo se confundem, os conceitos de fundo do anarquismo são apenas compreensíveis no âmbito da modernidade com a condição de imprimir nela fortes acentuações especificas. A acentuação que o anarquismo deu à emergência do conceito de indivíduo, por exemplo, o confirma. Vaccaro aponta o anarquismo como constituindo a única força “que pensou uma formação do indivíduo não constituída por prá- 282 verve Anarquismo e crítica pós-moderna ticas de poder, não apenas em relação ao mundo exterior — as coações na socialização da ordem constituída — mas também e muito mais em relação ao próprio eu” (p. 25). Dois movimentos caracterizam o moderno: de um lado, a ocidentalização homogeneizante e despersonificadora; e de outro, “a força da continência que incita cada um a recortar um espaço de unicidade inefetual, estetizante” (p. 28). Neste jogo de forças, o desafio anárquico seria o de transformar essa tensão em laços sociais abertos aos diversos estilos de vida. Vaccaro aponta na crítica radical ao Direito uma forte característica do pensamento anárquico. Mas ao arruiná-lo, o anarquismo abstrai dos processos jurídicos a “dimensão institucional que hoje fornece um vínculo normativo sempre mais difuso e capilar”, esquecendo que a normatização dos comportamentos não visa apenas dirimir conflitos, mas, sobretudo, introduzir os valores da norma em “cada espaço físico e mental da existência, induzindo a uma interiorização, no limite, fisiológica, da norma” (p. 43). Vaccaro faz notar que as pesquisas genealógicas de Foucault demonstram que a ideologia do laissez-faire apenas “surge quando a sociedade é colocada forçosamente em condições de se “auto-governar”, tendo assimilado e reproduzido as instâncias de controle e domínio impressas pelas estratégias de poder”, culminando nos “corpos estatutariamente apropriados” (p. 75). A fragmentação dos sujeitos provocada pelo moderno causou uma sensação de angústia que fez surgir todo um filão no qual se poderia alocar desde o romantismo político ao utopismo científico e não-científico. Foi o que Vaccaro chamou de reconciliação, um “potente motor que liga ideologias diversas” e “que ainda hoje caracteriza 283 7 2005 todo imaginário ligado às hipóteses de emancipação” (p. 94). Foucault tinha mencionado a insistência dessas velhas funções tradicionais da profecia na cultura ocidental, reativadas pelo ardor de conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir. Ou o passado nostálgico da comunidade ou o futuro da revolução, em todo caso é preciso “reconciliarmo-nos com este outro nós-mesmos. É uma imagem tipicamente teológica: ela separa o indivíduo em uma parte física, aquilo que somos, e uma parte metafísica, que existe, mas que devemos alcançar” (p. 96). Nessa busca entram em funcionamento as identidades. Elas designam o nosso si reconhecendo-o “apenas quando colocado no compartimento justo”; Vaccaro atribui às identidades uma função operativa que nos poupa da “fatigosa liberdade e da pesada responsabilidade [...] que constitui o fato de que cada um é potencialmente livre de orientar a existência” (p. 101). Sublinhando o duplo significado da palavra arché, que em grego significa tanto origem e princípio, quanto comando e autoridade, Vaccaro pensa a anarché como livre disseminação da existência, como origem subtraída a toda lógica de origem, como surgir singular. Implica pensar liberdade sem limite, sem verdades consolidadas, sem legitimação, sem valores superiores a vida, sem origem. O início é vazio. O estilo livre seria capaz de resistir às alturas vertiginosas e ao horror vacui, é bússola necessária para não deixar o “viandante” perder-se na imensidão do deserto ou do mar aberto, mundos de liberdade e criatividade nos quais se pode imaginar “uma sociedade libertária em devir-anárquico, que estenderá sempre mais, sem saturar-se, as chances de liberdade que gerações de homens e mulheres saberão historicamente inventar e criar” (p. 123). 284 verve Anarquismo e crítica pós-moderna Anarquia in-finita. Vaccaro conclui contra a idéia de sociedade anárquica, sempre global, exaustiva, completa, perfeita. Segundo ele não é possível falar de sociedade anárquica sem pretensão de totalidade auto-referente, fechada em si mesma. Vínculos sociais livres implicam também ruptura “social, isto é, de uma única sociedade, na qual o elemento de pluralidade e indeterminação infinita seria contido e possível apenas no interior de um contexto unitário que legitima alguns vínculos sociais e não outros” (p. 127). Daí a necessidade de pensar o anarquismo como reserva de tensão coletiva e individual, como tensão fundamentalmente ética. Devir, diz Vaccaro, implica também e, sobretudo, transformação social, e devir é precisamente hoje o desafio destrutivo-construtivo ao mesmo tempo; não tanto um “levante das massas”, mas um devir-revolucionário que seja índice de “práticas estilizadas de vínculos sociais que dissolvam o terreno sobre o qual se funda a estatismo para dinamizar a pluralidade, a revogabilidade, a estreiteza dos laços sociais, subtraindo-se as formas do controle social que nos imobilizam no conformismo consumista” (p. 135). 285 7 2005 notícias de um pensador: a coragem da verdade e o pensamento libertário de michel foucault| tony hara* Frédéric Gros (org.). Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola Editorial, 2004, 268 pp. Margareth Rago. Foucault, História & Anarquismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2004, 87 pp. O jornalismo radical empreendido por Michel Foucault não cessa de surpreender e de se desdobrar de múltiplas maneiras na atualidade. O trabalho de diagnosticar as forças que sublevam e de tornar visível o que não se vê, justamente, por estar tão próximo e colado a nós mesmos, parece ser cada vez mais urgente. É necessário, nessa época confusa na qual se implementa o controle social à distância, fazer aparecer as novas estratégias de monitoramento e controle das formas de conduta. Mais ainda, o legado intelectual de Michel Foucault é fundamental para compreender as recentes configurações do espaço político gangrenado por palavras de ordem politicamente corretas e completamente vazias, como rezam os manuais de marketing. Fazer a história do presente, atuar na atualidade, com coragem. As últimas aulas de Foucault no Collège de France (1983-1984) foram consagradas ao estudo da parrésia e levaram o título de “A coragem da verdade”. Quem dá notícias desses últimos cursos de Foucault, ainda não publicados, é o professor Frédéric Gros da Universidade *Jornalista e Doutor em História pela Unicamp. Publicou Caçadores de notícias: história e crônicas policiais de Londrina (Editora Aos Quatro Ventos) e a biografia do poeta Paulo Leminski para a coleção Rebeldes Brasileiros (Editora Casa Amarela). verve, 7: 286-291, 2005 286 verve Notícias de um pensador: a coragem da verdade... de Paris-XII. Em novembro do ano passado, ele esteve no Brasil a fim de participar do Colóquio Internacional Foucault: 20 anos depois, organizado por Margareth Rago. Nesta ocasião, Frédéric Gros abriu os trabalhos do Colóquio com uma conferência centrada no problema do “Cuidado de Si”, enfatizando as repercussões e as virtuais transformações que esse antigo exercício ético grego pode provocar na moral e no jogo político dominante da modernidade. A Coragem da Verdade. Além da conferência de abertura do Colóquio — que contou com a participação de mais de 30 intelectuais especializados na obra de Foucault —, o professor Frédéric Gros trouxe também na bagagem um livro organizado por ele, intitulado Foucault: a coragem da verdade. Os seis ensaios que compõem o livro destacam, sob diferentes perspectivas, um antigo problema que assombra a atividade intelectual. A saber, o problema do cruzamento, da aliança entre a teoria e a prática, entre o que se diz e o que se faz, entre a verdade e a vida. É por isso que Frédéric Gros reconhece nos estudos de Foucault sobre a parrésia na cultura grega, algo mais do que uma nova invenção conceitual. Trata-se, segundo seus termos, de uma “grade de leitura da obra e da vida enquanto indissociáveis, aquilo que, simultaneamente, fundamenta a escrita de livros e a ação política” (p. 12). Em outros termos, seria a retomada de um ponto de articulação entre os discursos e as ações e, o reconhecimento de critérios éticos, e não lógicos, para a avaliação da legitimidade e da validade de uma opinião. O critério de verdade, em última análise, encontra-se na absoluta e visível correspondência entre o dizer e o fazer, daí a questão da coragem, da conexão entre coragem e verdade. Como explica Michel Foucault a parrésia é um tipo de atividade verbal na qual o falante arrisca a vida ao manifestar sua relação pessoal com a verdade, por meio do fa- 287 7 2005 lar francamente. “Na parrhesia — afirma Foucault —, o falante faz uso de sua liberdade e opta por falar francamente em vez de persuadir, pela verdade em vez da mentira ou do silêncio, pelo risco de morte, em vez da vida e da segurança, pela crítica, em vez da bajulação, pelo dever moral, em vez de seus interesses e da apatia moral”. O dizer verdadeiro é, na parrésia, um dever, uma obrigação que visa tanto a transformação da subjetividade daquele que pronuncia o ato de verdade, quanto a transformação dos outros, que também devem ter, pelo menos entre os estóicos, coragem para ouvir e participar francamente do confronto. Neste jogo a relação corre um sério risco de se romper, pois é aceito entre os participantes o desafio e as possíveis hostilidades que emergem do conflito. É interessante destacar que nos dois primeiros artigos do livro, assinados por Phillippe Artières e Francesco Paolo Adorno, a noção da parrésia é utilizada para a construção e o entendimento da própria figura de Michel Foucault, enquanto intelectual que procurou incessantemente articular as intervenções na cena política com o trabalho filosófico. Ressalta-se nessas abordagens a coragem do diagnosticador do presente, do ativista político engajado em lutas específicas, do corpo a corpo com os aparelhos de controle e, finalmente, a coragem de romper com a função e com as representações já desgastadas e pouco efetivas de intelectual universal. Segundo os autores, Foucault rejeita, não sem provocar polêmica, a figura do intelectual enquanto consciência universal da sociedade. O papel do intelectual não é dizer aos outros o que eles devem fazer ou modelar suas vontades políticas, afirma Foucault, mas, a partir de uma análise de um campo específico “reinterrogar as evidências e os postulados, abalar os costumes, os modos de fazer e de pen- 288 verve Notícias de um pensador: a coragem da verdade... sar, dissipar as familiaridades admitidas e, a partir dessa reproblematização, participar da formação de uma vontade política.” O organizador do livro, Frédéric Gros, encerra a coletânea com um artigo repleto de surpresas e de inquietantes relatos e análises sobre as últimas aulas de Foucault, dedicadas ao problema da parrésia no contexto da filosofia cínica. O filósofo se interessou pela trama elaborada pelos cínicos gregos entre um estilo de vida despojado, portanto descolado das convenções, e um certo uso da fala, que se caracterizava por ser rude, áspera e provocadora. Em um jogo insinuante de comparações, Gros sugere um deslocamento vivido por Foucault em suas últimas pesquisas. Em síntese, trata-se do trânsito entre o tema do cuidado de si para o da coragem da verdade. Talvez, mais do que uma passagem de um problema para o outro há, efetivamente, um movimento de tensionamento entre duas formas, radicalmente, diferentes de relacionar a vida e a verdade. De um lado a ética estóica, junto com as técnicas de cuidado de si, que estabelecem uma harmonia ideal entre a vida e a verdade. A ética estóica, segundo Gros, era uma ética da correspondência regrada, disciplinada, ordenada entre a ação e o discurso. Já entre os cínicos, “trata-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo(...). Tornar diretamente legível no corpo a presença explosiva e selvagem da verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade” (p. 163). Como se percebe, dois sentidos diferentes de verdade que determinam duas formas singulares de estilização da vida. Uma mais persistente, paciente, na qual a vida é regulada por princípios verdadeiros apesar do caos, dos acasos e golpes do destino. No estilo de vida cínico, a verdade é vivida como escândalo, o corpo se torna o espaço de manifestação da verdade, daquelas verdades que, 289 7 2005 como afirma Gros, todos conhecem e ninguém se dá o trabalho de viver. Foucault, História & Anarquismo. Foucault encontra as atualizações da atitude cínica de viver e de dizer a verdade de forma provocadora, em certas manifestações, como por exemplo, em algumas correntes do ascetismo cristão, entre os artistas modernos que rejeitavam, a-gressivamente, as normas e convenções sociais e, em certos movimentos revolucionários do século XIX, como o anarquismo. O que há em comum entre essas manifestações é a atitude provocadora, ousada, que gera um certo incômodo e desconforto àqueles que se afundaram na pasmaceira e no sossego das idéias prontas. Essa energia expansiva, atrevida, profundamente libertária, atravessa os textos da historiadora Margareth Rago que buscam tecer as possíveis relações entre o pensamento foucaultiano, o anarquismo e a História. Ao justificar um dos ensaios que compõem o livro, o recado é direto e fulminante: “ainda muito indignada com a falta de abertura dos historiadores diante de um pensamento tão energizado, radical, libertário e aberto à diferença, tive declarada intenção de apresentar o filósofo para os jovens estudantes insatisfeitos com concepções históricas autoritárias, excludentes, ensimesmadas e, portanto, insuficientes para enxergar e problematizar nosso presente” (p. 11) Há, nestes artigos, um irrefreável instinto de libertar a História das concepções tradicionais, do modelo antropológico da memória e das lentes inadequadas que embaçam a visão que se tem da atualidade. O método genealógico, criado pelo filósofo francês, torna-se no texto de Margareth Rago um instrumento muito sensível, que flagra os mais sorrateiros sonhos dos historiadores tra- 290 verve Notícias de um pensador: a coragem da verdade... dicionais. Isto é, o desejo de uma síntese totalizadora, de uma identidade estável portadora da consciência histórica, a ilusão de alcançar a realidade objetiva e a essência das coisas, os procedimentos de exclusão dos acontecimentos que não se encaixam na linha de continuidade preconcebida e as promessas de um futuro redentor. A desconstrução, a crítica a esses mitos que por tanto tempo habitaram o mundo dos historiadores, tem como objetivo o reconhecimento das linhas de fuga na atualidade. Como alerta a autora em diversos momentos, não se pretende com as críticas provocadoras estimular um sentimento de desprezo em relação ao passado. Mas, ao contrário, pretende-se criar condições para que se efetue um reencontro com a tradição libertária do pensamento soterrada por essas visões autoritárias e metafísicas da História. Para além desse reencontro com a tradição libertária, Margareth Rago sugere um outro movimento: a reinvenção dos antigos libertários como estratégia para fugir da alienação da atualidade e da obediência ao totalitarismo. É por causa disso, talvez, que as suas reflexões sobre a experiência anarquista e sobre a constituição de subjetividades anárquicas soem tão estranhamente belas. Belas porque fogem ao campo restrito da produção intelectual e afetam o plano da vida. Há livros que inevitavelmente nos levam para além dos livros. 291 7 2005 heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista | jorge vasconcellos* Beatriz Scigliano Carneiro. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo, Editora Imaginário/FAPESP, 2004, 296 pp. O livro de Beatriz Scigliano Carneiro, Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte, toca em um tema urgente de nosso tempo. No que diz respeito à problemática estética, este poderia ser assim formulado: há na arte contemporânea, especialmente naquela que se propõe a ser renovadora, uma relação intrínseca entre arte e vida. Essa parece ser a hipótese geral do ensaio, construída sob o prisma de uma idéia-força creditada ao filósofo francês Michel Foucault — a noção de “heterotopia”. O intuito da autora é, resumidamente falando, investigar a vida como obra de arte nos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica. No entanto, uma idéia cara ao chamado “primeiro Foucault”, proveniente justamente de suas leituras de Georges Bataille, fazse também importante. Trata-se de pensar a transgressão neste fazer a obra, neste “obrar”. Essa vinculação à transgressão e ao transgredir surge no ensaio por intermédio de uma discussão-problema: qual a relação entre transgressão e autoria da obra? E mais, essa relação que faz do transgredir o que é posto pelos cânones estabelecidos, no tocante à constituição das obras, não só implodiria a noção clássica de autoria, como também, estabeleceria, justamente, uma ligação entre obra e vida? Essa ligação entre vida e obra, na verdade, não *Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho/RJ. verve, 7: 292-296, 2005 292 verve Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista nos colocaria diante da junção indissociável entre a estética e a ética? Essas questões aparecem problematizadas, nem sempre de modo explícito, ao longo da leitura do livro de Scigliano, e gostaria de, antes de apresentar o ensaio propriamente dito, introduzir um certo movimento no texto em questão. Talvez fazê-lo ranger, isto é, produzir ruído nos interstícios do que o texto não diz, fazendo-o, assim, falar para além de suas palavras, provocando, de fato, o que seja uma resenha: estabelecer diálogo com a escritura a ser resenhada. Sigo, de modo sucinto, o seguinte procedimento: em primeiro lugar, traço o ponto que liga as duas idéias foucaultianas presentes no ensaio: a noção de heterotopia e o tema da “estética da existência”. Em segundo lugar, procuro mostrar em que medida estas idéias foucaultianas, apropriadas pela autora, diga-se de passagem de modo extremamente rigoroso, claro e muito bem escrito, associam-se em sua interpretação à obra de Hélio Oiticica e de Lygia Clark. E, por fim, como estas idéias, em sua apropriação e interpretação das obras dos artistas retrocitados, implicam uma visada estética, a saber: a arte é mais do que um elemento de transgressão das normas estabelecidas em uma dada sociedade; a arte, ela mesma, é transformação da própria vida, já que transformação nesses termos, pensando-a nietzschianamente, é transmutação de valores, adesão absolutamente radical à vida, produção de um pensamento estético vitalista. A noção de heterotopia talvez possa ser considerada, em certa medida, como um termo bastante periférico na obra do filósofo francês. Apesar desta aparecer em As palavras e as coisas, obra nodal da démarche foucaultiana, somente em uma conferência ao Círculo de Estudos 293 7 2005 Arquiteturais em Paris, proferida em março de 1967 (publicada posteriormente em Dits et Écrits, vol. IV, pp. 752762), que ela ganharia estofo teórico para ser entendida como um operador conceitual. Não obstante, Foucault em seguida a esse período, de certo modo, parece abandoná-la. Heterotopia, naquela ocasião, passava a designar a coexistência em uma espécie de espaço impossível ou improvável, o que nas próprias palavras foucaultianas seria estabelecida “com um grande número de mundos possíveis fragmentários”. Referindo-se primordialmente à literatura e a literatos, mais especialmente a alguns textos de Jorge Luis Borges, a idéia comporta uma justaposição ou superposição de espaços incomensuráveis uns aos outros. Assim, as personagens já não contemplam como desvelar ou desmascarar um mistério central de uma dada trama, concebida em um certo espaço, em um certo tempo. Elas, em vez disso, eram forçadas a perguntar “Que mundo é este? Qual dos meus eus deve fazê-lo?”, provocando uma cisão no espaço constituído e o abandono do tempo constituinte, passando, então, à construção de novos espaços em um tempo absolutamente contraído. Foucault desloca completamente as preocupações, então em voga, em relação ao sentido do tempo, como, por exemplo, o tempo narrativo, para pensar a constituição dos espaços, do que ele chamou de “espaços outros”. Contraposta à idéia de utopia, as heterotopias pretendem descrever, de modo sistemático, a construção desses novos espaços que comportem o impossível, que instaurem o novo; justapondo, em uma mesma espacialidade, vários posicionamentos que seriam, a rigor, incompatíveis. Pensemos no Aleph de Borges. Por sua vez, o tema da “estética da existência”, núcleo central da problemática inaugurado pelo que os comentadores foucaultianos costumam chamar de “ter- 294 verve Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista ceiro Foucault”, determina, a partir de uma análise da modernidade e da figura proposta por Charles Baudelaire — em que este designou de “dândi” (O pintor da vida moderna) —, que a arte, o ‘fazer’ arte, está para além do objeto artístico. Trata-se de fazer da própria vida, obra de arte. Trabalhando, simultaneamente, com as duas idéias foucaultianas, Beatriz Scigliano Carneiro estabelece uma formidável interpretação da obra de Lygia e Hélio. Os espaços que estes artistas construíram em seus processos criativos forma espaços outros, para utilizarmos a noção proposta por Michel Foucault, tão cara à autora. O livro inicia-se apresentando a noção em questão, vinculando-a ao tema da estética da existência, isso porque, pensar a arte em termos de construções de novas espacialidades para a produção da arte seria, antes de mais nada, instituir que estaríamos falando de arte que toca o corpo, que fala ao corpo, que é corpo; uma arte que se faz com o corpo. A apresentação da arte de Oiticica e de Clarck, sob esta perspectiva, enseja à autora a fazer delas mundo. Mundo que é Casa e Abrigo, acolhimento e desafio. Na apresentação da obra de Lygia, Scigliano introduz a noção de que o “Corpo é a casa”. Cuidadosa analisa as experiências que a artista desenvolveu, especialmente as denominadas de “A estruturação do Self” e a chamada de “Caminhando”. Momentos extremamente marcantes na obra da criadora dos bichos. Da arte terapia ao trabalho de dobra contido no anel de Moebius presente em Caminhando, tratava-se de reinventar a arte sob uma novo prisma. A experiência estética não se faria apenas por intermédio do “sopro” criativo de um “gênio criador”, mas por meio da participação efetiva do público, que deixaria, assim, de ser público para ser usuário, ou ainda efetivo autor da obra. Estamos diante de uma arte propositiva que acolhe e cria mundos. 295 6 2004 Oiticica, por sua vez, é apresentado como construtor de um “Mundo Abrigo”. Morada de penetráveis e casulos, casas e espaços que pudessem conter uma obra “dançável“ por aquele que a “vestisse”: o corpo fazendo parte ou mais que isso, sendo constituinte à própria obra. Dos “Quase Cinema” ao “Metaesquemas”, Oiticica vislumbrava a possibilidade de novas construções estéticas que passassem, também, como em Lygia Clarck, pela participação do outro. Pensemos na obra em que “atuaram” juntos: O diálogo, em que as mãos dos artistas achavam-se unidas por um tecido que as juntavam como “algemas de afinidades”. Eles uniram vida e arte. Como se estabelece então o elemento transgressivo da obra? Como esse elemento transgressivo instaura um duro questionamento à idéia de autoria? Essas questões estão de certo modo na linha argumentativa proposta pela autora. Ao recusarem, cada um deles a seu modo, a autoria, pelos menos individual, da obra, Hélio Oiticica e Lygia Clarck tornaram-se não só artistas transgressores dos valores estabelecidos à época, tanto no plano estético quanto ético, como também criaram novos mundos, espaços outros de convivência e plenitude. Os artistas fizeram desses espaços outros um manifesto de adesão incondicional à vida. Produziram, ao fim e ao cabo, uma arte vitalista. Um dos muitos méritos do ensaio de Beatriz Scigliano Carneiro foi o de, partindo das idéias foucaultianas ter sabidamente as utilizado para além daquilo que se propunham; ter transformado em operador conceitual uma noção que, mesmo estando à margem da obra, serve para produzir novas margens à interpretação. Além disso, utilizando o itinerário da construção da obra dos autores, associando-o à sua vida e ao diálogo da constituição da obra em ambos, ter feito bem mais que alinhavar biografia e produção artística. O que foi realizado plenamente neste ensaio foi produzir uma imanente crítica às relações. 296 verve Afirmação da vida e decretação da morte afirmação da vida e decretação da morte |acácio augusto* Lúcia Parra. Combates Pela Liberdade: o movimento anarquista sob a vigilância do DEOPS/SP (1924-1945). São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2003, 203 pp. O DEOPS é a polícia política criada na década de 1920 para caçar os perturbadores da ordem pública. Mas qual polícia não é política? O que é perturbar a ordem? Quem quer conservar, que ordem? A que temos hoje seria uma polícia “neutra”, exclusivamente a serviço da lei universal e para todos? Quem faz a lei hoje? Quem fazia naquela época? Para quê, e a quem serve a polícia? Estas são algumas questões que podem ser levantadas a partir da leitura do livro Combates Pela Liberdade: o movimento anarquista sob vigilância do DEOPS (19241945), resultado do trabalho de iniciação científica realizado pela estudante de História da USP, Lúcia Parra, que se dedica a sistematizar os prontuários de pessoas e associações anarquistas perseguidas pelo DEOPS. Parra percorre duas décadas de prontuários, marcadas pelo estado de sítio do governo Artur Bernardes e pelo governo conhecido como Era Vargas para nos mostrar de que maneira a polícia caracterizava os anarquistas. Estes que, em meio à efervescência política no país e à perseguição policial, construíram resistências que abalaram as fábricas, a família, a igreja, a escola e todo um conjunto de costumes autoritários difundidos pela sociedade. * Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol e bolsista CNPq. verve, 7: 297-301, 2005 297 6 2004 Contudo, os anarquistas estudados por Parra não podem ser vistos como vítimas de uma poderosa polícia que foi capaz de destruí-los. No segundo capítulo de seu trabalho, a autora mostra que eles eram vistos como perigosos, pois suas práticas efetuavam-se como nocivas para o Estado, e este sabendo disso, buscava de qualquer forma interditar o discurso libertário, praticado pelos anarquistas, por meio da ação policial. O que foi em certos momentos tarefa difícil para os policiais que não sabiam nem ao menos distinguir um anarquista de um comunista. Pelas categorias criadas por Parra a partir da leitura dos prontuários, fica claro as diferentes maneiras pelas quais os anarquistas praticavam essas resistências: entre os operários, eram os que tinham maior nível de instrução, obtidas quer pelo autodidatismo quer nas escolas modernas, criadas no começo do século XX pelas associações anarquistas. Praticavam as profissões que mais permitiam liberdade para sua ação, como sapateiro ou comerciante; não se constituíam, como os comunistas em torno do PC, uma unidade homogênea. Entre os anarquistas havia uma multiplicidade de práticas que se articulavam e que muitas vezes confundiam a ação policial. Por fim, mostra a autora, as mulheres tiveram uma ação singular dentro do movimento anarquista, o que muitas vezes passou desapercebido pelo próprio DEOPS. Foram os libertários também — e isto está documentado no livro — os primeiros a levantarem a questão da mulher e das crianças. Explicitavam as péssimas condições em que estas trabalhavam nas fábricas e difundiam práticas cotidianas que dissolviam a relação de mando e obediência estabelecida entre homem e mulher, adulto e criança. Atitude muito diferente do que está expresso na lei e é difundido como prática comum, na qual o que se têm é uma relação de tutela, na qual o homem 298 verve Afirmação da vida e decretação da morte adulto dispõem do corpo da mulher e da criança para o que bem entender. Um outro dado encontrado no livro, importante de se destacar, é o forte envolvimento dos anarquistas com as lutas antifascistas. A ação libertária foi muito expressiva na criação da Liga Antifascista, que contava também com membros da ALN (Aliança de Libertação Nacional) e de alguns grupos comunistas de orientação trotskista. Os libertários estavam atentos ao eco que causava o fascismo italiano no Brasil — que se confirmou com a ditadura de Vargas — e estavam interessados em barrar os desejos fascistas e garantir liberdades democráticas para viabilizar sua ação cotidiana. Luta que chegou ao enfrentamento direto entre anarquistas e integralistas na Praça da Sé, no centro de São Paulo. A prática libertária está voltada para uma transformação dos costumes. Em uma sociedade como a brasileira, baseada em costumes autoritários, e de uma tradição política oligárquica, a existência dos anarquistas era insuportável. A interdição das práticas anarquistas se dava associando-os à categoria de indivíduo perigoso e violento, ou desqualificando seu discurso como atrasado e desordeiro. Parra mostra esta tática de desqualificação do discurso anarquista por intermédio dos relatórios de policiais do DEOPS, mas esta, também, cristalizou-se no Código Penal Brasileiro, como na lei de extradição de estrangeiros, conhecida como Lei Adolfo Gordo, de 1907. Vale lembrar que a desqualificação do discurso libertário não foi, e não é até hoje, monopólio do Estado e muito menos da direita. Mesmo parceiros pontuais na luta antifascista — liberais progressistas e comunistas — viam, tanto quanto o governo, os anarquistas como perigosos e portadores de idéias atrasadas. O anarquista é e foi “tratado como se fosse um ‘vírus’, capaz de contagiar indivíduos sãos” (p. 64). 299 7 2005 Frente a uma repulsa advinda de diversos setores da sociedade às práticas anarquistas, a ação policial não deve ser vista como fenômeno isolado. Ela é expressão de uma sociedade de costumes baseados no exercício centralizado da autoridade, que não suporta a experimentação de liberdades difundida pelas práticas anarquistas. Com efeito, a maior dificuldade desses libertários estudados por Parra, foi difundir a experiência de uma vida livre nas relações sociais, tarefa que talvez seja muito mais difícil do que enfrentar a ação dos policiais do DEOPS. Neste sentido, o que muitas vezes é visto — até mesmo por alguns anarquistas como malogro da ação libertária nos sindicatos, pode ser analisado como uma estratégia de faafirmação destas experiências retirandose de um lugar onde isso não era mais possível, o sindicato. Os anarquismos, longe de se pretenderem hegemônicos, interessam-se em criar resistências pelas práticas de liberdade, e “esta resistência tornou-se possível pela continuidade da cultura libertária que abarcava não somente práticas sindicais, como também a imprensa libertária, atividades culturais e educacionais” (p. 92). Fica evidente na leitura deste livro que os anarquismos criaram, no choque com os poderes, uma maneira singular de atuar no jogo das forças sociais. Além de se constituir como um importante material de consulta para estudantes, pesquisadores e interessados em anarquismos ou na ação do DEOPS, a força do trabalho de Parra está em dar visibilidade à existência de homens e mulheres como Natalino Rodrigues, Rodolfo Felipe, Abílio José das Neves e Francisco Augusto das Neves, Isabel Cerrutti, Angelina Soares, entre tantos outros. Existências que não se reduzem aos prontuários policiais, impossíveis de serem capturadas. 300 verve Conectando anarquias Enquanto os anarquistas praticavam uma afirmação da vida como experiência de liberdade, os agentes da ordem buscavam interditá-los com o decreto de morte, este sim malogrado, pois ainda hoje, os anarquistas continuam abalando hierarquias, revirando costumes e experimentando liberdades. conectando anarquias|thiago s. santos* Nelson Méndez e Alfredo Vallota. Bitácora de la utopia - anarquismo para el siglo XXI. Caracas, Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca Central, 2001. 133 pp. Um livro que trata de anarquia é para ser saboreado, digerido, utilizado como uma ferramenta. Ele não se esgota em si mesmo. Procura suscitar curiosidades, mover interesses, promover inquietações, rebeldias e desobediências. Este é o objetivo de Nelson Méndez e Alfredo Vallota, autores de Bitácora de la Utopia: anarquismo para el siglo XXI, “um breviário sobre o ideal anarquista, de uma perspectiva latino americana em geral e venezuelana em particular” (p.7.). Nelson Méndez e Alfredo Vallota são professores da Universidad Central de Venezuela e integram o CRA (Comisión de Relaciones Anarquistas). Editam o periódico anarquista bimensal El Libertário, que em dezembro de 2004 completou nove anos de existência, e 40 números publicados. Produção autogestionária que tem o intuito de divulgar o *Sociólogo e mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol. verve, 7: 301-305, 2005 301 7 2005 movimento ácrata latino-americano. Pode-se encontrar este periódico, também, em versão web (http:// www.nodo50.org/ellibertario, para adquirir o jornal basta escrever para: [email protected]). Escreveram, também, diversos artigos sobre libertarismo em uma publicação chamada Correo A, que surgiu no fim da década de 1980 e foi interrompida na metade da década de 1990 (ainda hoje é possível encontrar alguns textos selecionados do Correo A em: http://www.geocities.com/samizdata.geo/ CorreoA.html). Estas duas publicações tiveram, e continuam tendo, grande importância no círculo ácrata latinoamericano. Um dos elementos que fomentou a criação desta bitácula foi uma publicação britânica do Anarchist Media Group, que em 1988 lançou um texto intitulado “Tudo o que sempre quis saber sobre anarquismo e nunca se atreveu a perguntar” (texto mais amplamente divulgado a partir de 1995, via internet). Os autores realizaram um livro introdutório às idéias libertárias, colocando em pauta os principais temas levantados pelos anarquistas, e os argumentos que respondem a algumas das questões mais freqüentes apresentadas a qualquer anarquista: a crítica à caridade estatal; a questão do crime; educação; método anarquista de comunicar suas idéias; e o rechaço por parte de muitos das idéias anarquistas, por terem sempre a imagem do anarquista como o indivíduo com uma bomba na mão, pronto para agredir os demais. Assim, contrapõem as pré-concepções existentes em torno da anarquia e finalizam com uma sugestão de outras fontes, nas quais é possível pesquisar a respeito do tema tratado. Méndez e Vallota mostram que a anarquia, diferente do que é vulgarmente pensado e exposto em dicionários, não é uma instigação do caos, da morte, da destruição, e nem tampouco o anarquista é a imagem de um homem com bombas que agride aos demais em nome de um res- 302 verve Conectando anarquias sentimento social ou individual. O anarquista não obedece a um líder messiânico. Não agita uma bandeira de uma ideologia superior. A sua luta é menos iluminada que a luz proporcionada pela pólvora, mas, às vezes, ela é a única forma de abalar os concretos civilizatórios que nos impõem uma cultura fundada na obediência ao superior. A obediência é o alvo dos anarquistas que investem na educação para a liberdade. “A verdadeira educação é o contrário da escolarização obrigatória, onde se aprende, principalmente, a temer e curvar-se ante a hierarquia imposta” (p.52). Isto faz parte de um costume anarquista que privilegia a livre curiosidade das crianças e não circunscreve a educação à escola. Escola, trabalho cotidiano, vida social, tudo isto compõe a educação que procura chamar cada indivíduo para se autogovernar. A prática da educação, assim como os anarquistas a concebem, depende da criação de uma sociedade anarquista. No entanto, o fato de ainda não vivermos em uma sociedade assim constituída, não impede experiências de práticas educacionais mais livres, como ocorreram com as Escolas Modernas e com os Ateneus Libertários. São práticas que atravessam a regulação da educação praticada pelo Estado, e no caso específico da Venezuela, cuja administração castrense no governo impôs uma educação pré-militar para crianças e jovens. Assim é, também, uma assistência médica que só submete os seus usuários à exploração e à humilhação, fazendo-os dependentes da caridade estatal. Escolarizar domestica os indivíduos e o seguro social “gera uma disponibilidade de dinheiro das mais importantes no capitalismo moderno, que se utiliza para explorar os trabalhadores” (p.18). A assistência do Estado desarma as iniciativas próprias, é uma ferramenta de submissão dos indivíduos que, como retribuição aos benefícios do Estado, têm de agradecer o generoso presente da assistência com a sua obediência. 303 7 2005 A educação permanece sendo o ponto fundamental aos anarquistas. É pautada na invenção de novos costumes que pretende forjar uma outra sociabilidade, que se inicia, agora, no presente. Os autores tratam ainda de um dos temas mais caros aos anarquistas e um pouco esquecido na atualidade: a punição. Constatam que a grande maioria dos distúrbios sociais provém de acontecimentos incontíveis, surpreendentes; acontecimentos estes que não poderiam ser impedidos pelo temor da punição (prevenção geral) e que polícia alguma, por mais equipada que fosse, poderia conter: a prisão é um fracasso, afirmam. A maioria dos chamados crimes continua sendo contra o patrimônio, contra a propriedade privada. A resposta dada pelos autores, a respeito da questão do crime, funda-se na expectativa de uma mudança mais ampla da sociedade, em uma sociedade na qual a propriedade privada não seja um valor. Projeta-se como resposta, um modelo de proteção social, que pode ser a organização comunal de ajuda mútua ou a expulsão do indivíduo da comunidade, “não por vingança ou castigo, senão como reconhecimento de uma relação sem possibilidade” (p. 26), o que reafirma a atualidade do “Justiça Política” de William Godwin, de 1973 (vide verve 5). O livro apresenta ainda seis artigos (quatro de Vallota e dois de Méndez) nos quais são tratados: os princípios da anarquia (liberdade e igualdade), autogestão, além de uma pequena biografia de Durruti e um artigo sobre Ángel Cappelletti, importantíssimo pesquisador anarquista latino-americano. Méndez e Vallota realizaram um livro que mantém um elo com fragmentos de textos, escritos esparsos, que esperam apenas ser revolvidos por curiosos ensandecidos; conectam anarquias. O livro intensifica interesses literários de quem o lê; remete o leitor imediatamente a outras fontes; lança-o a uma busca minuciosa, a uma 304 verve Conectando anarquias pesquisa, uma investigação a respeito da anarquia. Ao final do livro, depara-se com uma listagem de outros livros, sites, referências de vídeos, rádios e TVs que fazem da anarquia um acontecimento único e perturbador da ordem estabelecida. São referências que aludem tanto a sites de associações anarquistas como a bibliotecas virtuais, nas quais é possível encontrar livros completos — de autores como Proudhon, Bakunin, Malatesta, entre outros — para downloads. Há, ainda, uma atenção especial para a internet, visando grupos de debates, correios informativos e e-mails, que facilitam a troca de informações e experiências. Mas, se de um lado a internet possibilita esses ganhos, de outro, os autores apontam o que seriam os cyber-libertarian que vêem na internet o máximo de liberdade. Advertem que as novas tecnologias como a internet, alimentam também institutos de controle social, além de ser ainda um meio de informação muito restrito em países da América Latina. A internet é, assim, para os anarquistas, apenas mais um instrumento do qual se utilizam de forma interessada, e de maneira alguma um espaço para a democratização da informação, um democratismo que sufoca rebeldias e sustenta covardes. 305 7 2005 que a fonte nunca seque Sergio Cohn 306 verve NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata Boletim eletrônico mensal, 1999-2005 vídeos Libertárias, 1999 Foucault-Ficô, 2000 Um incômodo, 2003 Foucault, último, 2004 CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um incômodo) Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004 1. a anarquia Errico Malatesta 2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston 3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T. 4. municipalismo libertário Murray Bookchin 5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux 6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky 7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva 8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin 9. deus e o estado Mikhail Bakunin 10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin 11. escritos revolucionários Errico Malatesta 12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares 13. do anarquismo Nicolas Walter 14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau, 307 7 2005 Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero 15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand 16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda, Berkman 17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti 18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo 19. o essencial proudhon Francisco Trindade 20. escritos contra marx Mikhail Bakunin 21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud 22. a instrução integral Mikhail Bakunin 23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino, Enckell 24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag 25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón 26. a revolução mexicana Flores Magón 27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo 28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval 29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta Livros Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Editora Revan/Nu-Sol, 2004. Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone Editora/Nu-Sol, 2003. Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/Nu-sol, 2001. 308 verve Recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo: Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas, em português e inglês. Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir: I) Para livros: Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74. II) Para artigos ou capítulos de livros: Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano, página. 309 7 2005 Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p.76. III) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. IV) Para resenhas As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp. V) Para obras traduzidas Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Tradução de [nome do tradutor]. Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail. As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete seja encaminhada pelo correio para: Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-sol no endereço: www.nu-sol.org 310 verve 311