verve
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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP
7
2005
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº7 ( maio 2005 - ). - São Paulo: o Programa, 2005 Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.
ISSN 1676-9090
VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.
Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.
Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre R. Degenszajn, Edson Lopes
Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C.
Corrêa, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Márcio Ferreira
Araújo Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Gilvanildo Avelino,
Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago
Souza Santos.
Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).
Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).
ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que
estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
SU M Á R I O
Émile Henry, o benjamim da anarquia
Jean Maitron
11
Notas para a abolição dos campos de
concentração e de extermínio
Salete Oliveira
43
Prisões: falência e crime social
Emma Goldman
57
Abolicionismo penal, medidas de redução
de danos e uma nota trágica
Edson Passetti
75
A mecanização do
cadáver — a má sorte dos animais
Christian Ferrer
86
Stirner e Foucault: em direção a
uma liberdade pós-kantiana
Saul Newman
101
Mujeres libres: anarco-feminismo e
subjetividade na revolução espanhola
Margareth Rago
132
A educação anarquista na república velha
Eduardo Valladares
153
Os pedreiros da anarquia
Edgar Rodrigues
178
Anarquia e anarquismo
Eduardo Colombo
194
Centro de cultura social,
uma prática anarquista
Entrevista com José Carlos Morel
209
Haikai
Henry D. Thoreau
224
Anarquismo na vida e na
obra de eugene o’neill
Pietro Ferrua
226
Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra: trajetórias
Beatriz Scigliano Carneiro
244
Jean Vigo, a revolta e o devir
Pablo Martins
264
RESENHAS
Anarquismo e crítica pós-moderna
Nildo Avelino
279
Notícias de um pensador: a coragem da verdade e o
pensamento libertário de Michel Foucault
Tony Hara
286
Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista
Jorge Vasconcellos
292
Afirmação da vida e decretação da morte
Acácio Augusto
297
Conectando anarquias
Thiago S. Santos
301
os anarquismos estão vivos como história do presente. um presente composto das memórias de suas lutas,
de suas experimentações, das atuações dos anarquistas no trabalho, no cotidiano jamais modorrento. um
presente feito de atualidade, de reviravoltas diárias.
verve não se interessa pela polêmica; esta apenas
sustenta dogmatismos. interessa-nos rebeldias.
diante do pavor disseminado pelo terrorismo conservador deste início do século XXI, século que também vem
se caracterizando pelo conformismo, verve 7 traz instantes do julgamento de émile henry, no final do XIX, e suas
atuais palavras. é a partir deste jovem anarquista que se
apresenta uma tensa discussão sobre o abolicionismo
penal, os anarquismos, as aproximações com nietzsche,
o teatro de eugene o’neill, o cinema de jean vigo, o contundente ensaio de saul neuwman sobre foucault e stirner, resenhas sobre ética, coragem e verdade, e poesias
de sergio cohn.
diante de tantas forças reativas, contaminando de
boçalidade até os libertários, é sempre corajoso uivar: a
uniformidade é a morte.
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não há como celebrar o raro
sem o encontro
Sergio Cohn
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
émile henry1, o benjamim da anarquia
jean maitron*
Nota introdutória, por acácio augusto
O terrorismo anarquista é um importante acontecimento histórico-político, que ocorre entre a Comuna de
Paris (1871) e a primeira Guerra Mundial (1914), largamente ignorado pela historiografia de direita e de esquerda. A lembrança da postura e da atitude política
destes homens de ação (como gostavam de se autodenominar) ou destes assassinos delicados (utilizando um
termo cunhado por Camus) faz-se necessária, ainda
mais, em nossos dias quando vários acontecimentos internacionais passam a desencadear uma vasta bibliografia de época, produzida por intelectuais oportunistas
e desavisados polemistas apressados, repleta de negligências históricas.
* Jean Maitron (1910-1987) foi um dos mais importantes historiadores do
movimento operário francês. Professor do ensino médio e depois professorassistente na Sorbonne (Paris I) escreveu e organizou diversas obras como
Histoire du mouvement anarchiste en France — 1880-1914 (Paris, Sudel, 1951), Le
mouvement anarchiste en France de 1914 à nous jours (Paris, Gallimard, 1992) e
Ravachol et les anarchistes (Paris, Collection Archives, 1964).
verve, 7: 11-42, 2005
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O texto que segue é uma seleta de um dos capítulos
do livro de Jean Maitron, Ravachol e os Anarquistas,
resultado de uma pesquisa realizada nos arquivos de
polícia da prefeitura de Paris na década de 1950. Maitron reproduz uma série de documentos compostos de
interrogatórios policiais e judiciais, artigos de jornais
e prontuários, documentos que utilizou para escrever
sua História do Anarquismo na França (1880-1914).
Maitron é, junto com o alemão Max Nettlau, um dos
principais historiadores anarquistas.
O julgamento de Émile Henry, trecho que selecionamos do livro, é um acontecimento singular no interior do que foi conhecido como terror anarquista. Na
ocasião do julgamento dos Trinta (1894), resultado de
uma intensa repressão levada a cabo pelo governo francês para pôr fim aos atentados e ameaças que emergiram das resoluções da Internacional Negra (1881) —
uma tentativa de reagrupar internacionalmente os libertários após a cisão com os autoritários no Congresso de Haia, em 1872 — Henry, um jovem espanhol
promissor de classe média, deflagra dois atentados
contra a burguesia de Paris e declara que, desde então, os anarquistas responderiam com violência à violência da burguesia organizada no Estado. Três fatores surpreendem o governo e burgueses franceses no
caso de Henry: um é o fato deste não possuir as características físicas e sociais de um anarquista exemplar, outro é de seus atentados ocorrerem no exato
momento em que se esperava liquidar a ação dos
anarquistas com o julgamento dos Trinta, e, por fim,
a reivindicação estritamente pessoal que Henry faz
de suas ações.
A maneira que Émile Henry entende a anarquia
dispensa apresentações. A leitura desta seleta que publicamos pela primeira vez no Brasil é suficiente. Im-
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
portante ressaltar que algo de muito intenso ocorreu
na França nas décadas de 1880 e 1890: o terror anarquista acordou os socialistas acomodados em sindicatos e partidos e perturbou o sono da burguesia que esperava dormir tranqüila após ter prendido, matado e
exilado os insurgentes da Comuna de Paris. Quando
tudo parecia caminhar para normalidade, os anarquistas explodiram bombas para lembrar que são contra a
representação, o tribunal, o Estado e a propriedade privada.
O anarquista é uma procedência moderna no terrorismo que reivindica para si, e na história, a capacidade de se defender contra o contrato fictício — que entrega cada um às mãos do Estado, ao seu monopólio
legítimo do uso da força e à pletora de direitos.
*********
Nos dias 27 e 28 de Abril de 1894, numerosos agentes policiais dispersaram-se pelos arredores do Palácio
da Justiça, outros colocaram-se nas entradas, revistando cuidadosamente cada pessoa que entrava.2
O caso sobre o qual o júri do Sena é hoje chamado a
debruçar-se apresenta uma gravidade excepcional.
Desta vez, o acusado não é um homem grosseiro cuja
educação primária tenha sido menosprezada.
Émile Henry é um jovem de vinte e dois anos, de fisionomia fina e doce, de tom pálido. Os cabelos castanhos são cortados à escova. Uma ligeira barba loura
cresce-lhe no queixo. Sentado no banco dos réus, de
costas apoiadas no parapeito, sorri com indiferença.
Está vestido de preto.3
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[O interrogatório]
[...]
Terminada a leitura dos autos de acusação, o presidente procede ao interrogatório do acusado:
Pergunta. A 12 de Fevereiro, entrou no Café Terminus.
Resposta. Sim, às oito horas.
P. A sua bomba ia à cintura de suas calças?
R. Não, no bolso de meu sobretudo.
P. Por que foi ao Café Terminus?
R. Fui primeiro à Casa Bignon, ao Café de la Paix e ao
Americain, mas não havia gente o suficiente; então,
entrei no Terminus e esperei.
P. Havia uma orquestra. Quanto tempo esperou?
R. Uma hora.
P. Por que?
R. Para que aparecesse mais gente.
P. E em seguida?
R. Já o sabem.
P. Estou perguntando.
R. Usei o charuto!, acendi o rastilho e depois, pegando a bomba, saí e à porta, ao deixar o café, lancei a bomba.
P. Despreza a vida humana.
R. Não, a vida dos burgueses.
P. Fez tudo para salvar a sua.
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
R. Sim; para recomeçar. Contava sair do café, fechar
a cortina de entrada, comprar um bilhete na estação
Saint-Lazare, fugir e recomeçar no dia seguinte.
P. Ao fugir encontrou-se mais adiante com um empregado do café, um homem de nome Etienne, que caçou-o, dizendo: “Agarrei-te canalha!” — Você respondeu:
“Ainda não”. E o que é que fez?
R. Disparei sobre ele.
P. Ele caiu. O que é que você disse?
R. Que tivera sorte por o meu revólver não ser melhor.
P. Depois foi detido por um funcionário de cabeleireiro; que fez?
R. Desfechei-lhe um tiro de revólver.
P. Foi atingido e está mal. O agente Poisson o seguia.
R. Como nessa altura se juntava gente, parei; esperei o agente Poisson e disparei contra ele os últimos
três tiros do meu revólver.
P. Então foi preso e os policias tiveram dificuldade
em arrancá-lo da fúria da multidão.
R. Que não sabia o que eu tinha feito.
P. Tinha consigo balas que haviam sido fendidas. Por
que?
R. Para causar mais estragos.
P. E um punhal embebido numa preparação.
R. Envenenara a lâmina para esfaquear um delator
de anarquistas.
P. Estava decidido a atacar o agente com essa arma?
R. Certamente.
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P. Achava-se sentado a uma mesa próxima da porta e lançou a bomba para a frente. Por que não atingiu mais pessoas com essa explosão, apesar de ter feito
pontaria à orquestra?
R. Lancei a bomba demasiado alto; chocou-se com
o lustre e desviou-se.
P. Então ouviu-se uma explosão surda e o café ficou
completamente destruído: mesas, espelhos, madeiras
são quebrados. Houve muitos feridos: vinte; um deles,
o Sr. Borde, entretanto morreu. Ficara com uma perna
crivada de feridas; um outro, o Sr. Van Herreweghen,
sofreu quarenta ferimentos. Encontravam-se ali mulheres: a Sra. Kingsburg, ainda sobre grande padecimento, bem como outras que ireis escutar. E essas
mulheres ficaram aterrorizadas ao ponto de esconder
os seus ferimentos. Você declarou que quanto mais
burgueses morressem, melhor seria.
R. É isso que penso.
P. Identificou-se primeiro como um tal Breton; pouco depois, desmascara-se, diz chamar-se Émile Henry e descreve a sua bomba. Como é que era feita?
R. Tratava-se de uma pequena marmita de ferro
branco contendo um detonador e um rastilho.
P. Afirmou que tinha experimentado um insucesso relativo. O que é que isso significa?
R. Queria ter morto mais gente; mas a marmita
não estava bem fechada.
P. Pôs projéteis dentro dela.
R. Coloquei cento e vinte balas.
P. Vaillant, que dizia querer ferir e não matar, tinha
posto pregos e não balas.
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
R. Eu pretendia matar e não ferir.
P. O seu domicílio não era conhecido.
R. Declarei que não tinha domicílio em Paris; afirmei vir de Marselha ou de Pequim.
P. Pouco depois, foi assaltado um quarto da casa Faucher; o comissário da polícia, avisado, encontra materiais explosivos e conclui ser aquela a sua residência.
R. Desconheço quem entrou no meu quarto.
P. Advertiram-no que fôra descoberto o seu domicílio
e, então, replicou que deveriam ter encontrado em sua
casa uma certa quantidade de materiais explosivos.
R. Dava para fazer entre doze e quinze bombas.
P. (Aos jurados): Conhecem o crime e o acusado, que
acaba de vos confessar o seu crime com cinismo.
O acusado: Não é cinismo, é convicção.
P. Quis matar Etienne, o empregado do café?
R. Quis matar todos os que se opusessem à minha
fuga.
P. Quis matar o agente Poisson?
R. Certamente; ele erguera o sabre e teria me matado.
P. Quis matar as pessoas do Café Terminus?
R. Certamente, quantas mais melhor.
P. Quis destruir o edifício?
R. Oh! Pouco me importa.
Sr. Presidente (aos jurados): Isto já bastaria para estabelecer a culpabilidade do acusado; mas, seja qual for o
crime, a justiça, o que muito nos honra, nunca prescin-
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de das regras habituais. Devemos examinar todos os detalhes e debruçarmo-nos ainda sobre um outro fato imputado ao acusado.
P. O seu pai morava em Brévannes, depois foi para a
Espanha, tomou parte na Comuna de Paris, em seguida
a sua mãe ficou viúva e com três crianças. Obteve uma
bolsa na Escola J. B. Say4, e aos dezessete anos pôde ser
admitido na Escola Politécnica. Não continuou.
R. Para não ser militar e não ser obrigado a disparar
contra infelizes como em Fourmies.5
P. Arranjou emprego com um empreiteiro, Sr. Bordenave, seu parente. Quanto ganhava?
R. Em Veneza, ganhava 100F por mês.
P. Por que é que veio embora?
R. Por motivos que não vêm ao caso.
P. Ele quis obriga-lo — foi você quem o afirmou — a
exercer uma vigilância discreta que lhe repugnou. O
Sr. Bordenave, interrogado, protestou.
R. Reconheceu que tinha havido um mal entendido.
P. Depois arranjou emprego.
R. Passei três meses de miséria, antes disso!
P. Em todo caso, logo arranjou uma ocupação.
R. Ocupação bem medíocre: 100 a 120F por mês.
P. Nesse momento você era influenciado por um dos
seus irmãos. Pouco depois, foi preso, após um comício
de homenagem a Ravachol6; e o seu patrão encontra na
sua escrivaninha obras anarquistas, nomeadamente
uma tradução de um jornal italiano, indicando os métodos de fabricar nitroglicerina, e nos quais se lê: “Viva o
roubo, Viva a dinamite!”. Estão aí as regras que pôs em
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
prática no atentado da Rue des Bons-Enfants. Então o
seu patrão despediu-o.
R. Fui despedido quando encontraram esses papéis.
P. Procurou trabalho num relojoeiro. Depois, esteve
empregado no En dehors, dirigido por Matha, condenado em 1892, ano em que você entrou para esse jornal,
por incitação à insubordinação militar — recusou também ser militar.
R. Estive três anos num batalhão escolar7 e é tudo o
que poderia fazer como tropa.
P. Furtou-se ao serviço militar e a sua mãe não concordou.
R. Temia que eu fosse expatriado.
P. Entrou para casa do Sr. Dupuis recomendado por
Ortiz, um ladrão.8
R. Não estou ao par do que tem feito Ortiz desde que
o conheci.
P. O Sr. Dupuis aumentou o seu salário.
R. Sentia uma grande estima por ele.
P. Quererá repetir diante do júri as confissões que
fez durante a instrução?
Prefiro que você fale.
R. Com certeza. Os motivos do meu ato direi amanhã. A Sociedade de Carmaux é representada em Paris pela sua administração; depois da greve, comprei
uma marmita; tinha dinamite, uma espoleta e rastilho de mineiro; preferi o sistema da bomba de inversão.
O interrogatório prosseguiu. O acusado recusa-se a dizer o que fez durante o ano de 1893, que separa os dois
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atentados. Durante uma discussão mais acalorada, o juizpresidente gritou:
P. Dane-se com o seu silêncio!
R. É-me indiferente. Não preciso me acautelar com o
meu silêncio; sei bem que serei condenado à morte.
P. Escute: acho que há uma confissão que dói ao seu
orgulho. Vaillant confessou ter aceito 100F de um ladrão; você não quer reconhecer que estendeu essa mão
para receber dinheiro do roubo, essa mão que vemos
hoje coberta de sangue.
R. As minhas mãos estão cobertas de sangue, tal
como a sua toga! De resto, não tenho que lhe responder.
P. Você é acusado e o meu dever é interrogá-lo.
R. Não reconheço a tua justiça, estou contente com o
que fiz!...
P. Você não reconhece a justiça. Infelizmente para
você está nas malhas dela e os jurados saberão apreciar.
R. Eu sei!
O Sr. Presidente: Sente-se.
A audiência, suspensa às duas horas e meia, recomeçou às três horas e quinze.
[...]
Mais algumas testemunhas de acusação e passa-se
aos depoimentos favoráveis.
Brémant, mestre-escola em Fontenay-sous-Bois: Émile
Henry foi meu aluno; era um modelo. Possuía uma maturidade de espírito extraordinária, uma grande doçura. Deixou-nos aos doze anos e mantive excelentes relações com
ele. Chegou a mandar-me uma vez uns versos.
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
Le Fermous: Fui condiscípulo de Émile Henry na Escola
J. B. Say. Era um colega excelente, um amigo muito indulgente; tinha por ele um grande afeto.
Philippe, professor particular na Escola Politécnica: Fui
professor de Henry na Escola J. B. Say; era uma criança
perfeita, a mais honesta que é possível encontrar; antes
de se apresentar na Escola Politécnica, perguntou-me o
que deveria fazer; respondi-lhe que o achava perfeitamente
capaz para ser admitido.
P. Teria podido, pelos seus conhecimentos, construir
uma existência honrada e lucrativa como empregado de
um construtor que se interessasse por ele?
R. Poderia ter feito carreira muito boa, sob a orientação
de seu parente. Conhecia mal a vida, menos do que os
rapazes da sua idade.
Brajus, 65 anos: Conheci muito bem o pai, a mãe e os
filhos da família Henry. Sempre se portaram bem e a minha casa esteve-lhes sempre aberta. Fui acompanhando
Émile. Em 1893, veio ver-me duas ou três vezes.
Sr. Hornbostel [advogado de defesa]: A testemunha deu
dinheiro a Henry?
R. A mãe dele pediu-me algumas vezes que lhe emprestasse dinheiro e ele me pagou.
Gauthey (Jules-François), operário metalúrgico: Conheci Henry em 1891, visitava-me.
P. Viu-o em 1893?
R. Vi-o uma vez; mas procurou-me várias vezes na
minha ausência, vestido de operário.
P. Tinha as mãos sujas?
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R. A minha mulher viu-o e disse-me que ele era serralheiro. Em 1891, estimava Henry. Ele gostava muito
das crianças.
Goupil, médico.
O Sr. Presidente (dirigindo-se à testemunha para o
convidar a prestar juramento): Levante a mão direita.
O Dr. Goupil coloca a mão direita atrás das costas.
P. Levante a mão direita.
R. Recuso-me a prestar juramento por respeito pela
vossa religião, que não tenho a felicidade de praticar
nem de conhecer.
Não tendo a citação à testemunha sido entregue ao
Ministério Público, o delegado opõe-se a que o Sr. Dr.
Goupil preste juramento, a fim de permitir que possa
ser ouvido sem caráter oficial.
O Doutor Goupil: Conheci o Henry pai. Cheguei a têlo como secretário. Tratei-o no fim da vida. O Émile gozou uma juventude excelente; é um jovem muito nervoso; já afirmei diante de alguns dos senhores jurados,
refiro-me aos que se dignaram receber-me.
O acusado: Não sou louco.
O Doutor Goupil: Reuni apontamentos que entreguei
à defesa e que indicam qual o estado mental do acusado.
O acusado: Agradeço-lhe, mas tenho consciência do
que fiz; não sou louco. Os resultados obtidos no colégio
foram posteriores à minha febre tifóide. O meu pai morreu em conseqüência de um envenenamento por vapores mercuriais. Agradeço-lhe mais uma vez, mas não
sou um louco; sou responsável pelos meus atos.
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
Ogier d’Ivry (conde): Sou parente por afinidade de
Émile Henry. Conheci-o jovem, excelente aluno, sonhador, desequilibrado. Tinha por padroeiro São Luís; depois seguiu as inclinações do pai. Há nestes homens
um extraordinário sentimento de revolta; descendem
dos antigos Camisards9, o pai participou na Comuna. São
mais anarquistas do que a Anarquia ou mais realistas
que o rei sob a monarquia. Sempre na oposição e em
revolta. Convenci-o a entrar para a Escola Politécnica.
O Sr. Presidente: Senhores jurados, antes de mandar
entrar a última testemunha, insisto em perguntar ao
acusado e ao seu defensor se renunciam a ouvi-la.
Sr. Hornbostel: De maneira nenhuma.
Sr. Presidente: Então quero explicar em que circunstâncias esta testemunha foi citada. Recebi de Émile
Henry a carta seguinte:
“Senhor Presidente,
Tendo a minha mãe manifestado o desejo de assistir
ao meu julgamento, tentei em vão dissuadi-la.
Temendo justificadamente que as emoções de dois
dias de audiências lhe sejam demasiado dolorosos, tenho a honra de vos solicitar senhor presidente, que lhe
negue qualquer autorização que ela vos possa pedir para
assistir as mesmas.
Queira aceitar, senhor presidente, as minhas sinceras saudações.
Émile Henry
25 de Abril de 94. Prisão do Palácio de Justiça.”
Esta carta foi-me entregue pela defesa. Já aparecera, aliás, nos jornais antes de meu conhecimento. O
advogado pediu-me autorização para fazer entrar a mãe
do acusado na sala de audiência. Recusei energicamen23
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te, declarando que não queria deixar vir aqui uma mãe
para ouvir o acusador público requerer a pena capital
contra o filho. Acrescentei que só havia um meio de a
fazer entrar, que era citando-a como testemunha. Se
esta testemunha for chamada, a lei obriga-me a ouvila.
O acusado: Desconhecia que a minha mãe tivesse
sido citada... Não quero ver aqui a sua dor.
P. É precisamente o que pretendia evitar-lhe. Renuncia à audiência da testemunha?
O acusado: Renuncio em absoluto.10
Sr. Hornbostel: Renuncio igualmente.
Esgotado o rol de testemunhas o acusador público pronunciou o seu requisitório. O que mais lhe importa é
saber “como este jovem burguês se tornou um anarquista”.
Estamos aqui na presença, não de Ravachol, Léauthier e outros, mas na de um burguês. O seu pai possuía
bens, coisa singular para um anarquista; foi empreiteiro
de profissão, depois engenheiro, e a infelicidade atingiuo juntamente com a doença. Como foi educado o acusado? Condoemo-nos muito com certos anarquistas, com
uma jovem12, esquecendo os órfãos que os atentados
teriam podido causar. Apiedamo-nos também com a má
sorte de Émile Henry; conseguiu uma bolsa, terminou
os estudos secundários e chegou à admissão na Escola
Politécnica, era um burguezinho. Emprega-se na casa
do Sr. Bordenave que aos dezesseis anos e meio lhe oferece um lugar e quer propiciar-lhe um futuro. Começa
com 75F por mês; isto não foi suficiente para o seu orgulho, não chegava, porque queria principiar por onde
os outros acabam.
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Émile Henry, o benjamim da anarquia
É orgulhoso e cruel. Após o caso do Terminus, declara chamar-se Breton, vindo de Marselha ou Pequim,
como quiserem. Vejam como é um frio ironista. Acrescenta lamentar não ter morto mais gente e não ter
podido usar seu punhal: “Matei muito pouca gente!
Outros virão depois de mim, que farão melhor”. É isto
que diz. Assistiram, ontem, a sua atitude em presença
das vítimas. Quando depunha o Sr. Herrenweghen, ostentava ele a sua indiferença face a esta vítima ainda
débil que chorava a morte do seu amigo [...].
Quero falar-vos das vítimas: Sinto-me cheio de pena
da Sra. Henry cujo luto não começará com o vosso veredicto; o seu luto começou no dia do crime. A Sra. Henry
é sua primeira e mais dolorosa vítima.
Morreram cinco vítimas na Rue de Bons-Enfants; a
sexta faleceu, há pouco tempo, depois de sofrimentos
horríveis. Os feridos: Sr. Van Herrenweghen, ainda combalido; Sr. Maurice, empregado de cabeleireiro; essas
senhoras enlouquecidas, escondendo seu terror, e tantas outras. Henry ri destas vítimas! Garin, o funcionário da Sociedade de Carmaux, deixa viúva grávida e duas
crianças, vivendo de uma pensão. Réuax tinha vinte e
oitos anos; deixa viúva e um bebê. Formarin deixa viúva e um jovem rapaz. Touteau deixa viúva e três crianças. Pousset deixa viúva e dois filhos.
Eis o resultado da anarquia: Pousset era filho de um
oficial; educado na Flèche, fôra para Saint-Cyr, tornara-se
oficial; amava uma mulher pobre, casou com ela e teve
que interromper sua carreira; fez um pouco de tudo; estudou direito, licenciou-se, foi secretário de comissário
da polícia e em breve seria comissário. A bomba estúpida
da Rue des Bons Enfants acabou com tudo isso. Foi o que
fez. É esta a solução da questão social segundo os anarquistas.
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Os crimes de Henry são crimes atrozes; a opinião
pública sente por eles apenas ódio e desejo de vingança.
Escapou de ser esquartejado por populares. A justiça é
mais fria, mais calma; o que a multidão teria feito sob o
domínio da cólera, fazei-o vós com o sangue frio necessário à justiça. Concordai que só a pena capital pode
igualar-se a seus crimes [...].
[Palavras de Émile Henry]
Suspensa a audiência às cinco horas e quarenta e cinco minutos, recomeçou às cinco e dez.
Émile Henry pediu então a palavra, o que lhe foi concedido. Levanta-se e virando-se para os jurados, fala:
Não é uma defesa que vos quero apresentar. Não tento
de forma alguma furtar-me às represálias da sociedade
que ataquei.
De resto, só aceito um único tribunal — eu próprio; e o
veredicto de qualquer outro me é indiferente.
A explicação de meus atos.
Quero simplesmente explicar os meus atos e lhes dizer como fui levado a executá-los.
Sou anarquista há pouco tempo. Apenas me lancei no
movimento revolucionário em meados de 1891. Até aí vivera em meios totalmente imbuídos da moral vigente. Tinha sido habituado a respeitar, e até a amar, os princípios
da pátria, família, autoridade e propriedade.
Mas os educadores da geração atual esquecem com
demasiada freqüência uma coisa: que a vida, com suas
lutas e os seus dissabores, as suas injustiças e iniqüidades, encarrega-se, indiscreta, de abrir os olhos dos ignorantes à realidade. Foi o que me aconteceu, como acontece a todos. Tinham me dito que esta vida era fácil, larga26
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
mente aberta aos inteligentes e vigorosos, mas a experiência mostrou-me que só os cínicos e os bajuladores conseguem obter um lugar ao sol.
Haviam me dito que as instituições sociais se baseavam na justiça e na igualdade, mas não vi à minha volta
senão mentiras e velhacarias.
Cada dia me tirava uma ilusão.
Onde quer que fosse, testemunhava em alguns as
mesmas dores, noutros os mesmos prazeres.
Não demorei para compreender que as palavras pomposas que me tinham ensinado a venerar — honra, abnegação, dever — não eram mais do que uma máscara escondendo as mais torpes infâmias.
O industrial, que construía uma fortuna colossal à custa do trabalho dos seus operários, a quem tudo faltava, era
uma pessoa honesta.
O deputado, o ministro de mãos sempre abertas ao suborno, servia ao bem público.
O oficial que, experimentava o último modelo de espingarda contra crianças de sete anos, cumpriria bem o seu
dever e era, em pleno Parlamento, felicitado pelo presidente do conselho de ministros! Tudo o que vi me revoltou
e o meu espírito entregou-se à crítica da organização social. Essa crítica foi feita demasiadas vezes para que eu a
repita.
Atraído pelo socialismo
Atraído momentaneamente pelo socialismo, afastei-me
depressa desse partido. Tinha demasiado amor à liberdade, demasiado respeito pela iniciativa individual, demasiada repugnância pela arregimentação, para aceitar
ser um número a mais no exército do Quarto Estado.
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7
2005
Percebi, por um lado, que no fundo o socialismo não
altera em nada a ordem atual. Mantém o princípio da autoridade, e este princípio, digam o que disserem os pretensos livres pensadores, não passa de um velho resquício da fé numa potência superior.
Estudos científicos me iniciaram, gradualmente, no
funcionamento das forças naturais.
Ora, eu era materialista e ateu; compreendera que a
hipótese de Deus era repudiada pela ciência moderna, que
dela já não necessitava. A moral religiosa e autoritária,
baseada na falsidade, deveria portanto desaparecer. Qual
era então a nova moral, em harmonia com as leis da natureza, que deveria regenerar o velho mundo e dar à luz
uma humanidade feliz?
Toda esta introdução foi recitada pelo acusado com uma
voz segura, apenas de início atravessada por uma ligeira
emoção.
Nesta altura, a memória falhou-lhe; o Sr. Hornbostel, seu
advogado, passa-lhe então um caderno que seguirá com os
olhos até ao final da intervenção. E recomeça:
É por essa altura que me relacionei com alguns companheiros anarquistas, que ainda hoje considero como dos
melhores que conheci. O caráter desses homens seduziu-me imediatamente. Apreciava-lhes a grande sinceridade, a absoluta franqueza, um desprezo profundo por todos os preconceitos, e quis conhecer o pensamento que
tornava tais homens tão diferentes de todos os que conhecera até ali.
Esse pensamento encontrou no meu espírito um terreno preparado para o receber, devido a observações e reflexões pessoais.
Apenas tornou mais preciso o que havia em mim de
vago e confuso.
28
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
Fiz-me também anarquista.
Não vou desenvolver aqui a teoria da anarquia. Quero
apenas reter o seu lado revolucionário, a sua marca destruidora e negativa pela qual compareço diante de vós.
Nesta época de luta aguda entre a burguesia e os seus
inimigos, sinto-me quase tentado a dizer, como Souvarine no Germinal: “Todos os raciocínios sobre o futuro são
criminosos porque se opõem à destruição pura e simples
e entravam a marcha da revolução”.
Trouxe comigo para a luta um ódio profundo, dia a dia
mais intenso devido ao espetáculo revoltante dessa sociedade em que tudo é reles, ambíguo, feio, em que tudo é um
entrave à expansão das paixões humanas, às tendências
generosas do coração, ao livre desenvolvimento do pensamento.
Bater com força e precisão
Quis vibrar um golpe com a maior força e precisão possíveis. Passaremos então ao primeiro atentado que cometi, a explosão da Rue des Bons-Enfants.
Tinha acompanhado atentamente os acontecimentos
de Carmaux.
As primeiras notícias da greve encheram-me de alegria; os mineiros pareciam enfim dispostos a renunciar
às greves pacíficas e inúteis, em que o trabalhador confiante espera com paciência que a sua meia dúzia de francos vença os milhões das companhias.
Pareciam ter entrado numa via de violência que se
afirmou resolutamente no dia 15 de Agosto de 1892.
Os escritórios e edifícios da mina foram invadidos por
uma multidão farta de sofrer sem se vingar. O engenhei-
29
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ro tão odiado pelos seus operários ia ser executado, quando alguns timoratos se interpuseram.
Os timoratos
Quem eram esses homens?
Os mesmos que fazem abortar todos os movimentos
revolucionários, por recearem que o povo, uma vez lançado na ação, deixe de obedecer à sua voz; aqueles que levam milhares de homens a sofrer privações durante meses inteiros, para fazer propaganda à custa dos seus sofrimentos e ganharem a popularidade necessária à obtenção
de um mandato — refiro-me aos chefes socialistas. Esses
homens, com efeito, tomaram a direção do movimento
grevista.
E viu-se, subitamente, cair sobre a região um enxame
de senhores bem-falantes que se colocaram à inteira disposição da luta, organizaram subscrições, proferiram conferências, enviaram pedidos de fundos para todo o lado. Os
mineiros depuseram nas suas mãos toda a iniciativa. O
que aconteceu, sabemos bem.
A greve eternizou-se, os mineiros travaram conhecimento mais íntimo com a fome, sua companheira habitual; esgotaram os magros fundos de reserva do seu sindicato e dos que vieram em seu auxílio e, ao fim de dois meses, de orelha murcha, voltaram à fossa, mais miseráveis
do que antes. Desde o princípio teria sido muito simples
atacar a companhia no seu único ponto fraco: o dinheiro;
incendiar o estoque de carvão, destruir as máquinas de
extração, destruir os aparelhos de bomba hidráulica.
Claro que a Sociedade teria capitulado bem depressa.
Porém, os grandes pontífices do socialismo não admitem
esses processos, que são anarquistas. Neste jogo arriscase a prisão e, quem sabe?, talvez uma dessas balas que
30
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
fizeram maravilhas em Fourmies. Nem se ganha nenhum
lugar municipal ou legislativo. Resumindo, a ordem, perturbada por instantes, volta a reinar em Carmaux.
Mais poderosa do que nunca, a Sociedade continuou a
sua exploração e os senhores acionistas felicitaram-se pelo
feliz desenlace da greve. Convenhamos que ainda havia
bons dividendos a partilhar.
A voz da dinamite
Decidi então introduzir, nesse concerto de alegres chilreios, uma voz que os burgueses já tinham ouvido, mas
que julgavam morta com Ravachol: a voz da dinamite.
Quis mostrar à burguesia que, daí em diante, acabariam para ela as alegrias completas, que seus insolentes
triunfos seriam perturbados, que o seu bezerro de ouro
haveria de tremer violentamente no pedestal, até ao safanão definitivo que o derrubaria na lama e no sangue.
Ao mesmo tempo, quis fazer entender aos mineiros que
há só uma categoria de homens — os anarquistas — que
sentem sinceramente os seus sofrimentos e estão prontos a vingá-los.
Esses homens não se sentam no Parlamento, como os
senhores Guesde e quejandos, mas caminham para guilhotina.
Preparei pois uma marmita. Por um instante, veio-me
à memória a acusação de Ravachol: e as vítimas inocentes?
Mas resolvi rapidamente o problema. A casa onde se
encontram os escritórios da Sociedade de Carmaux só era
habitada por burgueses. Não haveria, portanto, vítimas
inocentes.
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A burguesia no seu conjunto vive da exploração dos
infelizes; deve em conjunto expiar os seus crimes.
Foi com a certeza absoluta da legitimidade do meu
ato que coloquei a minha marmita na porta dos escritórios da Sociedade.
Expliquei, durante os debates, como esperava que,
no caso do meu engenho ser descoberto antes da explosão, viesse a rebentar no posto policial, atingindo,
ali, os meus inimigos. Eis os motivos que me levaram
a cometer o primeiro atentado que me censuram.
A caça aos anarquistas
Passemos ao segundo, o do Café Terminus. Vim a
Paris na época do caso Vaillant. Assisti à repressão
formidável que se seguiu ao atentado do Palais-Bourbon13. Testemunhei as medidas draconianas tomadas pelo governo contra os anarquistas.
Espiava-se por todo lado, faziam-se buscas, prendiam-se pessoas. Ao acaso, uma multidão de indivíduos
era arrancada da família e lançada na prisão. O que
sucedia às mulheres e aos filhos destes camaradas
durante o seu encarceramento? Ninguém se preocupava com isso.
O anarquista já não era um homem, mas um animal feroz cercado por todos os lados, para quem a imprensa burguesa, escrava infame do poder, pedia o extermínio por todos os meios.
Ao mesmo tempo, os jornais e panfletos libertários
eram confiscados, o direito de reunião proibido.
Mais do que isso: quando queriam se livrar definitivamente de um companheiro, um bufão colava no
seu quarto um embrulho que dizia conter tanino e, no
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verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
dia seguinte, era feito uma busca com um mandato datado da antevéspera. Encontravam uma caixa cheia de pós
suspeitos, o camarada ia a julgamento e apanhava três
anos de prisão.
Perguntem se isso não é verdade ao miserável denunciante que se infiltrou na casa do companheiro Mérigeaud.
Mas todos esses processos foram considerados bons.
Atingiam um inimigo do qual se tinha medo e os que tinham tremido queriam passar por corajosos.
Coroando esta cruzada contra hereges, ouvimos o Sr.
Raynal, ministro do Interior, declarar na Assembléia que
as medidas tomadas pelo governo tinham obtido um bom
resultado, que tinham semeado o terror no campo anarquista. Não era ainda suficiente. Condenaram à morte
um homem que não matara ninguém, e para parecerem
corajosos até o fim, um belo dia, guilhotinaram-no.
Mas, senhores burgueses, não havíeis contado com este
vosso convidado.
Vocês encarceraram centenas de indivíduos e violentaram um sem-números de domicílios; mas ainda havia
fora das vossas prisões homens que vocês ignoravam e
que na sombra assistiam à vossa caça aos anarquistas,
esperando apenas o momento para, por sua vez, caçarem
os caçadores.
As palavras do Sr. Raynal constituia um desafio lançado aos anarquistas. O repto foi aceito. A bomba do Café
Terminus foi a resposta a todas as vossas violações da liberdade, às vossas prisões, às vossas buscas, às vossas
leis de imprensa, às vossas expulsões em massa de estrangeiros, às vossas decapitações. Mas, dirão, porquê ir
atacar clientes tranqüilos que ouviam música e que talvez não sejam nem magistrados, nem deputados, nem
funcionários?
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Porque é que atirei a esmo
Por que? É bem simples — a burguesia fez dos anarquistas um bloco. Um só homem, Vaillant, lançou uma
bomba; nove décimos dos companheiros nem sequer o
conheciam. Que importa? Perseguiu-se em massa. Quem
quer que tivesse qualquer relação anarquista foi perseguido.
Muito bem. Uma vez que vocês responsabilizaram um
movimento pelos atos de um indivíduo e o atacam em bloco, nós também atacamos em bloco.
Devemos apenas atacar os deputados que fazem as leis
contra nós, os magistrados que as aplicam, os polícias que
nos prendem?
Não penso assim.
Todos esses homens são meros instrumentos que não
agem em seu próprio nome. As suas funções foram instituídas pela burguesia para a sua defesa. Não são mais
culpados do que os outros.
Os bons burgueses que embora não tendo qualquer função recebem, no entanto, os seus dividendos, que vivem
na ociosidade com os lucros produzidos pelo trabalho dos
operários, devem também sofrer a sua parte de represálias.
E não só eles, mas todos os que se sentem satisfeitos
com a ordem atual, que aplaudem os atos do governo e que
se tornam seus cúmplices, esses assalariados por 300 ou
500F por mês que odeiam o povo mais ainda que os grandes burgueses, essa massa estúpida pretensiosa que se
coloca sempre ao lado do mais forte, clientela habitual do
Terminus e doutros grandes cafés.
E por isso atirei a esmo sem escolher as minhas vítimas.
34
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
Que a burguesia compreenda
É necessário que a burguesia compreenda bem que
aqueles que têm sofrido estão finalmente fartos dos seus
sofrimentos, mostram os dentes e atacam tanto mais brutalmente quanto mais tiverem sidos brutais para eles.
Eles não têm nenhum respeito pela vida humana, porque os próprios burgueses também não se preocupam com
ela.
Não cabe aos assassinos da semana sangrenta e de
Fourmies chamar assassinos aos outros.
Não poupam nem mulheres nem crianças burguesas
porque as mulheres e as crianças que amam também não
são poupadas. Não serão vítimas inocentes essas crianças que, nos subúrbios, morrem lentamente de anemia
porque o pão escasseia em casa? Essas mulheres que definham nas vossas oficinas e se esgotam para ganhar quarenta centavos por dia, e muito felizes quando a miséria
não as arrasta para prostituição? Esses velhos que vocês
transformaram em máquinas de produção durante toda a
sua vida e que atiram para a valeta ou para o hospital logo
que as suas forças se exaurem?
Tenham ao menos a coragem dos vossos crimes, senhores burgueses, e admitam que as nossas represálias
são totalmente legítimas.
Porém não me iludo, é claro. Sei que os meus atos não
serão ainda perfeitamente entendidos pelas multidões
insuficientemente preparadas. Mesmo entre os operários, por quem lutei, há muitos que, enganados pelos vossos
jornais, julgam-me seu inimigo. Mas isso pouco me importa. Não me preocupa o juízo de ninguém. Não ignoro
também a existência de indivíduos que se dizem anarquistas e se apressam a condenar qualquer solidariedade
com os propagandistas pela ação.14
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Tais indivíduos tentam estabelecer uma sutil distinção entre teóricos e terroristas. Demasiado covardes para
arriscarem a sua vida, renegam aqueles que atuam. Mas
a influência que dizem ter sobre o movimento revolucionário é nula. Hoje a hora é de ação, sem fraquezas nem
recuos.
Alexandre Herzen, o revolucionário russo, afirmou: “Das
duas uma, ou fazer justiça e seguir em frente, ou perdoar
e vacilar a meio do caminho”.
Não queremos perdoar nem vacilar e seguiremos sempre em frente até que a revolução, objetivo de nossos esforços, venha finalmente coroar a nossa obra, tornando o
mundo livre.
Não imploramos a mínima piedade nesta guerra impiedosa que declaramos à burguesia.
Sabemos matar, saberemos morrer.
É pois com indiferença que aguardo seu veredicto.
Estou ciente que a minha cabeça não será a última
que vocês cortarão; outras ainda hão de rolar, pois os mortos-de-fome começam a descobrir o caminho dos vossos
grandes cafés e restaurantes, como o Terminus e o Foyot.
Vocês acrescentarão novos nomes à lista sangrenta
dos nossos mortos.
Vocês enforcaram em Chicago, decapitaram na Alemanha, garrotaram em Jerez, fuzilaram em Barcelona,
guilhotinaram em Montbrison e em Paris, mas o que nunca conseguirão destruir é a anarquia.
As suas raízes são demasiado profundas. Nasceu no
seio de uma sociedade podre e em desagregação, é uma
reação violenta contra a ordem estabelecida. Representa
as aspirações igualitárias e libertárias que vêm atacar a
36
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
autoridade atual; está em todo lado, o que a torna inatingível; acabará por vos liquidar.15 [...]
Menos de um mês depois, a 21 de maio, Émile Henry, condenado à morte, era executado.
Em La Justice dois dias depois, Georges Clemenceu, sob o
título “A guilhotina”, fazia a descrição do suplício:
Alguém me disse: “É preciso que assista para poder contar aos que concordam”. Hesitei, em busca de um pretexto. Mas depois, bruscamente, decido-me. Vamos lá.
Atravessamos Paris das madrugadas, com seus grupos
de mulheres deslavadas sob os lampiões de gás, e os seus
notívagos em busca de uma aventura. Enervado, procuro
nas coisas um indício estranho. Nada. Um céu de ardósia,
encarneirado pelas nuvens, de uma transparência pálida. Um vento seco e cortante que nos gela.
Eis-no na Place du Château-d’Eau, face à grande República em barrete frígio, mostrando o seu ramo de oliveira que, diz ela, faz a paz entre os homens. E o cutelo? No seu íntimo, grita-lhe: “Mentirosa!” Agora é Ledru-Rollin16, teatralmente colocado face à câmara do
Fauboug. Mostra, num gesto enfático, a urna do sufrágio popular, dizendo: “Aqui está a salvação. — Sem dúvida, amigo, mas é longa a espera para uma vida curta. Tu próprio sofreste, durante vinte anos, a cruel experiência.”
Todas as ruas que dão para a Place de la Roquette foram fechadas. A praça encontra-se ocupada por militares.
Lá estão mil homens. São muitos para matar um só. Barragens mantêm o público no limite da Rue de la Roquette.
Impossível ver alguma coisa do espetáculo iminente. O
Sr. Joseph Reinach17 diverte-se à nossa custa. A praça
não passa de um grande pátio prisional.
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Diante da porta da Roquette surgem novas barreiras
para as pessoas com cartão de entrada. Amontoam-se ali,
bem à vontade, uns sessenta jornalistas, entre os quais
uma mulher, uma senhora de idade, de cabelos grisalhos,
que atrai a curiosidade geral, sem mostrar qualquer incômodo. Fala alegremente com os mais próximos e com os
guardas que lhe dizem gracejos. Agentes de polícia passeiam, com cigarro ou cachimbo na boca. Todos fumam.
Fala-se a meia voz. A atitude é, sobretudo, de recolhimento. [...]
Três homens de casaca e com cartola dirigem três operários em roupas de trabalho: camisolão curto, calaças de
pano azul. Os três “burgueses” são o carrasco e os dois
ajudantes. Um dos ajudantes, dizem-me, é genro do carrasco, o outro, filho. Jantaram em família e saíram corajosamente para o trabalho, olhando cheios de ternura as
crianças adormecidas, beijando, uma a mãe, o outro a
mulher ou a filha, que lhes fazem recomendações afetuosas por temer o frio da noite.
Mal vi o Sr. Deibler, um velhote que arrasta uma perna. Seria impressão? Pareceu-me desajeitado, incerto e
sonso. Um dos seus ajudantes, um rapaz louro, gordo, saudável e rosado, contrastava com ele. Todos trabalhavam
sem ruído, com a boa consciência e a decência das pessoas que sabem viver.
Pouco a pouco, as traves que se vêem por terra vão ganhando significado. Duas travessas encaixadas em cruz
repousam sobre as lajes do chão. Estão devidamente calçadas e o Sr. Deibler, com o seu nível de água, acaba de
assegurar-se que a sua máquina dispõe de uma base perfeitamente horizontal. Notam-se que não se usa sequer
um prego. Só parafusos. Nem uma martelada. Que progresso! As calhas são erguidas, encimadas por uma trave
que suporta uma polia. Fazem subir a lâmina que percorre a calha; montam a báscula e experimentam-na. É o
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verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
próprio Sr. Deibler que coloca a banqueta para a cabeça
que envolve com uma espécie de biombo de madeira que
impedirá os salpicos de sangue. O cesto destinado ao corpo encontra-se aberto, ao lado da báscula, perto da carreta
que seguirá para Ivry.
Agora é dia, ou quase. Acabam de apagar os bicos de
gás. Olho a prisão e, estupefato, leio por cima da porta:
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Como puderam esquecer-se de acrescentar: “ou a morte”? [...]
Um movimento! Um jovem num sobretudo claro sai da
prisão, de charuto nos lábios, e rindo na frente de todos
vem até junto da guilhotina contar uma anedota a um
amigo que lhe acha imensa graça. Disseram-me qual era
sua função. Não a divulgo. Há dois guardas lívidos; dois
novatos, sem dúvida. O jovem soldado de sentinela agitase constantemente: balança-se, faz gestos bruscos, ri nervosamente, gira os olhos no vazio. Pensei que se iria sentir mal.
A pequena porta se fechou num gemido agudo. Ouvese o barulho das trancas de ferro a cair. A porta grande se
abre e, atrás do capelão que toca uma sineta, surge Émile
Henry, trazido, empurrado pelo grupo do carrasco. Lembra
qualquer coisa como uma visão de Cristo de Munkacsy,
com seu ar louco, a cara extremamente pálida, semeada
de pelos ruivos, escassos e revoltos. Apesar de tudo, ostenta ainda uma expressão implacável. A sua cara pálida me
cega. Não consigo olhar para outra coisa. O homem acorrentado avança a passo rápido, apesar dos entraves. Lança um olhar circundante e, com esgar horrível, numa voz
rouca mas forte, grita aconselhável estas palavras: “Coragem camaradas. Viva a Anarquia!”
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Notas
1
Émile Henry, nascido em 1872, um ano depois da Comuna de Paris, em que seu
pai lutou. Foi um terrorista diferente dos demais, com formação intelectual sedimentada, morto na guilhotina, em 1894. Jean Maitron. Ravachol e os anarquistas.
Tradução de Eduardo Maia, Lisboa, Antígona, 1981, pp. 63-96. Adaptado por
Acácio Augusto e Edson Passetti, dividindo o texto em duas partes: “O interrogatório” e “Palavras de Émile Henry”.
2
Cf. “Gazzete des Tribunuax”, 27 e 28 de Abril de 1894.
3
Idem.
Foi um aluno brilhante: 2o prêmio de Excelência em 1885, 1o prêmio em 1886,
2o prêmio em 1887, 5a distinção em 1888 (ano preparatório na Escola Politécnica).
4
5
Alusão aos tiros do 1° de Maio de 1891. O exército disparou sobre manifestantes:
dez pessoas foram mortas, entre elas duas crianças de 11 e 13 anos.
François Claudius Koeningstein, Ravachol por parte de mãe, nasceu em 1854.
Passou a usar o nome de Leon Léger, em 1891, para praticar atentados tendo sido
preso em março de 1892. Apesar de diversas acusações e prisões, foi condenado à
decapitação pela guilhotina, em 11 de julho de 1892, em Saint Étienne, por uma
morte a ele atribuída. O jornal anarquista Pere Peinard declarou; “A cabeça de
Ravachol caiu aos seus pés, agora temem que ela possa explodir como uma bomba”.
Pobre, foi um intenso ativista e escreveu poucas anotações publicadas, inicialmente, em 1893, pelo jornal anarquista L’ Insurgé. (N.E.).
6
7
Em 1884-85, E. Henry pertenceu à 3° companhia do batalhão escolar de J. B. Say
e obteve, no fim do ano, a oitava distinção.
Ortiz Philippe, Léon, nascido em Paris, a 18 de novembro de 1868. Anarquista,
fundou em 1887, com Malato e alguns outros, o “Révolution Cosmopolite”. Em
1894, foi acusado de participar com outros companheiros em roubos e fez parte
dos acusados que compareceram no Processo dos 30, no tribunal do Sena a 6 de
agosto de 1894. Foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados. Na deportação
contou com a comunidade anarquista.
8
9
Camisards: grupo de camponeses protestantes calvinistas franceses que explodiu
em revolta em 1702 (segundo Voltaire) e 1703 (segundo Philippe Joutard), resistindo, na região das Cévennes, à perseguição do Estado francês católico, que tinha
proibido o culto, em 1685. São considerados dentro do fenômeno das seitas cristãs
comunalistas ou de afronta à Igreja de Roma. Como não faz sentido pensar que o
pai de Henry tenha sido um deles literalmente, mas sim foi participante da Comuna
de Paris, o termo deve ter sido usado com referência a revoltosos de maneira geral.
(N.E.).
Um pouco mais tarde, o réu interrompeu violentamente o acusador público:
“não se meta com a minha mãe, proíbo-lhe!”.
10
40
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia
Léon Jules Léauthier, nascido em 1874, era sapateiro e atentou contra a vida do
Ministro da Sérvia Georgevitch, em 13 de novembro de 1892, em Paris. Condenado à pena de prisão perpétua, em 1894, foi assassinado na prisão de Iles de Salut,
durante uma rebelião. (N.E.).
11
12
Sidonie Vaillant, filha do anarquista com o mesmo sobrenome.
13
Câmara dos deputados, onde Auguste Vaillant lançou uma bomba, em Dezembro
de 1893.
14
Tema de sua polêmica com Malatesta em “L’En Dehors” de agosto de 1892.
Desde o momento em que foi preso, Henry teve, ainda uma outra vez, a ocasião
de desenvolver as suas teorias. Fê-lo por escrito, a pedido do diretor da prisão do
Palácio da Justiça, depois duma visita que este lhe fez em 18 de fevereiro. Uma
fotocópia do texto redigido pelo jovem anarquista está depositada nos arquivos da
Prefeitura de Polícia, com a cota B a/140.
15
Estátua de Alexandre Auguste Ledru-Rollin, político que promoveu o sufrágio
universal, membro do governo provisório de 1848, exilado após os acontecimentos
de Junho. (N. T.)
16
Outro político (1856-1921), discípulo de Gambetta; defendeu a revisão do
processo Dreyfus. (N. T.)
17
41
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2005
RESUMO
Um anarquista no tribunal. Émile Henry, seu julgamento e sua
demolidora crítica ao direito, ao tribunal e à sociedade.
Palavras-chave: Terrorismo, anarquismo, pena de morte.
ABSTRACT
An anarchist in a court. Émile Henry, his trial and his demolishing
critic on the Law, the court and society.
Keywords: Terrorism, anarchism, death penalty.
Indicado para publicação em 7 de abril de 2003.
42
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...
notas para a abolição dos campos de
concentração e de extermínio
salete oliveira*
“Eis um filão que é preciso não perder de vista (...) na
realidade, talvez sejam vários, todo um consórcio de tiranos,
divididos entre si no que me concerne, deliberando desde
um bom pedaço de eternidade, escutando-me de tempos
em tempos, depois indo comer e jogar cartas, em segredo,
a expensas do governo, à minha revelia (...).”
Samuel Beckett
Morder, mascar, deglutir
“No ano de 1949, aconteceu-nos, a mim e a alguns
amigos lermos uma nota que nos chamou a atenção na
revista Priroda (Natureza), da Academia das Ciências.
Impressa em caracteres minúsculos, noticiava que na
bacia do rio Kolimá, durante umas escavações, tinhase deparado, casualmente, sob uma camada glacial, com
uma corrente congelada, nela tendo sido descobertos,
* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora-pesquisadora na PUC/SP pelo Prodoc-CAPES.
verve, 7: 43-56, 2005
43
7
2005
também congelados, espécimes de fauna fossilizados
(com várias dezenas de milênios de idade). Esses peixes, ou tritões, conservavam-se tão frescos — testemunhava o correspondente científico — que as pessoas presentes quebravam o gelo ali mesmo e comiam-nos com
prazer. Não poucos leitores da revista devem ter se espantado bastante pelo fato de a carne de peixe poder conservar-se durante tão longo tempo no gelo. Mas foram
menos os que puderam discernir o sentido verdadeiramente heróico dessa nota imprudente. Nós compreendemos tudo num ápice. Vimos com clareza toda a cena,
nos seus mínimos pormenores: como as pessoas presentes quebravam o gelo, com exacerbada pressa, e
como, menosprezando os elevados interesses da ictiologia, se acotovelavam uns aos outros, arrancavam os
pedaços da carne milenária, passavam-na pela chama,
descongelavam-na e saciavam a fome. Compreendemolo porque as pessoas presentes éramos nós próprios, porque nós éramos membros dessa poderosa legião de zeks
[detidos], a única na terra que podia comer os tritões
com prazer. Kolimá era a maior e a mais célebre ilha, o
pólo da ferocidade desse assombroso país do Gulag, desgarrado pela geografia num arquipélago, mas psicologicamente ligado ao continente, a esse quase invisível,
quase intangível país habitado pelo povo zek. Este arquipélago, cheio de enclaves, recortava-se polícromo sobre
o outro país, a que estava incorporado, penetrava nas
suas cidades, pairava sobre as suas ruas — e no entanto havia quem não se apercebesse de nada, embora
muitos tivessem ouvido falar vagamente de algo; só os
que lá tinham estado conheciam tudo. Entretanto, como
se tivessem perdido o dom da fala nas ilhas do arquipélago, eles guardavam silêncio. Numa inesperada viragem da nossa história, uma parte insignificante desse
arquipélago foi dada a conhecer ao mundo. Mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora
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verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...
conciliadoramente as palmas e dizem ‘não se deve... não
se deve remexer no passado!... Aquele que recorda o passado perde um olho!’ E, no entanto, o provérbio acrescenta: ‘aquele que o esquece perde os dois!’ As décadas
vão correndo e lambem irrecuperavelmente as cicatrizes e as úlceras do passado. Outras ilhas, durante esse
tempo, estremeceram, foram-se derretendo, desbordaram, e o mar polar do esquecimento vem embater sobre
elas. E um dia, no século futuro, este arquipélago, o seu
ar e os ossos dos seus habitantes, congelados numa camada glacial, serão apresentados aos descendentes como
um inverossímil tritão.”1
Soljenítisin, passou onze anos de sua vida confinado
em um gulag. Seu Arquipélago Gulag, publicado em russo, em Paris, em 1973, trouxe, pela primeira vez, a público a história vivida e documentada dos campos de
trabalho escravo na URSS, relativa ao período de 1918 a
1956. A principal tese do livro diz respeito ao fato de que
os Gulags fizeram parte da constituição do Estado soviético desde o momento da Revolução Russa, em 1917,
contrariando os argumentos que o justificaram ou o atenuaram sob a alegação de que teriam sido uma criação
distorcida e arbitrária de Stálin.
Paris, janeiro de 1976. Primeira veiculação televisiva de imagens do campo de concentração soviético, localizado na cidade de Riga. No mês seguinte, K. S. Karol
entrevista Michel Foucault; indaga-lhe sobre as imagens que viu.
“Em primeiro lugar, os soviéticos disseram o seguinte, o que me chocou muito: ‘não há nada de escandaloso
nesse campo: a prova disso é que está no meio da cidade, todo mundo pode vê-lo.’ Como se o fato de um campo
de concentração ser instalado em uma grande cidade —
no caso, Riga — sem que seja necessário dissimulá-lo,
tal como os alemães o faziam, às vezes, fosse uma des45
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culpa! Como se este impudor de não esconder o que se
faz, ali onde se faz, autorizasse a reivindicar o silêncio
em qualquer outro lugar, e a impô-lo aos outros: o cinismo
funcionando como censura. É o argumento de Cyrano: já
que meu nariz é enorme, bem no meio do meu rosto, vocês não têm o direito de falar dele. Como se não fosse preciso, nessa presença de um campo em uma cidade, reconhecer o brasão de um poder que se exerce sem pudor, tal
como nossas prefeituras, nossos Palácios de Justiça ou
nossas prisões. Antes de saber se os detentos que ali estão são ‘políticos’, a instalação do campo, nesse lugar tão
visível, e o terror que ele exala são, em si, políticos. O arame farpado que prolonga os muros das casas, os feixes de
luz que se entrecruzam e o passos das sentinelas à noite,
isso é político. E é uma política.”2
Em uma entrevista posterior, relativa, ainda, aos
campos soviéticos, concedida a Jacques Rancière, no
ano de 1977, Foucault, aponta para dois desdobramentos distintos: a instituição Gulag e a questão Gulag.3
São apenas dois pequenos apontamentos que podem
ser desdobrados e esgarçados.
A instituição gulag
O termo GULAG refere-se a uma vasta rede de campos de trabalhos forçados que se espalharam por toda a
URSS. Das ilhas do Mar Branco às costas do Mar Negro.
Do círculo Ártico às planícies da Ásia Central. De Murmansk a Vorkuta e ao Casaquistão. Do centro de Moscou à periferia de Leningrado.4
A palavra GULAG designa “administração geral dos campos” e refere-se, imediatamente, à instituição de uma
polícia política que, por sua vez, corresponde à divisão
da polícia secreta que gerenciava os campos soviéticos.
Polícia multiplicada e redimensionada inúmeras vezes.5
46
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...
Cheka (Comissão Extraordinária), polícia secreta que
vigorou durante a revolução. GPU (Agência Política do
Estado), polícia secreta que sucedeu a Cheka no início
dos anos 1920. OGPU (Agência Política Unificadora do
Estado), polícia secreta do final dos anos 1920 e início de
1930, sucessora da GPU. NKVD (Comissariado do povo
para assuntos internos), polícia secreta que agiu nos
anos 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, sucessora da OGPU. MVD (Ministério de Asssuntos Internos), a polícia secreta responsável pelas prisões e pelos
campos de trabalho forçado no pós-guerra. MGB/KGB
(Ministério/Comitê de Segurança do Estado), responsável pela segurança interna e externa no pós-guerra.
Uma das procedências do Gulag encontra-se na Rússia czarista, correspondendo às “turmas de trabalho forçado” que localizavam-se na Sibéria e operaram desde o
século XVII até o início do século XX. Foi de lá que conseguiram fugir vários anarquistas no século XIX, dentre eles Bakunin. E dataria desta época sua futura habilidade em imprimir fantásticas fugas dos gulags soviéticos, já que vieram a ser um de seus alvos principais.
Logo após a revolução, segundo Applebaum, o gulag assume sua forma mais moderna e familiar, tornando-se
parte do sistema soviético.
Tal qual a polícia política e secreta o gulag também
vai sofrer modificações e reacomodamentos em suas
significações e aplicações. Com o tempo passa a indicar
não só a administração dos campos de concentração mas,
também, o próprio sistema de trabalho soviético, trabalho escravo, sob as mais diferentes formas e modalidades. Campos de trabalho forçado; campos punitivos; campos criminais e políticos; campos femininos; campos
infantis; campos de trânsito.
O campo se dividia em campos e no interior dos campos alojavam-se outros campos, respondendo a uma
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multiplicação e alastramento que Soljenítsin denominaria de arquipélago, mesmo termo que Michel Foucault,
não fortuitamente, utilizou para se referir à prisão dispositivo — diferindo do internamento considerado isoladamente — o arquipélago carcerário.6
O gulag não só passou a significar todo o sistema repressivo soviético — os presos o denominavam como o
“moedor de carne”7, referindo-se aos amplos itinerários
que abrangiam, das delações às capturas, das prisões
aos interrogatórios e sessões de tortura; dos translados
em vagões de gado ao trabalho forçado, da destruição de
laços amorosos e amistosos aos anos de degredo, das
mortes prematuras aos extermínios — como, também,
a partir dele, e sem jamais abrir mão dele, foi que este
sistema de poder encontrou sua positividade e a sociedade socialista soviética pôde funcionar.
Deslizamentos históricos da instituição gulag
para a questão gulag
Em 1918 Lênin determinava que os “indignos de confiança”, os “inimigos em potencial” fossem encarcerados
em campos de concentração a uma distância considerável das cidades principais.
Mas antes, mesmo de 1918, isto já estava posto, e neste
ponto Soljenítsin é enfático: “Seria bem mais justo dizer
que o Arquipélago nasceu ao som dos canhões do Aurora.
Como poderia ser diferente? Reflitamos. Marx e Lênin
não ensinaram sobre a necessidade de destruir a antiga
máquina coercitiva da burguesia e substituí-la imediatamente, criando-se uma nova? Ora, a máquina coercitiva compreende: o exército (nós não nos espantamos de
ver constituir-se o Exército Vermelho no começo de 1918);
a polícia (renovou-se a polícia antes mesmo do exército);
os tribunais (a partir de 22 de novembro de 1917) — e as
48
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...
prisões. Por que então, se deveria demorar em introduzir
uma nova espécie de prisão? Dito de maneira diferente,
de um modo mais geral, retardar em matéria de prisão,
fosse de estilo antigo ou novo, era uma coisa rigorosamente
impossível. Desde os primeiros meses que se seguiram à
Revolução de Outubro, Lênin exigiu ‘as medidas mais resolutas e mais draconianas para se restabelecer a disciplina. Ora são possíveis medidas draconianas sem prisão?”8
Soljenítsin, ainda, sublinha: não foi o próprio Marx que
em sua Crítica ao Programa de Gotha havia sido enfático ao
afirmar que o único meio de reabilitação dos prisioneiros
era o trabalho produtivo?
Assim foi feito, em maio de 1918 foi criado o Serviço
Penal Central; em março de 1919 os “fundamentos da política de trabalho forçado” foram incluídos no novo programa do Partido. Em 1921 já havia se constituído 84 campos
em 43 províncias diferentes.9
A partir de 1929 os gulags adquirem nova importância.
Stálin utiliza-os para intensificar o processo de industrialização da URSS. Nos gulags foram produzidos desde brinquedos para crianças até foguetes espaciais. É neste mesmo ano de 1929 que a polícia secreta assume o controle do
sistema penal soviético, acoplando o judiciário a todos os
campos e prisões. Entre 1937 e 1938 intensificam-se as
prisões em massa e os gulags alastram-se vertiginosamente. No final da década de 1930 era possível encontrar
inúmeros campos em todos os 12 fusos horários da URSS.10
O Gulag não pára de crescer para atingir seu apogeu na
década de 1950 e passar a ser responsável pela produção
de 1/3 da riqueza da URSS.
Durante a década de 1970 e começo da de 1980 o
gulag passa por reformulações para responder ao encarceramento de ativistas anti-soviéticos e dos designados
criminosos. Durante a existência da URSS foram criados 476 complexos distintos de campos, perfazendo mi49
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lhares de campos individuais.11
Soljenítsin, lançando mão de várias fontes documentais, fornece a estimativa de que 60 milhões de pessoas
passaram pelo enorme sistema do arquipélago. Levandose em conta que sua obra abrange o período entre 1918 e
1956 e ao considerar, de acordo com Applebaum, que os
campos na URSS começam a ser dissolvidos, apenas, em
1987, é possível supor que o número de pessoas tragadas
por este sistema tenha sido muito maior.
Não se assuste leitor se acaso você perguntar a 100
pessoas se elas já ouviram falar nos campos de concentração nazista e 99 assentirem que sim e se para estas
mesmas pessoas você pronunciar a palavra gulag e apenas uma não fizer cara de interrogação. Será que neste
espaço que designam como ocidente, do lado de cá do meridiano central, acima e abaixo do equador, lá e aqui bem
na frente de cada nariz os gulags estão tão distantes assim?
A questão gulag
Nils Christie, um abolicionista penal, em 1998, escreve A indústria do controle do crime: a caminho dos
GULAG’s em estilo ocidental, publicado no Brasil no mesmo ano.12 Christie sublinha como a Criminologia Positivista foi profícua em sua internacionalização. As idéias
de Lombroso e Ferri na Itália e, posteriormente, as de
von Lizt na Alemanha, constituíram um dos mais fantásticos êxitos da chamada ciência multidisciplinar. A
Associação Internacional de Política Criminal, fundada
em 1889 e que teve em von Lizt sua figura central, assegurou à criminologia alemã o estatuto de locus exportador do ideário da prevenção geral, modelo preponderante
de política da verdade para o sistema penalizador do século XX.
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Notas para a abolição dos campos de concentração...
Christie mostra como no final do século a Nova Penalogia, escola conservadora da Criminologia americana, com
suas teorias sobre o crime e táticas de controle redimensiona uma nova política, denominada por ele: “a caminho
dos gulag’s em estilo ocidental”.
Na década de 1980 a direita americana a partir da nova
penalogia, com sua “teoria da vidraça quebrada” e articulação da polícia repressiva com a polícia comunitária gestam o programa de Tolerância Zero implantado na década
seguinte.
Interessa à nova penalogia, segundo Christie, não mais
a recuperação mas o controle e gerenciamento das populações segregadas.
A prisão, neste sentido, assume a função de gerenciamento. Trata-se de um redimensionamento da estatística, enquanto linguagem probabilística aplicada às populações construídas e vinculada à construção civil e ao controle eletrônico. A estatística transformada em norma
legal.
A construção crescente de prisões, constituindo um fértil mercado, no qual os lucros ampliam-se no investimento em duas direções: nos consórcios governamentais e não
governamentais; no fluxo de empregos gerados, envolvendo não só funcionários mas, também, mão-de-obra de presidiários.
Christie, ainda ressalta os equipamentos disponíveis ao
mercado prisional, que vão desde prisões de segurança
máxima, monitorada informaticamente; dispositivos de
alta tecnologia de contenção, desde instrumentos simples
a equipamentos testados em prisões, para, posteriormente, serem utilizados em guerras cirúrgicas a dispositivos
de controle, como exemplo o código de barras que se tornou algo corriqueiro em nosso cotidiano e cuja procedência situa-se em uma tecnologia criada a partir do
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controle de condenados ao cárcere ou sob monitoramento
a céu aberto.
Por fim, Christie ressalta a gestão das prisões constituída pela disponibilidade da adminstração em demonstrar sua eficácia burocrática.
A questão que se coloca diante disto não deve ser
posta em termos de negatividade: qual a distorção teórica que propiciou o aparecimento dos gulag’s.
É preciso problematizar a questão gulag em termos
de sua positividade. Foucault, já apontava na década de
1970, que o gulag não era uma seqüência, tampouco
um resto. É um presente pleno. Não se trata de buscar
uma linearidade entre o gulag soviético redimensionado pelo programa de tolerância zero, muito menos de
assumir o discurso cômodo que relativiza e formaliza a
denúncia sistemática “todos nós temos um gulag”, pois
isto nada mais é, como já alertara Foucault, do que se
instalar em um ecletismo acolhedor.
Colocar-se a questão gulag implica defrontar-se com
a história e formulá-la para a sociedade socialista — é
sempre pertinente lembrar que China, Cuba, Coréia do
Norte e alhures estão aí — e que desde 1917, nenhuma
delas conseguiu funcionar sem um sistema mais ou
menos derivado de gulag. A positividade de tal questão
reside em enfrentar as perguntas deixadas por Foucault
em relação ao gulag: para que ele serve; qual funcionamento ele garante e, por fim, a quais estratégias ele
responde.
Para sociedades como a nossa, para hoje, para o Estado democrático de direito que convive tão bem com o
programa de tolerância zero trata-se de problematizar:
para que servem as prisões e o controle a céu aberto;
em que medida os direitos, não por uma falta de garantia mas pela sua própria condição de direito, fazem fun-
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Notas para a abolição dos campos de concentração...
cionar o gulag redimensionado e, finalmente, quais as
conexões de fluxos de controle ele responde?13
Ainda na pista deixada por Foucault, é preciso não
perder de vista que propor uma outra solução para punir
é colocar-se, inteiramente, recuado em relação ao problema que não é nem do quadro jurídico nem de sua
técnica, mas do poder que pune.
Da Alemanha ao Brasil dos anos 1920, da criação do
campo de concentração Clevelândia14, no Oiapoque, para
onde eram mandados, sobretudo, anarquistas, à promulgação do Código de Menores Melo Matos de 1927, dentre
outras medidas, visava-se constituir uma política profilática. A medicalização da sociedade, sob a prática da
prevenção geral foi redimensionada pela medicalização
do controle da segurança no pós-guerra e se transforma
hoje com o programa de tolerância zero na disputa pelo
controle da segurança.
Guardadas as diferenças específicas, a política dos
Gulags, colocada já para Lênin, era uma questão de “profilaxia social” que devia se estender a crianças e jovens.
A caça aos anarquistas passou a se entrelaçar com a
caça a crianças e jovens.
“Pyotr Yakir, de catorze anos, foi primeiro colocado
numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os
adultos. Seu interrogador o acusou de ‘ter organizado
um bando de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar
atrás das linhas do Exército Vermelho’, citando como
prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida foi condenado pelo crime de ser ‘elemento socialmente perigoso’.”15 O destino posterior eram os campos infantis e juvenis.
Do início da Revolução a 1922 foi colocada em operação o tribunal da consciência de justiça revolucionária
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que, de acordo com Soljenítsin decidia quem trancafiar,
quem exterminar. O tribunal popular mostrou-se perfeitamente ajustável ao gulag. O primeiro Código Penal
soviético viria a ser promulgado em 1922 e daria novos
contornos ao tribunal. O Estado socialista não abriu mão
do direito penal burguês e perpetuou os gulags.
Tribunal é tribunal. É uma instituição, é uma questão. É uma política. Em qualquer parte do planeta é uma
política de julgamento. Todo sentenciado ou à espera de
sentença a ser cumprida no cárcere ou a céu aberto,
sob o pretexto de extermínio, correção, reeducação ou
cura é um preso político.
As crianças sabem disto.
“‘O berçário também era parte do complexo do campo’, escreveria Evgeniya Ginzburg. ‘Tinha sua própria
guarita, seus próprios portões, seus próprios barracões,
seu próprio arame farpado.16 (...) Quando Evgeniya tentou ensinar algo à crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas — aquelas que haviam
mantido algum contato com as mães — se mostravam
capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima:
‘Olhe’, eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha
que eu desenhara. ‘O que é isso?’
‘Alojamento’, respondeu o menininho, de modo bem
claro.
Com algumas canetadas, pus um gato ao lado da casa.
Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí desenhei uma cerca rústica, tradicional, em volta da casa.
‘E o que é isso?’
‘A zona prisional’, gritou Vera, encantada.”17
54
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Notas para a abolição dos campos de concentração...
Notas
Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. I. Tradução de Francisco A.
Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel,
1979, pp. 7-8.
1
Michel Foucault. “Crimes e castigos na URSS e eoutros lugares...” in Estratégia, poder-saber, Col. Ditos e escritos. vol. IV. Tradução de Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, pp. 189-190.
2
Idem. “Poderes e estratégia” in op. cit., pp. 240-452.
3
Conforme Anne Applebaum. Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos. Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte. São Paulo, Ediouro, 2004.
4
5
De acordo com Alexandre Soljenítisin e Anne Applebaum.
Michel Foucault. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M.
Pondé Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987.
6
7
Termo ressaltado por Soljenítisin e por Applebaum.
Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. II. Tradução de Leonidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro/São Paulo, Difel, 1976, p. 9.
8
9
Conforme Anne Applebaum, op. cit..
10
Idem.
11
Ibidem.
Nils Christie. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAG’s em estilo
ocidental. Tradução de Luís Leiria. Rio de janeiro, Forense, 1998.
12
A este respeito ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São
Paulo, Cortez, 2003.
13
A este respeito ver Carlo Romani. “Clevelândia (Oiapoque), Colônia penal ou
campo de concentração?” in Verve, n° 4. São Paulo, Nu-Sol, 2003.
14
15
Anne Applebaum, 2004, op. cit., p. 382.
A palavra zona é uma palavra russa e designa de forma geral campo de concentração, literalmente refere-se à área protegida pela cerca de arame farpado.
16
17
Anne Applebaum, 2004, op. cit., pp. 374-376.
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RESUMO
Breve exposição histórico-política dos Gulags soviéticos. Alguns
apontamentos sobre o redimensionamento dos campos de concentração instrumentalizados pelo programa de tolerância zero.
Palavras-chave: abolicionismo penal, Gulags, campos de concentração.
ABSTRACT
A short historical-political exposure of the soviet Gulags. Some
appointments about the remodeling of the concentration camps by
the program of zero tolerance.
Keywords: penal abolitionism, Gulags, concentration camps.
Recebido para publicação em 22 de novembro de 2004.
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Prisões: falência e crime social
prisões: falência e crime social
emma goldman*
Em 1849, Fiodor Dostoievski escreveu na parede de sua
cela na prisão a seguinte história intitulada “O Padre e o
Demônio”.
“Olá, padre gordinho!’ Disse o diabo ao sacerdote’. ‘O
que o fez mentir tanto para essas pessoas pobres e iludidas? Que torturas infernais você descreveu? Você não sabe
que eles já estão sofrendo torturas infernais em suas vidas na Terra? Não sabe que você e as autoridades do Estado são meus representantes na Terra? É você quem os faz
* Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos
com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma
militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman, o
que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso
de contraceptivos. Escolhemos este texto (In Emma Goldman. Anarchism and
Other Essays. Toronto, Dover Publication Inc., 1969. pp. 109-126) de 1910 por
mostrar uma reflexão ativista, dirigida aos trabalhadores organizados, situando
os efeitos de uma leitura científica e a necessidade da abolição das prisões. Emma
Goldman participou criticamente da Revolução Russa, da Guerra Civil Espanhola e morreu em 1940, no Canadá. Seu corpo foi sepultado em Chicago, junto
com os dos anarquistas de Haymarket.
verve, 7: 57-74, 2005
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sofrer as dores do inferno com as quais você os ameaça.
Você não sabe disso? Bem, então, venha comigo!’
O diabo agarrou o padre pelo colarinho, ergueu-o
no ar, e o levou a uma fábrica, uma fundição de aço.
Lá, ele viu os trabalhadores correndo, indo de lá pra
cá, e labutando sob um calor escaldante. Rapidamente, o ar denso e pesado e o calor eram demais para o
padre. Com lágrimas nos olhos, ele implorou para o
diabo: ‘Deixe-me ir! Deixe-me sair deste inferno!’
Meu querido amigo, eu vou lhe mostrar muitos outros lugares. ‘O diabo pegou-o novamente e o arrastou
até uma fazenda. Lá, ele viu os trabalhadores debulhando grãos. O pó e o calor eram insuportáveis. O
administrador carregava um chicote e batia sem piedade em quem caísse ao chão vencido pelo trabalho
duro ou pela fome.
Depois o padre foi levado para as cabanas aonde os
mesmo trabalhadores viviam com suas famílias — sujas, frias, esfumaçadas, buracos fedidos. O demônio
sorri. Ele aponta para a pobreza e a miséria que se
encontram à vontade.
Ele pergunta: ‘isto não é suficiente?’ E parece que
até ele, o diabo, tem compaixão dessas pessoas. O piedoso servo de Deus mal pôde suportar isso. Com as
mãos levantadas, ele implora: ‘Deixe-me ir embora
daqui. Sim, sim! Este é o inferno na Terra!’
‘Bem, então, você vê. E ainda promete a eles outro
inferno. Você os atormenta, tortura mentalmente até
o fim e a eles só resta estar fisicamente mortos! Vamos! Eu lhe mostrarei mais um inferno — mais um, o
pior de todos.’
Ele o levou a uma prisão e lhe mostrou o calabouço, com seu ar viciado e as diversas formas humanas,
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verve
Prisões: falência e crime social
despojadas de toda saúde e energia, deitadas no chão,
cobertas por vermes que devoravam os seus pobres
corpos nus e mirrados.
‘Tire suas roupas de seda’, disse o diabo ao padre,
‘coloque nos seus tornozelos as pesadas correntes assim como estes desafortunados as usam; deite-se no
chão frio e sujo — e então fale a eles sobre o inferno
que ainda os espera!’
‘Não, não!’, respondeu o padre, ‘eu não posso pensar em nada mais terrível que isso. Eu lhe suplico,
deixe-me ir embora daqui!’
‘Sim, este é o inferno. Não pode existir nenhum
inferno pior que este. Você não sabia disso? Você não
sabia que estes homens e mulheres os quais você assusta com a figura do inferno do além — você não sabia que eles já estão no inferno, antes de morrer?’.
Isto foi escrito há 50 anos na escura Rússia, na
parede de uma das mais horríveis prisões. No entanto, quem pode negar que isto se aplica com a mesma
força na atualidade, até mesmo nas prisões americanas?
Com todas nossas tão vangloriadas reformas, nossas grandes mudanças sociais, e nossas descobertas
de longo alcance, os seres humanos continuam a ser
enviados para o pior dos infernos, aonde são ultrajados, degradados e torturados, para que a sociedade seja
“protegida” desses fantasmas de sua própria criação.
Prisão, uma proteção social? Que mente monstruosa pode ter concebido uma idéia dessa? É como dizer
que a saúde pode ser promovida pela disseminação de
uma epidemia.
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Depois de 18 meses de horror em uma prisão inglesa, Oscar Wilde deu para o mundo sua maior obraprima The ballad of reading goal:
As ações mais perversas, como as ervas venenosas,
Florescem bem no ar da cela;
Só o que é bom no Homem
Se perde e murcha nela.
A pálida Angústia guarda o pesado portão,
E o desespero é sentinela.1
A sociedade continua perpetuando este ar envenenado, não percebendo que disso só podem sair os mais
venenosos resultados. Estamos gastando no presente
$ 3,500,000 por dia, $ 1,000,095,000 ao ano, para manter as instituições prisionais, e isso em um país democrático — um total quase tão grande quanto a soma
da produção de trigo, que vale $ 750,000,000, e a produção de carvão avaliada em $ 350,000,000. O professor
Bushnell, de Washington D.C, estima o custo das prisões em $ 6,000,000,000 anuais, e o Dr. G. Frank Lydson, um eminente escritor norte-americano sobre crime, estima, como um valor razoável, $ 5,000,000,000
anuais. É uma despesa incalculável para manter um
vasto exército de seres humanos enjaulados como animais selvagens!2
No entanto, os crimes aumentam. Assim, sabemos
que na América há 4,5 vezes mais crimes para cada
milhão de habitantes hoje, do que há 20 anos.
O aspecto mais horrível é que nosso crime nacional
é o assassinato, não roubos, desfalques, ou estupros, como
no Sul. Londres é cinco vezes maior que Chicago e, no
entanto, nesta cidade há 118 assassinatos anuais, enquanto em Londres há apenas 20. Tampouco é Chicago
60
verve
Prisões: falência e crime social
a cidade líder em crimes; ela é apenas a 7ª da lista liderada por quatro cidades do Sul, São Francisco e Los Angeles. Diante de uma situação tão terrível, parece ridícula tagarelice dizer que a proteção da sociedade deriva
das prisões.
A inteligência média é vagarosa em apreender a verdade, mas quando a instituição mais completamente
organizada, centralizada, mantida com uma despesa
nacional excessiva mostrou-se um completo fracasso
social, o obtuso deve começar a questionar o seu direito
a existir. Já foi o tempo da satisfação com nossa estrutura social simplesmente porque ela é “ordenada por
direito divino” ou pela majestade da lei. As amplas investigações sobre prisões, agitação e educação nos últimos anos são provas conclusivas que os homens estão
aprendendo a ir fundo nos alicerces da sociedade, às
causas da terrível discrepância entre a vida individual
e social.
Por que, então, são as prisões um fracasso e um crime social? Para responder essa questão vital cabe-nos
procurar a natureza e causa dos crimes, os métodos
empregados para combatê-los e os efeitos que esses
métodos produzem em livrar a sociedade da desgraça e
horror dos crimes.
Primeiro, quanto à natureza do crime. Havelock Ellis3
divide o crime em quarto tipos: o político, o passional, o
insano e o ocasional. Diz que o criminoso político é a
vítima de uma tentativa de um governo mais ou menos
despótico por preservar sua própria estabilidade. Ele não
é necessariamente culpado de uma atitude anti-social;
simplesmente tenta reverter uma certa ordem política
que pode ser ela mesma anti-social. Essa verdade é reconhecida em todo mundo, exceto na América onde ainda prevalece uma tola noção de que na democracia não
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há lugar para criminosos políticos. No entanto, John
Brown foi um criminoso político, assim como os anarquistas de Chicago, assim como todo grevista. Conseqüentemente, diz Havelock Ellis, o criminoso político de
nosso tempo ou lugar pode ser o herói, o mártir, o santo
de outra época. Lombroso denomina o criminoso político
como o verdadeiro precursor do movimento progressivo
da humanidade.
“O criminoso passional é comumente um criminoso
bem nascido e de vida honesta, que sob um grande stress,
um incidente, tomou a justiça nas suas mãos”4. Mr. Hugh
C. Weir em The menace of the police, cita o caso de Jim
Flaherty, um criminoso passional que ao invés de ser
salvo pela sociedade, tornou-se um bêbado e um reincidente, tendo como resultado uma família arruinada e
jogada na miséria. Um tipo mais patético é Archie a
vítima da novela de Brand Whitlock, The turn of the balance, a maior exposição americana da maquinação de
um crime. Archie, mais que Flaherty, foi levado ao crime e à morte pela cruel falta de humanidade do seu
meio, e pela inescrupulosa perseguição da máquina da
lei. Archie e Flaherty são apenas alguns exemplos entre milhares, demonstrando como os aspectos legais do
crime, e os métodos para tratá-los, ajudam a criar a doença que está minando a nossa vida social.
“O criminoso insano, na verdade, não pode ser considerado criminoso mais que uma criança pois está sob
condição mental semelhante à de uma criança ou de
um animal”.5 A lei já reconhece isso, mas apenas em
casos raros de natureza muito flagrante, ou quando a
riqueza do acusado permite o luxo da insanidade criminal. Ficou na moda ser vítima de paranóia, mas em geral, a “soberania da justiça” continua a punir os crimes
de insanidade com toda a severidade. Então, o senhor
Ellis cita as estatísticas do Dr. Richter mostrando que
62
verve
Prisões: falência e crime social
na Alemanha 106 loucos, de 144 criminosos insanos,
foram condenados a punições severas.
O criminoso ocasional “representa de longe a maior
parte de nossa população carcerária, portanto, a maior
ameaça ao bem-estar social”. Qual é a causa que compele um vasto contingente da família humana a escolher o crime, de preferir a terrível vida encarcerada à
vida livre? Esta causa, certamente, deve ser inexorável, pois deixa suas vitimas sem saída, pois até o mais
depravado ser humano ama a liberdade.
Essa incrível força está condicionada por nossa cruel
disposição social e econômica. Não afirmo que se deva
negar os fatores biológicos, fisiológicos ou psicológicos
na realização do crime; mas dificilmente se encontra
um eminente criminológo que não concordará que as
influências sociais e econômicas são as mais implacáveis, as sementes mais venenosas do crime. Mesmo
admitindo que existam tendências criminais inatas, não
é menos verdade que estas tendências encontram campo fértil em nosso ambiente social.
Há uma relação próxima, diz Havelock Ellis, entre
crimes contra o indivíduo e o preço do álcool, entre crimes contra a propriedade e o preço do trigo. Ele cita Quetelet e Lacassagne, o primeiro vendo a sociedade como
fomentadora dos crimes e os criminosos como instrumentos de sua execução. O último acha que “o ambiente social é o meio de cultivo da criminalidade; que o
criminoso é o micróbio, um elemento que apenas se
torna importante quando encontra o meio, que provoca
sua fermentação; toda sociedade tem os criminosos que
merece”.6
O período industrial mais “próspero” torna impossível que o trabalhador receba o suficiente para a manutenção da saúde e do vigor. E como a prosperidade é, no
melhor dos casos, uma condição imaginária, milhares
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de pessoas são constantemente adicionadas à multidão
dos desempregados. De leste a oeste, do sul ao norte,
este vasto exército caminha em busca de trabalho ou
comida, e tudo que encontra são reformatórios ou favelas. Aqueles que ainda têm uma centelha de auto-respeito, preferem o desafio aberto, preferem o crime à posição esquálida e degradada da pobreza.
Edward Carpenter estima que cinco sextos dos crimes sujeitos à sanção penal consistem em alguma violação ao direito de propriedade; mas este é um número
muito baixo. Uma investigação completa provaria que
nove em dez crimes poderiam ser ligados, direta ou indiretamente, às nossas injustiças sociais e econômicas, ao nosso sistema de exploração e usurpação sem
compaixão. Não há criminoso tão estúpido, que não reconheça este terrível fato, apesar dele não ser capaz de
dar-se conta disto.
Uma coleção de filosofia criminal, que foi compilada
por Havelock Ellis, Lombroso, e outros homens eminentes, mostra que o criminoso sente de maneira nítida de
que é a sociedade que o leva ao crime. Um ladrão milanês, disse a Lombroso: “Eu não roubo, eu simplesmente
tomo dos ricos seus supérfluos; por outro lado, os advogados e comerciantes não roubam?”. Um assassino escreveu: “Sabendo que três quartos das virtudes sociais
são vícios covardes, eu pensei que um assalto aberto a
um homem rico devesse ser menos ignóbil do que a combinação cautelosa da fraude”. Outro escreveu: “Eu estou preso por roubar meia dúzia de ovos. Ministros que
roubam milhões são honrados. Pobre Itália!”. Um condenado educado disse a Mr. Davitt: “As leis da sociedade
são forjadas com a finalidade de garantir a riqueza do
mundo para o poder e a ponderação, despojando uma larga porção da humanidade de seus direitos e oportunidades. Por que eles deveriam me punir por estar tomando
64
verve
Prisões: falência e crime social
de uma forma similar daqueles que tomaram mais do
que tinham direito?”. O mesmo homem adicionou “A
religião rouba as almas de sua independência; patriotismo é uma adoração estúpida do mundo pelo qual o
bem-estar e a paz dos habitantes foi sacrificada por aqueles que lucram com ele, enquanto as leis da pátria, reprimindo desejos naturais, estão travando guerra ao
espírito manifesto da lei de nossos seres. Comparado a
isso”, ele concluiu, “roubar é uma meta honrável”7.
Há certamente uma verdade maior nesta filosofia do
que em todos os livros sobre lei e moral da sociedade.
O fator econômico, político, moral e físico são os micróbios do crime, então, como pode a sociedade enfrentar esta situação?
Os métodos para lidar com o crime têm sem dúvida
passado por muitas mudanças, mas principalmente no
sentido teórico. Na prática, a sociedade tem mantido o
objetivo primitivo ao lidar com o criminoso, que é a vingança. Ela também adotou a idéia teológica, em outras
palavras, punição; e o método legal e “civilizado” consiste em retrocesso ou terror, e reforma. Devemos observar, atualmente, que os quatros tipos falharam totalmente, e que nós não estamos hoje mais perto de uma
solução do que na idade das trevas.
O impulso natural do homem primitivo de revidar um
golpe, de vingar-se de uma ofensa, é anacrônico. Ao invés
disso, o homem civilizado, despido de coragem e audácia,
tem delegado a um organizado maquinário a responsabilidade de vingar-se por ele de suas ofensas, baseado na tola
crença que o Estado se justifica ao fazer aquilo para o qual
ele não tem mais a virilidade ou consistência. A “majestade da lei” é algo racional; ela não desce aos instintos
primitivos. Sua missão é de natureza “superior”. Verdade,
ela ainda é impregnada pela confusão teológica, que pro-
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clama a punição como forma de purificação, ou uma indireta reparação do pecado. Mas, legal e socialmente o estatuto exercita a punição, não apenas como aplicação da dor
sobre o criminoso, mas também para provocar um efeito
aterrorizante sobre outros.
Entretanto, qual é a base real para a punição? A noção do livre arbítrio, a idéia que o homem é sempre um
agente livre para o bem ou para o mal; e se ele escolhe
o último, deve pagar o preço. Ainda que esta teoria tenha explodido há muito, e tenha sido jogada em um entulho, ela continua a ser aplicada diariamente por toda
a maquinaria do governo, tornando-a o mais cruel e brutal torturador da vida. A única razão para isto continuar
é a noção, ainda mais cruel, que quanto maior a propagação do terror da punição, certamente maior será seu
efeito preventivo.
A sociedade usa os medos mais drásticos ao tratar
com o criminoso social. Por que eles não desistem?
Embora nos Estados Unidos um homem seja considerado inocente até que provem sua culpa, os instrumentos
da lei, a polícia, perpetuam o império do terror, aprisionando indiscriminadamente, espancando, esbordoando,
aterrorizando pessoas, usando métodos bárbaros de “terceiro grau”, sujeitando vítimas desafortunadas ao vicioso ar de suas delegacias, e à mais asquerosa, ainda,
linguagem de seus guardiães. Os crimes continuam se
multiplicando rapidamente, e a sociedade paga o preço.
De outro lado, não é segredo que quando o desafortunado cidadão é contemplado com a “misericórdia” da lei, e
para o bem da segurança ele é escondido no pior dos
infernos, inicia-se seu real calvário. Roubado de seus
direitos enquanto ser humano, degradado a um mero
autômato sem desejo ou sensações, totalmente dependente da misericórdia de seus guardiães, passa diariamente por um processo de desumanização, que a ela
66
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Prisões: falência e crime social
comparada, a vingança selvagem é brincadeira de criança.
Não há uma única instituição penal ou reformatório
nos Estados Unidos em que os homens não sejam torturados para “tornarem-se bons”, por intermédio do cassetete, da clava, da camisa de força, da água para o afogamento, do humming bird (uma corrente elétrica que
percorre o corpo humano), a solitária, e a dieta de fome.
Nestas instituições sua vontade é quebrada, sua alma
degradada, seu espírito subjugado pela monotonia mortal e a rotina da vida presidiária. Em Ohio, Illinois, Pensilvânia, Missouri, e no sul, estes horrores se tornaram
tão flagrantes que atingiram o mundo exterior, enquanto
na maioria das outras prisões os mesmos métodos cristãos ainda prevalecem. Mas as paredes das prisões raramente permitem que os gritos aterrorizantes das vítimas escapem — as paredes das prisões são espessas,
elas abafam o som.
A sociedade deveria, com grande imunidade, abolir
as prisões de uma vez, do que esperar por proteção dessas câmaras de horrores do século vinte.
Ano após ano os portões das prisões infernais devolvem ao mundo uma parte náufraga da humanidade,
esquálida, deformada, sem vontade própria, com a marca de Caim em suas testas, suas esperanças esmagadas, todas as suas inclinações naturais frustradas.
Sem nada, mas com a fome e a desumanidade para
recebê-los, estas vítimas logo mergulham novamente
no crime como a única possibilidade de existência. Não
é, de forma alguma, incomum encontrar, homens e
mulheres que passam metade de suas vidas — ou melhor, quase toda sua existência — na prisão. Eu conheço, uma mulher na ilha Blackwell, que entrou e saiu 38
vezes, e soube por meio de um amigo de um jovem ra-
67
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paz de 17 anos, de quem ele foi enfermeiro e cuidou, na
penitenciária de Pittsburg, que nunca conheceu o significado de liberdade. Do reformatório à penitenciária
foi o caminho da vida deste rapaz, até que, alquebrado,
morreu vítima da vingança social. Estas experiências
pessoais estão substantivadas por extensos dados que
trazem evidências esmagadoras do absoluto fracasso das
prisões como um meio de dissuasão ou reforma.
Pessoas bem intencionadas estão trabalhando por
uma nova orientação na questão da prisão — reclamação, devolver mais uma vez ao prisioneiro a possibilidade de se tornar um ser humano. Apesar de louvável,
eu temo ser impossível esperar por bons resultados,
despejando um bom vinho numa garrafa mofada. Nada
menos que uma reconstrução completa da sociedade
livrará a humanidade do câncer do crime. Ainda, se o
fio cego de nossa consciência social fosse afiado, as
instituições penais poderiam ganhar uma nova camada de verniz. No entanto, o primeiro passo a ser dado é
a renovação da consciência social, que está em uma
condição particularmente dilapidada. Ela necessita, desesperadamente, ser despertada para o fato que o crime é uma questão de grau, que todos nós temos o embrião do crime dentro de nós, mais ou menos, de acordo com nosso ambiente mental, físico, e social; e que o
indivíduo criminoso é somente um reflexo das tendências da massa.
Com a consciência social despertada, o individuo comum pode aprender a recusar a “honra” de ser o cão de
caça da lei. Ele pode parar de perseguir, desprezar, desconfiar do criminoso social e lhe dar uma chance de
viver e respirar entre seus companheiros. As instituições são, obviamente, mais difíceis de serem atingidas. Elas são frias, impenetráveis e cruéis; no entanto, com a consciência social despertada pode ser possí-
68
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Prisões: falência e crime social
vel libertar as vítimas das prisões, da brutalidade dos
oficiais, guardas e carcereiros. A opinião pública é uma
arma poderosa; até os guardiões da presa humana a
temem. Eles podem ser educados com um pouco de humanidade, especialmente se perceberem que seus trabalhos dependem disso.
Mas o passo mais importante é dar ao prisioneiro o direito de trabalhar durante o aprisionamento, com alguma
recompensa monetária que pode permitir que ele poupe
algo para o dia de sua libertação, o começo de uma nova
vida.
É quase ridículo esperar muito da sociedade atual quando consideramos que um operário, escravo ele mesmo do
salário, opõe-se ao trabalho do condenado.
Eu nem irei entrar no mérito da crueldade dessa objeção, mas vou simplesmente considerar sua impraticabilidade. Para começar, a oposição até agora levantada pelo
trabalho organizado tem sido direcionada contra moinhos
de vento. Os prisioneiros sempre trabalharam; apenas o
Estado tem sido seu explorador, da mesma maneira que o
empregador individual é o usurpador do trabalho organizado. Os Estados ou têm usado os condenados para trabalhar
para o governo, ou têm subcontratado o trabalho do condenado para particulares.Vinte e nove dos Estados norteamericanos seguem o último plano. O governo federal e
dezessete Estados o têm descartado, assim como as nações líderes da Europa, já que levam a um abominável
trabalho pesado e abuso dos prisioneiros, e a um suborno
sem fim.
“A ilha Rhode, Estado dominado por Aldrich, talvez expresse o pior exemplo. Em um contrato de 5 anos, elaborado em 7 de julho de 1906, e renovável por mais cinco anos,
por opção dos próprios contratantes, o trabalho dos internos da Penitenciária da Ilha Rhode e da cadeia do condado
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de Providence são vendidos para a Reliance-Sterling Mfg.
Co., por uma taxa um pouco menor que 25 centavos por
dia e por homem. Esta Companhia é um verdadeiro monopólio gigante do trabalho na prisão, e para isso eles também alugam o trabalho de condenados das penitenciárias
de Connecticut, Michigan, Indiana, Nebraska, e Dakota
do Sul, e do reformatório de Nova Jersey, Indiana, Illinois, e Wisconsin, totalizando 11 estabelecimentos.
A enormidade do suborno no contrato de Rhode Island pode ser estimado pelo fato desta mesma Companhia pagar 62 dólares e meio por dia em Nebrasca pelo
trabalho dos condenados, e que Tennessee, por exemplo, ganha $ 1.10 por dia pelo trabalho de um condenado
da Gray-Dudley Hardware Co.; Missouri ganha 70 centavos por dia da Star Overall Mfg. Co; West Virginia 65
centavos por dia da Kraft Mfg. Co, e Maryland 55 centavos por dia da Oppenheim, a fábrica de camisas Oberndorf & Co. A grande diferença nos preços aponta para
um enorme suborno. Por exemplo, Reliance-Sterling Mfg.
Co, manufatura camisas sendo que o custo do trabalho
livre não é menor que $ 1.20 por dúzia, enquanto ela
paga a Ilha Rhode trinta centavos a dúzia. Além disto, o
Estado não cobra deste monopólio aluguel pelo uso das
suas enormes fábricas. Não cobra nada pela eletricidade, calor, luz, e até mesmo drenagem e não exige taxas.
Que suborno!”.8
Estima-se que o equivalente a mais de 12 milhões
de dólares de camisas e macacões de trabalhadores
são produzidos, anualmente, neste país, por prisioneiros. É uma indústria feminina, e a primeira reflexão
que isto levanta é que uma imensa quantidade de trabalho feminino livre está desocupada. A segunda consideração é que prisioneiros masculinos, que deveriam estar aprendendo um ofício, o que daria a eles alguma chance de se sustentarem após sua libertação,
70
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Prisões: falência e crime social
são mantidos neste trabalho com o qual possivelmente não ganharam um dólar. Isto é ainda mais sério
quando consideramos que muitos desses trabalhos são
feitos em reformatórios, que alardeiam estar treinando
seus internos para que se tornem cidadãos úteis.
A terceira, e mais importante consideração é que o
enorme lucro conseguido por meio dos trabalhadores apenados é um constante incentivo para os contratantes
exigirem de suas vítimas infelizes muito além de suas
forças, e para os punir cruelmente quando seu trabalho
não acompanha o aumento excessivo da demanda.
Mais algumas palavras a respeito da condenação dos
apenados e sobre as tarefas com as quais eles não devem ter esperança de poder ganhar a vida. Indiana, por
exemplo, é um estado que tem feito um grande alarde
por estar à frente no quesito aperfeiçoamentos penais
modernos. Porém, de acordo com o relatório produzido
em 1908 pela instituição de treinamento de seu “reformatório”, 135 estavam comprometidos na produção de
correntes, 207 na de camisas, e 255 na fundição — um
total de 597, nas três ocupações. Mas neste autodenominado reformatório 59 profissões, eram representadas
pelos internos, 39 das quais ligadas a interesses do país.
Indiana, como outros estados, professa estar treinando
os prisioneiros em seus reformatórios em ocupações com
as quais eles poderão obter seu ganha pão após serem
soltos. Na verdade, os prepara para trabalhar fazendo
correntes, camisas e vassouras, estas últimas para o
lucro da Louisville Fancy Grocery Co. A produção de vassouras é uma prática amplamente monopolizada pelos
cegos, a de camisa é feita por mulheres, e há apenas
uma fábrica “livre” de correntes no estado, e nela um
prisioneiro liberto não pode ter esperança de conseguir
empregar-se. Toda a situação é uma farsa cruel.
71
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2005
Se, então, os estados podem ser instrumentos em
arrancar enormes lucros de suas vítimas indefesas não
está mais do que na hora do trabalho organizado parar
com seu uivo inútil, e começar a requisitar uma remuneração decente para o condenado, tal como reivindicam para si mesmos? Desta maneira, os trabalhadores
erradicariam o germe que faz o prisioneiro um inimigo
dos interesses do trabalho organizado. Já disse em outra ocasião que milhares de prisioneiros, sem competência ou profissão, sem meios de subsistência, são
anualmente lançados de volta ao meio social. Estes homens e mulheres devem viver, pois até ex-condenados
tem necessidades. A vida na prisão os tornou anti-sociais e as portas firmemente fechadas que eles encontraram na sua libertação não diminuíram a sua amargura. O resultado inevitável é que eles formam um núcleo
favorável do qual fura-greves, detetives e policiais são
extraídos e dispostos a cumprir a ordem do mestre. Portanto, o trabalho organizado, pela sua tola oposição ao
trabalho na prisão destrói a si mesmo. Ajuda a criar a
fumaça venenosa que asfixia qualquer tentativa de
melhora econômica. Se o trabalhador deseja evitar esses efeitos ele deveria insistir no direito do condenado
ao trabalho, devia vê-lo como um irmão, trazê-lo para a
sua organização, e com sua ajuda enfrentar o sistema que
os agrilhoa.
Por último, mas não menos importante, é a crescente tomada de consciência da barbárie e da inadequação
da sentença definitiva. Aqueles que acreditam, e seriamente se esforçam, numa mudança chegam, rapidamente, à conclusão que deve ser dado ao homem a oportunidade de fazer o bem. E como ele fará isso com dez,
quinze ou vinte anos de prisão pela frente? A esperança
de liberdade e de oportunidade é o único incentivo para
a vida, especialmente para a vida de um presidiário. A
sociedade tem pecado há muito contra eles e isto é o
72
verve
Prisões: falência e crime social
mínimo que ela deve deixar-lhes. Eu não estou muito
esperançosa que isto ocorrerá, ou que qualquer mudança real nesta direção possa acontecer até que as condições que originam a ambos, o prisioneiro e o carcereiro, sejam abolidas para sempre.
Da sua boca, uma rubra, rubra rosa!
Do seu coração, uma branca!
Para quem pode dizer por qual estranha via
Cristo traz sua vontade à luz do dia,
Do cajado estéril que o peregrino portava
Floriram diante do Papa.9
Tradução do inglês por Anamaria Salles.
Tradução das poesias por Thiago Rodrigues.
Notas
1
The Ballad of Reading Goal:
The vilest deeds, like poison weeds,
Bloom well in prison air;
It is only what is good in Man.
That wastes and withers there.
Pale Anguish keeps the heavy gate,
And the Warder is Despair
2
W. Owen. Crime and criminals.
Havelock Ellis, foi um membro dos fabianistas ingleses, psicólogo, defensor
da eugenia, e escreveu em 1890, The criminal. Em 1892, publicou The Nationalisation of Health, entre outros. Foi um estudioso do homossexualismo, escrevendo o controvertido Studies in the Psychology of Sex, entre 1897-1928, em 7
volumes. (N.E.).
3
4
Havelock Ellis. The criminal.
5
Ibidem
73
7
2005
6
Ibidem
7
Ibidem
8
Extraído das publicações do National Committee on Prison Labor.
9
Out of his mouth a red, red rose!
Out of his heart a white!
For who can say by that strange way;
Christ brings his will to light;
Since the barren staff the pilgrim bore;
Bloomed in the great Pope’s sight.
RESUMO
Contundente reflexão da anarquista Emma Goldman sob as condições carcerárias e a necessidade da abolição das prisões.
Palavras-Chave: Abolição da prisão, anarquismo, trabalho na prisão.
ABSTRACT
Strong reflexion by the anarchist Emma Goldman about the prison
conditions and the urgency in abolishing them.
Keyword: abolishment of prison, anarchism, work in prison.
Indicado para publicação em 10 de março de 2003.
74
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
abolicionismo penal, medidas
de redução de danos e uma nota trágica1
edson passetti*
1.
As práticas anti-proibicionistas às drogas levam a
uma política de descriminalização, e como tais, devem
ser saudadas pelo abolicionista penal. Medida de redução de danos é, portanto, mais do que uma política sanitária.
Reconhecer que não há universalidade e uma generalidade da lei aplicada, uniformemente, como resultado de uma suposta igualdade jurídico-formal é mais do
que um avanço significativo anti-repressão. Sexo não é
o mesmo que sexualidade; e estados alterados de consciência podem ser atingidos com ou sem o uso das substâncias proibidas. Reduzir danos é também uma políti-
* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol.
verve, 7: 75-85, 2005
75
7
2005
ca abolicionista que lida com situações-problema, compondo parcerias com interessados.
2.
Droga designa o proibido em lei por meio da atuação
de uma moral conservadora criada e revivida pelas forças sociais. Droga é perigo e risco; nela habitam as surpresas da vida. Mas não só. Nas drogas estão, também,
a rotina e o mal digerido cotidiano. Assim sendo, droga
caracteriza um conjunto de medicamentos receitados
por médicos, combinados ou não com terapêuticas (psicológicas, de controle de peso, de animação da musculatura, segundo uma estética do corpo saudável, o atual
hedonismo de academia), legitimado pelo Estado, respaldado na lei. Droga é o permitido e o impedido, é marasmo e surpresa, é legal e ilegal.
Atletas são cobaias de novas drogas para o corpo. Desconhecidas dos agentes de punição e sem regulamentações legalizadas quando usadas, geram quebras de
recordes, agilidade, explosão muscular, elasticidades,
fôlego, um corpão cobiçado, um atestado de saúde. Um
belo dia elas passam a ser consideradas proibidas. Acabam os medalhistas, os recordistas, o semblante do saudável em nome da verdadeira saúde. Mais uma rodavida, nada cessa: o mesmo corpão começa a ser refeito,
moto continuum. Quem produz cria e recria; quem usa
paga o pato; e são os mesmos produtores e consumidores, os alucinados cidadãos, que desejam proibições,
regulamentações, leis, punições, internações, prisões,
confinamentos.
Além das drogas proibidas, super conhecidas, que vão
da maconha ao ecstasy, há aquelas destinadas à terapêutica. Nestes casos, é preciso o uso medicalizado de
drogas administrado segundo receitas ou acompanhamentos de psi (quiatra, cólogo, canalista, co-pedagogo,
76
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
etc. e tal), dentro ou fora de clínicas, para acalmar, relaxar a tensão e gerar concentração a trabalhadores produtivos. Não só. É preciso saber docilizar rebeldes, acalmar adolescentes, administrar a saúde mental. Mais
ainda. É urgente, na atualidade, estimular a pessoa a
participar de programas, na economia informático-computacional, na política, no dia-a-dia, livre de apatias,
depressões, síndromes do medo. Enfim, em poucas palavras, o que é droga depende do momento histórico para
ser definida; não é apanhada por um conceito universal, mas designa quem deve ser curado, cuidado da saúde, docilizado ou potencializado como ser produtivo. Falar droga é o mesmo que identificar um crime. E é tão
impossível uma ontologia da droga como do crime.
Um usuário ontem, pode ser, neste instante, um paciente numa clínica que usa maconha para o cliente abandonar o crack. O que era tráfico em toneladas de maconha ou cocaína, no passado recente, hoje vai se transformando, com leves grandes quantidades de drogas
sintéticas carregadas em pequenas bolsas, carteiras e
porta-níqueis, por jovens de classes emergentes. Deixa
de ser trabalho de miserável e recebe novo status.
A diversificação do comércio de drogas estabeleceu
uma distinção entre os trabalhadores: o serviçal do narcotráfico, confinado e sob ameaça de prisão e morte pela
polícia ou choque de gangues, passou a ser um potencial jovem empresário das drogas sintéticas que faz de
uma ou duas viagens o trampolim para seu próprio negócio legal. O dinheiro ainda continua sendo lavado e
não é em nenhuma lavanderia.
Verso e avesso vão realizando o rodízio. O que era
política anti-narcoterrorismo vai virando combate ao
narcotráfico; sobre o que demarcou nos anos 1980 a dicotomia país consumidor/país devedor, hoje se situa
uma diplomacia que envolve empréstimos vultuosos em
77
7
2005
dólares, influência indireta no regime das fronteiras,
participação equilibrada no acesso aos satélites de segurança e vigilância, intervenção em programas antidrogas ministrados por policiais a crianças escolarizadas nas periferias das metrópoles.
A lei pune mais; as boas pessoas que defendem a
sociedade assim o desejam. Enfim, novamente, e chovendo no molhado, sempre haverá drogas e sua comercialização proibida enquanto perdurar a moral do bom
senhor que zela pelo rebanho. Cada época gera suas drogas (as naturais, as transformadas pela farmacologia,
as criadas em laboratórios), e não raras vezes, umas
são somadas às anteriores, da mesma maneira que as
políticas repressivas não param de proliferar. Na mesma proporção, repete-se a mesma constatação secular:
quanto mais baixa a qualidade das drogas comercializadas, maiores serão os riscos para a saúde do usuário.
A era do álcool odiada pelos puritanistas norte-americanos, do final do XIX e início do século XX, rende hoje
em dia a extraordinária máquina de fazer dinheiro chamada cerveja, bebida estimulada a qualquer jovem tanto pela propaganda (regulada pelo politicamente correto,
sugerindo beber moderadamente ou com responsabilidade). O sexo entre homens, de início, alvo escolhido
como disseminador da nova peste, o então chamado câncer gay, transforma-se em mais de uma década numa
recomendada relação normalizada pelo casamento com
camisinha, e expõe, durante o percurso de sua pacificação, a ferida do próprio casamento: é entre heterossexuais que na atualidade a aids prolifera e mata mais. A
religião dissemina pela África adentro o imperativo reacionário do sexo confinado ao casamento e para a reprodução. É uma política moralizadora mais trágica e
mortal do que na Europa e nas Américas. Está na normalização o itinerário moderno da peste. Opor certo a
78
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
errado, fundir o proibido no legítimo, consagrar o livre
pela regulamentação, difundir o sexo restrito ao casamento com ou sem eloqüência das culpas religiosas, não
livra ninguém de alcoolismo, de aids, de peste. Uma
amiga minha, Salete Oliveira, também abolicionista
penal, sempre lembra Artaud dizendo que é preferível
morrer de peste do que de mediocridade.
3.
Os sarados, os curados, os potencializados, os docilizados, os aditivados, os saudáveis e os viciados, os da
ordem e os da desordem, os puritanos e os desajustados,
carolas e putas, governantes e governados, juízes, promotores e advogados, pessoa qualquer, aqui, ali ou acolá já cometeu alguma infração. Quem a negar não é uma
pessoa sincera. Nem um juiz, muito menos um sacerdote das almas está isento da infração. Não surpreende
que é pela moralidade que eles se isentam de culpas e
as esquadrinham como crimes, punições, policiamento
extenso, tolerância zero.
Transcendência religiosa e racional não se apartam,
caminham juntas na consagração da moral. A política
de tolerância zero (que por definição é anti-religiosa e
antidemocrática, supõe que religiosos e democratas
devam ter compaixão e conviver com vizinhos) apareceu entre a direita estadunidense e migrou para as esquerdas.
A luta por liberdades cedeu lugar à garantia de segurança. Vivemos uma era de globalização que se pauta
na esperada conduta conformista enaltecedora da vida
democrática, a vencedora do socialismo, a mais justa, a
verdadeira maneira de saborear a mobilidade social, e
ao mesmo tempo, zelar pelos necessitados. Em nome da
democracia como panacéia modula-se o planeta.
79
7
2005
Passemos a outros brevíssimos casos. Não se quer
mais acabar com favelas, mas melhorar sua imagem.
Recuperam-se os argumentos racistas quando a própria
população das periferias identificam os sangue ruins
entre os seus. Proliferam ong’s patrocinadas por empresas difundindo a necessidade de integração pela imobilidade, a permanência na periferia e a sua glorificação,
a construção de equipamentos sociais mínimos, configurando uma política de confinamento, filosoficamente
uma política de campo de concentração. É exigido o tribunal local, mais ágil; legislação mais punitiva; polícia
equipada e cidadã: prender mas não matar; escola em
tempo integral para evitar que as crianças sejam contaminadas pelos desajustados; é necessário vigiar com
a ajuda da eletrônica, criar mais prisões de segurança
máxima, edifícios monitorados: controle total.
Recomenda-se não resistir e se integrar na política
institucional; não fazer passeatas senão para comemorar direitos multiculturais e/ou passeatas críticas amparadas e asseguradas pela polícia. Tudo na mais perfeita ordem. Chegamos a um ponto em que as relações
entre burocracia estatal, empresários e sindicatos pôde
ser refeita com novas legislações trabalhistas voltadas
para a produtividade e a disseminação da filantropia.
Foi-se o tempo neoliberal para dar entrada ao liberalismo social: o espaço de superfície foi redesenhado, explicitando novas fronteiras e abolição do nomadismo; ao
mesmo tempo, a conquista sideral ampliou o nomadismo para espaços sem fronteiras, novas ocupações planetárias. Muitos ficaram, alguns irão.
A liberdade de mercado continua sendo a liberdade
capitalista que não sobrevive sem intervenção estatal
em seu benefício, atuando a favor de consórcios e monopólios, e também, administrando miseráveis e o trabalho informal: cuidando dos saudáveis e contabilizando
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Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
os improdutivos, desajustados, drogados, viciados, prisioneiros. Esse enorme contingente foi agregado à grande massa sob a forma de desmembramentos estatísticos. Os formuladores e alimentadores dos esquadrinhamentos e percentuais, viajam por internet e aviões,
segundo os resultados de aplicação de programas de contenção da insatisfação, dinamizando o turismo dos especialistas burocráticos. Para estes qualquer coisa pode
ser traduzida em papers, resultados geradores de mais
verbas, outras intervenções possíveis, administração da
desgraça banhada em utopias, compaixões, acusações à
globalização, enaltecimento à cidadania, à “ética”, compondo um discurso generalizante e oco o suficiente para
gerar novos investimentos. Todos devem convencer os
miseráveis e a si mesmos que as soluções são jurídicopolíticas, portanto, institucionais, e que em nome das
soluções, antes de resistir, é preciso integrar. A sociedade de controle requer a participação de cada um, como
eleitor, liderança local, monitor, criador de ong, um filantropo, uma vítima e um Estado totalizador.
Reduzir danos sob estas relações é uma ponta de um
iceberg abolicionista; é uma política que atua com a potencialidade de cortar o casco de um Titanic repressor.
As políticas de redução de danos têm tudo para potencializar a luta pela liberação das drogas. Seus usuários e
ativistas sabem mais do que qualquer especialista de
gabinete com um título de doutor a tiracolos obtido com
base em estudos estatísticos milimétricos. Eles lidam
em cima das fronteiras e inventam espaços de relacionamentos e liberdades.
O abolicionista trata cada caso como algo especial,
como situação-problema e não crime ou infração. Procura compreender a situação dos envolvidos, algozes e
vítimas, tomando partido de ambos. Anti-universalista,
reconhece a verdade em cada parte e busca a solução
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pelo lado de fora, o da conciliação capaz de propiciar uma
resposta-percurso que evita a prisão e, ao mesmo tempo, incentiva a indenização. Uma resposta-percurso que
não se transforma em modelo, que é avessa à filantropia, que não seqüestra a palavra ou as vontades das partes, não as submetem a autoridades superiores de juízes, promotores, advogados, técnicos de humanidades,
lideranças, etc. e tal. Promove, isso sim, uma conversação entre envolvidos e pessoas diretamente relacionadas ao caso, autoridades despojadas de seu poder universalizador de julgar.
O dinheiro do Estado é meu, é seu, é de cada um. Se o
gasto com prisões é imenso e ineficaz, porque não atuar
de outra maneira? Não como alternativa punitiva à prisão. Para este caso já existe o regime das penas alternativas. Mas pela disseminação de práticas de redução de
danos, respostas–percurso capazes de afirmar outras possibilidades de se conviver com drogas, sejam elas legais
ou ilegais. A busca por drogas não cessará, pois independe da motivação que leva um jovem a consumir cocaína,
maconha, ecstasy ou crack, uma senhora de prendas do
lar a ingerir antidepressivos, um trabalhador a buscar
estimulantes ilegais para produzir mais, muitos programas assistenciais a docilizar clinicamente jovens, certos atletas a buscar ouro olímpico ou similares. Estimulado ou não pelos laboratórios farmacêuticos associados aos
ditames de controle do trabalho, pelas idealizações do
corpo saudável, pelas pacificações das almas sofridas, pelo
prazer incomensurável, cada usuário encontrará sua
maneira de chegar às drogas, aos melhores fornecedores. Reduzir danos é uma política que reconhece essa
milenar história do uso das drogas e atua segundo o interesse do usuário. É anti-repressiva, não idealiza a saúde, lida com o acontecimento no instante.
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Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
Sabemos que o sistema penal é incapaz de apanhar
todas os infratores. Ele opera por seletividade sócio-econômica, sim, e além disso, diversos encaminhamentos
feitos às delegacias jamais chegam ao sistema, gerando
a cifra negra. O sistema penal não pode e não quer dar
conta de todas as infrações cometidas ou denunciadas.
Se desse, acabaria com a ilegalidade necessária à existência do capitalismo e do Estado, pois ambos não vivem
sem corrupções. A cultura da punição (extensa ou intensa), jamais consegue dar conta das ondas de infrações.
Quando o capitalismo defrontava-se com o socialismo, o
welfare-state, uma forma democrática de intervenção
estatal conseguia, com políticas sociais, prender menos;
com o neoliberalismo e a difusão da inevitável democracia, com base na idealização da economia livre de mercado que manteve a intervenção governamental, criouse a autoritária política de tolerância zero. Por ela se prende
mais, confina mais, ameaça mais, policia demais e não
se chega a um efeito melhor no Estado Penal que no Estado de Bem-Estar Social. Trata-se apenas de uma nova
política para o rebanho, bêbado, drogado, sarado, em busca da volta do Messias, lambendo os calcanhares de pastores e sacerdotes, as mãos de governantes, o caminho
dos líderes de ong’s.
Experimentar o abolicionismo é antes abolir o castigo
dentro de si, inventar novos costumes libertários, lidar
com o presente sem medo e com riscos. É praticar liberdades; é não tolerar prisões para os jovens.
4.
Trarei uma pequena lembrança para encerrar. Há 40
anos, em dezembro de 1964, foi inaugurada uma nova
política de segurança no Brasil, chamada política nacional do bem-estar do menor, que criou as Febem’s sempre
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em reformas, o atendimento bio-psico-social para carentes e infratores menores de idade, uma burocracia monumental a ponto de, hoje em dia, o sindicato dos carcereiros da Febem ser mais importante do que um jovem lá
internado. Tudo em nome da segurança nacional e de uma
integração segura para excluídos, potencialmente perigosos, habitantes não escolarizados das periferias, portadores de uma cultura da pobreza. Durante a ditadura militar
se questionou a Febem, seus métodos e se deu legitimidade às rebeliões. A ditadura acabou e uma institucionalização democrática apareceu.
As periferias permanecem miseráveis, crianças e jovens foram escolarizados e na medida em que isso aconteceu ficou evidente que a escola é lugar para aprender a
obedecer (critério uniforme para acionar a evasão); para
integrar no mundo globalizado é preciso a escola eletrônica e essa não é para todos. A Febem, enfim, passou a ser
uma prisão reconhecida.
O tráfico tradicional de drogas permanece recrutando
os seus serviçais nas periferias (para comercializar e
matar). A polícia lá recruta para prender e matar. As organizações filantrópicas ali atuam para docilizar e imobilizar. Não se questiona o racismo de Estado tanto por meio
da identificação naturalizada de quem é mau, quanto pela
difusão de políticas de cotas entre os bons com o intuito de
gerar uma elite no interior da mesma periferia; enfim,
onde há muito direito multiculturalista há, também, bastante racismo e confinamentos. Não há direito, dizia Nietzsche, que não emerja de um ato de violência.
Vivemos uma era em que o campo de concentração se
anuncia como um modelo de administração governamental. No passado as resistências libertárias afirmavam que
cada um era dono do seu próprio corpo, dele podendo dispor
como bem desejasse, inclusive para consumir drogas. Hoje,
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Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...
sob o conservadorismo, apropria-se daquela prática libertária transformando-a em um lema da moralidade individualista: “você pode fazer o que quiser de seu corpo, inclusive consumir drogas, mas saiba que é sua responsabilidade alimentar a continuidade do tráfico”.
Numa época em que se procura anular resistências,
medidas de redução de danos expressam liberações alheias à conduta dos polidos zeladores da moral, dos pastores
religiosos e ongueiros, dos participantes cidadãos. O abolicionista penal está ao lado dos ativistas das medidas de
redução de danos, convidando-os a lutarem, também, pelo
fim das prisões para jovens.
Nota
1
Palestra realizada na I Conferência de Redução de Danos da América Latina
e do Caribe, RELARD-IHRA-REDUC, São Paulo, 11 de fevereiro de 2004.
RESUMO
Uma perspectiva abolicionista que vê a política de redução de danos
como uma resistência estratégica à prática proibicionista e um parceiro tático para potencializar a luta pela liberação das drogas.
Palavras-chave: abolicionismo penal, drogas, política de redução de
danos.
ABSTRACT
The abolitionist perspective sees the harm reduction policies as a
strategic resistance to the prohibitionist practice and as a tactical ally
to enforce the fight for drug liberation.
Keywords: penal abolitionism, drugs, harm reduction policy.
Recebido para publicação em1 de março de 2004.
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a mecanização do cadáver
— a má sorte dos animais
christian ferrer*
Na ocasião do dilúvio universal, foram anunciadas a
Noé duas missões: salvar um pequeno núcleo humano
e todos os animais da terra, e não somente durante a
catástrofe, mas o tempo suficiente para sua posterior
conservação e reprodução. Na arca, emblema da comunidade de todos os seres vivos em momentos difíceis, os
animais são cuidados, pois desconhecem a causa de sua
má sorte. Eles foram extirpados de seu ambiente natural apesar de serem inocentes.
Como um cão
Era um vira-lata e respondia unicamente ao nome
de “Dash”. Fora entregue à ciência com a finalidade de
testar a eficácia da eletricidade aplicada à arte de matar. Descarregaram-se primeiro 300 volts no corpo do
cachorro, fazendo-o estremecer até o uivo, seguiu-se
depois com 400 volts, que também não acabaram com
*Professor na Universidade de Buenos Aires.
verve, 7: 86-99, 2005
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A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
sua vida, e assim a corrente chegou aos 700 volts e,
mesmo que sua língua pendesse como um badalo, ainda continuava vivo. Na quarta tentativa, sucumbiu, em
Nova Iorque, no dia 30 de junho de 1888. A comissão
estatal encarregada de selecionar um método alternativo à forca — o predileto até então — considerou trinta
e quatro propostas diferentes, que contemplavam ser
lançado de um canhão, ser fervido em carne viva e ser
jogado numa horda de animais selvagens. O leque foi
fechado sobre quatro propostas: o vil garrote, a guilhotina, a injeção subcutânea (possibilidade descartada porque “a morfina poderia eliminar no réu o grande medo
da morte”) e a eletrocussão, que terminou por satisfazer os membros da comissão. Dois anos mais tarde,
Francis Kemmler seria sua primeira cobaia humana:
levantara a mão contra sua esposa, fatalmente. Na nova
fórmula judicial que lhe fôra lida estipulava-se o seguinte: “Você foi condenado a sofrer a pena de morte por meio
da eletricidade”. O condenado respondeu ao tribunal:
“Estou disposto a morrer pela eletricidade. Sou culpado
e devo ser castigado. Estou pronto para morrer. Estou
contente porque não serei enforcado. Acredito ser muito melhor morrer pela eletricidade do que por enforcamento. Não me provocará nenhuma dor”. Estava errado,
e muito.
A sentença não foi executada imediatamente, pois
Kemmler recorreu da resolução, que seria depois confirmada. Entre grades foi batizado na fé metodista e inclusive aprendeu a ler, pois tivera ingressado analfabeto à prisão. Sua execução não foi simples. Tampouco a
dos sucessivos cachorros, e também cavalos, com os
quais se acabou de aprontar o carrasco de quatro pés. A
guilhotina, em seu momento, foi tida como considerável melhora em relação aos enforcamentos e fuzilamentos de costume, e a cadeira elétrica agora prometia dar
uma morte tão veloz que inclusive passaria inadvertida
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para o condenado. Este artefato fatal ingressava suavemente na consideração progressista das invenções científicas: precisas, infalíveis, “modernas”; e sem dúvida não foram seres mascarados os que aprontaram a
primeira execução, mas sim engenheiros e eletricistas. Quando foi levado para o último lugar que veria em
vida, Francis Kemmler disse aos curiosos presentes:
“Cavalheiros, lhes desejo boa sorte. Acredito que vou para
um lugar melhor e estou pronto para partir. Só quero
acrescentar que muito se disse sobre a minha pessoa
que não é verdade. Sou bastante ruim, mas é cruel me
tirar deste mundo pior do que eu”. Estando sentado e de
mãos amarradas foi dada a ordem de descarregar os 1000
volts combinados. Segundo relataram as testemunhas,
o corpo de Kemmler enrijeceu repentinamente, os olhos
saíram das órbitas, e a pele empalideceu. Um médico
certificou a morte do réu dezessete segundos depois.
Entretanto, Francis Kemmler não tinha morrido e vários dos que assistiam disto deram aviso. Então foi elevada a corrente a 2000 volts e a saliva começou a fluir
pela boca, e suas veias romperam-se e as mãos se encheram de sangue. No final, o corpo todo ardia em chamas. Aconteceu no dia 6 de agosto de 1890.
Paleontologia e política
Charles Darwin publicou A origem das espécies em
1859, e seu complemento em 1871, com A orígem do
homem. Dois raios cravados sobre um céu sereno. Animal “evoluído”, o homem seria uma pirueta autoprovocada por um macaco. Logo após a morte de Darwin, foi
iniciado na Europa um áspero debate não isento de seqüelas políticas em torno ao “darwinismo social”, que se
sobrepôs à polêmica paralela entre evolucionistas e creacionistas. Por certo, “a sobrevivência do mais apto” não
é um lema que resulte de imediato agradável para des88
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
crever a promoção das espécies. Houve aqueles que privilegiaram a condição “gladiatorial” dessa luta e lhe deram significados políticos e morais à hipótese de Darwin: a natureza, um quadrilátero; as espécies, boxeadores solitários. O príncipe Piotr Kropotkin, anarquista
e cientista, confronta-os em 1902. Em O apoio mútuo,
obra que recebeu certa consideração pública, Kropotkin
identificou dois tipos distintos de luta. A do organismo
contra o organismo pelos recursos limitados, uma postal
de coliseu romano que podia satisfazer a impressionável sensibilidade burguesia do século XIX; e a do organismo e a espécie unidos contra o meio ambiente, comunhão que garante melhor a sobrevivência do que o combate. Bandos e manadas cooperam, e assim prosperam.
Aquele príncipe profetizou, retroativamente e com lógica tenebrosa, que a dominação do homem pelo homem
era uma conseqüência deslocada da dominação, maltrato e matança dos animais por parte do homem.
Tábula rasa
Seria pronunciado o auto de fé dos cultos e atualizados: o corpo se sustenta na cultura, não na dotação biológica. Mas se a história se inscreve no volume de carne como se este fosse uma lousa límpida, a linhagem
animal perde seu elo. Ironicamente, aquela certeza
humanista culmina agora em numerosos sociólogos e
filósofos que depositam na biotecnologia a esperança de
uma mudança positiva para o destino histórico da espécie. Já são legião: uns comemoram a continuidade “irreversível” entre máquinas e homens, e outros deliram
com artefatos que reproduziriam “inteligência” e “emoções” humanas. Todos entendiam. Negada a designação “animal” no ser humano, a descontinuidade se torna abissal e, então, encurralar o resto do reino animal
contra o precipício é questão de tempo. Na vida social, o
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“drama da diferença” pode conduzir à negação ou ao desrespeito de direitos, à tolerância ou à aceitação do alheio,
e também ao reconhecimento dos atributos do “outro” que
há em “mim”. Estas operações emocionais e políticas se
tornam raras quando se aborda a diferença animal. Domínio, piedade, concessão de “direitos”? A questão nos concernirá unicamente quando se assuma que a destruição
do corpo humano está diretamente vinculada ao tratamento dado ao resto dos seres vivos. O bumerangue costuma
retornar violentamente ao braço que o lançou. Depois de
tudo, o ser humano bem poderia ser uma errata da natureza, e a história humana sua persistência fatal. Mas os
animais estavam antes.
Descuido
Milhões de anos atrás, a massa continental original se
fragmentou em vários pedaços e foi quando a Oceania ficou desvinculada da sorte ecológica das outras terras.
Quando os maori chegaram desde a Polinésia ao que hoje
chamamos Nova Zelândia, perto do ano 1300 depois de
Cristo, se encontraram com o moa, o maior pássaro que
existia no mundo, que não podia voar. Sendo um dos alimentos preferidos dos maori, foi extinto no século XVII.
Porém, em 1893 descobriu-se que numa pequena ilha
chamada Stephens, localizada no Estreito de Cook, que
separa as duas grandes ilhas, a Ilha do Norte da Ilha do
Sul, tinham sobrevivido algumas espécies de aves, algumas do tamanho de um frango e incapazes de voar, que
havia séculos estavam extintas no resto do arquipélago.
Rapidamente, o governo neozelandês proibiu as pegadas
humanas nessa cápsula isolada no tempo, a declarou “reserva natural” e mandou construir um farol. Um ano depois, todos os pássaros estavam mortos. O assassino, entretanto, era inocente. O encarregado do farol tinha desembarcado na ilha junto com um gato que levou apenas
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A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
um ano para acabar com todos os pássaros. Apenas um
ciclo de contato com a cultura humana dera baixa a cem
milhões de anos de evolução. Para sempre.
Defensores
As primeiras vítimas defendidas não foram cachorros
e gatos, muito menos baleias, mas cavalos, asnos e mulas. As sociedades filantrópicas de “proteção aos animais”
foram criadas no rescaldo da revolução industrial, quando
a “tração a sangue” era o meio de viabilidade mais habitual e o maltrato era contínuo e à vista de todos. No final do
século XIX, foram fundadas organizações contra a vivisseção, dedicadas majoritariamente a “criar consciência” em
uma época na qual a experimentação científica estava se
“profissionalizando”, na qual se requeriam maiores quantidades de animais a modo de cobaias “de índias” e na qual
destripar animais nas escolas públicas resultava ser um
tópico do currículo. Suas conquistas foram escassas porque na Europa e nos Estados Unidos, onde chegaram a ser
ricas e poderosas, a renúncia à ação política foi pobremente
compensada pelo recurso da “campanha de conscientização”. Mas, uma época na qual se criava intensivamente o
gado com a finalidade de assassiná-lo e na qual se contavam aos milhões os animais com os que se experimentava em laboratórios, já precisava de outro tipo de orientação política. O “Movimento de Libertação dos Animais” propagou uma nova definição política da relação entre homem
e animal. Isso aconteceu perto de 1970.
Sub-humanos
A vida — e a morte — dos animais tem sido mecanizada: já são produtos cujo controle de qualidade exige a
imposição de certas doses de crueldade. Os cepos e arma-
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dilhas provocam um imenso padecimento, além de prolongar a agonia do animal durante dias. A compra e venda
de espécies “exóticas” resulta ser o prelúdio de sua extinção, ao provocar o retrocesso da diversidade genética necessária para sua promoção. E, enquanto os potentados do
extremo oriente continuem adquirindo ilegalmente pó de
corno a modo de afrodisíaco, será muito difícil salvar a atual
população de rinocerontes negros. E afinal, a criação de
gado, que supõe castração, separação de mãe e filho, marcação, transporte ao matadouro e morte prematura, atividades interditas para com os seres humanos, salvo que se
quebre o laço de continuidade com algum grupo humano específico, fato acontecido sessenta anos atrás na Europa com
milhões de homens e mulheres inermes. Relembre-se:
até século e meio atrás, e nos Estados Unidos, era perfeitamente legal separar as mães de seus filhos, transportar
estes últimos ao mercado, e também matá-los antes de
tempo. Durante o ciclo da escravatura, as mães não costumavam desenvolver afetos fortes com suas crianças,
pois com a idade de seis anos já podiam ser comercializados. Por certo, naqueles tempos os proprietários costumavam fazer com que seus escravos lutassem entre si, com
argola ao pescoço e em combates a morte. E apostavam,
como ainda se faz nas brigas de galo ou de cachorros de
luta.
Estômago
Nada mais errôneo do que entendê-lo como invenção
contemporânea. O naturismo foi uma doutrina amplamente difundida desde o final do século XIX, no Ocidente, e
atiçada, em especial, pelos anarquistas, sempre preocupados por melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores.
Distintas veias confluíam nessa esquecida ecologia social dos pobres: ideais existenciais de “boa vida”; a propaganda da alimentação “protéica-racional” nos bairros ope92
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rários; a difusão da “biofilia”, o nudismo e o vegetarianismo; a criação de centros de medicina natural; a promoção
da “procriação consciente”. Não faltaram, entre os anarquistas, comunas e restaurantes vegetarianos ou tampouco piquetes contra açougues. Para suas escolas, também chamadas “racionalistas”, a vivisseção era alheia.
Pelo contrário, ensinavam a vida da natureza por meio de
passeios pela cidade destinados a identificar e escutar os
pássaros, ou também inspecionando os prósperos nichos
de insetos sob os azulejos.
Vegetarianismo e anarquismo não conformaram uma
excentricidade ideológica, mas uma aliança entre política
e cultura popular. Os pobres sempre alimentaram-se com
vegetais, pois a carne animal foi, e continua sendo, um
privilégio de ricos. Na China e na Índia, faz milhares de
anos que a comida está confeccionada na base de vegetais. Por certo, os indianos reverenciam as vacas mas não
deixam de ordenhá-las. Entretanto, o disparate não pára
de se expandir: o gado precisa de alimento proveniente de
terras de cultivos que poderiam ser usadas para alimentar a espécie humana com proteína vegetal; são destruídos bosques para dar lugar a terras de pastoreio; e as frotas pesqueiras capturam um cinqüenta por cento de pesca imprestável que sucumbe no navio fábrica. Ao
considerar que os vegetais produzem dez vezes mais proteínas do que a carne, cabe concluir que a indústria da
proteína animal colabora com o aumento da fome no mundo.
Só um boicote poderia deter esta trituradora.
O especismo
A palavra “especismo” resume a contribuição de Peter
Singer para a história das idéias. Em seu Animal Liberation, de 1975, argumentou que ao nos orientar por princípios éticos que promovem a diminuição do sofrimento e
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o aumento do bem-estar, não seria aceitável provocar
dor a uma espécie em função dos interesses de um
grupo definido por seu estatuto superior. E, na suposição de que os animais tenham interesses, o primeiro
deles seria não sofrer. Mas se diz que os animais não
têm inteligência, sem a qual é impossível estabelecer uma simetria de interesses. Mas um macaco demonstra maior inteligência do que um bebê, e não
por isso consideramos este último um inferior. E também, que os animais não têm autonomia fora do seu
ciclo instintivo. Mas um doente grave ou um bebê tampouco a têm, e não por isso descuidamos deles. E também, que os direitos supõem reciprocidade, e os animais não a concedem. Mas tampouco as crianças costumam outorgá-la, nem podem concedê-la aqueles que
experimentam uma “vida vegetativa”, e o fato de que
as futuras gerações não existam ainda não é critério
para fazer da terra um pântano. Enfim, que ausente
nos animais uma linguagem auto-reflexiva, não haveria laço possível com o humano. Mas tampouco os
bebês podem se expressar de tal maneira ainda que
disponham da faculdade para o fazer no futuro, e em
outras épocas os surdos-mudos também careciam de
linguagem. Não há provas científicas para “comprovar” a necessidade de acabar com a destruição dos
animais. Trata-se, apenas, de um ideal orientador.
No passado, foram publicados livros “científicos” que
“provavam” a inferioridade “natural” dos escravos, ou
das mulheres, ou dos que não fossem brancos. Justamente, o especismo nega os interesses de outras espécies a partir de preconceitos favoráveis à própria.
Mas a negação a levar em consideração outros padecimentos requer do encobrimento do processo. É uma
condição prévia afetiva imprescindível para engolir
cadáveres.
94
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A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
Não
Em 1988, uma adolescente chamada Jennifer
Graham negou-se a realizar uma vivisseção em sua aula
de biologia. Tendo sido abaixada sua nota devido à sua
negação, a jovem iniciou um julgamento ao Estado da
Califórnia, e venceu. A dissecção em vivo já não seria
obrigatória nesse estado a partir de então. Uma lei caída por causa da palavra não.
Um só homem
“Quantos coelhos Revlon deixa cegos por causa da
beleza?”. Esta pergunta, publicada em primeira página
no New York Times do dia15 de abril de 1980, conseguiu
que milhões de dólares em ações da corporação hegemônica no mercado da cosmética despencassem em
menos de vinte e quatro horas. Até então, a pasta de
blush ou de rímel era testada em coelhos, nos quais se
aplicavam em profusão os produtos na mucosa ocular
com a finalidade de pesquisar se o excesso de substância cosmética produzia algum efeito. A conseqüência
era a cegueira final do animal, prévia ulceração progressiva do olho. O aviso se repetiria duas vezes mais
até curvar a Revlon. Daí em diante, o “animal testing”
foi abandonado e o “controle de qualidade” se fez em
imitação artificial da carne vivente. O mesmo caminho
foi seguido pelo resto da indústria cosmética, temerosa
do custo a ser pago em publicidade negativa. Henry Spira, membro exclusivo de uma organização dedicada à
“libertação animal”, havia pagado por esse aviso.
Em dezembro de 1955, e na cidade de Montgomery,
uma mulher chamada Rosa Parks negou-se a ceder seu
lugar a um passageiro branco, roque forçado contemplado pelas leis do Estado de Alabama. O homem branco
reclamou ao motorista, quem não pôde persuadir a mu-
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lher de abandonar sua atitude. Obstinado, o homem levou a juízo a empresa de transportes. A resposta foi o
boicote: durante sete meses milhares de pessoas foram
e voltaram caminhando até conseguir derrogar a ordenança municipal. Foi o começo do movimento de luta
pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Henry
Spira, um jovem trotskista, cobriu o conflito para seu jornal, e da simples observação dos acontecimentos aprendeu algumas coisas. Depois, deixaria o partido e seu ofício de marinheiro mercante e se transformaria em professor de escola. E assim até 1973.
Em abril de 1973, a The New York Review of Books publicou um comentário favorável à edição recente de livros que tratavam o tema dos direitos dos animais. O
autor da resenha era Peter Singer. Meses depois, Henry
Spira lê numa publicação trotskista de escassa tiragem
uma crítica à crítica de Singer; basicamente uma denúncia da “bancarrota - intelectual - dos - intelectuais de - esquerda - que - em - lugar - de - defender - os trabalhadores - se - dedicam - a - causas - supérfluas”.
Mas Spira, muito treinado na arte de ler entrelinhas,
interessou-se, e participou de um curso de “extensão”
na Universidade de Nova Iorque no qual Singer expôs
avances de seu Animal Liberation. Compareceram vinte
pessoas e Henry Spira era uma delas. Nesse âmbito foi
fundada a Animal Rights International.
Era preciso escolher onde golpear. Em 1975 o Museu
Americano de História Natural guardava arquivos e objetos, mas também um laboratório onde se experimentava com felinos, aos que se lhes extirpavam os órgãos
sexuais e se lhes induziam lesões cerebrais com a finalidade de investigar sua conduta reprodutiva. Constatação tão cruel como desnecessária para o mundo. O
grupo começou com cartazes e distribuição de panfletos
na entrada do Museu. Aos poucos, as rádios começaram
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A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
a se ocupar do caso. Num primeiro momento, o Museu
ignorou as reclamações, mas logo teve de se defender,
pois uma comissão parlamentária decidiu inspecionar
o laboratório. Ed Koch, futuro prefeito de Nova Iorque,
inquiriu sobre a natureza das experiências e lhe foi
mostrado um gato macho com lesões cerebrais induzidas encerrado numa jaula onde também havia uma gata
e um coelho fêmea. Koch perguntou pelas seqüelas da
experiência: acaso a preferência sexual do felino seria
afetada pela lesão? Foi a resposta que o gato ia indistintamente com a coelha ou com a gata. Koch voltou a perguntar: “E o que opina a coelha de tudo isto?”.
O clima de opinião daqueles anos não favorecia este
tipo de ativismo. Os “líderes de opinião”, políticos e jornalistas não levavam a sério a questão; e o desprezo da
comunidade científica em relação aos opositores de experiências com animais era incomensurável. Entretanto, Henry Spira teve sempre cuidado de se confrontar
com a ciência em si mesma. Afinal, a pressão da opinião pública conseguiu que o museu fosse obrigado a
suspender as experiências e a se desfazer dos pesquisadores. O epitáfio dos mesmos foi cinzelado em outubro de 1976 pela influente revista Science, que deu o
golpe de misericórdia. Science abandonou o Museu à sua
sorte talvez porque já se tornava evidente que não era
possível defender qualquer experiência realizada com
animais, e também porque naquele laboratório costumavam dar nomes de famosos cientistas vivos aos felinos lobotomizados ou castrados; entre outros, o do diretor da revista Science.
Foi o começo. Seguiria a confrontação com a indústria cosmética. Nos anos noventa Spira lançou uma campanha destinada a humilhar um gigante, Mc Donald’s,
pois se as experiências “científicas” realizadas no Museu de História Natural supunham a castração e dano
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de centenas de felinos, e se a experimentação em cosmética dizia respeito à sorte de milhares e milhares de
coelhos, a produção de carne de vaca ou de frango para
hambúrguer implicava a mecanização da vida e a morte de milhões de animais. A campanha culminou em
um julgamento iniciado e ganho pela empresa, ainda
que o veredicto se constituiu numa falsa vitória para a
Mc Donald’s, que sequer tentou cobrar as centenas de
milhares de dólares creditados na conta do defensor dos
animais. Henry Spira morreu no ano de 2001. As muitas conquistas que conseguiu para sua causa se desprendiam do potencial político da palavra “libertação”,
olho da fechadura dos anos sessenta e setenta, estendida agora ao reino animal.
Hominização
O longo processo de hominização culminou num desequilíbrio. Transformado no árbitro de todas as espécies, o homem as submeteu ao seu arbítrio. É um acontecimento que não pode ser revertido, nem redimido, e
talvez tampouco possa ser detido. A progressão da história humana, e o nível de suas necessidades, assim o
exigem. É uma experiência imensa e cruel desenhada
para antedatar a chegada do Apocalipse, começando com
o dos animais. Tratar-se-ia de remover a ordem dada a
Noé: não a conservação e cuidado da vida, mas seu holocausto.
Tradução do espanhol por Natalia Montebello.
98
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais
RESUMO
Uma analítica da história desenha territórios de saberes que evidenciam a atualidade de se pensar a espécie como problema político e o corpo como extensão onde a política instaura verdades.
Dimensionada assim, a política permite combinar práticas sobre a
pena de morte, sobre o homem como espécie diante de outras espécies, sobre saberes evolucionistas e criacionistas, como experimentação histórica sobre o presente.
Palavras-chave: evolucionismo, espécies, direitos
ABSTRACT
An analysis of History draws territories of knowledge that highlight the importance of thinking the species as a political problem
and the body as an extension where politics states truths. Put in
that way, politics is able to mix practices over death penalty, the
Man as a specie facing other ones, evolutionism and creationism
as historical experimentations over the present.
Keywords: evolutionism, species, rights
Recebido para publicação em 19 de maio de 2004.
99
7
2005
assim também
seu corpo para
mim:
o que se abre,
o que se reflete
em sorriso.
nenhum crime, nenhum castigo.
Sergio Cohn
100
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
stirner e foucault: em direção a uma
liberdade pós-kantiana
saul newman*
Max Stirner e Michel Foucault são dois pensadores que
raramente são analisados juntos. No entanto, já foi sugerido que o tão ignorado Stirner pudesse ser visto como o
precursor do pensamento pós-estruturalista contemporâneo.1 De fato, há muitos extraordinários paralelos entre a
crítica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racionalidade universal e as identidades essenciais, e as críticas similares realizadas por pensadores como Foucault,
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, e outros. Contudo, o propósito deste artigo não é meramente situar Stirner na
tradição “pós-estruturalista”, mas analisar seu pensamento a respeito da liberdade, e pesquisar as conexões com o
próprio desenvolvimento do conceito de Foucault no contexto das relações de poder e subjetividade. Em linhas gerais, os dois pensadores enxergam a clássica idéia kanti-
* Professor no Departamento de Ciência Política da University of Western
Australia.
verve, 7: 101-130, 2005
101
7
2005
ana de liberdade como extremamente problemática, por
envolver pressupostos essencialistas e universais que
são freqüentemente opressivos. O conceito de liberdade
deve ser repensado. Este não pode ser visto exclusivamente em termos negativos, como a liberdade de coação, mas deve envolver mais noções positivas de autonomia individual, particularmente a liberdade do indivíduo para construir novas formas de subjetividade.
Stirner, como veremos, dispensa a noção clássica de
liberdade como uma totalidade e desenvolve a teoria da
(Eigenheit)2 para descrever esta autonomia radical do
indivíduo. Eu proponho, neste artigo, que tal teoria da
propriedade de si como uma forma não essencialista de
liberdade tem muitas similaridades com o próprio projeto de liberdade de Foucault, que envolve um ethos crítico e uma esteticização de si. De fato, Foucault questiona os fundamentos racionais universais e antropológicos do discurso de liberdade, redefinindo-os em termos
de práticas éticas.3 Tanto Stirner quanto Foucault são,
portanto, cruciais para o entendimento da liberdade na
contemporaneidade — eles mostram que a liberdade não
pode mais ser limitada por absolutos racionais e categorias morais universais. Eles tomam o entendimento
de liberdade para além dos limites do projeto kantiano
— apoiando-se em estratégias concretas e contingentes de si.
Kant e a liberdade universal
Para compreender como esta reformulação radical da
liberdade pode acontecer, devemos ver como o conceito de
liberdade está situado no pensamento iluminista. Neste
paradigma, o exercício da liberdade é visto como a herança de uma propriedade racional. Segundo Immanuel Kant,
por exemplo, a liberdade humana pressupõe uma lei moral que é racionalmente entendida. Na Crítica da razão
102
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
prática, Kant busca estabelecer um fundamento racional
absoluto para o pensamento moral além dos princípios
empíricos. Argumenta que os princípios empíricos não
são uma base apropriada para as leis morais, por não
permitirem que sua verdadeira universalidade seja estabelecida. A moralidade deveria, ao contrário, ser baseada em uma lei universal — um imperativo categórico — que pode ser racionalmente compreendido. Para
Kant existe, então, apenas um imperativo categórico, o
qual sustenta o fundamento para todas as ações racionais do homem: “Age somente pela máxima segundo a
qual tua ação e vontade tornam-se uma lei universal”.4
Noutras palavras, a moralidade de uma ação está determinada pela lei universal quando aplicável a todas as
situações. Kant traça três características de todas as
máximas morais. Em primeiro lugar, elas devem ter um
formato universal. Em segundo lugar, devem ter um fim
racional. E, em terceiro, as máximas que provém de legislações autônomas do indivíduo, devem estar de acordo com uma certa teologia de fins.
Este último ponto trás conseqüências importantes
para a questão da liberdade humana. Para Kant, a lei
moral é baseada na liberdade — o indivíduo racional
escolhe livremente pelo senso de dever aderir às máximas morais universais. Dessa maneira, para que as
leis morais sejam racionalmente fundamentadas, elas
não podem estar baseadas em qualquer forma de coerção ou constrangimento. Elas têm que estar livremente
incorporadas como um ato racional do indivíduo. A liberdade é vista por Kant como uma autonomia da vontade — a liberdade do indivíduo racional para seguir os
preceitos de sua própria razão pela adesão a estas leis
morais universais. Esta autonomia da vontade, então,
é para Kant o princípio supremo da moralidade. Ele a
define como “aquela propriedade pela qual ela é uma lei
para si mesma (independentemente de qualquer pro103
7
2005
priedade dos objetos da vontade)”.5 A liberdade é, portanto, a habilidade do indivíduo em legislar para si, livre de
forças externas. No entanto, esta liberdade da auto-legislação deve estar de acordo com as categorias morais
universais. Por conseguinte, segundo Kant, o princípio
da autonomia é: “nunca escolher, exceto quando estiver
numa condição em que as máximas da escolha estejam
compreendidas na mesma vontade como uma lei universal”.6 Pode parecer que há um paradoxo central nesta
idéia de liberdade — você é livre para escolher desde que
faça a escolha certa, desde que escolha as máximas da
moral universal. Porém, para Kant, aqui não há contradição, pois apesar da adesão às leis morais ser um dever
e um imperativo absoluto, ela continua sendo um dever
livremente escolhido pelo indivíduo. Leis morais são racionalmente estabelecidas, e pelo fato da liberdade apenas poder ser exercida por indivíduos racionais, eles irão
necessariamente, ainda que livremente, escolher obedecer estas leis morais. Noutras palavras, uma ação é
livre somente na medida em que está de acordo com a
moral e os imperativos racionais — caso contrário ela é
patológica e, portanto, “não-livre”. Neste sentido, a liberdade e o imperativo categórico não são antagônicos, mas
antes, conceitos mutuamente dependentes. A autonomia individual é para Kant a principal base das leis morais. “Mas este princípio da autonomia (...) é o único princípio das morais que pode ser mostrado prontamente por
uma mera análise dos conceitos da moralidade; por esta
análise nós descobrimos que este princípio tem que ser
um imperativo categórico, e este (o imperativo) comanda, nem mais nem menos, que sua própria autonomia”.7
O reverso autoritário
Todavia, pode parecer haver um autoritarismo escondido na formulação da liberdade de Kant. Enquanto o
104
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
indivíduo é livre para agir de acordo com os preceitos de
sua própria razão, ele deve, contudo, obedecer às máximas da moral universal. A filosofia da moral de Kant é
uma filosofia da lei. Este é o porquê Jacques Lacan foi
capaz de diagnosticar um jouissance escondido — ou a
apreciação em excesso da lei — que anexou ao imperativo categórico de Kant. Segundo Lacan, Sade é o complemento necessário a Kant — o prazer perverso incorporado às leis se torna, no universo sadiano, a lei do
prazer.8 O que une a liberdade kantiana à lei são suas
vinculações a uma racionalidade absoluta. É porque a
liberdade deve ser exercida racionalmente que o indivíduo se encontra obedecendo, obrigatoriamente, as leis
morais universais, racionalmente fundamentadas.
Contudo, tanto Foucault quanto Stirner colocaram em
questão tais categorias universais, racionais e morais,
centrais para o pensamento iluminista. Eles insistem
que categorias absolutas da moralidade e racionalidade
sancionam diversas formas de dominação e exclusão, e
negam a diferença no indivíduo. Para Foucault, por
exemplo, a centralidade da razão em nossa sociedade
está baseada na exclusão violenta e radical da loucura.
As pessoas permanecem excluídas, encarceradas e oprimidas devido a esta arbitrária divisão entre a razão e a
não-razão, racionalidade e irracionalidade. Do mesmo
modo, o sistema penitenciário está baseado na divisão
entre bem e mal, inocência e culpa. O encarceramento
do prisioneiro é possível somente pela universalização
de códigos morais. O que deve ser contestado, segundo
Foucault, não são apenas as práticas de dominação que
se encontram nas prisões, mas também a moralidade
que justifica e racionaliza tais práticas. O foco principal
da crítica de Foucault sobre as prisões não é necessariamente relativa à dominação interna, mas no fato de
que esta dominação está justificada em bases morais
absolutas — a base moral que Kant busca para cons105
7
2005
truir o universal. Foucault quer romper com a “serena
dominação do Bem sobre o Mal”, central nos discursos
morais e práticas de poder.9
Este é o absolutismo moral ao qual Stirner também se
opõe. Ele vê a moralidade como um “fantasma” — um
ideal abstrato colocado além do indivíduo e que age sobre
ele de forma opressiva e alienante. Moralidade e racionalidade se tornam “idéias fixas” — idéias tidas como
sagradas e absolutas. Uma idéia fixa, de acordo com Stirner, é um conceito abstrato que governa o pensamento
— uma ficção discursivamente fechada que nega a diferença e a pluralidade. Estas são idéias abstraídas do
mundo e que continuam a dominar o individuo pela comparação de cada um a uma norma ideal impossível de ser
atingida. Noutras palavras, o projeto de Kant de retirar as
máximas morais do mundo empírico para o interior de
um reino transcendental, em que poderiam ser aplicadas universalmente, isto poderia ser visto por Stirner
como um projeto de alienação e dominação. A invocação
da obediência absoluta às máximas morais universais
de Kant, seria vista por Stirner como a pior negação possível da individualidade. Para Stirner, o indivíduo é supremo, e qualquer coisa que pretenda se aplicar a ele ou
falar por qualquer um, universalmente, é uma anulação
da diferença da unicidade do indivíduo. O indivíduo está
infestado por estes ideais abstratos, estas aparições que
não são criações suas e a ele impostas, confrontando-o
com padrões racionais e morais impossíveis. Como veremos, além disso, o indivíduo para Stirner não é uma identidade ou essência fixa e estável — isto seria uma abstração idealista assim como os espectros que o oprimem.
A individualidade deve ser vista, neste caso, em termos
similares aos de Foucault — como uma forma radicalmente contingente de subjetividade, uma estratégia aberta que se empenha em questionar e contestar os limites
do essencialismo.
106
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
A crítica ao essencialismo
O exorcismo que Stirner executa neste “espírito do
reino” de absolutos morais e racionais é parte de uma
crítica radical do humanismo iluminista e do idealismo. Seu “rompimento epistemológico” com o humanismo pode ser visto mais claramente em seu repúdio a
Ludwig Feuerbach. Em A essência do cristianismo, Feuerbach aplicou a noção de alienação para a religião. A
religião é alienante, de acordo com Feuerbach, pois ela
exige que o homem abdique de suas qualidades e poderes essenciais para projetá-los em um Deus abstrato,
além da compreensão da humanidade. Para Feuerbach,
os predicados de Deus, eram somente os predicados do
homem como espécie. Deus era uma ilusão, uma projeção fictícia das qualidades essenciais do homem. Noutras palavras, Deus era uma reificação da essência
humana. Como Kant, que tentou transcender o dogmatismo da metafísica reconstruindo sobre bases racionais
e científicas, Feuerbach procurou superar a alienação
religiosa restabelecendo as capacidades morais e racionais universais do homem como base essencial para a
experiência humana. Feuerbach corporifica o projeto
humanista do Iluminismo de restaurar ao homem seu
justo lugar no centro do universo, fazendo do humano o
divino, o finito, o infinito.
Stirner argumenta, contudo, que por meio da busca
do sagrado na “essência humana”, posicionando um
sujeito essencial e universal, e atribuindo-lhe, certas
qualidades que foram, até agora, de Deus, Feuerbach
somente re-introduziu a alienação religiosa, substituindo o conceito abstrato de homem na categoria do Divino. Por meio da inversão feuerbachiana o homem se
torna Deus, e apenas como homem foi rebaixado sob
Deus, então o indivíduo é posto abaixo deste ser perfeito, o homem. Para Stirner, o homem é tão opressivo, se
107
7
2005
não mais, que Deus. O homem se torna o substituto da
ilusão cristã. Feuerbach argumenta Stirner, é o sacerdote de uma nova religião universal — o humanismo:
“A religião humana é somente a última metamorfose
da religião cristã”.10 É importante notar que o conceito
de alienação de Stirner é essencialmente diferente da
compreensão humanista feuerbachiana da alienação da
essência do indivíduo. Stirner radicaliza a teoria de alienação para ver a essência por si só alienante. Saliento, que a alienação neste exemplo pode ser vista muito
além da noção foucaultiana de dominação — como um
discurso que amarra o indivíduo a certa subjetividade
por meio da convicção de que dentro de qualquer um
existe uma essência para ser revelada.
Para Stirner é esta noção de uma essência humana
universal que estipula as bases para a absolutização da
moral e das idéias racionais. Estas máximas tornaramse sagradas e imutáveis porque estão agora fundadas
na noção de humanidade, na essência humana, e transgredi-las seria uma transgressão na essência. Neste
sentido o tema é levado a um conflito consigo mesmo. O
homem é, de certa forma, perseguido e alienado por ele
mesmo, por meio do espectro da “essência” dentro dele:
“A partir de agora, em casos típicos, o homem não mais
estremecerá diante de fantasmas externos, mas diante
de si mesmo; ele está aterrorizado por si mesmo”.11 Para
Stirner, a “insurreição” de Feuerbach não destruiu a
categoria da autoridade religiosa — apenas instalou o
homem dentro dela, revertendo a ordem do sujeito e do
predicado. Da mesma forma, podemos sugerir que a “insurreição” metafísica de Kant não destruiu as estruturas dogmáticas da crença, mas apenas instalou a moralidade e a racionalidade dentro delas.
Enquanto Kant procurava retirar a moralidade do domínio da religião, fundamentando-a na razão, Stirner
108
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
sustenta que a moralidade é apenas o velho dogmatismo religioso em um novo e racional aspecto: “A fé moral
é tão fanática quanto a fé religiosa!”.12 Stirner não se
opõe à moralidade em si, mas o fato que esta se tornou
uma lei sagrada e indestrutível, e expõe o desejo pelo
poder, a crueldade e a dominação por trás das idéias
morais. A moralidade está baseada na profanação, na
destruição da vontade do indivíduo. O indivíduo deve se
conformar aos códigos morais; senão, ele se torna alienado de sua essência. Para Stirner, a coerção moral é
tão viciosa quanto a coerção realizada pelo Estado, só é
mais insidiosa e perspicaz, pois não exige o uso da força
física. O guardião desta moralidade está instalado na
consciência do indivíduo. Esta moral internalizada da
vigilância também se encontra em Foucault na discussão sobre o panoptismo — na qual ele argumenta, revertendo o paradigma clássico, que a alma se torna a
prisão para o corpo.13
Uma crítica similar deve estar relacionada à racionalidade. Verdades racionais são sempre colocadas acima das perspectivas individuais, e Stirner sustenta que
isto é apenas uma outra forma de dominar o indivíduo.
De maneira similar ao que afirmou sobre a moralidade,
Stirner não é necessariamente contra a verdade racional em si, mas contra o modo como ela se torna sagrada, transcendental e deslocada da compreensão individual, anulando o poder do indivíduo. Stirner diz: “enquanto você acreditar na verdade, você não acredita em si
mesmo, e você é um servo, um homem religioso”.14 A
verdade racional, para Stirner, não possui nenhum real
significado para além das perspectivas individuais — é
algo que pode ser usado pelo indivíduo. Sua verdadeira
base, assim como para a moralidade, é o poder.
Enquanto para Kant as máximas morais são racionais e livremente obedecidas, para Stirner elas são pa-
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drões coercitivos, baseadas em uma noção alienante de
“essência” humana compelida sobre o indivíduo. Além
disso, elas se tornam a base para práticas de punição e
dominação. Por exemplo, em resposta à idéia iluminista que o crime era antes uma doença a ser curada do
que uma moral enfraquecida a ser punida, Stirner afirma que estratégias de cura e punição são dois lados do
mesmo velho preconceito moral. Ambas estratégias contam com a adesão a uma norma universal: “meios de
cura’ sempre anunciam inicialmente que indivíduos
serão supervisionados ao serem ‘chamados’ para uma
‘salvação’ específica e tratados de acordo com as exigências deste ‘chamado humano’”.15 Para Kant, o indivíduo não é também, “chamado” para uma “salvação”
específica quando solicitado a cumprir uma de suas obrigações ou a obedecer aos códigos morais? Neste sentido, o imperativo categórico kantiano não seria também
um “chamado humano”? Noutras palavras, a crítica de
Stirner sobre a moralidade e a racionalidade pode ser
aplicada ao imperativo categórico de Kant. Para Stirner,
embora as máximas morais possam ser livremente seguidas, elas continuam ocultando uma coerção e um
autoritarismo. Isto porque, na formulação kantiana, elas
foram universalizadas como normas absolutas que reservam um pequeno espaço para a autonomia do indivíduo, e que não podem ser transgredidas, pois isto significaria ir contra o próprio “chamado humano” racional e
universal.
A crítica de Stirner à moralidade e à sua relação com
a punição possui similaridades impressionantes com
os escritos do próprio Foucault sobre a punição. Para
Stirner, como já vimos, não há diferença entre cura e
punição — a prática da cura é a re-aplicação dos velhos
preconceitos morais sob uma nova máscara iluminada: “os meios de cura ou tratamento são o reverso da
punição, a teoria da cura segue paralela à teoria da pu110
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
nição; se esta última enxerga em uma ação um pecado
contra o direito, o primeiro entende isso como um pecado do homem contra si mesmo, deixando de lado a sua
saúde”.16
Isto é muito próximo ao argumento de Foucault sobre o preceito moderno da punição — em que as normas
médicas e psiquiátricas são apenas a velha moralidade
em uma nova roupagem. Enquanto Stirner considera
os efeitos de tais formas da higiene moral na consciência do indivíduo, o foco de Foucault está mais na materialidade do corpo e a fórmula de cura e punição são as
mesmas: é a noção do que é propriamente “humano”,
que autoriza uma série de exclusões, práticas disciplinares, moral restritiva e normas racionais. Tanto para
Foucault, como para Stirner, a punição é possível por
meio do sagrado ou do absoluto — no sentido que Kant
faz da moralidade uma lei universal. Há inúmeros pontos a serem sublinhados. Primeiro, Stirner e Foucault
vêem os discursos racionais e morais como problemáticos — eles geralmente excluem, marginalizam, e oprimem aqueles que não vivem sob as normas implícitas
destes discursos. Segundo, os dois pensadores vêem a
racionalidade e a moralidade implicadas nas relações
de poder, mais do que constituindo um ponto crítico epistemológico fora do poder. Não somente estas normas se
tornam possíveis por práticas de poder, por meio da exclusão e dominação do outro, mas também, justificam e
perpetuam práticas de poder como as encontradas em
prisões e asilos. Terceiro, ambos os pensadores vêem
na moralidade uma relação ambígua com a liberdade.
Enquanto Stirner discute que superficialmente as normas morais e racionais são livremente admitidas, elas
impõem, contudo, uma opressão sobre nós mesmos —
uma autodominação — que é muito mais incidiosa e
efetiva que a coerção explícita. Noutras palavras, em
conformidade com a prevalência universal da moral e
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2005
da norma racional, o indivíduo abdica de seu próprio poder e se deixa dominar. Foucault, também, desmascara
esta dominação oculta da moral e da norma racional que
é encontrada atrás do calmo semblante da liberdade humana. A clássica idéia iluminista da liberdade, argumenta Foucault, permite apenas uma pseudo-soberania. Isto
clama pela posse da soberania “conscientemente (soberania no contexto do julgamento, mas sujeita às necessidades da verdade), o indivíduo (um controle nominal de
direitos pessoais sujeitos às leis da natureza e da sociedade), a liberdade básica (a soberania interna, mas aceitando as demandas de um mundo externo e ‘alinhado
com o destino’)”.17 Noutras palavras, o humanismo iluminista clama pela liberdade individual sobre qualquer
forma de opressão institucional enquanto, ao mesmo tempo, exige uma intensificação da opressão sobre o indivíduo e a negação do poder de resistir a esta sujeição. Esta
subordinação no coração da liberdade pode ser vista no
imperativo categórico kantiano: mesmo baseada em uma
liberdade de consciência, esta liberdade está ainda assim sujeita a categorias morais e racionais absolutas. A
liberdade clássica permite somente uma certa forma de
subjetividade, ao intensificar a dominação sobre o indivíduo subordinado a estes critérios morais e racionais.
Enfim, o discurso de liberdade está baseado em uma forma específica de subjetividade — o homem autônomo e
racional do iluminismo e do liberalismo. Como mostram
Foucault e Stirner, esta forma de liberdade só se faz possível por meio da dominação e exclusão de outros modos
de subjetividade que não se encaixam neste modelo racional. Noutras palavras, enquanto a moralidade não nega
ou constrange a liberdade de forma evidente — no caso
de Kant as máximas morais estão baseadas na liberdade
de escolha do indivíduo — esta liberdade está, não obstante, restrita a um modo mais sutil por necessitar se
conformar a absolutos morais e racionais.
112
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
Para Foucault e Stirner, a idéia clássica de liberdade
em Kant é profundamente problemática. Ela constrói o
indivíduo como “livre” e “racional” enquanto o assujeita
a normas morais e racionais absolutas, e o divide em
seres racionais e irracionais, morais e imorais. O indivíduo se adapta livremente a estas normas racionais, e
neste sentido sua subjetividade é construída como um
lugar para sua própria opressão. A tirania silenciosa da
norma auto-imposta se torna o principal modo de sujeição. Enquanto para Kant as máximas morais e as normas racionais existem em uma relação complementar à
liberdade, para Stirner e Foucault a relação é muito mais
paradoxal e conflituosa. A moral transcendental e as normas racionais não negam a liberdade em si — no paradigma kantiano elas pressupõem a liberdade. A forma de
liberdade trazida por meio destas categorias absolutas,
implica outras formas de dominação muito mais sutis.
Esta dominação é possível precisamente porque a relação da liberdade com o poder é mascarada. Para Kant,
como já vimos, a liberdade é uma ausência de coerção.
Entretanto, para Stirner e Foucault, a liberdade implica
sempre em relações de poder — relações de poder tão
criativas quanto restritivas. Ignorar isso, e ainda, perpetuar a ilusão confortante de que a liberdade assegura uma
liberação universal do poder, significa atirar-se diretamente nas mãos da dominação. Pode-se argumentar,
então, que Foucault e Stirner, de maneiras diferentes,
decifram o autoritário lado obscuro, ou a “outra face”, da
liberdade kantiana.
A liberdade foucaultiana: o cuidado de si
Stirner e Foucault não rejeitam a idéia de liberdade.
Ao contrário, eles interrogam os limites do projeto iluminista de liberdade, de modo a expandi-lo — para inventar novas formas de liberdade e autonomia que vão
113
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2005
além das restrições do imperativo categórico. Como
mostra Olívia Custer, Foucault está tão engajado quanto Kant na problemática da liberdade. Entretanto, como
veremos, ele procura levar a questão da liberdade por
um caminho diferente — por meio de estratégicas éticas concretas e práticas de si.
Para Foucault, a ilusão do estado de liberdade para
além do mundo do poder deve ser dissipada. Além disso,
o vínculo entre liberdade e categorias essencialistas e
coordenadas morais e racionais pré-ordenadas, devem
ser pelo menos questionadas. Porém, o conceito de liberdade é muito importante para Foucault — ele não
prescinde do conceito, mas antes o situa no domínio das
relações de poder que necessariamente o fazem indeterminado. É somente repensando a liberdade neste
sentido, que esta pode ser arrebatada do mundo metafísico e trazida para o nível do indivíduo. Melhor que a
noção abstrata de liberdade kantiana como uma escolha racional além de constrangimentos e limitações, a
liberdade para Foucault existe em situações mútuas e
recíprocas de poder. Mais do que uma liberdade pressuposta por uma máxima moral absoluta, ela é na realidade pressuposta pelo poder. Segundo Foucault, o poder
pode ser entendido como uma série de “ações sobre a
ação dos outros”, nas quais múltiplos discursos, contradiscursos, estratégias e tecnologias confrontam-se umas
com as outras — relações específicas de poder sempre
provocam relações de resistências específicas e localizadas. A resistência é algo que excede o poder e é ao
mesmo tempo algo integrado à sua dinâmica. O poder
se baseia numa certa liberdade de ação, numa certa
escolha de possibilidades. Neste sentido, “o poder é exercido somente sobre sujeitos livres, e somente na medida que estes são livres”.18 Diferentemente do esquema
clássico no qual a liberdade e o poder são diagramaticalmente opostos, o pensamento foucaultiano sustenta a
114
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
total dependência de um ao outro. Onde não há liberdade, onde o campo de ação é absolutamente restrito e
determinado, de acordo com Foucault, não pode haver
poder: a escravidão, por exemplo, não é uma relação de
poder.19
A noção de liberdade em Foucault é uma quebra radical com a noção de Kant. Enquanto, para Kant, a liberdade é abstraída dos constrangimentos e limitações do
poder, para Foucault, é a principal base destes limites e
constrangimentos. Liberdade não é um conceito metafísico e transcendental. Ela pertence inteira a este mundo e existe em uma relação complicada e emaranhada
com o poder. De fato, não existe possibilidade de um
mundo sem relações de poder, assim como poder e liberdade não existem um sem o outro.
Foucault percebe a liberdade implicada nas relações
de poder, pois para ele liberdade é muito mais que somente ausência ou negação do constrangimento. Ele rejeita o modelo “repressivo” de liberdade que pressupõe a
essência de si — uma natureza humana universal —
que é restrita e precisa ser liberada. A liberação de uma
subjetividade essencial é a base das noções clássicas de
liberdade para o iluminismo e continua sendo central
para o nosso imaginário político. Foucault e Stirner rejeitam esta idéia da essência de si — isto é meramente
uma ilusão criada pelo poder. Como diz Foucault: “O homem descrito para nós e que somos convidados a libertar, já é em si o efeito de um assujeitamento muito mais
profundo que ele próprio”.20 Enquanto ele não reduz os
atos de liberação política — por exemplo, quando um povo
tenta se libertar das regras coloniais — isto não pode operar como a base de um modo contínuo de liberdade. Supor que a liberdade pode ser estabelecida eternamente
na base deste ato de libertação inicial significa apenas
um convite para novas formas de dominação. Se a liber115
7
2005
dade deve ser um aspecto permanente de qualquer sociedade política, ela deve ser tida como uma prática —
um modo de ação e uma estratégia em curso, que desafia e questiona continuamente as relações de poder.
Esta prática de liberdade é também uma prática criativa — um processo contínuo de auto-formação do sujeito. É neste sentido que a liberdade pode ser vista como
positiva. Um dos aspectos que caracteriza a modernidade, segundo Foucault, é uma atitude “heróica” baudeleriana em relação ao presente. Para Baudelaire, o contingente, a natureza fugaz da modernidade deve ser confrontada com uma certa “atitude” em relação ao presente
que é concomitante ao novo modo de relação que se tem
consigo. Isso envolve a reinvenção de si: “esta modernidade não ‘liberta o homem em seu próprio ser’; obriga-o
a encarar a tarefa de produzir a si próprio”.21 Antes da
liberdade ser uma libertação da essência do homem de
coações externas, ela é uma prática ativa e deliberada
da invenção de si. Esta prática de liberdade pode ser
encontrada no exemplo do dandy ou do flanêur, “que faz
do seu corpo, do seu comportamento, dos seus sentimentos e paixões, de sua própria existência, uma obra de
arte”.22 É esta prática de auto-esteticização que nos permite, de acordo com Foucault, refletir criticamente sobre os limites de nosso tempo. Não se procura um lugar
metafísico além de todos os limites, mas obras dentro
dos limites e coerções no presente. Mais importante,
no entanto, é também uma obra conduzida sobre os nossos limites e nossas próprias identidades. Pelo fato do
poder operar por meio do processo de assujeitamento —
amarrando o indivíduo a uma identidade essencial — a
reconstituição radical de si é um ato de resistência necessário. Esta nova forma de liberdade define, então, uma
nova forma de política mais relevante aos regimes contemporâneos de poder: “o problema político, ético, social
e filosófico de nossos dias não é libertar o indivíduo do
116
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
Estado e suas instituições, mas de nos libertar do Estado e do tipo de individualização ligada a ele”.23
Para Foucault, além disso, a libertação de si é uma
prática ética distinta. Ela envolve a noção de “cuidado
de si”, pela qual o desejo e o comportamento são regulados por si próprios de modo que a liberdade possa ser
praticada eticamente. Esta sensibilidade com o cuidado
de si e a prática ética da liberdade pode ser encontrada,
sugere Foucault, entre os gregos e romanos da antiguidade. Para eles a liberdade do indivíduo era um problema ético. O desejo pelo poder sobre os outros era também uma ameaça à própria liberdade, e o exercício do
poder era algo que tinha que ser regulado, monitorado,
e limitado. Ser escravo de seus próprios desejos era tão
ruim quanto ser escravo do desejo de outros. Esta regulação de práticas e desejos requer um comportamento
ético que cada um constrói para si. Para praticar a liberdade eticamente, para ser sinceramente livre, é preciso obter o poder sobre si mesmo, sobre os próprios desejos. Foucault mostra, no antigo pensamento grego e
romano que “o bom governante é precisamente aquele
que exerce seu poder corretamente, ou seja, exercendo
ao mesmo tempo o poder sobre si mesmo”.24
Esta prática ética da liberdade associada ao cuidado
para si começa, entretanto, a soar de certo modo como o
pensamento kantiano. Na realidade, como diz Foucault,
“para que a ética, senão para a pratica da liberdade? [...]
A liberdade é a condição ontológica da ética”.25 Isso não
parece re-invocar o imperativo categórico onde, para
Kant, a moralidade pressupõe e é fundada na liberdade?
Será que Foucault, em sua tentativa para escapar do
absolutismo da moralidade e racionalidade, re-introduziu o imperativo categórico nesta cuidadosa regulação
do comportamento e do desejo? Não há dúvidas sobre o
rigor desta forma de ética. Em O uso dos prazeres e O cui117
7
2005
dado de si, Foucault descreve as prescrições gregas e romanas sobre tudo, da dieta ao exercício do sexo. Entretanto, eu sugeriria que há uma diferença importante entre a
ética do cuidado e as máximas morais universais insistidas por Kant. A regulação do comportamento e a problematização da liberdade, central para a ética do cuidado,
são coisas que cada um aplica a si mesmo, não é algo
imposto externamente por uma perspectiva universal fora
do indivíduo. A prática de liberdade em Foucault é, portanto, uma ética mais do que uma moralidade. Supõe uma
coerência de modos e comportamentos que têm como objeto a consideração e a problematização de si. Noutras palavras, permite que o sujeito seja visto como um projeto
aberto a ser constituído por meio de práticas éticas do
indivíduo, e não como algo definido a priori por leis universais e transcendentais. Leis morais não se aplicam aqui
— não há nenhuma autoridade transcendental ou imperativos universais que sancionem estas práticas éticas e
penalize infrações. Segundo Foucault, a moralidade é definida pelo tipo de assujeitamento que ela acarreta. De
um lado há a moralidade que faz com que os códigos sejam
cumpridos, por meio de interdições, e que exige uma forma de subjetividade que se refere à conduta do indivíduo
sob estas leis, submetendo-o à uma autoridade universal.
Isso, que pode ser discutido, é a moralidade do imperativo
categórico de Kant. De um outro lado, afirma Foucault,
existe a moralidade na qual “a ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites
e pelos prazeres, manter uma superioridade sobre eles,
manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna das paixões,
e atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela supremacia de si sobre si mesmo”.26
A noção de Foucault de liberdade como uma prática ética é radicalmente diferente da idéia de Kant de liberdade
como base da lei moral universal. Para Foucault, a liber118
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
dade é ética porque implica um projeto em aberto conduzido sobre a pessoa, com o intuito de expandir o poder que se
exerce sobre si mesmo, e limitar e regular o poder em
exercício sobre os outros. Desta forma, a liberdade e a autonomia da pessoa são expandidas. Para Kant, por sua vez,
a liberdade é a base de uma moralidade metafísica que
deve ser obedecida universalmente. Para Foucault, a ética intensifica a liberdade e a autonomia, enquanto para
Kant, liberdade e autonomia estão circunscritas principalmente pela máxima moralidade possível.
Há, portanto, dois aspectos relacionados com o conceito de liberdade de Foucault que devem, aqui, ser enfatizados. Primeiro, existe a prática de liberdade que permite à
pessoa libertar-se, não dos limites externos que reprimem
a sua essência, mas dos limites impostos pela própria essência. Exige a transgressão destes limites por meio de
uma transgressão e re-invenção de si. Esta forma de liberdade opera dentro dos limites do poder, permitindo ao
indivíduo fazer uso destes limites na invenção de si mesmo. Segundo, existe o aspecto da liberdade claramente
ético — é a prática do cuidado de si que tem como intuito
o aumento do poder de si sobre seus desejos, colocando em
cheque, desta forma, o poder de um sobre os outros. A prática do cuidado de si permite ao indivíduo navegar um percurso ético de ação por dentro das relações de poder, com o
objetivo de intensificar a liberdade e a autonomia pessoal.
Portanto, a liberdade é concebida como uma prática de si
contingente e em curso que não está determinada por
uma moral fixa e por leis racionais.
Os dois iluminismos
Em seu último ensaio “O que são as Luzes?”, Foucault
considera a insistência de Kant em um uso livre e público da razão autônoma como uma evasão, uma saída do
119
7
2005
homem do estado de imaturidade e subordinação. Foucault acredita que esta razão autônoma é útil por permitir um ethos crítico sobre a modernidade, mas recusa
a “chantagem” do iluminismo — a insistência com que
este ethos crítico, no coração do iluminismo, é inscrito
em uma moralidade e racionalidade universais. O problema de Kant é que ele abre caminho para uma autonomia individual e reflexão crítica nos limites do sujeito, apenas para reinscrevê-lo no espaço fechado por uma
noção transcendental de racionalidade e moralidade que
requer obediência absoluta. Para Foucault a herança do
iluminismo é extremamente ambígua. Segundo Colin
Gordon, para Foucault há dois iluminismos — o iluminismo da certeza racional, identidade absoluta, e do destino, e o iluminismo do questionamento contínuo e da
incerteza. Segundo Foucault, esta ambigüidade está
refletida no próprio pensamento de Kant sobre o iluminismo.
Talvez exista um momento kantiano em Foucault (ou
deveríamos dizer um momento foucaultiano em Kant?).
Foucault mostra, como Kant pode ser lido de uma forma
heterogênea, enfocando o aspecto mais oscilante de seu
pensamento — em que somos encorajados a interrogar
os limites da modernidade, a refletir criticamente sobre como somos constituídos como sujeitos. Como mostra Foucault, Kant vê o iluminismo (Aufklärung) como
uma condição crítica, caracterizada por uma “audácia
de saber” e um uso público livre e autônomo da razão.
Esta condição crítica é concomitante com uma “vontade
de revolução” — com a tentativa de entender a revolução (no caso de Kant a Revolução Francesa) como um
evento que permite interrogar as condições da modernidade — “uma ontologia do presente” — e a forma, como
sujeitos, que lidamos com isso.27 Foucault sugere que
adotemos esta estratégia crítica para refletir sobre os
limites do discurso do iluminismo em si e de suas in-
120
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
terdições morais e racionais universais. Deveremos,
neste sentido, usar as capacidades críticas do iluminismo contra ele mesmo, abrindo caminho, deste modo,
para a autonomia individual dentro de seus edifícios,
além da compreensão de leis universais.
A postura crítica relativa ao presente e a prática do
“cuidado de si” com a qual está ligada, esboça uma estratégia genealógica da liberdade — uma estratégia,
como afirma Foucault que “não procura tornar possível
uma metafísica que finalmente se tornou uma ciência;
procura dar novo ímpeto [...] para o trabalho indefinido
da liberdade”.28
A teoria da propriedade de si de Stirner
É o desejo de dar um novo ímpeto à liberdade, de a
tirar do domínio de promessas e sonhos vazios, que se
reflete na teoria da propriedade de si de Stirner. Ele adota
um caminho “genealógico”, próximo ao de Foucault, trazendo o foco da liberdade de si e situando a liberdade no
interior das relações de poder.
A idéia de transgredir e reinventar-se — libertando-se
de identidades fixas e essenciais — é também o tema central do pensamento de Stirner. Como já vimos, Stirner
mostra que a noção de essência humana é uma ficção
opressiva derivada de um idealismo cristão invertido, que
tiraniza o indivíduo e está ligada a várias formas de dominação política. Stirner descreve um processo de assujeitamento que é muito similar ao de Foucault: mais do que
o poder operar com uma repressão depressiva, esta governa o assujeitamento do indivíduo, definindo-o de acordo
com uma identidade essencial. Stirner afirma: “o Estado
denuncia sua inimizade a mim, exigindo que eu seja um
homem... ele impõe ‘ser um homem’ como um dever”.29 A
essência humana impõe uma série de morais fixas e
121
7
2005
idéias racionais no indivíduo, que não são parte de sua
criação e que reduz a sua autonomia. E é precisamente
esta noção de dever, de obrigação moral — o mesmo sentido de dever que está na base dos imperativos categóricos — que Stirner considera opressiva.
Para Stirner, o indivíduo deve se livrar — destas idéias
opressivas e obrigações livrando-se, em primeiro lugar,
da essência — da identidade essencial que lhe é imposta. A liberdade envolve, portanto, a transgressão da essência, a transgressão de si. Mas como deve ser esta
transgressão? Como Foucault, Stirner desconfia da linguagem de libertação e da revolução — baseadas na
noção de um ser essencial que supostamente joga fora
as correntes da repressão externa. Para Stirner, é precisamente esta noção de essência humana que é opressiva. Além disso, busca diferentes estratégias de liberdade — que abandonam o projeto humanista de libertação e procuram reconfigurar o sujeito em caminhos
novos e não-essencialistas. Para este fim, Stirner convida a uma insurreição: “Revolução e insurreição não
devem ser vistas como sinônimos. A primeira consiste
na derrubada das condições, das condições estabelecidas ou posições, do estado ou da sociedade, um ato político ou social; a outra tem de fato, por suas conseqüências inevitáveis, uma transformação das circunstâncias, começa pelo descontentamento dos homens consigo
mesmos, não é um levante armado, mas um levante
dos indivíduos, um levante sem se incomodar com as
implicações daí decorrentes. A revolução pretendia novas disposições; a insurreição nos leva a não mais deixarmo-nos ser arranjados, mas nos arranjar sem acalentar uma esperança nas “instituições”. Não é uma
luta contra o estabelecido, pois se este prospera ele se
arruína a si mesmo, é apenas um trabalho além de mim
e do estabelecido”.30
122
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
Enquanto a revolução pretende que a essência humana prospere, a partir da transformação das condições
sociais e políticas existentes, uma insurreição procura
libertar o indivíduo da essência. Como a prática de liberdade em Foucault, a insurreição procura transformar a relação que o indivíduo tem consigo. A insurreição começa, portanto, com a recusa do indivíduo em fazer cumprir sua identidade essencial: começa, segundo
Stirner, com o descontentamento dos homens com eles
mesmos. A insurreição não tem como objetivo destruir
instituições políticas. Ela procura, de certo modo, transgredir no indivíduo sua própria identidade — o resultado, contudo, é uma mudança na ordem política. A insurreição, portanto, não é o tornar-se — humano, homem
— mas tornar-se o que não é.
Este ethos de escapar das identidades essenciais por
meio da reinvenção de si, tem muitos paralelos importantes com a estetização de si baudelairiana, que interessa a Foucault. Como na afirmação de Baudelaire em
que o sujeito deve ser tratado como uma obra de arte,
Stirner vê o sujeito — ou o eu — como “um nada criativo”, um vazio radical que cabe somente ao indivíduo
definir: “eu não me pressuponho, pois estou a cada momento posicionando ou criando a mim mesmo”.31 O sujeito, para Stirner, está em processo, um fluxo contínuo
de auto-criação — este é um processo que se esquiva da
imposição de identidades fixas e essências: “nenhum
conceito me expressa, nada designado como minha essência me exaure”.32
A estratégia insurrecional de Stirner e o projeto do cuidado de si de Foucault são ambas práticas contingentes de
liberdade, que envolvem a reconfiguração do sujeito e sua
relação consigo. Para Stirner, assim como em Foucault, a
liberdade é um projeto indefinido e sem uma finalidade
na qual o indivíduo se empenha. A insurreição, como afir-
123
7
2005
ma Stirner, não confia em instituições políticas para subsidiar a liberdade do indivíduo, mas procura, que o indivíduo invente suas próprias formas de liberdade. É uma tentativa de construir espaços de autonomia dentro das relações de poder, limitando o poder que é exercido sobre o
indivíduo pelos outros, e aumentando o poder que o indivíduo exerce sobre si mesmo. O indivíduo, além disso, é livre para reinventar-se de formas novas e imprevisíveis
escapando dos limites impostos pela essência humana e
as noções universais de moralidade.
A noção de insurreição envolve uma reformulação do
conceito de liberdade de maneira radicalmente pós-kantiana. Stirner sugere, por exemplo, que não pode haver
nenhuma idéia universal de liberdade; a liberdade é sempre uma liberdade particular disfarçada de universal. A
liberdade universal que é, para Kant, o domínio de todos os
indivíduos racionais, mascararia interesses particulares
ocultos. Liberdade, segundo Stirner, é um conceito ambíguo e problemático, um “sonho lindo e encantado” que seduz o indivíduo, mesmo sendo inatingível, e do qual o indivíduo deve acordar.
Além disso, liberdade é um conceito limitado. Só é vista em seu sentido mais estreito e negativo. Stirner quer,
ao contrário, ampliar este conceito para o de uma liberdade mais positiva. Liberdade em seu sentido negativo envolve apenas uma auto-renúncia — pra livrar-se de algo,
para negar a si mesmo. Segundo Stirner, quanto mais
ostensivamente livre o indivíduo se torna, de acordo com
os ideais emancipadores do humanismo iluminista, mais
ele perde o poder que exerce sobre si mesmo. De outro
lado, a liberdade positiva — ou da propriedade de si — é
uma forma de liberdade criada pelo indivíduo para ele
mesmo. Diferente da liberdade kantiana, a propriedade
de si não é garantida por ideais universais ou imperativos
categóricos. Se assim fosse, isto só poderia resultar em
124
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
mais dominação: “um homem que é colocado em liberdade, não é nada além de um homem libertado [...] ele é um
homem não-livre travestido com liberdade, como o asno
na pele do leão”.33
A liberdade deve antes ser apoderada pelo indivíduo.
Para que a liberdade tenha algum valor ela deve estar baseada no poder do indivíduo para criá-la. “Minha liberdade
só se torna completa somente quando é a minha própria
força; mas a partir disso eu deixo de ser meramente um
homem livre e me torno e sou este homem”.34 Stirner foi
um dos primeiros a reconhecer que a verdadeira base da
liberdade é o poder. Ver a liberdade como uma universal
ausência do poder é mascarar sua base principal no poder. A teoria da propriedade de si é o reconhecimento, e de
fato a afirmação, da relação inevitável entre poder e liberdade. A propriedade de si é a realização do poder do indivíduo sobre si mesmo — a habilidade de criar suas próprias
formas de liberdade, que não estão circunscritas pela
metafísica ou categorias essencialistas. Neste sentido, a
propriedade de si é uma forma de liberdade que vai além
do imperativo categórico. Está baseada na noção de si como
um contingente e um campo aberto de possibilidades, e
não numa adesão absoluta e submissa às máximas morais externas.
Conclusão
Esta noção de propriedade de si é crucial na formulação de um conceito de liberdade pós-kantiano. Talvez,
nas palavras de Stirner, “a propriedade de si cria uma nova
liberdade”.35 Primeiro, a propriedade de si permite que a
liberdade seja considerada além dos limites da moral universal e das categorias racionais. A propriedade de si é a
forma de liberdade que o sujeito inventa para si mesmo,
ao contrário daquela garantida por ideais transcendentais.
125
7
2005
Foucault, também, procurou “libertar” a liberdade destes
limites opressivos. Em segundo lugar, a propriedade de si
aproxima-se do argumento de Foucault sobre a liberdade
situada nas relações de poder. Foucault, assim como Stirner, mostra como é ilusória a noção de liberdade como
algo que possa acarretar uma abstenção total do poder e
da coação. O indivíduo está sempre envolvido em uma rede
complexa de relações de poder, e a liberdade deve ser batalhada, reinventada, e renegociada dentro destes limites. A propriedade de si deve ser vista, portanto, como
criadora de possibilidades e resistências ao poder. Próximo a Foucault, Stirner defende que a liberdade e a resistência podem existir sempre, mesmo nas mais opressivas condições. Neste sentido, a propriedade de si é um
projeto de liberdade e resistência dentro dos limites do
poder — é o reconhecimento da natureza fundamentalmente antagônica e ambígua da liberdade. Em terceiro
lugar, a propriedade de si não é somente uma tentativa
para limitar a dominação do indivíduo, mas também um
modo de intensificar o poder que o sujeito exerce sobre si.
Para Stirner e Foucault, a liberdade universal em Kant
está baseada numa moral absoluta e em normas racionais que limitam a soberania do indivíduo. Foucault e Stirner estão interessados, de formas diferentes, em reformular o conceito de liberdade: por meio da prática ética do
cuidado de si e por meio da estratégia da propriedade de
si, que pretendem aumentar o poder que o indivíduo tem
sobre si mesmo.
Estas duas estratégias nos permitem conceituar a liberdade de uma forma mais contemporânea. A liberdade
não pode mais ser vista como uma emancipação universal, a promessa eterna de um mundo além dos limites do
poder. A liberdade que forma a base do imperativo categórico, a liberdade exaltada por Kant como a providência da
razão e da moralidade, não pode mais servir como base
para as noções contemporâneas de liberdade. Tanto Stir126
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
ner quanto Foucault mostraram que ela exclui e oprimi
onde inclui, e escraviza onde também liberta. A liberdade
deve ser vista não mais como subserviente às máximas
absolutas de moralidade e racionalidade, aos imperativos
que invocam a fria, a sombria inevitabilidade da lei e da
punição. Para Stirner e Foucault, a liberdade deve ser “liberada” destas noções absolutas. Antes de ser um privilégio garantido ao indivíduo por um ponto metafísico, a liberdade deve ser vista como uma prática, uma crítica do
ethos e do eu, e uma batalha que é assumida pelo indivíduo dentro da problemática do poder. Isso abrange necessariamente uma reflexão sobre os limites de si e das condições ontológicas do presente — uma problematização e
reinvenção constante da subjetividade. Uma liberdade póskantiana, neste sentido, não é apenas um reconhecimento
do poder, mas uma reflexão sobre os limites do poder —
uma afirmação das possibilidades da autonomia individual dentro do poder e das capacidades críticas da subjetividade moderna.
Tradução do inglês por Anamaria Salles e Eliane Knorr de
Carvalho.
Notas
ver Andrew Koch. “Max Stirner: The Last Hegelian or the First Poststructuralist.” Anarchist Studies 5 (1997): 95-107.
1
O termo alemão Eigenheit foi traduzido para a língua inglesa como Owness,
porém tal termo é inexistente no vocabulário inglês. Nesta tradução Eigenheit
será referido como “Propriedade de Si”, forma que consideramos mais adequada, lembrando que o conhecido livro de Max Stirner chama-se Einzige und Sein
Eigentum (O único e a sua propriedade). (N.T.).
2
Esta rejeição de fundamentos antropológicos da liberdade é discutida também por Rajchman. Na realidade Rajchman vê o projeto de liberdade de
Foucault como uma atitude ética de um questionamento contínuo das margens
e limites de nossa experiência contemporânea — uma liberdade da filosofia
3
127
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2005
assim como uma filosofia da liberdade. Minha discussão sobre a re-configuração da problemática da liberdade em Foucault em termos de estratégias éticas
concretas de si, também pode ser vista neste contexto.
4
Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Tradução de Thomas Kingsmill
Abbot. London, Longmans, 1963, p. 38.
5
Idem.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
Ver Lacan. Neste ensaio, Lacan mostra que a lei produz suas próprias transgressões, e que esta só pode operar por meio de suas transgressões. O excesso
de Sade não contradiz os mandatos, leis, e imperativos categóricos de Kant;
antes, eles estão inexoravelmente ligados a estes. Como a discussão de Foucault sobre as “espirais” do poder e prazer, na qual o poder produz o próprio
prazer que este deve reprimir, Lacan sugere que a negação do gozo — incorporado na lei, no imperativo categórico — produz sua própria forma de
satisfação perversa, ou um gozo a mais — le plus de jouir. Sade, segundo
Lacan, expõe este prazer obsceno revertendo o paradigma: ele torna este
perverso prazer como uma lei, uma espécie de imperativo categórico kantiano ou princípio universal: “Deixe-nos enunciar a máxima: ‘Eu tenho o direito de prazer sobre o seu corpo, qualquer um pode me dizer, e eu exercerei este
direito, sem nenhum limite que me intercepte a satisfação da exatidão dos
caprichos’”. Desta forma o prazer obsceno da lei que está desmascarado em
Kant é revertido na lei do prazer obsceno por Sade. Como Zizek aponta, em
“Kant com (ou contra) Sade”, o “insight” crucial do argumento de Lacan
aqui não é que Kant é um “sadista em segredo”, mas ao contrário, que Sade
é um “kantiano em segredo”. O excesso em Sade é levado a tal extremo que
se torna esvaziado de prazer, e toma a forma de um sangue frio, triste lei
universal.
8
Michel Foucault. Intellectual and Power: a conversation between Michel Foucault and
Gilles Deleuze. Foucault, Language, pp. 204-217.
9
Max Stirner. The Ego and Its Own. Tradução de David Leopold. Cambridge
and London, University of Cambridge Press, 1995, p. 158.
10
11
Idem.
12
Ibidem.
Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Tradução de
Alan Sheridan. London, Penguin, 1977, pp. 195-228.
13
14
Max Stirner, op. cit., p. 312.
15
Idem., p. 213.
128
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana
16
Ibidem.
nota 17: Michel Foucault. “Revolutionary Action: ‘Until Now.’” in Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ed. Donald
Bouchard. Oxford: Blackwell, 1977, p. 221.
17
Michel Foucault. “The Subject and Power.” Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. By Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow. Chicago,
University of Chicago Press, 1982, pp. 208-226.
18
19
Idem, p. 221.
20
Michel Foucault, op. cit., 1977, p. 30.
Michel Foucault. “What is Enlightenment?” The Foucault Reader. Ed. Paul
Rabinow. New York, Pantheon, 1984, p. 42.
21
Idem, pp. 41-42.
Michel Foucault, op. cit., 1982, p. 216.
24
Ethics: Subjectivity and Truth. Essential Works of Michel Foucault, 19541984. Ed. Paul Rabinow. Trad. Robert J. Hurley. Vol. 1. London, Penguin,
1997. p. 288.
25
Idem., 1997, p. 284.
22
23
Michel Foucault. The Use of Pleasure: The History of Sexuality, Volume 2.
Tradução de Robert Hurley. New York, Pantheon, 1985, pp. 29-30.
26
27
Michel Foucault. Kant on Enlightenment and Revolution. Tradução de Colin
Gordon. Economy and Society 15.1, 1986, pp. 88-96.
28
Michel Foucault, op. cit. 1984, p. 46.
29
Max Stirner. op. cit., p. 161.
30
Idem, pp. 279-180.
31
Ibidem, p. 135.
32
Idem, p. 324.
33
Ibidem, p. 152.
34
Idem, p. 151.
35
Ibidem, p. 147.
129
7
2005
RESUMO
A filosofia universalista de Kant é problematizada por meio das
intensas aproximações entre as reflexões de Max Stirner e Michel
Foucault, as noções de propriedade de si e cuidado de si, e os
desdobramentos políticos de resistências disseminando éticas de
liberação. A atualidade de Stirner e Foucault ao liberarem a liberdade da moral.
Palavras-chave: Propriedade de si, cuidado de si, liberação.
ABSTRACT
The universalist philosophy of Kant is questioned when faced
with the reflections by Max Stirner and Michel Foucault, the concepts of property of the self and care of the self, and the political
unfold of resistances that spreads ethics of liberation. The verve
of Stirner and Foucault when they free liberty from moral.
Keywords: Property of the self, care of the self, liberation.
Indicado para publicação em 1 de março de 2004.
130
verve
as vozes ardem
contra a mente
esta noite
e lá fora a chuva
é o silêncio
de todas as coisas
Sergio Cohn
131
7
2005
mujeres libres: anarco-feminismo e
subjetividade na revolução espanhola
margareth rago*
Que el pasado se hunda en la nada!
Qué nos importa del ayer?
Queremos escribir de nuevo
la palabra MUJER!
Hino das Mujeres Libres, de Lucía Sanchez Saornil, 1937.
Não é novidade dizer que as experiências femininas
na Revolução Espanhola, entre 1936 e 1939, foram obscurecidas por narrativas que não valorizam a dimensão do
gênero. Na tradição histórica que se constituiu em nosso
país, por exemplo, os estudos sobre esse importante movimento revolucionário foram marcados por um olhar que
não só privilegiou a atuação dos homens, como deu maior
visibilidade às lutas antifascistas, focalizando, na maior
parte das vezes, grupos comunistas e trotskistas em luta
* Professora no Departamento de História da Unicamp.
verve, 7: 132-152, 2005
132
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...
contra os franquistas, apesar do reconhecimento da participação de outros setores políticos importantes, como os
anarquistas. Daí a grande desinformação a respeito das
criações revolucionárias, nesse movimento político e social, tanto quanto sobre a atuação das mulheres. Como
observa Shirley Mangini, saindo dos marcos nacionais:
“Dos milhares de artigos e livros sobre a Guerra Civil
espanhola, poucos contêm informações sobre o papel das
mulheres na guerra e no período seguinte, exceto algumas descrições ou simples referências em notas de rodapé. E, no entanto, (...) a oportunidade mais revolucionária
para a emergência das mulheres na cena intelectual e
política ocorreu nesse momento.”1
Para muitos e muitas, portanto, a Revolução Espanhola
constitui um marco histórico fundamental, pelas rupturas
profundas que promoveu na ordem social burguesa e pelas
possibilidades de invenção da liberdade que revelou ao
mundo capitalista, especialmente com suas experiências
autogestionárias nas cidades e nos campos. Muitos
militantes libertários, entre mulheres e homens, ainda
hoje, indignam-se com esse esquecimento, pois compartilham o sentimento de terem participado de uma
“genuína revolução popular, como dificilmente se repetirá
na História”, como afirmou um deles, em entrevista
recente.2 Afinal, os anarquistas tinham construído toda
uma história de resistências e lutas, formado gerações
no mundo do trabalho com seus ateneus, bibliotecas,
escolas modernas, centros culturais e grupos artísticos,
e já tinham 70 anos, quando surge o Partido Comunista
Espanhol.
“Para os anarquistas tudo se referia à Espanha de 1936,
1939, tudo era exemplificado com a Espanha. Só que havia uma diferença. Entre os anarquistas, muitos participaram da Guerra Civil na Espanha, realmente ...” observa, em suas lembranças, Maurício Tragtenberg.3
133
7
2005
Evoco, ainda, a memória de duas militantes libertárias, profundamente, comprometidas com a preservação
histórica dessas lutas: a espanhola Federica Montseny
e a escritora italiana Luce Fabbri. A primeira, protagonista dos eventos revolucionários da Espanha, foi
nomeada ministra da Saúde e da Assistência Social,
no gabinete de Francisco Largo Caballero, em novembro de 1936; como tal, propôs implementar uma ampla reforma na saúde, descentralizando o atendimento médico, reorganizando os hospitais, legalizando o
aborto, criando casas para abrigar as mulheres carentes.4 A segunda, radicada no Uruguai, acompanhou
entusiasticamente cada minuto da Revolução, mobilizando diversos tipos de apoio e solidarização em seu
meio; produziu, além de vários artigos políticos para
os jornais libertários, uma coletânea intitulada 19 de
Julio, com o pseudônimo de Luz D. Alba, em que reúne
depoimentos e outros documentos de vários combatentes, testemunhando as criações coletivas da Revolução, a coletivização das fábricas e dos campos, a
reforma pedagógica, assim como as perseguições e as
mortes ocorridas no processo político revolucionário.5
A primeira registra o evento em sua autobiografia
e reivindica sua reatualização no presente:
“As semanas vividas em Madri naquele período,
aqueles meses de novembro e dezembro de 1936 permanecem em minha memória como os mais extraordinários de minha vida. Ver todo um povo espontaneamente mobilizado, trabalhando febrilmente para organizar sua defesa não é um fato histórico que se veja
todos os dias”, afirma em Mis primeros cuarenta años.6
Do mesmo modo, Luce Fabbri se refere à Revolução Espanhola como o acontecimento mais marcante
de seu passado: “Foram três anos em que vivemos
134
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...
mais na Espanha do que aqui, com o coração; na realidade, tudo o mais havia desaparecido...”.7
Não são apenas as histórias da desapropriação das
extensas propriedades de terra e da autogestão efetivada por milhares de pessoas nas fábricas e nos campos,
que mal conhecemos. Muitas experiências sociais e
culturais, como as promovidas pela Agremiação anarco-feminista “Mujeres Libres”, fundada por três ativistas libertárias, também foram silenciadas por várias
décadas e, na verdade, vieram à tona, em grande parte,
pela ação de suas próprias antigas militantes, desde o
final do franquismo, em 1975.8
Em linhas gerais, a história desse grupo anarco-feminista começa em abril de 1936, às vésperas da eclosão da guerra civil, quando três combativas anarquistas, a jornalista e poetisa Lucía Sanchez Saornil, a advogada Mercedes Comaposada e a médica Amparo Poch
y Gascón se unem para criar o grupo “Mujeres Libres”,
dedicado à luta pela emancipação feminina no mundo
do trabalho.
Lucía Sanchez Saornil, nascida em Madri, em 1895,
trabalhara na Companhia Telefônica de Barcelona e
durante uma série de greves de que participa, adere à
CNT – Confederação Nacional do Trabalho, de orientação anarquista. A partir daí, radicaliza sua participação, escrevendo nos periódicos libertários Solidaridad
Obrera e Tierra y Libertad. Em fins de 1935, anuncia seu
projeto de criação de uma agremiação política dedicada
à causa das mulheres. Mercedes Comaposada, filha de
um ativo sapateiro anarquista, nasce em Barcelona, em
1901, e aprende desde cedo a montar películas; mais
tarde, ao participar da CNT – Confederação Nacional do
Trabalho, encontra o escultor Balthasar Lobo, a quem
se une. Enquanto advogada, desgostosa com o comportamento dos trabalhadores num curso que oferecia em
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um dos sindicatos da CNT, em 1933, encontra Lucía,
com quem logo passa a discutir a questão feminina no
anarquismo. Amparo Poch y Gascón, nascida em Saragoça, em 1902, torna-se médica pediatra e também assina como a Dra. Salud Alegre. Assim como as outras
duas, defende a liberdade sexual, a maternidade consciente e o aborto.9
As três libertárias já traziam uma bagagem política
expressiva, como militantes de esquerda, tanto quanto
ideais feministas, sobre os quais escreviam nos jornais
Tierra y Libertad e Solidaridad Obrera, ou nas revistas
Estudios, Generación Consciente e Umbral. Revoltavamse com as dificuldades e com a opressão sexual enfrentadas pelas mulheres pobres, mesmo no meio libertário, mais oxigenado, em que eram solicitadas e incentivadas a participar no espaço público. Desde o último
quarto do século XIX, os anarquistas haviam conseguido forte penetração social, fundando sindicatos, criando
ateneus libertários, promovendo inúmeras atividades
culturais por toda a Espanha. Apesar de suas críticas
contundentes às instituições sociais, como a Igreja e a
família, apesar dos ataques ao casamento, às desigualdades sexuais, à educação coercitiva para as crianças,
na prática, a situação feminina continuava fortemente
opressiva e poucas melhoras haviam sido feitas.
Portanto, quando o pequeno grupo se constitui, não
demora a encontrar-se com outras companheiras, que
também começavam a atuar em Barcelona, na “Agrupación Cultural Feminina”, formada por anarquistas
como Pilar Grangel, professora racionalista e militante
da CNT e Áurea Cuadrado. Rapidamente, novos grupos
locais são criados por toda a Espanha e inúmeras mulheres aderem à organização. Muitas são operárias analfabetas; outras autodidatas, como Lola Iturbe, ou formaram-se nos ateneus libertários. Espanholas, na grande
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Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...
maioria. A anarquista Etta Federn, por sua vez, vinha
da Alemanha e também opta por unir-se ao grupo.
Mudar as condições de existência das mulheres pobres da Espanha, capacitando-as para o trabalho e para
a vida pública, retirando-as do confinamento doméstico
e do obscurantismo religioso, proporcionando-lhes meios práticos para a participação na vida social, política e
cultural foi uma preocupação constante nas propostas e
realizações do Grupo. Assim, além do “Instituto Mujeres Libres” e das centenas de agrupamentos locais espalhados pelo país, elas fundam o “Casal de la Dona Traballadora”, no Paseo de Gracia, em Barcelona, espaço
cultural destinado aos cursos, palestras e oficinas que
realizam para cerca de 600 mulheres. No bairro de Sans,
nesta cidade, criam um “Instituto nocturno”, também
chamado “Mujeres Libres”. Segundo um anúncio publicado no jornal CNT, de 1937, ficamos sabendo que ali
eram oferecidos cursos de Aritmética, Gramática, História da Literatura, Geografia, História, Contabilidade,
Ciências Naturais, Anatomia, Idiomas, Desenho, cursos de Agricultura, Puericultura, Enfermagem, formação de secretárias, mecanografia, taquigrafia, redação
e cursos em Propaganda. Além disso, poderiam estudar
mecânica na escola de transporte, entre outros ofícios
que não eram tradicionalmente oferecidos às mulheres, mesmo que estas já ocupassem um largo espaço no
mercado de trabalho industrial.
Contudo, mais do que isso, a mudança que essas
militantes visavam enquanto anarco-feministas apontava para a criação de novos estilos de vida, fundados
em uma ética capaz de propor novas formas de sociabilidade e de produzir subjetividades mais libertárias.10
A questão da produção da subjetividade se colocou enfaticamente, sobretudo nesse contexto revolucionário,
em que as/os anarquistas lutaram não apenas para
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destruir o poder político concentrado no Estado e fortalecido pela ajuda material de outros países, mas também investiram fortemente para transformar radicalmente a vida econômica, as relações sociais hierárquicas e desiguais e garantir as manifestações culturais
populares. De fato, a população mobilizada, ao lado dos
libertários, transformou a luta antifascista numa revolução social, como observam vários historiadores11 — e
esquecem outros — tratando de criar organismos econômicos autogestionários e de incentivar formas solidárias de sociabilidade por toda a parte.
Em se tratando da experiência do “Grupo Mujeres
Libres”, as questões sociais se aliaram às lutas pela libertação feminina e, nesse sentido, elas procuraram
promover novos modos de constituição de si, capazes de
subverter os códigos burgueses de definição das mulheres como esposas, mães, exclusivas do lar, ou como seu
avesso. Mas não de uma maneira apenas negativa, isto
é, como formas de reação ao poder, já que essas lutadoras implementaram muitas iniciativas pioneiras, como
a criação de cursos de capacitação das operárias, nos
quais desejavam “despertar a consciência feminina para
as idéias libertárias”, como afirmavam; cursos de alfabetização e profissionalizantes, visando criar novas formas de inserção social para as mulheres pobres; centros de assistência médica e de educação sexual; creches; liberatórios de la prostitución, isto é, casas
destinadas às que desejassem sair da prostituição e também “para que as prostitutas pudessem ter tratamento
médico e orientação para melhorar suas vidas”, como
afirmava Pura Perez12, além de espaços, como os da revista que leva o nome do Grupo, em que puderam refletir sobre si mesmas e criar toda uma cultura feminista
entre as militantes e simpatizantes do anarquismo.
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A revista, da qual existem apenas 13 números, era
escrita, feita e subvencionada só por mulheres, pois “sabemos por experiência que os homens, por muito boa
vontade que tenham, dificilmente atinam com o tom
preciso”13. Abordava temas variados relativos ao universo
feminino, como maternidade consciente, prostituição,
puericultura e infância, moda, ginástica, e discutia a
constituição de uma nova moral sexual. Revelando uma
preocupação estética, para além de ética, a revista divulgava as realizações do grupo, propagava as idéias libertárias, chamava as trabalhadoras para a reflexão e
militância anarco-feminista.
Vale notar que as possibilidades criadas de outras
formas de produção da subjetividade não se efetivaram
num marco individualista, como se poderia supor, e aqui
recorro às conceitualizações de Foucault, pois visavam
a uma intensificação das relações consigo mesmas, mas
não no sentido corrente de uma valorização da vida privada em detrimento da esfera pública, nem no de uma
acentuação do valor do indivíduo sobreposto em relação
ao grupo.14 Longe de estimular o apego à esfera privada
como refúgio em relação ao mundo competitivo dos negócios e da política, como defendia a ideologia da domesticidade contra a qual, aliás, elas se batiam, essa “cultura de si” do anarco-feminismo, se assim podemos chamar, passava pelo estabelecimento de novas relações
consigo, mas também com o outro, relações solidárias,
de amizade, de companheirismo político, anti-hierárquicas, num meio bastante sofrido como o operário. Visava, portanto, fortalecer as redes da militância política
tanto entre elas mesmas, como com os companheiros
ligados a outras entidades, sobretudo nesse momento
de intensa movimentação revolucionária em que um
novo mundo parecia totalmente possível.
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Essa questão não passou desapercebida para algumas historiadoras, como a norte-americana Temma
Kaplan, que registra a preocupação dessas ativistas libertárias com as dimensões psico-sociais, em geral ignoradas pelos homens. Evidenciadas em investimentos
para “ensinar as mulheres a agir politicamente, a assumir posições de liderança e a desenvolver novas imagens de si como povo potencialmente autônomo (...).”15
Segundo ela, esses temas escapavam aos militantes do
sexo masculino, que, como outros revolucionários, acreditavam firmemente que o sucesso da Revolução em
termos econômicos e sociais levaria necessariamente
ao fim da opressão sexual e da desigualdade de gênero.
O que significa que muitas mulheres continuavam a
enfrentar imensas dificuldades tanto diante da tirania
dos pais, maridos e irmãos, quanto pela proliferação da
prole, ou pelas situações de abandono, já que eram pobres e sem dote.
Contudo, há que se relativizar essas afirmações, pois
mais do que em qualquer outro país, a cultura anarquista espanhola contou com a adesão de médicos e psiquiatras libertários, que lutaram pela transformação da
moral sexual conservadora e preconceituosa, tanto ideologicamente, através de livros, folhetos e artigos publicados na imprensa anarquista, quanto por iniciativas
práticas. A revista Estudios, por exemplo, possuía uma
seção intitulada “Consultório Psico-sexual”, em que o
Dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Psicologia Sexual e em Sexologia, respondia às cartas dos trabalhadores, procurando apresentar soluções para seus problemas sexuais e sentimentais, ou prestar esclarecimentos sobre distúrbios físicos e psicológicos.16 O Dr. Isaac
Puente, assassinado em 1936, pelos franquistas, publicava nas revistas Generación Consciente, La Revista Blanca, Umbral e nos jornais Solidaridad Obrera, CNT, Tierra
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y Libertad, entre outros, divulgando suas concepções filosóficas e sociais libertárias.
O próprio nome escolhido pelo Grupo para se identificar e ser identificado é surpreendente e revelador: “Mujeres Libres” demarca com ousadia um espaço próprio,
já que assumido no contexto de uma Espanha católica,
machista e ultraconservadora, em que a liberdade feminina era associada à degeneração moral pelo discurso religioso e pelo científico. Enquanto a Igreja abençoava as mulheres puras e santificadas, associadas à
imagem de Santa Maria, os médicos burgueses, influenciados pelas teorias lombrosianas da degenerescência, afirmavam cientificamente que elas haviam nascido para a maternidade e para o lar. No rol das transgressoras, alinhavam-se prostitutas, lésbicas, feministas, anarquistas e socialistas. Esse pensamento predominava no mundo ocidental naquele período, e vale
lembrar que até os anos 1970, não apenas no Brasil, o
termo mulher pública era sinônimo de prostituta. Nos
inícios do século XX, não era raro que costureiras, floristas, chapeleiras, trabalhadoras das fábricas de tecido
e artistas fossem percebidas como prostitutas, não apenas na Espanha. Portanto, as palavras de Lucía, refletindo a respeito do nome dado ao grupo são esclarecedoras:
“Pretendíamos dar ao substantivo ‘mulheres’ todo um
conteúdo que reiteradamente se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo ‘livres’, além de nos definirmos como
totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito — mulher livre — que até o momento havia sido preenchido
com interpretações equívocas, que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem incompatíveis”.
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Mulher e direito à liberdade são associados em seu
discurso contestador. O feminismo que defendiam, contudo, difere muito do feminismo liberal vigente então. Na
tentativa de diferenciarem-se das liberais, que lutavam
pelo direito do voto, pelo acesso à esfera pública, deixando
inquestionados os códigos da feminilidade da época, as
“Mujeres Libres” chegaram, às vezes, a declararem-se nãofeministas, ambigüidade que se expressa nos próprios artigos publicados em sua revista. Assim, se de um lado, a
própria revista Mujeres Libres afirmava desejar “reforçar a
ação social da mulher, dando-lhe uma nova visão das coisas, evitando que sua sensibilidade e seu cérebro se contaminem com os erros masculinos. E entendemos por erros masculinos todos os conceitos atuais de relação e convivência (...)” (no.1, maio de 1936); de outro, criticava o
feminismo que, segundo elas, havia levado as mulheres à
guerra, “feminismo que buscava sua expressão fora do feminino, tratando de assimilar virtudes e valores estranhos (...)”.
Propunham, portanto, um outro feminismo, como diziam claramente: “é outro feminismo, mais substantivo, de
dentro para fora, expressão de um modo, de uma natureza, de um complexo diverso frente ao complexo, à expressão e à natureza masculinos. Está claro que elas defendiam uma afirmação das mulheres e, por isso mesmo, recusavam a publicação de quaisquer artigos escritos por
homens, na revista, reservando e preservando o espaço
feminino que construíam e queriam fazer expandir. Como
observam: “[a revista] quer (...) fazer ouvir uma voz sincera, firme e desinteressada: da mulher, porém uma voz
própria, a sua, a que nasce de sua natureza íntima (...)”
Ao mesmo tempo, se de um lado o discurso do Grupo
aparece muitas vezes como essencialista, ao invocar uma
natureza feminina diferenciada da masculina e, por isso
mesmo, capaz de trazer novas formas para modelar a vida
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social e cultural, de outro, destaca-se por sua crítica ao
modelo hegemônico de feminilidade, como aparece em
vários números dessa publicação. Assim, enquanto defendiam a igualdade de direitos entre mulheres e homens,
também questionavam a maternidade como função essencial da mulher: “que a mulher cuja vocação não for
doméstica e sua ampla realização, a maternidade, tenha
as mesmas facilidades que o homem para buscar e obter
outras oportunidades que lhe permitam conseguir sua liberação econômica” (n.5) Aliás, num artigo de Lucía Sanchez Saornil, que não quis ser mãe, no qual critica certas
organizações feministas, a maternidade aparece identificada negativamente pela metáfora animal. Diz ela: “(...)
recolhendo ao sentido tradicional da feminilidade, (aquelas organizações) pretendiam que a emancipação feminina só estivesse no fortalecimento daquele sentido tradicionalista que centrava toda a vida e todo o direito da mulher em torno da maternidade, elevando esta função animal
até sublimações incompreensíveis. Nenhuma nos satisfez”.17
Segundo o depoimento de Sara Berenguer, dado muitas décadas depois, “Mujeres Libres” foi um grupo atuante
dedicado à luta pela autonomia feminina, mas não tendo
em vista excluir a outra parte, os homens. Segundo ela, —
que se uniu a um companheiro e teve vários filhos e netos —, como um grupo revolucionário, este lutou pela
emancipação dos dois sexos. Ao comparar o “Mujeres Libres” aos grupos feministas norte-americanos da atualidade, delimita claramente as diferenças:
“Este não é o caso dos grupos feministas na América do
Norte e em outras partes do mundo, os quais tendem a
dispersar sua energia e seu tempo discutindo e escrevendo acerca da teoria da opressão da “pobre mulher” pelo “homem malvado”, mantendo-se deste modo demasiado ocupadas para ajudar às mulheres pertencentes às classes
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sociais com mais desvantagens e menos oportunidades,
como são as minorias, as pessoas pobres e as mulheres
da classe operária, que necessitam de ajuda prática,
educação e informação.”18
As concepções de gênero que orientavam as práticas e as representações que essas ativistas construíram de si mesmas e em relação ao outro foram bastante subversivas e radicais. Longe dos ideais de feminilidade e de masculinidade que vigoravam na Espanha
dos anos trinta, o Grupo “Mujeres Libres” defendia o
fim das hierarquias sexuais e sociais, o amor livre, a
maternidade consciente, o direito ao aborto, além dos
direitos de acesso à cultura, ao trabalho e à educação.
Se não se pode generalizar essas concepções para todas as mulheres que se envolveram com o Grupo, ao
examinar a biografia das três fundadoras, observa-se
que apenas Mercedes teve um companheiro fixo, o escultor Balthazar Lobo e desenhista da Revista. Lucía
viveu com sua amiga América Barroso a vida toda,
enquanto a dra. Amparo, que defendia claramente o
amor livre, não se fixou com nenhum homem. Nenhuma teve filhos.
Os discursos e as práticas do Grupo soam, hoje, com
uma impressionante atualidade e parecem bem mais
próximos das questões formuladas pelo feminismo contemporâneo do que os de suas precursoras institucionalmente reconhecidas, ou seja, as antigas feministas liberais. Num debate relativamente recente, questionando as políticas afirmativas da identidade,
Elizabeth Grosz sustenta que o feminismo precisa reconceitualizar o que entende por subjetividade, discordando que se trata de libertar as mulheres, pois reconhecer identidades seria defender uma política servil.
Segundo ela:
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Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...
“O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis,
fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para
se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de
maneiras fundamentalmente diferentes do passado e
do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para
serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta
para mobilizar e transformar a posição das mulheres,
o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.”19
Outra conhecida feminista, Rosi Braidotti, afirma
que “figurações de subjetividade nômade, complexas e
mutantes estão aqui para ficar, e propõe abandonar o
lar, porque o lar é frequentemente local de sexismo e
racismo — um local que nós precisamos retrabalhar
política, construtiva e coletivamente.”20
E´ possível sugerir que essa discussão se encontra
em parte com as posições que, nos anos trinta, formula Amparo Poch y Gascón, em seu Elogio del amor libre,
consciente dos efeitos nocivos e paralisantes da vida
doméstica e do modelo romântico de feminilidade:
“I. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amável
para me guarnecer da chuva e um leito para que descanses e me fales de amor. Mas não tenho Casa. Não quero!
Não quero a insaciável ventosa que alinha o Pensamento, absorve a Vontade, mata a Imaginação, rompe a doce
linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa.Quero amar
no largo ‘além’ que nenhum muro fecha e nenhum egoísmo limita. (...)
Eu não tenho Casa, que tira de ti como uma incomprensiva e implacável garra; nem o Direito, que te limi-
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ta e te nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores e
horizonte, onde o sol se põe quando tu me olhas...”21
Se pensarmos na casa, como símbolo da domesticidade, associado à idealização romântica da mulher
como rainha do lar, nascida para a maternidade e para
a esfera do mundo privado, ou da privação, como diz
Hannah Arendt, o discurso de Amparo soa totalmente
radical e transgressivo, aliás, como foi sua própria experiência de vida.
Para Mercedes Comaposada, no entanto, “Mujeres
Libres” não era uma “entidade feminista, mas um centro de capacitação da mulher em todos os terrenos cultural, econômico, social...”. Enfim, se há várias posições internas em relação à questão feminista, politicamente se colocam contra o sistema capitalista, pela
abolição do Estado, pela direção da economia pelos sindicatos, a favor da implantação do “comunismo libertário”. No entanto, o principal alvo do Grupo foi a questão
específica da mulher, acreditando-se que a libertação
feminina era condição sine qua non para a mudança
revolucionária da sociedade. Daí, as críticas contundentes aos homens anarquistas, que, segundo Lucía,
se consideram “o umbigo do mundo”.
Em relação à comunidade de mulheres que criaram,
todas se referem, em suas memórias, às fortes relações de solidariedade estabelecidas entre elas. Segundo Conchita Liaño: “absolutamente todas as mulheres
integrantes de MM.LL. havíamos feito da solidariedade
à mulher da Espanha um valor essencial. Tudo girava
ao redor da solidariedade, porque, volto a dizer, não havia líderes. (...) Teria sido possível comparar-nos a uma
colméia de abelhas, cada qual em seu lugar desempenhava sua tarefa”.22
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É interessante notar como ela questiona o modo pelo
qual as mulheres então criavam seus filhos, dando privilégios especiais aos meninos em relação às meninas. Segundo Liaño: “(para) nós, as fundadoras de
MM.LL., era imperativo que as mulheres compreendessem que não era impossível sacudir esse condicionamento atávico e deviam começar a modificar os esquemas a partir de si mesmas e de seu próprio lar,
começando por sua descendência filial, não outorgando aos varões privilégios sobre as meninas. Por que
deviam as meninas serem empregadas de seus irmãos?”
Aliás, depois de um ano de existência, o Grupo consegue realizar a Primeira Conferência Nacional, em Valência, em 22 de agosto de 1937, o que revela seu rápido crescimento. Em seguida, constitui uma “Federação Nacional de Mujeres Libres”, em bases anarquistas.
A historiadora Mary Nash indica um total de 153 agrupamentos locais de Mujeres Libres, criados entre 1937
e 1938.
Não vinculado oficialmente a nenhum organismo
político e defendendo tenazmente a autonomia política, “Mujeres Libres” se declarava anarquista e se dizia
identificado com a CNT – Confederação Nacional dos
Trabalhadores e FAI – Federação Anarquista Ibérica,
também anarquistas. Nem por isso as relações que
mantiveram com esses grupos políticos deixaram de
ser tensas. “Os militantes das Juventudes Libertárias”, em especial, tiveram muitas restrições ao grupo,
visto como separatista, pois temiam sua concorrência
na cooptação das jovens militantes femininas.
Em suas memórias, uma das participantes do grupo, Conchita Liaño, estranha essa atitude, afirmando
que a reação dos anarquistas em não querer reconhe-
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cer politicamente o grupo havia sido muito decepcionante, pois até mesmo os comunistas tinham criado
uma organização feminina, a “Mujeres Antifascistas”.
No entanto, também admite que isso não os impedia
de dar-lhes um importante apoio econômico.
Outra ativista, Pepita Cárpena, afirma em suas memórias: “Tampouco entendo o porquê da rejeição de
Mujeres Libres, que nunca os companheiros quiseram integrar em seu seio (como fizeram com a F.I.J.L.
– Federação Ibérica de Juventudes Libertárias) apesar do apoio de nossa querida Emma Goldman, que
intercedeu em nossa causa”.
Em seguida, valoriza a fundação da organização:
“Quando estive entre as companheiras pude compreender quão bem-fundado foi esse grupo, a visão que
tiveram e como entre todas era mais fácil expressarse. Não esqueçamos que ainda pesavam os preconceitos sobre nós. Não é em vão que se recebe uma
educação permanente para que de repente caiam todos os tabus.”23
Maria Rodrigues Gil, também militante, estabelece a diferença de seu grupo com outros do mesmo período: “À diferença dos setores femininos dos partidos
políticos, Mujeres Libres foi sempre uma organização
completamente autônoma da CNT e do movimento
anarquista em geral. Também, à diferença dos setores femininos dos partidos ( e de todos os grupos de
feministas que eu conheci, em Mujeres Libres, assim como na CNT, não existiu hierarquia de nenhum
tipo, sendo uma organização verdadeiramente anarquista e democrática em seu mais puro sentido, sem
permitir que a adesão ao poder ao controle frustasse
seus esforços para ajudar a mulher e a humanidade
em geral”. 24
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Valendo-me de alguns conceitos de Foucault, creio
que se pode afirmar que com suas artes da existência,
ou técnicas de si e de relação com o outro profundamente renovadas, feministas e libertárias, as práticas do Grupo “Mujeres Libres” se conectam com nossas preocupações atuais e podem, por isso mesmo,
constituir-se num importante repertório para nossa
atualidade. Vale notar que, num momento em que as
portas têm-se aberto para a participação feminina no
mundo político, cultural e social e em que o feminismo é considerado, até mesmo por aqueles que pouco
se ocuparam com as questões femininas, como a única revolução que deu certo no século XX, também causa polêmica a emergência de subjetividades ambiciosas, autoritárias e até mesmo bélicas, que contrariam as propostas libertárias do feminismo. Afinal, a
aposta maior do feminismo na importância de libertação das mulheres, na conquista de seu direito à cidadania vinculava-se à crença de que as mulheres
haviam passado por experiências muito diferenciadas das masculinas, o que as aproximava mais dos
valores positivos de construção social.
Finalmente, se como propõe Gaddis, uma maneira
de valorizar a história e de mostrar suas valiosas contribuições decorre de sua capacidade de oferecer mapas, um pouco como os geógrafos, transmitindo experiências do passado, “único banco de dados que possuímos”25, então faz todo sentido ouvir atentamente o
que as “Mujeres Libres” têm a nos contar, pelo que
podem nos enriquecer e aumentar nossa capacidade
de crítica e de invenção ética.
Tradução de Elogio del amor libre, por Paula Sibilia.
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Notas
1
Shirley Mangini. Memories of resistance: Female Activists of the Spanish Civil War.
Chicago, University of Chicago Press/Signs, 1991, p.171.
Refiro-me à entrevista realizada em Barcelona, em agosto de 2001, com o anarquista espanhol Heleno Iturbe, filho da militante anarquista Lola Iturbe, do Grupo
“Mujeres Libres”, já falecida.
2
Maurício Tragtenberg. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo, Ed. Unesp/
Escuta/Fapesp, 1999, p. 57 .
3
Patricia Greene. “Federica Montseny: Chronicler of an Anarco-feminist Genealogy” in Letras Peninsulares. USA, Davidson College, fall 1997.
4
Luz D´Alba (pseudônimo de Luce Fabbri). Antologia de la Revolucion Espagnola.
Montevidéo, Colección Esfuerzo, 1937.
5
Federica Montseny. Mis Primeros Cuarenta Años. Barcelona, Plaza e Janes Ed.
S.A.,1987, p. 107.
6
7
Margareth Rago. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo contemporâneo. São Paulo, Editora da UNESP, 2001, p. 188.
É de 1991 o principal estudo sobre as “Mujeres Libres”, escrito pela historiadora
norte-americana Martha Ackelsberg, e traduzido para o espanhol apenas em 1999.
8
Recentemente foi publicada uma cuidadosa biografia de Amparo Poch y Gascon
por Antonina Rodrigo.
9
10
Edson Passetti. Éticas dos Amigos. São Paulo, Editora Imaginário, 2003.
11
Murray Bookchin. Los anarquistas españoles en los heroicos 1868-1936. Valencia,
Numa Ediciones, 2000.
Depoimento de Pura Perez, em 1993, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias.
Madrid, Fundación Anselmo Lorenzo, 1999, p. 65.
12
13
Carta de Mujeres Libres a Hernandez Domenech, 27 de maio de1936, apud Nash,
1981, p. 86.
Michel Foucault. História da sexualidade III. O cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal,
1985, cap.II.
14
Temma Kaplan. “Other scenarios: Women and Spanish Anarchism”. In Renate
Bridenthal; Claudia Koonz. Becoming Visible. Women in European History. Atlanta,
Houghton Miffling Company, 1977, p. 418.
15
16
Margareth Rago. “ Es que no es digna la satisfacción de los instintos sexuales? Amor, sexo
e anarquia na Revolução Espanhola.”, in Carmen L. Soares (org.). Corpo e História.
Campinas, Editora Autores Associados, 2001, pp. 145-161.
17
Lucía Sanchez Saornil, CNT, 1937, In Mujeres Libres: luchadoras libertarias. op.cit,
p. 41.
150
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Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...
18
Idem, p. 101.
Elizabeth Grosz. “Futuro feminista ou o futuro do pensamento”, in Labrys,
estudos feministas, nos.1-2, jul-dez.2002.
19
20
Rosi Bradotti. “Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade”, in Labrys,
estudos feministas, nos.1-2, jul-dez,2002, p. 14.
Amparo Poch y Gascón, Mujeres Libres, no.3, julio 1936, in Antonina Rodrigo,
op. cit., p. 95-101.
21
“I. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-te de la lluvia y un
lecho para que descanses y me hables de amor. Pero no tengo Casa. No quiero! No
quiero la insaciable ventosa que ahila el Pensamiento, absorbe la Voluntad, mata el
Ensueño, rompe la dulce línea de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar
en el anchucroso ‘más allá’ que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. (...)
Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e implacable garra; ni el
Derecho, que te limita y te niega. Pero tengo, Amado, un carro de flores y horizonte,
donde el Sol se pone por rueda cuando tú me miras.”
22
Conchita Liaño Gil, 1994, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias, op. cit. p. 60.
23
Idem, p. 76.
24
Ibidem, p. 102.
25
John Lewis Gaddis. Paisagens da História. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2003, p. 23.
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RESUMO
Partindo das questões levantadas pelas teóricas feministas pósestruturalistas, relativas à produção da subjetividade, focalizo a
experiência das militantes anarquistas do Grupo Mujeres Libres,
durante a Revolução Espanhola, entre 1936-39. Considerando a ampla
e revolucionária experiência política do Grupo, pergunto se e como o
anarco-feminismo praticado por elas criou um modo específico de existência, mais integrado e humanizado, já que crítico das oposições
binárias como a que hierarquiza razão e emoção, masculino e feminino; se e como inventou eticamente; se e como pode operar no sentido
de reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Na
direção dessas colocações, os conceitos de “subjetivação” e de “artes da existência”, que norteiam as problematizações de Foucault
sobre a produção da subjetividade e inspiram as reflexões do feminismo pós-estruturalista são de fundamental importância.
Palavras-chave: anarco-feminismo, subjetividade. artes da existência.
ABSTRACT
Drawing on the issues raised by post-structuralist feminist
thinkers, in relation to the production of subjectivity, I concentrate on
the experience of anarchist activists from the group Mujeres Libres,
during the Spanish Revolution from 1936-39. Considering the wide
and revolutionary political experience of the Group, I raise the question of why and how the anarchic feminism developed by them has
created a particular way of existence, more integrated and humane,
critic of binary oppositions such as the one that hierarchizes reason
and emotion, masculine and feminine. I also present the question on
if and how anarchic feminism has invented ethically; on if and how
can it operate re-updating the political and cultural imaginary of our
time. In this way, the concepts of “subjectivation” and “arts of existence”, which direct Foucault’s problematizations on the production
of subjectivity and inspire reflections of the post-structuralist feminism, are of utmost importance.
Keywords: Anarchic feminism, subjectivity, arts of existence
Recebido para publicação em 26 de junho de 2004.
152
verve
A educação anarquista na república velha
a educação anarquista
na república velha
eduardo valladares*
“Nossa missão é semear o bem, difundir a luz por meio
da instrução livre de todos os preconceitos da rotina, criar
corações que odeiem a tirania e que desde a infância
maldigam todos os exploradores.”
Kropotkin
Os temas cultura e educação eram, e continuam
sendo, de grande importância no projeto de Revolução
Social defendido pelos anarquistas. Desde o século XIX,
o movimento ácrata internacional vinha se ocupando
dessas questões, pensadas fundamentalmente como
meios de emancipação. Muitos militantes dedicaram
grande parte de suas energias à elaboração de projetos
e práticas culturais, dotados de relativa autonomia e
caracterizados por uma identidade de classe, por consi* Doutor em História Social pela USP, autor de Anarquismo e anti-clericalismo,
São Paulo, Imaginário-Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, v. 12,
2000. Co-autor de Revoluções do século XX, São Paulo, Scipione, 1995.
verve, 7: 153-177, 2005
153
7
2005
derá-los possuidores de um valor social indispensável
para a construção do mundo novo.
A preocupação singular, e até obsessiva, pela educação deve-se ao fato de que a ação pedagógica era vista
como um dos instrumentos fundamentais para a efetivação da ação direta. O analfabetismo generalizado entre os trabalhadores dificultava a divulgação das idéias
ácratas nas camadas trabalhadoras. Em muitas ocasiões as vanguardas anarquistas responsabilizavam a
pouca instrução escolar pela fraca atuação dos trabalhadores no processo das lutas sociais.1 Por isso, a ênfase dada à disseminação da instrução como fundamental para a ampliação do movimento operário.
A imprensa libertária brasileira traduzia e publicava
artigos de educadores próximos às suas posições ideológicas, noticiava as experiências educacionais de outros
países e divulgava as informações que chegavam à redação sobre assuntos culturais. O internacionalismo característico dos libertários, aliado à composição nitidamente de origem imigrante do operariado brasileiro no
início da República, fazia com que os jornais, revistas e
livros editados no exterior logo fossem divulgados aqui. O
fácil acesso à literatura pedagógica permitia que os militantes tivessem sempre um conhecimento atualizado das
tendências libertárias no campo da educação.
A escola como dominação ideológica
Camaradas! arranquemos a criança ao padre e ao
governo!2
Educar é uma ação distinta de instruir. A instrução
é apenas um instrumento, não possuindo valor em si
mesma. A instrução não estava desvinculada da luta
mais geral. Pelo contrário, “a instrução só se difunde no
154
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A educação anarquista na república velha
seio dos trabalhadores à medida em que estes vão avançando no campo de sua emancipação”.3 Embora o domínio de vários saberes seja importante no processo educativo, contribuindo para a compreensão do funcionamento do mundo, a educação deve ir além disso. O papel
da educação é o de criar novos costumes, transformar a
consciência humana. Em suma, contribuir para a emancipação humana e a construção de uma sociedade igualitária. As pessoas educadas para a liberdade e igualdade enxergariam o mundo a partir de uma outra ótica,
bastante distinta daquela filtrada pela ideologia que justificava a dominação e a exploração. O fato de poder enxergar um outro tipo de sociedade é o primeiro passo
para a transformação. Dessa forma, a educação libertária não prepara a revolução, ela em si mesma já é a
revolução.
Os libertários conseguiam perceber com clareza que
todo projeto educacional é carregado de mensagem política. As escolas atuavam como agentes de reprodução
econômica e cultural de uma sociedade cindida, servindo de instrumento de difusão ideológica. A educação
tradicional tinha como corolário inevitável a formação
de indivíduos padronizados, dóceis, profundamente autoritários e carregados de preconceitos e superstições.
Por isso, a escola oficial, fosse laica ou não, era refutada. Ela servia apenas para incutir os valores sociais e
morais das classes dominantes.
A simples laicização do ensino também era considerada de pouca utilidade. Em alguns momentos, o Estado
e a Igreja eram vistos como “aliados satânicos”, capazes
da mais íntima colaboração. Em outras ocasiões, quando as divergências entre o clero e os políticos cresciam,
os anarquistas procuravam definir a atuação de ambos
como uma competição fraternal, como duas instituições
que disputavam o mesmo rebanho de explorados. As di-
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7
2005
vergências entre o Estado e a Igreja não passavam de
uma luta pela hegemonia entre os setores dominantes.
As escolas laicas eram acusadas de simplesmente
substituírem o ensino religioso pelo político. No lugar da
dogmática catequese, as crianças escutariam a cantilena patriótica. A destruição de todas as manifestações
autoritárias na sociedade incluía também as religiões
institucionais. A Igreja Católica, pela força e ligação
íntima que mantinha no sistema de poder, era sistematicamente atacada. Uma das formas de lutar contra
o obscurantismo do clero era a criação de escolas libertárias. O jornal anticlerical A Lanterna, em 1913, afirmava:
“O mais formidável de todos os obstáculos que se antepõem à nossa propaganda de emancipação social é a
instrução clerical, mais ou menos disfarçada, que recebemos na primeira infância. (....) Pois bem, depende de
nós evitar desde já que os nossos filhos contraiam o mal;
é criarmos nossas escolas, isolando-os do ambiente corrompido.”4
A instrução pública generalizou-se na Europa, durante o século XIX, como um importante instrumento de
promoção da nacionalidade. A nacionalidade é algo puramente abstrato e artificial, sendo necessária à recriação permanente do pacto que a fundou. Dessa forma, a
educação incorporou uma importante função: a de fomentar continuamente os laços de civismo que representam o próprio orgulho da nacionalidade. O objetivo
era reunir povos de determinadas regiões sob um governo comum. No contexto da época, tratava-se de incutir nas amplas massas um sentimento cívico que estreitasse os laços políticos presentes na consolidação
dos Estados Nacionais. “A educação pública tinha, pois,
no momento de sua origem, uma função política específica e importante a cumprir — significava a manuten156
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A educação anarquista na república velha
ção e crescimento do próprio Estado — além de, é claro,
acalmar os ânimos das massas que reivindicavam melhores condições sociais de vida”.5
A escola do Estado, apesar da aparência de ensino científico e do mérito de ensinar a ler e escrever, realizava
uma completa sistematização da violência. O objetivo era
a formação de cidadãos prontos a obedecer e defender a
ordem estabelecida, seres que reproduzem sistematicamente a ideologia que sustenta o regime de dominação.
Os libertários brasileiros não pouparam críticas à política educacional da República Velha. Mas, apesar de
denunciarem abertamente o descaso dos poderes públicos em relação à educação, não reivindicavam verbas
públicas ou uma maior atuação do Estado no ensino. Fiéis às suas convicções, não empunharam a bandeira do
ensino público e gratuito. Mesmo as legislações e medidas que as demais correntes socialistas consideravam
um avanço eram satirizadas:
“Tem-se dado ligeiramente um grande passo declarando a instrução primário gratuita, obrigatória e laica,
fechando ao padre a porta da escola, criando colégios e
liceus para meninas e senhoritas... Ninguém ignora porém que se pode ensinar muitos erros e tolices de um
modo gratuito, obrigatório e laico”.6
Apesar da firme recusa da escola mantida pela esfera
pública do Estado e das instituições privadas, quase todas bancadas pela Igreja, não se tratava, em absoluto, da
defesa da desescolarização da sociedade. Ao recusar a
iniciativa da educação como uma obrigação do Estado ou
da Igreja, os libertários pretendiam aproximá-la da sociedade. A posição de Bakunin é bastante esclarecedora
sobre esse aspecto:
“Será preciso, pois eliminar da sociedade toda a educação e abolir todas as escolas? Não, de modo algum;
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é preciso espargir as mãos cheias a educação nas massas, e transformar todas as igrejas, todos estes templos dedicados à glória de Deus e à submissão dos homens, em outras tantas escolas de emancipação humana. (...) e para que se convertam em escolas de
emancipação e não de submissão, terão que eliminar
toda essa ficção de Deus, o eterno e absoluto escravizador, e deverão fundamentar toda a educação das crianças e a instrução no desenvolvimento científico da
razão, não sobre a fé; sobre o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoais, e não da piedade
e da obediência; sobre o culto à verdade e à justiça, e
antes de tudo sobre o respeito humano, que deve substituir em tudo e por todas partes o culto divino”.7
Os revolucionários deveriam ter seu próprio projeto
social, o que significava, entre outras coisas, um projeto educacional. O discurso libertário era bastante distinto do de setores das elites intelectuais da época, defensoras da instrução popular como fundamental para
garantir o “desenvolvimento harmonioso do país”. A especificidade da pedagogia libertária estava na sua procura em formar indivíduos livres e preocupados com o
bem-estar social, capazes de contribuir no caminho da
transformação social. O desenvolvimento das capacidades individuais não tinha como objetivo proporcionar a ascensão social individual, nem, muito menos,
a harmonia entre as classes sociais. O objetivo último
era preparar o homem para viver na futura sociedade
ácrata. As crianças e os adultos eram incentivados a
serem solidários e se comportarem como irmãos. O
estímulo às atitudes fraternais estava em consonância com o princípio da solidariedade, ou ajuda mútua,
que norteava a teoria e a prática anarquistas.
A luta pela educação das massas trabalhadoras era
vista como um importante elemento na recuperação de
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A educação anarquista na república velha
instrumentos de ação social historicamente monopolizados pelas classes dominantes. A educação só poderia estar inserida no bojo de um projeto revolucionário de ruptura social. A proposta de Revolução Social implicava negação das instituições criadas pela
burguesia e seus aliados. A invenção de uma sociedade de homens livres não podia estar alicerçada nas
fundações do mundo que se pretendia destruir.
A explicação dos objetivos básicos da necessidade
de fundar escolas libertárias pode ser encontrada neste artigo do jornal O Amigo do Povo, de 26 de novembro
de 1904:
“Trabalhadores! Alquebrados pelo exaustivo trabalho da oficina, do campo ou da rua: privados de recursos, míseros, famintos no meio da opulência; mistificados pelo padre, iludidos pelos velhacos, perseguidos,
encarcerados, vitimados pelos malsins a soldo do Capital, deveis necessariamente velar com cuidado pelo
desenvolvimento intelectual de vossos filhos, a fim de
impedir a todo custo que neles se inocule o veneno da
resignação aos sistemáticos vexames, às costumadas
infâmias (...)
Trabalhadores, despertai! Nas escolas subsidiadas,
ortodoxas, oficiais, esgota-se a potencialidade mental
e sentimental dos vossos pequeninos com a masturbação vergonhosa e constante de mentirosa solidariedade no trabalho, na expansão e nas calamidades pátrias. Depois, quando adultos, guiados pelos nefastos
ensinamentos burgueses, serão colhidos em todas as
insídias, irão lacerar as carnes em todos os espinhos
da luta brutal pelo pão: escarnecidos e vilipendiados
pelos próprios pastores da desgraça que — com seu
método interessado de inibição mental — vo-los tornarão toupeiras impotentes (...)
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Animai os promotores ou regentes de escolas racionalistas, das quais sejam rigorosamente banidas as superfluidades e traições do ensino ortodoxo.”8
As duas primeiras décadas do século XX foram ricas
em experiências educacionais libertárias. O projeto
anarquista era bastante ambicioso. O objetivo era a criação de um completo sistema de ensino paralelo e em
clara oposição ao sistema oficial e privado. O plano incluía a criação de escolas para crianças e adolescentes,
o ensino elementar para adultos e até mesmo a fundação de universidades.
A educação seria feita por meio de uma série de iniciativas. A escola, apesar de sua importância, era vista
apenas como uma das formas possíveis do processo educativo. Além da criação de instituições escolares, desenvolveram intensa atividade cultural nos sindicatos
e em outras associações por eles criadas. Grupos de militantes formaram bibliotecas, editaram livros e jornais,
organizaram grupos de teatro e música, realizaram excursões de propaganda, incentivaram a criação de “Centros de Estudos Sociais”. Os Centros foram bastante numerosos e espalharam-se por vários pontos do país. Nas
cidades mais populosas, como Rio de Janeiro e São Paulo, surgiram em diversos bairros. Destinavam-se principalmente à educação de adultos, empregando o método do “ensino mútuo”. Entre as atividades mantidas, destacavam-se: a organização de cursos regulares,
conferências e representações teatrais, salas de leitura e manutenção de bibliotecas.
A montagem de um Centro de Estudos Sociais era
relativamente simples e não envolvia nenhuma burocracia. Para a sua organização bastava um pequeno número de militantes e simpatizantes dispostos a encontrarem um local de funcionamento, alguns móveis, organizarem uma biblioteca e uma lista de subscrição.
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A educação anarquista na república velha
A declaração de princípios do “Centro de Estudos Sociais Jovens Libertários”, instalado no bairro da Barra Funda em São Paulo, deixava claros os objetivos dessas organizações:
“Este Centro de Estudos Sociais propõe-se à divulgação
das teorias libertárias na massa operária, incitando à reivindicação dos seus direitos conculcados e da sua dignidade ofendida pelos parasitas do capitalismo. A ação direta, sem intermediários, nem capitães, sem a intervenção
dos mercantes da política (verdadeiros adormentadores de
consciências e mistificadores do povo) eis a nossa tática.
A nossa ardente sede de combate pela conquista do Direito universal, do bem-estar e da liberdade para todos, num
mundo governado pela liberdade, fortificado pela verdade e
coroado pela igualdade, nos fará procurar todos os meios
capazes de apressar a realização do nosso ideal e antes
quebrar do que torcer perante os obstáculos opostos pela
animosidade dos governos. Camaradas! dediquemo-nos
com ardor ao estudo do problema social, deixemos de embrutecer a inteligência com o álcool, boicotemos os bailes
públicos, verdadeiros focos de corrupção – e teremos contribuído para dissipar as densas trevas da ignorância, teremos feito alguma coisa de prático.”9
Deve-se salientar também o esforço empreendido na
fundação da “Universidade Popular de Ensino Livre”, em
março de 1904, no Rio de Janeiro. A Universidade, que foi
uma das mais arrojadas iniciativas dos anarquistas, tinha por objetivo ministrar um ensino superior e funcionar como centro de lazer e cultura para o proletariado.
Contudo, teve curta duração, em outubro a imprensa libertária anunciava o seu fechamento.
A preocupação com a criação de associações de caráter
educativo era apresentada como alternativa aos locais
considerados como templos da perdição: as tabernas e
as igrejas.
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“(...) um pequeno ponto de apoio poderia ser a criação
de um Centro de Estudos Sociais, onde o operário trocará seus hábitos de tavernas, igreja e jogos de todas as
classes, trindade estúpida que o embrutece e o desmoraliza, pelo estudo constante da Sociologia.”10
Na base da sociedade ácrata, encontra-se o princípio
do acordo livre. A capacidade de “agir por si mesmos”,
sem qualquer determinação e tutela de chefes era um
dos principais elementos na formação da consciência
anárquica. A aplicação do princípio da autogestão11 das
organizações escolares só podia ser um dos aspectos centrais do projeto pedagógico anti-autoritário. A tarefa de
educar, com todas as responsabilidades que isso significava, era algo que deveria ser assumido pela própria
comunidade. Os conteúdos, a carga horária, a metodologia, as taxas, os pagamentos dos professores, enfim,
tudo que se referia à escola deveria ser resolvido por
aqueles que estavam envolvidos no projeto escolar. Outro aspecto importante da autogestão pedagógica é que,
ao mesmo tempo em que se realiza o ensino formal propriamente dito, também se faz o aprendizado sócio-político da construção coletiva da liberdade.
A dependência dos cofres públicos era considerada
uma heresia. Por outro lado, as mensalidades cobradas não eram suficientes para cobrir as despesas. As
taxas não podiam ser muito altas, já que isso dificultaria o acesso dos filhos do trabalhador. A necessidade de envolver os alunos, os pais e a comunidade em
geral na manutenção financeira das instituições escolares era a única maneira de garantir a autonomia
do projeto pedagógico libertário. Os meios para angariar fundos eram aqueles tradicionalmente usados pelo
movimento para manter as suas associações: festas,
quermesses, conferências, listas de subscrição, venda de livros, etc.
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A educação anarquista na república velha
“Em 1914, as mensalidades na Escola Moderna nº 1
eram de 3$, 4$, 5$, de acordo com o grau de adiantamento do aluno (O Início, nº 1, 5/set/1914). Em 1915, os
preços continuavam os mesmos. A Escola Moderna n.º 2
cobrava 3$ para o 1º ano primário e 4$ para os demais.
Os preços das aulas noturnas eram estipulados em comum acordo entre o professor (Adelino de Pinho) e os
alunos. Na Escola Nova, de Florentino de Carvalho, as
mensalidades do curso diurno eram de 3$ para o 1º ano,
4$ para os demais e, do noturno: 4$ para menores e 5$
para adultos.”12
Os anarquistas não superestimavam o papel da escola. Ela era apenas uma das organizações sociais capazes de conduzir à sociedade igualitária. O mundo do
futuro tinha na escola de pedagogia libertária um ponto
de apoio, mas não começava nem terminava nela.
A luta pela causa da educação antidogmática tornouse uma das bandeiras de luta dos anarquistas. Porém,
apesar da afirmação da neutralidade política das escolas mantidas pelos anarquistas, a prática pedagógica
estava impregnada de objetivos políticos. Os alunos eram
sensibilizados com os problemas dos oprimidos e incentivados aos trabalhos de propaganda. A educação tinha
a importante função de combate à alienação, devendo
contribuir para o desmascaramento da ideologia de dominação.
Os anarco-sindicalistas valorizavam, e muito, a questão educacional. No jornal A Voz do Trabalhador –— órgão da Confederação Operária Brasileira –— com grande freqüência apareciam artigos sobre a questão educacional e cultural. A educação oficial e confessional
era vista como uma ferramenta para a formação do trabalhador disciplinado. A escola tradicional era acusada
de ser reprodutora dos preconceitos patrióticos, das convenções sociais, das superstições e dos dogmas religio163
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sos. O ensino ministrado nessas escolas era pernicioso, deturpado e irracional.
A importância da questão pode ser também percebida
pelas resoluções e decisões dos Congressos Operários promovidos pelos anarco-sindicalistas.
No Primeiro Congresso Operário Brasileiro, em 1906,
a preocupação com a questão escolar foi um dos pontos
que chamou a atenção dos delegados. Além de denunciar
as instituições educacionais burguesas, conclamava os
operários a criar escolas da classe, vinculadas a sindicatos e federações.
“Tema 7:
Conveniência de que cada associação operária sustente
uma escola laica para os sócios e seus filhos, e quais os
meios de que deve lançar mão para esse fim?
Considerando que o ensino oficial tem por fim incutir
nos educandos idéias e sentimentos tendentes a fortificar as instituições burguesas e, por conseguinte, contrárias às aspirações de emancipação operária, e que ninguém mais que os próprios operários interessam-se em
formar livremente a consciência de seus filhos;
O ‘Primeiro Congresso Operário Brasileiro’, aconselha
aos sindicatos operários a fundação de escolas apropriadas à educação que os mesmos devem receber, sempre
que tal seja possível; quando os sindicatos não puderem
sustentar escolas, deve a Federação local assumir o encargo.”13
O II Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913,
também adotou posições claramente contra o ensino fornecido pelas escolas mantidas pelo Estado e pela Igreja,
aprofundando a questão em alguns pontos. O próprio título
adotado — Educação e instrução das classes operárias —
já demonstra o interesse em ampliar o debate, tratando o
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A educação anarquista na república velha
assunto a partir de duas categorias distintas mas interligadas. Os delegados presentes reafirmaram a necessidade dos sindicatos em assumirem a educação dos adultos e
das crianças. A utilização do “método racional e científico
das escolas racionalistas” foi explicitamente aconselhado. Porém, apesar da resolução aprovada, defender a adoção dos princípios de Ferrer descartava um dos pontos mais
importantes na concepção pedagógica do pensador espanhol: a co-educação de classes. A preocupação era basicamente com a educação e instrução das classes operárias.
O aditivo aprovado, de autoria de José Romero e
Astrogildo Pereira, demonstra um certo cuidado em
incluir pressupostos de outros educadores anarquistas. A preocupação com uma educação complementar
técnica e artística, que vinculasse a atividade manual ao trabalho intelectual, está mais próxima do pensamento pedagógico de Paul Robin.
“Décimo Primeiro Tema:
Educação e instrução das classes operárias
Moção Aprovada
Considerando que a instrução foi até época recente evitada pelas castas aristocráticas e pelas igrejas
de todas as seitas, para manterem o povo na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade, para melhor explorarem-no e governarem-no;
Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo, nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas, sabiamente invertidas pelos cientistas burgueses, os quais metamorfoseiam a ciência, segundo
os convencionalismos da sociedade atual, e monopolizam a instrução, e tratando de ilustrar o operariado
sobre artificiosas concepções que enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas escolas, desequi-
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2005
librando-os com os deletérios sofismas que constituem
o civismo ou a religião do Estado;
Considerando que esta instrução é ministrada juntamente com a educação prática de modalidades que estão
em harmonia com a instrução aplicada;
Considerando que esta instrução e educação causam
males incalculavelmente maiores do que a mais suína
ignorância e que consolidam com mais firmeza todas as
escravizações, impossibilitando a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado e da
humanidade;
Considerando que este ensino baseia-se no sofisma e
afirma-se no misticismo e na resignação; este Congresso
aconselha aos sindicatos e às classes trabalhadoras em
geral, tomando como princípio o método racional e científico, promova a criação e vulgarização de escolas racionalistas, ateneus, revistas, jornais, promovendo conferências e preleções, organizando certames e excursões de propaganda instrutiva, editando livros, folhetos, etc, etc. João
Crispim e Rafael Serrano Muñoz, da Federação Operária
de Santos. Antonio Venosa, do Sindicato dos Pedreiros e
Serventes, de Santos. Artur Conde, do Sindicato dos Canteiros, de Ribeirão Pires. Pedro Vila, do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos. do Rio.”
Essa moção foi aprovada com o seguinte aditivo:
“Propomos que, além de escolas racionalistas, seja
aconselhada a criação de cursos profissionais de educação técnica e artística. Jozé Romero, do Sindicato Operário de Ofícios Vários. de S. Paulo. Astrojildo Pereira, de O
Trabalho, de Bajé.”14
O sistema educacional criado e mantido pelos anarcosindicalistas sofreu patrulhamento constante, tanto pela
Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum.
166
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A educação anarquista na república velha
As experiências educacionais foram atingidas pela repressão policial, incentivada pelo clero. A escola era denunciada como instrumento de dominação ideológica e de
disciplina da criança, transformando os educandos em
seres passivos. Os pequenos eram desde as primeiras
letras amalgamados para crer, obedecer e pensar de acordo
com os ditames dos dominadores.15
Os conteúdos eram também denunciados como moralistas e descompromissados com a realidade dos trabalhadores. Nas escolas anarquistas existia a preocupação
em manter viva a memória das datas significativas para
a história dos oprimidos. Os libertários procuravam construir sua própria concepção de passado através de palestras, recitais de poesia, redações publicadas nos jornais
da própria escola, da ação de grupos teatrais libertários,
corais e grupos musicais. As datas mais festejadas ou
lembradas foram: o 1º de maio (Dia do Trabalhador), o 18
de março (Comuna de Paris), o 13 de maio (Libertação
dos Escravos1), o 14 de julho (Tomada da Bastilha), o 13
de outubro (Fuzilamento de Ferrer).16
Francesc Ferrer
As idéias do catalão Francesc Ferrer i Guàrdia (18591909) ocuparam um espaço destacado na imprensa libertária internacional, com praticamente todos os jornais fazendo referências às suas obras e incentivando a
criação de Escolas Racionalistas.
Para Ferrer, as salas de aula, além de terem ambos
os sexos convivendo e aprendendo juntos, deveriam abrigar crianças de classes sociais diferentes. O ódio de classes, a revolta ou adesão não deveriam ser incutidos nos
cérebros dos pequenos, pois são sentimentos adultos que
exigem um determinado conhecimento social, inacessível para eles. A educação de crianças burguesas e
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proletárias deveria ser feita conjuntamente e tendo como
base um ensino racional. Dessa forma, elas seriam capazes de descobrir juntas as injustiças sociais e desenvolveriam o sentimento de solidariedade entre elas. Ao
se tornarem adultas, ricos e pobres, teriam clareza das
desigualdades e se rebelariam contra elas.
Os grupos ácratas que se apropriaram da obra pedagógica de Ferrer descartavam ou davam muito pouco destaque aos aspectos considerados ranços liberais do pensador catalão. As prioridades eram a divulgação dos princípios mais combativos em favor da luta pela emancipação
do proletariado e os pronunciamentos que atacassem
abertamente o papel reacionário da Igreja e do Estado.
Ferrer fundou, em outubro de 1901, a primeira Escola
Moderna em Barcelona. O clero reagiu com indignação,
com o bispo de Barcelona chegando a afirmar que preferia ver os filhos de seus fiéis num bordel do que numa
Escola Moderna. As aulas tiveram início com 30 alunos,
12 meninas e 18 meninos. “No ano de 1905, a Escola
Moderna tinha 147 sucursais, na província de Barcelona, três anos depois, 1 mil alunos em 10 escolas de Barcelona e Capital. Criaram-se escolas na Espanha (Madri,
Sevilha, Málaga, Granada, Cadiz, Córdoba, Palma, Valência), Portugal, Brasil, Lausane e Amesterdam.”17
Em 31 de maio de 1906, em Madri, uma bomba foi
atirada contra o carro do rei espanhol Afonso XIII. O
autor do atentado, Mateo Morale, era um ex-funcionário da Escola Moderna de Barcelona. Ferrer foi preso,
acusado de envolvimento, e a escola teve de cerrar suas
portas. A imprensa conservadora, principalmente a clerical, moveu intensa campanha contra o pedagogo, exigindo a pena de morte. Devido à falta de provas, um
tribunal civil o absolveu e, em junho de 1907, foi libertado. Porém, não lhe permitiram reabrir a escola pioneira.
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A educação anarquista na república velha
Livre das acusações, colocou-se à testa de movimento internacional de grande envergadura e repercussão
que procurou romper com os moldes conservadores que
imperavam no processo ensino-aprendizagem. Em Bruxelas, em abril de 1908, passou a publicar a revista L’
École Renouvée, considerada “extensão internacional da
Escola Moderna de Barcelona”. Por sua iniciativa foi criada, no mesmo ano, a Liga Internacional para Educação
Racional da Infância, com sede em Paris. A Liga recebeu o apoio de grandes personalidades: Máximo Gorki,
Anatole France, Bernard Shaw, o líder socialista Aristide Briand, o biólogo Ramón y Cajal (Prêmio Nobel), o historiador do sindicalismo espanhol Anselmo Lorenzo e
outros. Além de possuir um órgão próprio na França, L’
École Renouveé, e na Itália, Scuola Laica, possuía também seções na Suíça, Bélgica, Alemanha, Inglaterra,
Holanda e Portugal.
No entanto, as forças conservadoras não desistiram
e continuaram acusando Ferrer de ser instigador de
vários complôs, além de ensinar e recomendar em suas
escolas o uso de bombas de dinamite.18
Após encontrar-se com Kropotkin em Londres, retornou, no início de 1909, com sua família para a Espanha,
fixando residência em Alella. Porém, não teria muito
tempo para desfrutar o retorno ao seu local de nascimento. A Catalunha logo levantou-se numa sangrenta
e radical rebelião. Acusado de liderar os acontecimentos revolucionários da “Semana Trágica de Barcelona”,
foi julgado por um Conselho de Guerra e condenado à
morte. No dia 13 de outubro de 1909 foi fuzilado.
Após a sua morte, o criador da Escola Moderna tornou-se um grande “mártir do pensamento livre”, em
particular do movimento anarquista internacional. O ato
brutal do governo espanhol incentivou ainda mais a discussão de suas concepções pedagógicas. Manifestações
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e homenagens à sua memória foram constantes nos
jornais anticlericais e anarquistas.
As escolas modernas no Brasil
Nas escolas criadas pelos anarquistas brasileiros nas
primeiras décadas do século XX, encontra-se de maneira marcante a influência da obra de Ferrer. As propostas da Escola Moderna entravam em choque frontal com
a Igreja, detentora de um grande aparato educativo.
O Ensino Racional era baseado exclusivamente nas
ciências positivas, as únicas capazes de apontar em direção à liberdade e ao desenvolvimento. O ideário pedagógico tinha como principais eixos a valorização da Ciência, da Liberdade e da Solidariedade. O ensino religioso, assim como qualquer tentativa de imposição
dogmática ou explicação metafísica, seria rechaçado. A
crença e a educação religiosas encaminhariam o homem em direção à escravidão e levariam à estagnação da sociedade. O objetivo era a formação de pessoas instruídas, justas e livres de todo preconceito.
Numa conferência realizada em 1910, Maurício de
Medeiros apontou o combate aos preconceitos religiosos como um dos elementos da superioridade do Ensino Racionalista.
“Ele combate o preconceito religioso, o obscurantismo aviltante da alma humana, preso às criações
fantasistas sobrenaturais. Que importa ao homem a
moral religiosa se ela não o inibe de cometer atos degradantes à natureza humana? Na moral religiosa é
bom quem crê, e mau quem não crê; no entanto aí
estão os fatos a provarem a insanidade dessa afirmação.”19
170
verve
A educação anarquista na república velha
Ou como afirmava o Boletim da Escola Moderna, de
maio de 1919:
“Banir dogmas é um dever que se impõe. A escola
não é um templo religioso nem um centro político. É
um cadinho onde são purificados os espíritos para se
tornarem livres e independentes e não sectários de
mentiras e embustes. O seu fim é esse: a perfeição
do indivíduo.”20
O desenvolvimento da aptidão individual era o centro do processo educativo. O respeito às iniciativas da
criança eram o pré-requisito fundamental no processo de aquisição do conhecimento. A individualidade
de cada uma delas deveria sempre imperar. A cooperação deveria sobrepujar sempre as tendências de competição, a solidariedade substituir o egoísmo. O processo educacional tradicional, que busca moldar todas elas de acordo com os dogmas religiosos e
seculares, era visto como prejudicial e radicalmente
refutado.
A valorização da criança e o respeito às suas iniciativas teve como conseqüência a necessidade de repensar o papel do professor na sala de aula. A diminuição da
autoridade do professor implicava na valorização do educando. O papel do educador era de auxiliar seus alunos
para que eles pudessem realizar as suas aptidões naturais.
“O mestre deixa de ser na Escola Moderna a autoridade ríspida, que ordena, para ser o companheiro carinhoso que guia. Os ensinamentos são vindos ao acaso
dos fatos, guiados por estes.
Ao mestre cabe, então, habilmente ir preparando as
oportunidades de tais ensinamentos. A criança por si,
deduz do fato as conclusões que lhe parecerem justas,
se a tanto chega a sua inteligência, ou, em caso contrá-
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2005
rio, limita-se a registrá-las. Nunca, porém, intervirá o
juízo formado pelo professor desviando o julgamento da
criança, antes que este se faça.
Assim se evitarão os preconceitos.”21
O tom anticlerical e cientificista presente na proposta pedagógica das Escolas Racionalistas também
atraía pessoas não necessariamente ligadas às correntes anarquistas. Por comungarem com alguns destes
pontos de vista, pequenos comerciantes, intelectuais das
classes médias, jornalistas da imprensa operária, etc.,
também incentivaram e colaboraram na manutenção
das escolas.
As Escolas Modernas, assim como as demais organizações libertárias, enfrentaram oposição cerrada da Igreja e do governo.22 A imprensa católica desencadeou uma
verdadeira guerra contra tais estabelecimentos. Os ataques foram constantes durante todo o período em que as
escolas existiram. No folheto “Ferrer X Mártir ou Patife”, de Frei Pedo Sinzig, relata-se a presença desse religioso numa reunião anarquista realizada em Petrópolis, quando foram feitas denúncias contra o pensador
espanhol que os promotores do encontro, segundo o autor, não foram capazes de responder. No final do opúsculo, o Frei Pedo vangloriava-se de ter impedido a criação
de mais uma Escola Moderna:
“(...) Sabem o que quer dizer escola moderna? Releiam a transcrição na página 6 da circular de Ferrer, que
aí bem explica o que pretende ensinar à infância.
‘Para não assustar a gente escreve Ferrer, em 1901,
a um seu amigo para evitar a intervenção do governo,
chamo minhas escolas de modernas em vez de anarquistas. Minha propaganda tem por fim, confesso francamente, educar nestas escolas anarquistas convencidos. Meu desejo é preparar a revolução. Por enquanto
172
verve
A educação anarquista na república velha
temos de contentar-nos em plantar nos cérebros da
mocidade a idéia de transformação violenta. Ela deverá
aprender, que contra a polícia e a tortura há um só meio:
a bomba ou o veneno.’
E esta escola moderna, já funcionando no Rio, em
São Paulo, e em Minas, devia ser fundada, a 12 de outubro de 1913, também em Petrópolis! Graças a Deus que
por enquanto isso não foi feito.”23
A imprensa libertária e anticlerical revidava os ataques, acusando os conservadores de detratores e mentirosos. O clero era denunciado como responsável pela
difusão de valores que serviam apenas ao interesse dos
dominadores. Na defesa dos seus privilégios, os padres
negam a ciência e a “verdadeira cultura”. No primeiro
número do Boletim da Escola Moderna, publicado em 13
de outubro de 1918, havia um texto de Ferrer escrito
em 1907:
“(...) Primeiro que tudo desejamos advertir o público
que, sendo a razão e a ciência antídoto de todo o dogma,
na nossa escola não se ensinará religião alguma. Sabíamos que esta declaração provocaria o ódio da casta sacerdotal.”24
O recrudescimento nas manifestações operárias, no
final da década de 1910, fez com que os setores conservadores ampliassem sua oposição às organizações operárias e, em especial às lideranças libertárias. As greves e outras manifestações foram duramente combatidas. As autoridades procuravam um pretexto para
justificar o endurecimento policial.
A explosão de uma bomba, em outubro de 1919, no
bairro do Brás em São Paulo, causou a morte de quatro
militantes anarquistas. O jornal libertário A Plebe apresentou a tese de que poderia tratar-se de uma provocação policial. Por sua vez, a imprensa paulista conserva-
173
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2005
dora não perdeu a oportunidade: denunciou a existência de uma trama revolucionária e exigiu providências.
As autoridades policiais, alertadas, iniciaram uma grande campanha de perseguições, prisões e deportações.25
A repressão acabou atingindo as escolas mantidas
pelos libertários. A Secretaria de Justiça, em 1920, através de um ofício assinado por Oscar Thompson, fechou
as duas Escolas Modernas de São Paulo. O motivo apresentado foi que as referidas escolas, “visando a propagação das idéias anárquicas e a implantação do regime
comunista, ferem de modo iniludível a organização política e social do país, além de não cumprirem as exigências legais de funcionamento.”26
As Escolas Modernas funcionaram por um período
relativamente curto no Brasil. Porém, devido ao radicalismo e ousadia de suas propostas, merecem ser lembradas. Mesmo depois de todos esses anos, algumas de
suas preocupações pedagógicas continuam extremamente atuais.
Notas
“Mas se deixados única e exclusivamente a sua experiência, sem a luz esclarecedora da doutrina, sem as explicações da ciência sobre as leis sociais e da natureza, os
indivíduos poderão acomodar-se ou enveredar por caminhos reformistas, uma vez
que estão profundamente envolvidos por formas burguesas e católicas de pensar,
habituados às explicações metafísicas da vida e das sociedades e às disciplinas
impostas pelas organizações sociais autoritárias.” Yara Aun Khoury. “A Poesia
Anarquista” in Sociedade & Cultura (Revista Brasileira de História). São Paulo,
ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n. 15, setembro de 1987/fevereiro de 1988, p. 216.
1
2
O Amigo do Povo, São Paulo, 7 de junho de 1902.
3
A Voz do Trabalhador, n. 68, 5 de março de 1915.
4
A Lanterna, n. 214, 25 de outubro de 1913.
5
Silvio Gallo. Educação Anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba, Editora
UNIMEP, 1995. pp. 124/125.
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verve
A educação anarquista na república velha
“Que Deve Ser a Educação” in Na Barricada.. Rio de Janeiro, suplemento, 01/05/
1913.
6
7
Miguel Bakunin. Dios y el Estado. Madrid, Jucar, 1976, pp. 74-75.
8
O Amigo do Povo. 26 de novembro de 1904.
9
O Amigo do Povo. São Paulo, 30 de janeiro de 1904.
10
O Despertar. Rio de Janeiro, n. 3, 03 de dezembro de 1898.
“Autogestão: É o controle direto dos meios de produção pelos produtores autoorganizados em comitês de fábrica, comitês de interfábricas, federação ou confederação de comitês. Significa a integração do econômico com o político, através do
controle operário da produção e da democracia direta, substituindo, assim, o tecnocrata administrador e o político profissional da democracia representativa.” Maurício Tragtenberg. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo, Moderna, 1986, p. 91.
11
12
O Início, n. 2, 4 de setembro de 1915 apud: JOMINI, Regina Célia Mazoni.
‘Educação Anarquista na República Velha: algumas idéias e iniciativas pedagógicas.’ Campinas. Pro-Posições, nº. 3. Revista da Faculdade de Educação/ UNICAMP,
dezembro de 1990, p. 47.
13
Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de janeiro, Edições Mundo Livre, 1979,
p. 109.
14
A Voz do Trabalhador, 1 de outubro de 1913, p. 4.
“Os Estados modernos, compreendendo perfeitamente que com a decadência da
religião e com o desenvolvimento industrial era impossível manter na ignorância
suína, dos tempos idos, as multidões, (...) trataram de ir abrindo escolas e de
preparar programas adequados não às necessidades reais da mente infantil, mas
necessários à conservação perpétua e indefinida dos governos, com os regimes de
castas, explorando o povo, e defendido por soldados, filhos do povo, mas obliterado as suas idéias pela influência nefasta da escola.” Adelino Pinho. “A escola,
prelúdio da caserna”. A Vida, Rio de Janeiro, n. 5, 3 de março de 1915 apud:,
Regina Célia Mazoni Jomini, op. cit., p. 48.
15
“A cada 13 de outubro havia sempre homenagem ao ferroviário Francisco Ferrer,
em comemoração à data do seu fuzilamento, com apresentação de peças teatrais.”
Eduardo Maffei. ‘Gigi Damiani e Outros.’ in Temas de Ciências Sociais. Volume 5
(Marco Aurélio Garcia e outros - organizadores). São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas, 1979, p. 114.
16
Edgar Rodrigues. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia. Rio de Janeiro,
Achiamé, 1992, p. 15.
17
“Em todas as suas 121 escolas modernas ensinava e recomendava o uso de
bombas de dinamite”. Frei Pedo Sinzig O. F. M. Folheto: “Ferrer - Mártir ou Patife quatro horas entre os anarquistas.” Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 7.
18
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O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício
de Medeiros e publicada por sugestão da Associação Escola Moderna. Rio de
Janeiro, 1910, Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 22.
19
20
A Instrução Racional. Boletim da Escola Moderna, n. 4, 1 de maio de 1919.
Arquivo E. Leuenroth/ Campinas.
21
O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício
de Medeiros e mandada publicar pela Associação Escola Moderna. Rio de Janeiro,
1910. Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 20.
“A educação criada e mantida pelos anarco-sindicalistas sofria patrulhamento
constante, tanto pela Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum.”
22
23
Frei Pedo Sinzig O. F. M., op. cit., p. 13.
24
Boletim da Escola Moderna. São Paulo, Escola Moderna N. 1, n. 01, ano I, 13/10/
1918.
“Em outubro de 1919 ele se achava metido numa conjura para tentar uma
insurreição popular (quanto sonho!) em São Paulo. Eis quando o depósito de
bombas que se estava organizando na Rua João Boemer foi, acidentalmente, pelos
ares. Daí resultou o empastelamento de A Plebe e a prisão dos líderes anarquistas e,
entre eles, Gigi. (Damiani) , que foi deportado. Eduardo Maffei. op. cit., p. 111.
25
Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de Janeiro, Edições Mundo Livre, 1979,
p. 317.
26
176
verve
A educação anarquista na república velha
RESUMO
Durante a República Velha (1889-1930), os libertários brasileiros
promoveram várias experiências educacionais, muitas delas inovadoras. O discurso que valorizava a educação como forma de emancipação não estava, em nenhum momento, desvinculado de uma
prática revolucionária. Os anarquistas brasileiros mantiveram contato freqüente com os seus colegas ácratas da Europa. Os livros e
as práticas dos mais fecundos pensadores da pedagogia libertária, destacando-se o educador catalão Ferrer, eram acompanhados e adaptados pelos militantes daqui.
Palavras-chave: República Velha (1889-1930), anarquistas brasileiros, educação.
ABSTRACT
During the Old Republic - Repúnlica Velha 1889-1930 - Brazilian
libertarians promoted several pedagogic experiences, many of them
quite innovative. The teories that valued education as a tool to
emancipation were never disconnected of a revolutionary practice.
The Brazilian anarchists maintained frequent contact with their
European comrades. The books and practices of the most fertile
thinkers of the libertarian pedagogy, standing out among them the
Catalan educator Ferrer, were accompanied and adapted by militants here.
Keywords: Old Republic (1889-1930), brazilian anarchists, education.
Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 2004.
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2005
os pedreiros da anarquia
edgar rodrigues*
Hoje meu encontro é com os carregadores das pedras
que serviram para construir os alicerces, formar as bases do palácio da anarquia.1
No Brasil e/ou nos países europeus, asiáticos e africanos “exportadores” de mão-de-obra, nas últimas décadas do século XIX e em mais da metade do século XX, as
escolas de alfabetização eram escassas, e para os filhos
dos trabalhadores braçais, praticamente inalcançáveis!
As famílias pobres (muito numerosas na época) tinham de empregar seus filhos, aos sete anos de idade,
nas fábricas, nas oficinas, na construção civil e no comércio como ajudantes. Salvo poucas exceções, sem receber ordenados, aprendiam ofícios à força de pescoções
e outras violências físicas e psicológicas.
* Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos mais
importantes arquivistas dos movimentos anarquistas no Brasil e em Portugal.
Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais
de quarenta livros e cerca de mil artigos.
verve, 7: 178-193, 2005
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Os pedreiros da anarquia
A alfabetização dos imigrantes e trabalhadores nativos começava nos locais de trabalho, ouvindo seus companheiros, mais preparados e experientes, ler jornais
sindicalistas e anarquistas, em voz alta na hora do almoço, e fazer refeições, quando o ambiente permitia.
Depois iam assistir aos debates e palestras nas associações de classe profissionais, e os mais aplicados participavam de cursos de alfabetização, profissionalizantes
e de militância ideológica.
No Brasil, as associações operárias, depois sindicatos, foram as escolas e as Universidades do proletariado! Dir-se-ia que aprendiam simultaneamente profissões e o ler e escrever. E ainda sindicalismo, luta de
classes e anarquismo. Seus redutos de resistência (sindicatos), eram também escolas profissionais, de solidariedade, tornando-se ainda veículos de ajuda mútua, uma
prática que servia para sustentar sedes quando um só
sindicato não podia pagar o aluguel; para socorrer companheiros doentes, desempregados e presos; para custear publicações de boletins, jornais, opúsculos e até livros de idéias avançadas.
Entre as reivindicações dos assalariados estavam a
redução da jornada de trabalho de 14, 12 e 10 para 8
horas diárias, seguros de acidentes no trabalho e de
invalidez, das mulheres operárias poder ter seus filhos
em casa e dispor de alguns dias para amamentá-los;
lugar para comer nas fábricas, o fim do carrancismo
patronal, espancamento de menores e até de mulheres, melhorias salariais.2
Aos poucos, o proletariado compreendeu também que
seus filhos iam trabalhar na idade que deviam freqüentar as escolas (aos sete anos de idade); entravam na
adolescência, passavam a juventude e a fase adulta como
seus pais.
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2005
No Brasil, a questão social era tão implacável com os
assalariados quanto nos países de onde tinham vindo os
imigrantes para desbravar e produzir a riqueza que faz
deste país uma grande nação, que só não é boa para
todos os seus habitantes, porque existem políticos, gerados nas incubadoras das Igrejas e do Estado!
No 1° Congresso da velha A.I.T (Associação Internacional dos Trabalhadores), realizado de 3 a 6 de Setembro de 1866, em Genebra (Suíça), e nos subseqüentes
de 1867, 1868, 1869 e 1872, os congressistas discutiram métodos racionalistas de ensino e educação que
deviam ser postos em prática pelos trabalhadores e outros que o desejassem.
O eco do novo ensino e da escola nova atingiu o proletariado na Europa. Chegou ao Brasil, nas cabeças dos
imigrantes. E não obstante a demora, abriu novos horizontes ao produtor de riquezas, despertando a imaginação de muitos que não queriam ter deveres sem direitos e agitou esse entendimento nas associações operárias e nos locais de trabalho.
Seguindo os exemplos de seus companheiros europeus, os trabalhadores imigrantes formaram escolas
racionalistas no Rio Grande do Sul, nos subúrbios do
Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras localidades do
Brasil.
Inicialmente, o propósito era alfabetizar operários
(pais e filhos) e, logo mais, proporcionar-lhes conhecimentos gerais, sociologia, sindicalismo, anti-clericalismo; capacitá-los intelectualmente, inclusive com ajuda da Arte de Talma, desenvolvida nos teatros operários.
No Rio de Janeiro, em 1904, e em São Paulo, em 1915,
também, foram implantadas Universidades Populares e
ministrados cursos profissionalizantes, sociológicos,
180
verve
Os pedreiros da anarquia
envolvendo a emancipação social e a autogestão, em
tempos idos conhecida como ajuda mútua.
Exemplificamos na seqüência com os pedreiros da
anarquia, residentes em Campinas, no ano de 1908,
implantando uma Escola Livre, apoiada no documento
(raríssimo) que se reproduz.
“A Liga Operária de Campinas tomou uma iniciativa
bem digna de simpatia, a aquisição de um prédio para o
funcionamento da escola infantil que ora está em prédio impróprio e acanhado, procurando baseá-lo o mais
possível nos modernos princípios pedagógicos.
A escola não deve ser um lugar de tortura psíquica
ou moral para as crianças, mas um lugar de prazer e
recreio, onde elas se sintam bem, onde o ensino lhes
seja oferecido como uma diversão, procurando aproveitar a sua natureza irrequieta e alegre, falando-lhe mais
às suas faculdades e sentimentos, ao olhar do que ao
ouvido, dedicando-se mais à inteligência do que à memória, esforçando-se em desenvolver harmônica e integralmente os seus órgãos.
A experiência, a observação direta, a recreação instrutiva serão muito mais favorecidos pelo professor que
compreende a sua missão, do que as longas e fatigantes
preleções e as recitações fastidiosas e sem sentido.
O que é verificável pelo próprio aluno, o que é demonstrável, claro, lógico para a criança, o que ela por si
mesma descobrir ou desenvolver — isso será preferido
a todas as divagações metafísicas ou filosóficas, a todas
as afirmações impostas pela autoridade do pedante, que
não pode senão favorecer a preguiça intelectual.
E por isso a escola não será religiosa nem anti-religiosa, não será política, não será dogmática, mas irá
buscar a lição de coisas, a natureza vivida e provocada,
181
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2005
ao vasto campo das ciências exatas, ao raciocínio espontâneo e fácil, os motivos de agradável estudo para as
inteligências que desabrocham e da larga e salutar expansão para os organismos tenros.
Tal é o plano, tal o intuito que anima e inspira nossos atos, esforçando-nos pela realização desse melhoramento, que até o presente não foi tratado com o devido
carinho, pela falta de fundos, que desaparecerá com a
medida que acabamos de tomar, o lançamento de um
empréstimo operário, para o qual esperamos o vosso
apoio e ajuda trabalhadores.
Regulamento:
Art. I – Fica criada entre os sócios da Liga Operária
de Campinas e outras pessoas que queiram coadjuvar
esta associação e sua escola, uma emissão de 2.000
ações, no valor de R$ 5.000 cada uma.
Art. II – Estas ações receberão 3% anualmente de
dividendos, sendo sorteadas quando houver fundos.
Art. III – Para garantia dos resgates e dividendos, a
Liga, contribuirá com R$ 1.200.000 anualmente e título
de aluguel do prédio, (R$100.000 por mês) pelo que se
abriga
Das Ações.
Art. IV – As ações serão intransferíveis, podendo porém, em caso de morte do acionista, gozar todas as regalias delas:
§ 1° - A viúva do acionista, enquanto assim se conservar.
§ 2° - A mãe do acionista, se for viúva, enquanto assim se conservar.
§ 3° - Os filhos do acionista.
182
verve
Os pedreiros da anarquia
§ 4° - Em qualquer dos casos dos § antecedentes, o
herdeiro ou herdeiros estão sempre sujeitos ao expresso no Art. IV, bem como os possuidores de ações legalmente constituídos, na falta destes.
Do Fundo de Reserva.
Art. V – O fundo de reserva constituir-se-á pela forma seguinte:
a)
Pelo que se refere o artigo III.
b) Pelas importâncias que os acionistas quiseram
doar à escola ou à sociedade, com ofertas de ações ou
dividendos destas.
c) Pelas ações e dividendos prescritos de acordo com
o artigo VI.
Art. VI – Serão considerados prescritos os dividendos
e ações que não forem reclamadas dois anos depois dos
respectivos sorteios.
Direitos e Regalias dos Acionistas.
Art. VII – Todos os acionistas estão em pleno gozo de
seus direitos e fazem jus:
§ 1° - Os acionistas, membros da Liga pelo que regem
os Estatutos sociais.
§ 2° - Os acionistas externos não têm o direito de
serem votados, a não ser para comissões especiais, que
nada tenham a ver com a questão da Liga.
§ 3° - Assistem-lhes os direitos de:
a) Participar das assembléias gerais, relativas ao
que diga respeito a negócios das ações, podendo propor
medidas, votá-las.
b) Requisitarem, por escrito, do Conselho Administrativo, permissão para examinarem os livros da escri-
183
7
2005
tura especial dos negócios das ações, na sede social e
em presença do Tesoureiro ouvir as devidas explicações.
c) Fazerem qualquer reclamação ou representação
ao Conselho Administrativo.
d) Proporem o que julgarem de vantagem nas assembléias gerais, convocando-as, porém, em número nunca
inferior a 30 acionistas.
Dos Diretores.
Art. VIII - Os negócios das ações serão regidos pelos
mesmos conselheiros eleitos da Liga Operária, com as
obrigações que já lhes são impostas nos Estatutos Sociais.
Da Escrituração.
Art. IX - Haverá para os casos especiais desse regulamento:
§ 1° - Um livro especial de registro de assinatura dos
acionistas, encimado com este regulamento, descriminando neste livro o número das ações de cada um.
§ 2° - Talões numerados e rubricados pelo Contador e
Tesoureiro, com as ações impressas, devendo cada portador deixar no canhoto respectivo sua assinatura ou autorização.
§ 3° - Livros ou quaisquer outros impressos auxiliares,
à ordem do Conselho.
Disposições Gerais.
Art. X – Todo o acionista, que assinar no canhoto do
Talão das ações ou no livro especial, (Art. IX § 1°), fica
aceitando, para todos os seus efeitos, este Regulamento.
Art. XI – A escrituração especial de quantias e quaisquer valores, fica a cargo de pessoa competente de conformidade com o Art. IX e seus §, bem como o desempenho de expedientes e execuções de tudo ao que se refere
184
verve
Os pedreiros da anarquia
este Regulamento ou for determinado por Assembléia
Geral.
Art. XII – Seja qual for o número das ações ao portador,
o Possuidor ou acionista tem direito a um único voto.
Art. XIII – Em assembléia geral é permitido o voto por
procuração legal.
Art. XIV – Revogam-se as disposições em contrário.
Sala de Conselho Administrativo da Liga Operária de
Campinas, em 22 de Agosto de 1908.
O Relator, José Fonseca.
O Secretário, Joaquim Ribeiro.
A Comissão: Max Stephan, José Piovesan, Carmine D.
Abruzzi, Vittorio Maggalira, Ramón Durán.”
Estes e outros pedreiros da anarquia projetaram, carregaram as pedras, fixaram-nas “argamassadas” com
“anarquismo” uma sobre as outras simetricamente e a
obra ganhou forma, proliferou com maior ou menor intensidade em parte do território brasileiro, muitas vezes dificultada pelas autoridades que desejavam um trabalhador
ignorante, submisso!!!
Foi uma penosa edificação interrompida, periodicamente, pelos governantes dispostos a impedir a emancipação
social, cultural, e humana do proletariado.
Por força de uma educação libertária e de um aprendizado ideológico, o trabalhador realizou uma gigantesca obra, obrigando os poderosos e os políticos a alterar
leis primitivas, tornando suportável a mão-de-obra nas
fábricas, nas oficinas, e a questão social entrou nos
romances.
Como pensavam grande esses trabalhadores braçais!
Se tivessem sido escutados hoje não estaríamos cer-
185
7
2005
cados de pobreza, favelas, drogas, violência, as casas
de muralhas e janelas com grades como cadeias.
Dezenas, centenas de pedreiros da anarquia nascidos
na Europa, na América e no Brasil aprenderam quase tudo
que sabiam nas sedes dos sindicatos, dos Centros de Cultura Social, nos Grupos de Teatro Libertário e/ou estudando em Escolas Livres, lendo a imprensa operária, ácrata
e exercitando seus conhecimentos intelectuais, exercendo
ofícios vários, falando aos que sabiam menos e/ou tinham
receio de demonstrar o que haviam aprendido na escola
da oficina, na Universidade da vida...
Conheci e soube de Pedro Catalo, Jaime Cubero, Manuel Joaquim de Sousa, Manuel Silva Campos, Antônio
Corrêa, Artur Modesto, Carlo Aldegheri, Serafim Cardoso
Lucena (tinha escola livre e abastada biblioteca em casa),
José Sarmento Marques (responsável pelo jornal anarquista O Despertar, Rio de Janeiro, 1898), Pedro Matera (fundador do jornal Liberdade, 1917, da Escola Livre 1° de Maio,
inicialmente em Vila Isabel e depois em Olaria, Rio de
Janeiro, década de 20), João Peres Boucas, Antonio Dominguez, Ricardo Cipolla, Afonso Festa (expulso em 1919),
Daniel Conde (diretor de A Luta, Porto Alegre), Antonio Orellana (livreiro do anarquismo, em São Paulo, na primeira
década do século XX), todos operários sapateiros.
Muitos destes pedreiros da anarquia, falavam como
Tribunos, defendiam idéias na imprensa anarquista e sindicalista. Outros escreveram poesias, opúsculos, livros
(caso de Pedro Catalo e Manuel Joaquim de Sousa), defenderam teses de muito valor cultural e libertárias em congressos. Foram diretores e escreviam em diários, semanários e periódicos. Redigiram peças para o teatro, foram
excelentes atores/amadores.
Lembro e conheci operários marceneiros e carpinteiros: J. Marques da Costa (orador dos maiores que andou
186
verve
Os pedreiros da anarquia
por Manaus, Pará e foi expulso do Rio de Janeiro em 1925,
por falar no 1° de maio, na Praça Mauá, sem ordem da
Policia Carioca). Foi diretor/fundador da revista Renovação (1922-1923) do jornal O Trabalho, Rio de Janeiro.
Aqui trabalhou como jornalista contratado nos diários
A Pátria, A Vanguarda e outros). Domingos Passos (O
Bakunin brasileiro, um dos mais ativos anarquistas
e das maiores vitimas das autoridades brasileiras).
Manuel Perez Fernandez (diretor do porta-voz do marceneiros cariocas). Expulso do Brasil em 1919, Perez
foi para a Espanha, esteve refugiado em Lisboa, na
França, voltou a Espanha e foi condenado à morte nos
anos 1937-1939. Salvo por adido comercial brasileiro,
voltou ao Rio de Janeiro e, em 1946, com Oiticica,
Roberto das Neves e outros, ajudou a fundar Ação Direta: escrevia e falava muito bem (deixou um livro de
memórias inédito comigo).
Victorino e Luciano Trigo, José Oliva (o faz tudo em
“Nossa Chácara”/Nosso Sítio), José Martins (autor de
monumental obra histórica em dois volumes: História
das Riquezas do Clero Católico e Protestante), Joaquim
Moreira da Silva, poeta popular, cuja obra foi transformada em tese antológica com cerca de 600 páginas.
As marcas destes pedreiros aparece na imprensa
operária, na anarquista e/ou em atividades de educação racionalista e ainda incomodaram intelectuais,
muitos políticos e autoridades.
E fundaram a União dos Operários em Construção
Civil, primeiro num quarto, em casa de família na rua
Senador Eusébio, em 1917, e depois num prédio com
espaço para escola e grupo de teatro social, educando
e preparando anarquistas e atores. Ficava na rua Camari, 119. Encenaram peças como Gaspar, O Serralheiro, de Batista Machado, Amanhã, de Manuel La-
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ranjeiras, entre outras que sacudiam as teias de aranha dos “Casacas Velhas” do jornalismo e dos intelectuais e irritou a burguesia e as autoridades.
Ainda na construção civil, conheci Diamantino Augusto, José Augusto de Castro, Manuel Lopes, Rodozinho Colmenero (diretor de A Voz Humana), Venâncio
Pastorini (autor de opúsculos, como Cartilha Libertária),
Luis Saturino, Augusto Godinho, Armindo Sarrilho, Fernando Neves, Manuel Correia, Manuel Marques Bastos, Pascula Gravina, José Salgueiro, João Perdigão
Gutierrez fundador do jornal Dor Humana), Francisco
Fernandes, Albino Soares; soube de Eládio César Antunha, e Antônio Julião (o cérebro da greve pelas 8 horas
diárias em Santos) e quantos mais que deflagaram e
orientaram greves, distribuíram manifestos, poesias
revolucionárias, discursavam em comícios na praça
pública, escreviam (e alguns dirigiam periódicos e distribuíam-nos nos locais de trabalho, dando inigualável
colaboração ao teatro anarquista (Pascula Gravina, Manuel Marques Bastos, José Augusto de Castro).
Os operários gráficos também escreveram livros,
foram diretores de jornais e publicaram obras, participaram de congressos anarquistas, operários e pacifistas (contra a guerra, 1917): Carlos Dias (primeiro
Diretor do diário Voz do Povo, autor da obra Contra Perpetuidade do Erro e da Mentira, dentre outras); Antônio
Alves Pereira (diretor de A Aurora, tradutor de O Estado e seu Papel Histórico, de Kropotkin, autor do volume
O Proletariado Militante); Alexandre Belo (fundador de
Ação Sindical, São Paulo, 1958); Manuel Moscoso (diretor/fundador de A Liberdade e redator do Órgão da
C.O.B, A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 1908, com
Cecílio Vilar e outros); Polidoro Santos (publicou a revista Renovação, no Rio de Janeiro, 1905); Clemente
Vieira dos Santos; Antônio Teixeira de Araújo e deze-
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verve
Os pedreiros da anarquia
nas, centenas de operários ilustres, gráficos, jornalistas e carregadores de pedras para edificar o palácio
da anarquia!!!
Foram ao mesmo tempo escritores, jornalistas atores, oradores, contribuintes, distribuidores de imprensa pelo correio, de mão em mão, colaram nas paredes,
foram presos, espancados e alguns expulsos.
Conheci e visitei o camponês Elias Iltchenco, em
Erebango, Rio Grande do Sul. Veio da Ucrânia, conheceu o anarquismo, aprendeu sem mestre, português,
espanhol e esperanto; os ex-camponeses Maria Valverde, Cecílio Dias Lopes, Diego Gimenez, Aldigo Agostani,
Gumercindo Alvarez, Emilio Tesoro e Vicente de Caria.3
Soube ainda de militantes pintores como Gigi Damiani (autor de peças de teatro anarquista, expulso para a
Itália em 1919); José Romero (expulso para a Espanha
em 1919, esteve em Lisboa, retornando clandestinamente para o Rio de Janeiro; foi um dos redatores de A Terra
Livre, A Lanterna e, em Lisboa, de A Batalha: escrevia e
falava bem); Rodolfo Felipe (dirigiu A Plebe muitos anos),
João Navarro, um grande colecionador de obras, inclusive da Revista Blanca, que deu de presente. Damiani,
Felipe e Romero foram dos melhores jornalistas operários que o movimento anarquista já teve.
Conheci e soube de operários barbeiros, Amílcar dos
Santos, Adalberto Viana (bom poeta libertário), Daniel
Montalvão, Zacarias de Lima, e empregados do comércio: Adelino Tavares de Pinho4, Antônio Duarte Candeias5, Atílio Pessagno, Aquilino Massena, F.G. Sousa Passos (autor de vários opúsculos e deixou uma excelente
obra inédita, O Sentido Artístico do Anarquismo).
Podem-se juntar ainda outros pedreiros da anarquia,
como Hilário Marques (caldeiro, fundador/diretor da revista A Sementeira, duas fases); Alexandre Zanella, José
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Rodrigues Reboredo (confeiteiro, tradutor do francês,
espanhol e do alemão); Júlio Gonçalves Pereira, João
Castanheira, Joana Buelo (têxteis), Aníbal Dantas (correeiro), Virgilio Dall’Oca (taxista), Frederico Kniested
(vassoureiro, diretor de Aktíon, Der Freie Arbeiter, Alarm,
em alemão e, em português, de O Sindicalismo, e deixou
textos para o volume Memórias de um Imigrante Anarquista, 157 páginas, Rio Grande do Sul.
Conheci, pessoalmente, Rafael Fernandez, amolador
de tesouras e facas, em Porto Alegre. Nascido na Espanha veio menino para o Brasil. Nos últimos anos de vida
muitos intelectuais iam à casa de Rafael, ouvi-lo falar,
e só o conheciam como “El Paragüero”. Ajudou a fazer A
Luta (2° fase) e vendeu jornais; também convivi com
Margarida Barros, Virginia Dantas, Elvira Boni, costureiras, e soube de Teresa Nandes, Maria Rodrigues, Alfredo Vasquez (alfaiate); Isidoro Augusto (marmorista);
José Reis Segueira (corticeiro); Antônio José do Amaral
(cocheiro), Balezário Pereira (carvoeiro), e centenas e
centenas de operários e operárias. Muitos nomes encontrei nas atas, na imprensa operária e no noticiário
policial, acusados de subversão e só lutavam pela liberdade, pela Anarquia!!!
Estivadores como Manuel Campos, diretor de O Protesto, e algum tempo de A Plebe; o vidreiro Belmiro da
Silva Jacintho, pescadores João Franco e Jaime Rebelo; e o mineiro Valentim Adolfo João.
A maioria desses pedreiros da anarquia estudou nos
sindicatos e nos Centros de Cultura Social e aprenderam (sabiam) que Revolução é antes de tudo uma idéia,
um sentimento, uma vontade cultural e sociológica; é
trabalho e bem-estar social distribuído eqüitativamente por todos, por cada um.
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verve
Os pedreiros da anarquia
Que Revolução principia nos cérebros, evolui livremente fundamentada numa filosofia de vida generosa e
positiva, baseada em sentimentos de solidariedade e
ações que equilibram atitudes e movimento, na harmonia que “funde” a natureza e o homem, que concebe e
prepara personalidades, profissional e emocionalmente, para incorporar esforços e capacidades, caracteres
bem formados, cidadãos tolerantes que aceitem seus
companheiros como são e não como queriam que fossem, à sua imagem e semelhança, capazes de produzir,
participar, dar e receber.
Que Revolução consciente fomenta e desperta a grandeza de sentimentos, a solidariedade entre as pessoas,
entre povos, cultiva todos os dias o Amor ao próximo, à
Humanidade, com o mesmo carinho e seriedade como
que cultiva a vida, ao mesmo tempo em que demonstra
que o anarquismo não é estático, evolui sempre até tornar o trabalho agradável para todos, cada vez mais produtivo, menos desgastante até à perfeição.
Que Revolução começa em cada cérebro humano!
Nos cinco volumes Os companheiros6 evocamos 582
militantes (não consegui os nomes de todos os colaboradores) e destes menos de 2% eram intelectuais. Dos
mais de 98% de trabalhadores braçais, de variadas profissões e ofícios, referenciados nos cinco volumes e neste texto, todos deram a sua colaboração ao anarquismo
embasados nas idéias sindicalistas e libertárias.
Ainda assim, estes artífices raramente são notados
pelos que escrevem hoje revistas e livros, “demonstrando
erudição acadêmica”.
E, no entanto, pedreiros da anarquia têm a sua História escrita com, suor, lágrimas, sangue e fome! Deixaramna registrada em centenas de jornais, de manifestos,
opúsculos, em atas, teses defendidas em Congressos
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Libertários, alguns nas praças públicas e/ou nas portas
das fábricas. Em certa medida acabaram com a ortodoxia política em locais de trabalho, em vigor nos anos
20/30.
Deixar apagar pelo tempo e pelo silêncio dos que escrevem hoje os construtores do palácio da anarquia é negar
a igualdade do anarquismo.
(Como ficaram dezenas, centenas de pedreiros da
anarquia sem a nossa homenagem e nosso “protesto”,
ainda voltarei ao tema!).
Notas
Esta denominação tomei-a “emprestada” do médico e anarquista Fábio Luz.
Segundo este produtivo escritor e militante, após ler Palavras de um Revoltado, de
Kropotkin, tornou-se um defensor do que chamava “O palácio da Anarquia,
sempre de portas abertas para entrar e sair quem quisesse”.
1
Os anarquistas não viam com bons olhos as greves por aumentos salariais, pois
quase sempre originavam aumentos de custo de vida e eternizavam a pobreza. Os
anarquistas advogavam o fim do salariado, patronato, e o trabalho em autogestão: o fim do Estado que seria também o fim do capitalismo.
2
3
Italiano, anarquista, plantava cebolas em Sorocaba; deu aos seus filhos/filhas, os
nomes de Anarquia, Progresso, Liberdade, Harmonia, Aurora, Círio, Germinal e
Espartaco de Caria. Conheci Anarquia de Caria, companheira de João P. Gutierrez.
Autor de vários opúsculos como Quem não trabalha não come e fundador/professor da Escola Moderna 2, São Paulo. Viveu dando aulas até ter fechada sua escola
em 1919. Depois foi dar aulas de ensino livre no interior de São Paulo.
4
5
Autor com Edgar Leuenroth do livro O que é Maximalismo ou Bolchevismo, 1919.
Antônio Duarte Candeias usou o pseudônimo de Hélio Negro.
O 1° e 2° volumes foram editados no Rio de Janeiro por Editores Associados,
1994, e o 3°, 4° e 5° pela Editora Insular, Santa Catarina, 1997.
6
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verve
Os pedreiros da anarquia
RESUMO
Anarquismos são desenhados tecendo vidas de anarquistas que
inventaram soluções libertárias no Brasil, no começo do século
XX. Os Pedreiros da Anarquia, de Campinas, aparecem no interior
de uma série de trabalhadores libertários que interromperam a
continuidade da submissão, inventando novos costumes e novas
formas de educação.
Palavras-chave: Anarquia, Brasil, Educação.
ABSTRACT
Anarchisms are developed by the lives of anarchists that created
libertarian solutions in Brazil, in the early XXth century. The Pedreiros da Anarquia (The bricklayers of anarchy), in Campinas,
are inside a great amount of libertarian workers who refused the
submission, inventing new custom and new ways of education.
Keywords: Anarchy, Brazil, Education.
Recebido para publicação em 17 de novembro de 2004.
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anarquia e anarquismo
eduardo colombo*
Nossa época, aberta às contradições e paradoxos, massacrada pela chapa de chumbo de um pensamento politicamente correto, aprendeu a deixar um espaço de gueto
para a divergência e a marginalidade, desde que não se
ultrapasse um certo umbral para além do qual as idéias
tornam-se ação, e a heresia subversão.
Assim, a anarquia exala um pouco menos a enxofre
que antes e, edulcorada sob o qualificativo de “libertária”,
saiu dos bas-fonds proletários para tornar-se uma palavra
leve, e mesmo de bom tom nos salões e na imprensa, principalmente quando desliza em direção à direita e é acoplada ao adjetivo “liberal”. No entanto, as definições dos
dicionários são interessantes por deixarem transparecer
a persistência do pano de fundo semântico no qual a anarquia é incompatível com a ordem social estabelecida.
* Anarquista argentino, foi professor da Universidad de la Plata y Buenos Aires,
onde editou La Protesta. Radicado em Paris, desde os anos 1970, é psicanalista,
participou de diversas publicações e atualmente edita Réfractions. “Anarchie et
anarchisme”, Paris, Réfractions, 2001, no. 7.
verve, 6: 194-207, 2004
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verve
Anarquia e anarquismo
Textos antigos como o Dicionário da Academia Francesa, de 1694, estabelecem: “Anarquia: estado desregrado,
sem chefe ou qualquer tipo de governo” , e a Enciclopédia
de 1751: “Anarquia é uma desordem num Estado, e consiste no fato de que ninguém tem suficiente autoridade
para comandar e fazer com que as leis sejam respeitadas,
e onde conseqüentemente o povo se conduz como quer,
sem subordinação e sem polícia”.
O Littré, edição de 1885, diz: “Anarquia: ausência de
governo e, em conseqüência, desordem e confusão”; “Anarquista: promotor de anarquia, perturbador”. A palavra “anarquismo” não figura no Littré. Contudo, o Grande Dicionário
Universal do século XIX, de Pierre Larousse (1866), entre
as definições habituais da anarquia, reconhece um outro
tom, e cita: “Como o homem busca a justiça na igualdade,
a sociedade busca a ordem na anarquia (Proudhon)”. E Larousse faz a seguir o seguinte comentário que, diga-se de
passagem, lhe valeu o reconhecimento de Pierre-Joseph
Proudhon: “O sr. Proudhon deu o nome, aparentemente
paradoxal, de an-arquia, a uma teoria social que se baseia
na idéia de contrato, em substituição àquela de autoridade. É preciso esclarecer que a anarquia proudhoniana não
tem nada em comum com aquela da qual falamos acima.
Sob esse nome, o célebre pensador apresenta uma organização da sociedade onde a política encontra-se absorvida na economia social, e o governo na administração, onde
a justiça comutativa, estendendo-se a todos os fatos sociais e produzindo todas as suas conseqüências, realiza a
ordem pela própria liberdade, e substitui completamente
o regime feudal, governamental, militar, expressão da justiça distributiva.”1 Isto não o impede de colocar como antônimos de anarquia: “ordem, paz ou tranquilidade pública” e não “ Estado, poder político, autoridade”.
A Encyclopaedia Britannica dá, em sua 11ª edição de
1910, a palavra a Kropotkin para explicar o verbete
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anarquismo: “ Nome dado a um princípio ou a uma teoria
da vida e da conduta segundo os quais a sociedade é concebida sem governo”. “Os anarquistas consideram — diz
ele — o sistema salarial e a produção capitalista como um
obstáculo ao progresso. Mas eles também ressaltam que o
Estado foi e continua a ser o principal instrumento que
permite a alguns monopolizar a terra e aos capitalistas
apropriarem-se de uma parte completamente desproporcional da mais-valia acumulada no ano da produção.”
Entretanto, como o Estado encontra-se sempre presente, as idéias que o sustentam permanecem sem poder,
sociedade política, nomoi, regras. No Petit Robert de 1970,
encontramos a mesma definição tradicional “Anarquia:
polit. Desordem resultante de uma ausência ou carência
de autoridade”, mas com a palavra “anarquismo” chegamos a uma formulação quase correta: “Concepção política
que tende a suprimir o Estado, a eliminar da sociedade
qualquer poder dispondo de um direito de coerção sobre o
indivíduo.”. Assim, a anarquia, é a desordem em conseqüência da carência de um poder estatal de coerção, definição eminentemente ideológica que estabelece uma relação de causalidade entre a ausência de governo e desordem, relação que o anarquismo precisamente nega.
Evidentemente, o anarquismo busca a anarquia, afirmando que uma sociedade sem poder político institucionalizado, sem Estado, é a mais alta expressão da ordem.
Bakunin escreveu em Estatismo e Anarquia2, livro que
acompanha o nascimento do movimento no interior da
vertente anti-autoritária da Primeira Internacional: “Pensamos que o povo não poderá ser feliz e livre senão quando, organizando-se de baixo para cima, por meio de associações autônomas e inteiramente livres, fora de qualquer tutela oficial, mas de forma alguma fora de influências
diversas e livres numa igual medida de individualidades
e partidos, ele próprio criar sua vida”. Ele afirmara no pa-
196
verve
Anarquia e anarquismo
rágrafo precedente que: “Qualquer poder de Estado, qualquer governo, colocado por sua natureza e posição fora ou
acima do povo, deve necessariamente esforçar-se para submeter este último a regras e a objetivos que lhe são exteriores”. Portanto, “nós nos declaramos inimigos de todo
poder de Estado, de todo governo, inimigos do sistema estatal em geral.” E conclui: “São essas as convicções dos
revolucionários-socialistas, e é por isso que são chamados anarquistas. Não protestamos contra esse epíteto, pois
somos, de fato, inimigos de qualquer autoridade, e sabemos que esta exerce o mesmo efeito perverso tanto sobre
aqueles que dela são investidos quanto sobre aqueles que
devem a ela se submeter. Sob sua ação deletéria, os primeiros tornam-se déspotas ambiciosos e ávidos, exploradores da sociedade visando lucro pessoal ou de casta; os
outros, escravos.”
Desde o congresso de Saint-Imier e esse escrito de
Bakunin, passaram-se mais de cento e vinte anos e, com
o vigor da experiência do movimento anarquista, de seus
avatares, de sua sorte muitas vezes trágica, do medo que
ele sempre suscitou nos proprietários e donos deste mundo, e da violenta repressão que eles lhe opuseram, nós, os
anarquistas de hoje, orgulhosos da vivacidade de nossas
idéias, podemos continuar a afirmar a anarquia como uma
proposta para o futuro, como um caminho para as gerações vindouras.
Diremos, então, que a anarquia designa um regime
social baseado na liberdade individual e coletiva, regime
do qual é banida qualquer forma institucionalizada de coerção e, conseqüentemente, qualquer forma instituída de
poder político (ou de dominação).
A liberdade anarquista, enquanto princípio positivo de
organização política da sociedade, é a outra face da negação do princípio de autoridade, negação constitutiva do
conceito de anarquia que atrai o acordo geral de todos
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aqueles que se reconhecem no anarquismo em todas as
suas variantes, do individualismo ao comunismo (deixaremos aqui de lado este monstro híbrido e contra-natureza chamado anarquismo de direita).
Se falamos de liberdade anarquista é porque dois elementos dão sua especificidade a essa liberdade própria a
uma sociedade anarquista; um é a ruptura radical com a
continuidade sócio-histórica do princípio do comando-obediência constitutivo de qualquer poder instituído, de qualquer “Estado” (paradigma tradicional da dominação justa).
O outro é que, para os anarquistas, a liberdade não pode
ser separada de uma sinergia dos valores, na qual a igualdade é sua condição necessária. Assim, a liberdade é uma
criação social historicamente determinada, como aliás a
dominação; apenas a negação escapa desse determinismo da ação acabada e torna-se a força criadora, a vontade
de inovação. Proudhon escreve: “A negação em filosofia,
em política, em teologia, em história, é a condição prévia
da afirmação. Todo progresso começa por uma abolição,
toda reforma se apóia na denúncia de um abuso, toda nova
idéia repousa sobre a insuficiência demonstrada da antiga.” Da negação do governo surge a idéia positiva “que deve
conduzir a civilização a sua nova forma”.3 Dito com as palavras de Bakunin: “A vontade — ou a paixão — de destruir é ao mesmo tempo uma vontade criadora.”4
Segue-se a crítica sem concessões ao contrato social
dos liberais, tanto na linha lockeana quanto rousseauniana. Os “doutrinários liberais” afirmam que a liberdade
individual é anterior à sociedade política e que cada indivíduo aliena-se no “pacto social”, na ficção de uma unidade coletiva abstrata depositária da soberania. Para os anarquistas, ao contrário, a liberdade advém na história. A idéia
liberal que pressupõe os homens como “todos naturalmente
livres, iguais e independentes”5, antes da sociedade política, serve para legitimar a existência do Estado. A partir
198
verve
Anarquia e anarquismo
de um pacto ou contrato primitivo teorizado como um ato
de fundação do poder político “que supõe ao menos por uma
vez a unanimidade”, os liberais justificam o dever de obedecer àqueles que comandam e de aceitar as leis impostas pelos diferentes regimes. “De fato, se não houvesse
qualquer convenção anterior onde estaria”6 a obrigação
de submeter-se ao Governo ou de obedecer à lei? De onde
viria o direito de coagir do Estado?
“O homem só chega com muita dificuldade à consciência de sua humanidade e à realização de sua liberdade.” É no interior da sociedade, com os outros seres humanos, que a idéia de liberdade aparece e se desenvolve como
um valor a ser conquistado. A liberdade é “a grande meta,
o fim supremo da história.”7
Dessa proposição decorre que, sendo a liberdade uma
criação sócio-histórica, ela é a obra do coletivo humano.
Nem nada, nem ninguém, nem deuses nem a natureza,
dão ao homem sua liberdade. Ele se dá a si próprio, ele
institui seu nomos, sua regra, sua “lei”. A anarquia estabelece, de início, um corte radical com qualquer heteronomia.
A anarquia é, portanto, a figura de um espaço político
não hierárquico organizado para e pela autonomia do sujeito da ação (a autonomia do sujeito humano, sujeito construído como forma individual ou coletiva). A construção
desse espaço público, e das instituições que o tornarão
possível, é uma tarefa sempre inacabada. Mesmo na sociedade mais aberta e mais livre que se possa conceber, o
anarquista será um transgressor da norma; contra aquilo
que é, ele estará ao lado daquilo que, ainda não sendo,
tem a possibilidade de advir. “Tudo está na história, no
social-histórico, mas o anarquismo não é historicista”.8
Errico Malatesta escreveu: “Não se trata de fazer a
anarquia hoje, ou em dez séculos, mas de avançar na
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direção da anarquia hoje, amanhã, sempre.” Ele pensava
que a anarquia somente seria possível se o homens a desejassem e se colocassem em ação uma vontade revolucionária. “A existência de uma vontade capaz de produzir
efeitos novos, independentes das leis mecânicas da natureza, é um pressuposto necessário para aqueles que sustentam que é possível reformar a sociedade.”9 E para ir na
direção de um “estado de sociedade sem governo, sem poder, sem autoridade constituída”10 é preciso, então, pensá-lo e querê-lo. Assim concebida, a anarquia inscreve-se
na longa duração da História, ela se identifica com o espírito de revolta e com o desejo de liberdade, mas acrescenta um conteúdo conceitual, uma imagem de sociedade que
lhe é própria.
Com um certo anacronismo, autores diversos pensaram ver no passado longínquo o sopro da anarquia: mesmo
Max Nettlau, o Heródoto da anarquia como é chamado por
Rudolph Rocker, vai buscar na Antiguidade a “lembrança
de revoltas e até de lutas, que nunca atingiram seus fins,
levadas a cabo por alguns rebeldes contra mais poderosos”
e, segundo o mito dos Titãs ou de Prometeu, passando pelos heréticos contra os dogmas do papado romano, os Irmãos do livre espírito, os discípulos de Huss, os libertinos,
os mártires como Servet ou Bruno, a Abadia de Telemo, os
furiosos, Babeuf e Maréchal, até a Enquiry concerning Political Justice de Godwin, ele irá encontrar aí os precursores
desses anarquistas que talvez um dia darão fim à “longa
noite da era autoritária”. Todas essas lutas, esses esforços, esses sofrimentos, as aspirações desses vencidos
muitas vezes mergulhados em sangue, são momentos formidáveis no caminho da liberdade; eles abriram o caminho para o anarquismo, mas ainda não fazem parte da
idéia da anarquia.
O trono desmorona e o altar treme, a república substitui a monarquia de direito divino, mas a luta contra a au-
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Anarquia e anarquismo
toridade instalada não significa em si a negação de toda
autoridade, nem se alinha necessariamente com a imagem de uma sociedade sem coerção. Como diz Claude
Harmel, em sua Histoire de l’anarchie:
“Se incluíssemos na linhagem anarquista todos aqueles que se revoltaram contra o poder, contra a idéia de
poder, a história da anarquia se confundiria com a história dos homens: ela seria o avesso da história universal.”
Imaginar a anarquia como a definimos, pensar a teoria ou o projeto de uma sociedade anarquista, é uma possibilidade que aparece em um momento particular da história do Ocidente e que não surge, acabada e por acaso, da
cabeça de um rebelde genial; ela é o produto das condições
reais da exploração e da dominação de classe, da forma
estatal do poder político e das lutas sociais conexas. Ela é
filha da Luzes e da Revolução Francesa. Mas, uma vez
concebida, ela não se reduz às condições que determinaram seu nascimento. Sua força expansiva propaga-se como
um valor à disposição de toda a humanidade. Além disso,
as idéias em geral não tem uma origem identificável, elas
existem em embrião, ou em fragmentos, aqui e ali, mas
elas se solicitam, reúnem-se, reorganizam-se e adquirem,
retrospectivamente, um sentido novo quando uma nova
situação social as faz viver. A idéia surge da ação e deve
voltar à ação, afirmava Proudhon11, e Bakunin vai mais
longe12: é preciso ir da vida à idéia. “Quem se apóia na
abstração, aí encontrará a morte”.
Quando o movimento anarquista se constitui como tal
— origem que podemos situar historicamente, para dar
uma data simbólica, no congresso de Saint-Imier —o anarquismo irá se tornar um corpus teórico que organiza, sistematiza, representa e justifica a luta, e os métodos de
luta, para chegar a uma transformação profunda da sociedade visando construir um espaço político — ou regime político — concebido como anarquia.
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A anarquia é a meta, a finalidade do anarquismo. No
entanto, o conteúdo socialista do anarquismo não se concentra em uma única tendência e, de acordo com os momentos da história e as regiões do globo, as correntes anarco-individualistas, mesmo minoritárias, sempre irão manifestar sua presença. Evidentemente, pela própria lógica
que emana de suas premissas, e também pelo espírito
iconoclasta que lhe é inerente, o anarquismo nunca será
redutível a uma única doutrina, nem a um pensamento
justo ou correto. Sem centro, sem dogma, combatendo sem
trégua qualquer grupo que em seu nome pretender definir uma ortodoxia, o anarquismo será múltiplo, diverso,
multicolorido.
Por essas mesmas razões, Malatesta dava, ou melhor, acrescentava, uma outra interpretação para a
distinção entre anarquismo e anarquia. Ele queria liberar o anarquismo de qualquer ligação com um espírito de sistema, sempre restritivo, que o faria depender de uma “verdade” científica ou uma demonstração filosófica. “O anarquismo nasceu da rebelião moral
contra as injustiças sociais”, da luta contra a exploração e a opressão; somente o desejo e a vontade de
mudar justificam a anarquia. “A anarquia [...] é o ideal que talvez nem mesmo se realize, assim como nunca se atinge a linha do horizonte, que se distancia
conforme nos aproximamos dela, [em contrapartida] o
anarquismo é um método de vida e de luta, e deve ser
praticado hoje e sempre, pelos anarquistas, no limite
das possibilidades que variam de acordo com os tempos e as circunstâncias.”13 O anarquismo, como teoria da sociedade e da revolução ou como método de
ação, pertence à épistémè de sua época e depende do
clima social onde ele se desenvolve. A anarquia, como
valor, é mais ligada à negação do presente e à aspiração, que gostaríamos de acreditar universal, a um
mundo de livres e iguais.
202
verve
Anarquia e anarquismo
Assim, se a idéia, e mesmo a palavra “anarquia” podem ser encontrados na palavra de alguns precursores
— Willian Godwin, Pierre-Joseph Proudhon, Anselm
Bellegarrigue, Ernest Coeurderoy, Joseph Déjacques —
o anarquismo revolucionário e socialista é construído
assim que termina a Comuna.
O pensamento coletivo elaborado no interior da velha
Internacional vai se desenvolver, para os anarquistas,
sobre algumas linhas de força maiores: o enfrentamento
e a não-colaboração das classes, o internacionalismo, o
federalismo, a ação direta. Os prodhonianos haviam se
tornado minoria — os marxistas também o eram, como
sempre o foram — no interior da Primeira Internacional
— quando Eugène Varlin escreveu a James Guillaume
(dezembro de 1869): “Os princípios que devemos nos esforçar para fazer prevalecer são aqueles da quase unanimidade dos delegados da Internacional no congresso de
Bâle (setembro de 1869), ou seja, o coletivismo ou o comunismo não-autoritário.”14
Na época, o que fora afirmado e representado pelo
coletivismo era que a terra e os instrumentos de trabalho, todos os meios de produção, deveriam ser propriedade coletiva. Que o Estado seria substituído pela livre
federação dos produtores, e o assalariado pelo trabalho
associado, que garantiria a todos e a cada um o produto
integral de seu trabalho. “De cada um segundo seus
meios, a cada um de acordo com seu trabalho.”
Para os primeiros internacionalistas, para Bakunin
e Guillaume, para os jurassianos, este princípio dito
coletivista era suficiente; os espanhóis permaneceram
ligados a ele até o fim do século. Eles pensavam que
após a revolução, cada grupo ou coletividade avaliaria,
em função de suas possibilidades, qual modo de distribuição do produto poderia ser adotado. Guillume reconhecia que a repartição (ou a divisão) era “talvez o pon203
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to mais delicado de toda a organização social...” e nunca
quis abandonar o ponto de vista coletivista.
Mas ninguém tinha uma idéia clara — pensava Malatesta em sua polêmica com Nettlau em 192615 — quanto ao modo de atribuir a cada indivíduo, ou a cada associação, a parte do solo, a matéria prima e os instrumentos de trabalho que lhes caberia, nem como medir o
trabalho de cada um, nem como estabelecer um critério
de valor para a troca. A seção italiana da Internacional,
no congresso de Florença de 1876, será a primeira a adotar o comunismo anarquista para resolver esse problema. Os delegados pensaram que a única solução para
realizar o ideal da fraternidade humana escapando de
qualquer embrião de governo, e ao mesmo tempo, eliminando as insolúveis dificuldades da medida do esforço do
trabalho e do valor do produto, era a organização comunista na qual cada um daria, voluntariamente, sua contribuição à produção e consumiria livremente aquilo que
necessitava.16 Essas opiniões foram rapidamente difundidas no Jura e em Genebra por François Dumartheray,
Carlo Cafiero, Elisée Reclus, Piotr Kropotkin e outros, retomadas em seguida pelo Révolté de Genebra e de Paris
e, a partir dos anos 1879-80, elas se generalizaram para
a quase totalidade do movimento anarquista. Assim, o
anarco-comunismo propagou o lema: “De cada um, segundo suas forças, a cada um segundo suas necessidades.”
Alguns, como Nettlau, que cita a seu favor os “corajosos anunciadores de um anarquismo sem hipótese econômica, como Ricardo Mella e Voltairine de Cleyre”, continuaram a defender o anarco-coletivismo e a recriminar os anarco-comunistas por seu desejo de ir o mais
longe possível sem ver que o comunismo exigia a abundância, e que a Revolução deve resolver, assim que terminada, o problema do abastecimento de todos, sendo
204
verve
Anarquia e anarquismo
certo que isso se dará em meio à penúria. “Tomar indistintamente” seria um desastre para os revolucionários.
É possível, reconhece Malatesta, que “no entusiasmo dos iniciadores nós tenhamos imaginado as coisas
mais simples e mais fáceis do que elas são na realidade, mas não deixamos de compreender e de ressaltar
que a abundância é uma condição necessária do comunismo, e que essa abundância não pode ser produzida
num regime capitalista.” [...] “O talento literário e o grande prestígio de Kropotkin tinham tornado aceitável a
infeliz fórmula della presa nel mucchio (tomar indistintamente), mas “retornando da América do Sul (1890),
chamei a atenção para o absurdo da crença na abundância, e tentei demonstrar que o prejuízo provocado pelo
regime capitalista não é tanto a criação de um enxame
de parasitas, mas o de impedir a abundância possível,
detendo a produção ali onde se detém o lucro do capitalista.”17
O anarquismo revolucionário permaneceu comunista mesmo sabendo que nem a anarquia nem a passagem de uma economia de sobrevivência para uma
economia de abundância podem ser feitas em um dia,
mas que a luta para chegar a isso é de hoje, de amanhã e de sempre.
Tradução do francês por Martha Gambini.
Notas
1
“Distinguem-se comumente a justiça distributiva e a justiça comutativa. A primeira, exercida por via de autoridade, consiste na repartição dos bens e dos males
segundo o mérito das pessoas. A justiça comutativa, ao contrário, consiste na
igualdade das coisas trocadas, na equivalência das obrigações e das cargas estipuladas nos contratos. Ela comporta a reciprocidade, e se fosse realizada em estado
205
7
2005
puro, excluiria a intervenção de um terceiro, ao passo que essa intervenção é a
própria condição do exercício da justiça distributiva. “1. Commutative (justice), in
Vocabulaire technique et critique de la philosophie de André Lalande (1991).
2
Michel Bakounine, Étatisme et Anarchie. Œuvres complètes, éd. Champ libre,
Paris, 1976, vol. iv, p. 312 (escrito em 1873, Estatismo e anarquia é o último texto de
Bakunin publicado antes de sua morte, ocorrida em 1876). Há publicação em
protuguês como Estatismo e anarquia, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São
Paulo, Imaginário/Nu-Sol/Ícone, 2003. (N. E.).
Pierre-Joseph Proudhon, Du principe d’autorité – Idée générale de la révolution au XIXe
siècle, Paris, éd. de la Fédération anarchiste, 1979, p. 82 (ver crítica de Rousseau: pp.
94-96).
3
Michel Bakounine, “La Réaction en Allemagne” [1842], in l’Anarchisme aujourd’hui
de Jean Barrué, Paris, Spartacus, 1970 (A tradução feita por Barrué da célebre
fórmula é: “A volúpia de destruir é ao mesmo tempo uma volúpia criadora!!!!), p.
104. Lemos essas linhas estranhamente semelhantes trinta anos após em Estatismo
e anarquia : “Essa paixão negativa da destruição está longe de ser suficiente para
levar a causa revolucionária ao nível desejado; mas sem ela essa causa é inconcebível, e mesmo impossível, pois não há revolução sem destruição profunda e apaixonada, destruição salvadora e fecunda, porque precisamente dela, e somente por ela,
são criados e produzidos novos mundos.”
4
5
John Locke, Traité du gouvernement civil, chapitre VIII: Du commencement des
sociétés politiques.
6
Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, livre I, chapitre V.
7
Michel Bakounine, “l’Empire knouto-germanique [ Dieu et l’État ]”, in Bakounine,
Œuvres complètes, vol. viii, éd. Champ libre, Paris, 1982. Publicado em português
como Deus e o Estado, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São Paulo, Imaginário/
Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, 2000, v. 9. (N.E.).
8
Por “historicismo” entendemos o ponto de vista que toma como norma aquilo
que é historicamente consagrado; Feuerbach denuncia no historicismo uma forma
de relativismo histórico levando à aceitação não crítica do mundo presente. Se o
historicismo torna-se prospectivo, ele verá no fim da história o cumprimento de
uma finalidade: o advento do reino de Deus, ou o triunfo do proletariado.
9
Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 2, Roma, 1926. “Ancora su scienza e
anarchia”, in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 211.
A. Hamon. Socialisme et Anarchisme, Paris, éd. E. Sansot et Cia, 1905 (Definição
de anarquia, p. 114).
10
Pierre-Joseph Proudhon. De la Justice dans la Révolution et dans l’Église, Paris,
Garnier Frères, 1858, tome II, p. 215.
11
206
verve
Anarquia e anarquismo
12
Michel Bakounine. Étatisme et Anarchie, op. cit., p. 309.
Errico Malatesta. “Repubblicanesimo sociale e anarchismo”, Umanità Nova, n°
100, Roma, 1922, in Scritti, Ginevra, 1936, vol. II, pp. 42-43.
13
James Guillaume. l’Internationale. Documents et souvenirs, édit. Grounauer,
Genève, 1980, vol. I, p. 258
14
Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 14, Roma, 1926. “Internazionale collettivista e comunismo anarchico” in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 253 e sgs (ver
também os dois artigos de Max Nettlau publicados no Suplemento de La Protesta
de Buenos Aires : “Colectivismo y comunismo antiautoritario en la concepción de
P. Kropotkin”, 20 de setembro de 1928; “Algunos documentos sobre los orígenes
del anarquismo comunista” [1876-1880], 6 de maio de 1929).
15
16
Idem, p. 260.
17
Ibidem, pp. 263-264.
RESUMO
A importância do comunismo anarquista, situado historicamente,
no interior dos anarquismos.
Palavras-chave: Anarquismos, comunismo anarquista, anarco-sindicalismo.
ABSTRACT
The importance of the anarchist communism, historically located
inside the anarchists practices.
Keywords: anarchism, anarchist communism, anarco-syndicalism.
Indicado para publicação em 15 de março de 2004.
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quando se anda
de costas para a lua
a sombra chega antes
Sergio Cohn
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verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
centro de cultura social, uma prática
anarquista
entrevista com josé carlos morel
Apresentação
Estamos na nova sede do Centro de Cultura Social,
associação anarquista criada em 1933, situada na Rua
Inácio Araújo, 191-A, em frente a estação Bresser do
Metrô, na cidade de São Paulo. Sentados em roda, estão José Carlos Morel e alguns companheiros do Centro de Cultura Social — CCS (Nildo Avelino, Anamaria
Salles, Fabrício Martinez, Francisco Cuberos Neto,
Francisco Romero Ripó Neto, Nilton César dos Santos
Melo). Entre eles Edson Passetti, Acácio Augusto e Thiago Parafuso Sousa Santos, pilotando a câmera. É sábado, 31 de janeiro de 2004, à tarde, durante uma forte chuva de verão.
A longa conversação atravessa a tempestade entre
cafés, risadas, interrupções, trocas de concepções.
Uma parte desta conversação foi transcrita para cá.
verve, 7: 209-223, 2005
209
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Nu-SoL — Como é que aconteceu o anarquismo na sua
vida?
Morel — A primeira vez que eu ouvi falar de anarquismo, de uma maneira não pejorativa, foi em 68, num
artigo da revista Manchete. Maio de 68, aquela coisa toda.
A Manchete publicou um artigo que falava dos jovens
anarquistas com uma foto de uma passeata enorme em
Paris. Aquela em que os caras estavam derrubando os
carros, com umas bandeiras pretas em cima da barricada feita com automóveis. Esta foi a primeira vez que
ouvi falar de anarquismo. Eu já tinha uma inquietude
em relação a isso. A minha família era muito politizada. Os anos sessenta, no Brasil, foram anos de muita
polarização política. Eu me sentia, instintivamente, próximo do socialismo, mas aquelas coisas que o partido
comunista fazia eu achava muito, muito chato, uma
merda! Eu procurava alternativas e, na época, tinha
muita coisa rolando. O anarquismo aconteceu politicamente aí, fazendo uma proposta de mudança, de revolução, que não passava pelo partido, pela organização centralizada. Logo a seguir, achei num sebo aquele livro do
George Orwel sobre a Espanha, editado pela Civilização
Brasileira. E lá se falava um pouquinho de anarquismo,
mas o Orwel nunca desceu do muro. Ele era simpático
aos anarquistas, mas não explicava muita coisa. Mesmo assim, comecei a me interessar, a buscar coisas.
Um ano e meio depois, encontrei três livros que foram
importantes. Um eu encontrei num sebo que ficava lá
perto do largo São Francisco. Era o livro de um português chamado Silva Mendes, de 1892, chamado: Socialismo Libertário ou Anarquismo. Na livraria Hemus, que ficava na São João encontrei dois livros que o Roberto das
Neves tinha editado: O Anarquismo, uma coletânea de
artigos do Edgar Leuenroth, e a tradução de O Anarquismo do Daniel Guérin. Então, comecei a ler e a descobrir.
Tinha aquele negócio que o Karl Marx era o grande pen210
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
sador do socialismo, e o Silva Mendes descrevia toda
aquela luta do Marx contra o Proudhon, do Marx com o
Bakunin; um livro muito bem feito, uma tese defendida
na Universidade de Coimbra. Escrevi para o Roberto das
Neves, que tinha uma caixa postal impressa na orelha
do livro. Ele me deu o endereço do Centro de Cultura
Social, lá no Brás. Lá bati, mas estava fechado. Eu fiquei meio perdido. Só fui encontrar o Jaime Cubero em
1971, por meio de um colega meu de universidade, o
Marcelo Guimarães da Silva Lima. Comecei a me envolver com o movimento. É mais ou menos esta a história...
— Em 1971, o Centro de Cultura estava fechado...
— Tinha ocorrido aquela repressão toda em 68. O pessoal do Rio de Janeiro tinha dançado, estava meio mundo ainda preso; acho que em 1970, o Ideal Peres estava
saindo da cadeia. O pessoal aqui em São Paulo quando
soube que eles tinham sido presos, achou prudente fechar. Fecharam as atividades na cidade, o Centro de
Cultura, e passaram a fazer movimento clandestinamente.
— Quantas pessoas estavam envolvidas na época com o
Centro de Cultura Social?
— Olha, aqui em São Paulo tinha bastante gente. Quer
dizer... A gente se reunia lá na loja do Jaime, na Celso
Garcia, 727, lá no sítio...
— O sítio que você está se referindo é a “Nossa Chácara”?
— É, a “Nossa Chácara”.
— Já era em Mogi?
— Já era em Mogi. Chegávamos a fazer reuniões com
40, 50 pessoas. Naquele tempo tinha muita gente do
211
7
2005
antigo movimento ainda viva. Foi no contato com estas
pessoas que fui me formando.
— E estas pessoas atuavam em quê?
— Olha, basicamente a gente tentava fazer o que era
possível; era muito pouco. Uma atividade importante era
manter o sítio. Uma outra foi a solidariedade aos companheiros presos no Rio de Janeiro. O processo custou
muito caro, teve de ser contratado um bom advogado,
subornar gente pra sumir com provas... A coisa foi complicada! Custou muito dinheiro. No começo dos anos
70, esta era, digamos, uma atividade importante: tirar
os caras da cadeia. Depois começou a haver um interesse sobre o anarquismo, cultivado por várias coisas.
Uma delas foi a venda do arquivo Edgar Leuenroth, que
aliás essa é uma história que tem que ser contada direitinho, noutra ocasião. O arquivo nunca foi propriedade pessoal da família do Edgar Leuenroth, mas sim do
movimento anarquista. Mas, enfim, a família do Edgar
Leuenroth vendeu o arquivo pra UNICAMP, aí começou
a haver um certo interesse. Era 1973. O Azis Simão,
que foi professor de Sociologia da USP, queria levar o
arquivo para lá, mas naquele tempo o reitor era o Miguel Reale, que era um fascista, etc e tal. E aí, acabou
indo pra UNICAMP, porque o Zeferino Vaz, embora sendo um homem de direita, era um cara com uma cabeça
universitária mais aberta e percebeu a importância do
acervo. Enquanto isso, começou a haver interesse pelo
anarquismo e vinha muita gente procurar o Jaime, o
Germinal, os velhinhos para saber de coisas sobre a história do movimento. E se fazia isso, além de manter o
trabalho de correspondência com grupos de fora e o de
articulação dentro do Brasil. Até 1976, havia basicamente um grupo atuante aqui em São Paulo, que tinha a
“Nossa Chácara”; o pessoal do Rio que se rearticulou
depois de sair da prisão; e tinha o pessoal no Rio Grande
212
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
do Sul, em Porto Alegre, que eram o Puig, o nosso companheiro Augusto, já falecido, e que era um militante
exilado da revolução espanhola. O Salvador também. Nós
nos correspondíamos, fazíamos alguns encontros, e atuávamos, na medida do possível, no movimento estudantil, alguma coisa no movimento sindical, muito pouquinho. Foi só no final dos anos setenta que a gente conseguiu aumentar os grupos. Bom, no começo foi assim.
— A tua formação foi dentro do Centro de Cultura Social?
— Foi dentro do Grupo Projeção. O Centro de Cultura
foi organizado só em meados dos anos oitenta. A gente
formou, naquela época, o Grupo Projeção.
— Você era o caçula?
— Eu era o caçula... foi em 1974, um pouco depois do
desfecho do processo lá no Rio. Do Grupo Projeção faziam parte: Diamantino Augusto, que é uma excelente
figura, um cara das greves de Santos, botava bomba no
forno de padaria, excelente companheiro; o Edgar Rodrigues; o Fernando; o Matos; o Ideal — Ideal Peres; Ester
Redes; Jaime Cubero; Francisco Cuberos; o Nito Lemos
Reis; o Liberto Lemos Reis...
— O Martinez?
— Antônio Martinez, também um excelente companheiro, operário metalúrgico e veterano dos combates
contra os fascistas na Praça da Sé em 1933, um cara de
muito valor, e eu, doze. Era essa era a formação inicial
do Grupo Projeção. Eu tinha lido um pouco sobre anarquismo, mas a formação prática eu tive dentro do Projeção, dentro do sítio, onde as coisas se faziam.
— Por que criar o Grupo Projeção?
213
7
2005
— O Projeção foi fundado com uma dupla finalidade:
preservar e resgatar o que tinha sobrado da memória,
porque grande parte tinha ido embora para UNICAMP;
foi fundado com a idéia de se rearticular o movimento
naquela etapa, era o finzinho dos anos Médici, uma conjuntura muito difícil. A gente tinha de começar a fazer
alguma coisa. Tinha o sítio e afinal de contas, havia
alguns grupos remanescentes, uma intensa correspondência. Naquele tempo ainda não tinha entrado a ditadura pra valer na Argentina. Lá e na Venezuela havia
muitos grupos anarquistas com os quais nos correspondíamos. Tentava-se fazer alguma coisa, na medida do
possível, de apoio a esses grupos. Atuar na conjuntura
política local era muito difícil, porque você tinha de um
lado a ditadura fascista, e de outro lado a esquerda dominada pelo Partido Comunista. Até os trotskistas, naquele tempo eram extrema esquerda. Você compara, por
exemplo, o Pallocci, hoje alinhado com o FMI e..., pensar
que nos anos setenta os troscos se diziam de extrema
esquerda, soa gozado hoje em dia!... Então, foi aí que a
gente começou. O Projeção teve um papel, acho que
muito importante, na rearticulação do movimento anarquista no Brasil e, também, na continuidade desse movimento. Existe um erro cometido pelos historiadores
ao afirmarem, desde os anos sessenta que “o anarquismo morreu quando se fundou o Partido Comunista em
vinte e dois”. Mas a pesquisa histórica avançou e mostrou que até trinta e cinco, trinta e sete tinha anarquista atuando; daí o enunciado se redimensionou, passando-se a decretar a morte do anarquismo no final dos
anos trinta. Mais tarde, passaram a afirmar que o anarquismo acabou depois da ditadura Vargas; aí a pesquisa
histórica vai lá, vai olhar, e vê que os anarquistas não
morreram, até sessenta e oito, setenta eles estavam
fazendo coisas. De fato, no começo da década de setenta
a gente estava meio por baixo, quer dizer, não tinha
214
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
muito movimento, não havia uma juventude... No meu
tempo de estudante, eu era considerado, assim, uma
coisa bizarra. Ser anarquista e ser universitário era uma
coisa complicada. E a malhação era pesada, também.
Acusavam o anarquismo de pequeno burguês, de instrumento objetivo da burguesia, de fóssil ideológico. Organizar o movimento era muito difícil. Só começou a
acontecer efetivamente a partir de 1975. O panorama
começa a mudar, mesmo na Europa e nos EUA. Ocorre a
Revolução dos Cravos, em Portugal. Tinha-se derrubado
o fascismo por uma revolução levada pelos grupos de extrema esquerda, autonomistas. E os anarquistas começam a se rearticular em Portugal, e a gente começou a
apoiar o movimento português, com algum material de
propaganda que restava — brochuras do Faure, do Malatesta, folhetos anarco-sindicalistas, etc.) O Jaime nesse ponto teve um papel importantíssimo. Ele e o Chico
[Francisco Cuberos], porque era através da loja de sapatos que eles tinham que se despachava material, driblavam a censura... Então, no comecinho foi assim. Em
meados da década de setenta o movimento começa a
crescer um pouco. O Ideal entra em contato com o Renato Liper na Bahia, por volta de setenta e cinco, setenta e seis. E dois anos depois, em setenta e sete, a gente
faz um congresso na “Nossa Chácara” e se lança o jornal Inimigo do Rei, que já tinha dois números e era uma
iniciativa dos baianos. No carnaval de setenta e sete a
gente resolve transformar o Inimigo do Rei no porta voz
dos anarquistas no Brasil. E aí eu acho que há uma marca
e o anarquismo toma um novo impulso no Brasil, muita
gente jovem aparece; começa a se criar grupos em vários locais do Brasil: no Nordeste, em Mato Grosso, e
mesmo aqui em São Paulo, com grupos feministas e estudantes muito ativos. São estabelecidos vínculos mais
fortes com o movimento sindical e criados grupos anarco-sindicalistas, grupos de homossexuais, grupos ecoló-
215
7
2005
gicos... Eu me lembro que teve uma manifestação que
nós fizemos em setenta e oito contra aquele negócio de
Angra II, enriquecimento de urânio pra fazer a bomba,
etc e tal; os anarquistas, eles eram a maioria da passeata na praça da Sé. O Inimigo do Rei, chegou a vender, só
aqui em São Paulo, com o esforço dos militantes mesmo, quatro mil exemplares. Então, acho que a partir daí
entra uma outra fase. Eu acho que são dois momentos:
começo dos anos setenta até final da década e o Inimigo
do Rei. Ele mostra claramente a vitalidade do anarquismo, que era insuspeita, e começa a atrair a atenção de
muita gente jovem; é então que se pensa em rearticular o Centro de Cultura Social.
— E como isso aconteceu?
— Houve várias tentativas. Entre 1977-1978, o pessoal aqui em São Paulo estava pensando em rearticular
o Centro de Cultura; me lembro de uma reunião do Projeção que a gente fez, o Ideal até defendeu uma posição
contrária, porque ele achou que na época, se a gente
fundasse o Centro de Cultura, a gente ia se fechar, quer
dizer, a gente estava na época atuando em vários movimentos sociais. O Ideal começou a atuar em movimentos de bairros com uma força muito grande no Rio de
Janeiro. Depois o Brizola se apropriou, mas realmente
foi um impulso... Eu cheguei a participar de um congresso lá com o Ideal em setenta e nove aonde havia
dois mil e poucos delegados de bairro: o congresso se
deu sem mesa. Uma pessoa pra tomar conta das inscrições, um microfone no canto, a pessoa pegava seu número na hora de falar, quer dizer: um congresso com
duas mil e quinhentas pessoas, dois dias e meio de congresso que aconteceu sem mesa, discutindo os problemas da cidade. Então, naquele momento o Ideal foi contra a gente tentar fundar o Centro de Cultura, porque
ele achava que a gente ia deixar de fazer o trabalho de
216
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
propaganda e divulgação, que estava indo muito bem e
iria se fechar em torno de uma organização. Somente
retomamos a idéia de reabrir o Centro de Cultura Social por volta de 1982. Aí a conjuntura já era outra. O anarquismo nesses anos se consolida. Uma das vantagens
(vantagem entre aspas) da ida do arquivo para UNICAMP
foi que as pessoas começaram a pesquisar naquele arquivo, e começou a se desmistificar uma imagem que
os marxistas faziam do anarquismo, começou a se ver
que não era nada daquilo, que o anarquismo era um
movimento político forte, atuante, que tinha presença
não só no meio dos trabalhadores, mas em vários outros
meios, tinha presença entre os intelectuais, uma visão
ampla do mundo, não era só uma questão economicista, não era só uma questão de classe apenas. Isso tudo
foi sendo descoberto, entre três aspas também, pelo pessoal que faz os trabalhos lá no arquivo Edgar Leuenroth,
na minha opinião muito contra vontade; se você for pegar a bibliografia destes trabalhos os caras citam Marx,
citam Trotski, citam Althuser, citam Che, etc. e tal, mas
ler texto anarquista que é bom é uma minoria que lê.
Mas mesmo assim os fatos existem e não podem ser
negados. Naquela antologia que o Paulo Sérgio Pinheiro
fez, A Classe Operária no Brasil, ele faz o possível pra
dizer que não teve anarquismo no Brasil, mas os textos
que ele junta mostram que não só você teve anarquismo, como tinha o anarquismo forte, atuante, com uma
proposta de mudança social totalmente diferente do que
o Partido Comunista teria, e que tinha penetração social. Então, foi esse fato, no meu entender pelo menos,
que começou a despertar na cabeça das pessoas a questão da viabilidade. Então, o anarquismo não é mais uma
idéia, não é uma coisa gostosa de se pensar, não é uma
bela utopia, mas é alguma coisa que você pode construir.
217
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— No que você diferencia o anarquismo de todas as outras concepções de socialismo?
— Eu não vejo o anarquismo só como um ativismo
sem meta. O anarquismo aponta para uma transformação da realidade social. Ele aposta na capacidade das
pessoas de se auto-organizarem, mas isso não quer dizer que é uma explosão, um “vamos ver pra onde a coisa
vai”, não. Eu acho que existe a questão organizativa.
Mas o anarquismo não é messiânico, não aponta para
um estágio final de sociedade. Desde Proudhon o anarquismo pensa que as contradições estão aí, podem ser
superadas, mas que não há um fim da história. A história é um contínuo construir. E nesse sentido a concepção que você vai ter de revolução é outra. Se você falar:
eu quero o anarquismo para o ano três mil, até o George
Bush vai querer, porque não vai mudar nada aqui e agora. Entretanto, se você falar: bom, eu não posso fazer o
anarquismo para semana que vem, mas eu gostaria de
ver até o final da minha vida a sociedade se encaminhar para um estado menos autoritário, uma participação mais direta das pessoas, aí você começa a mexer
com interesses concretos. Eu acho que tem essa polaridade entre a evolução e a revolução, que para mim é
característica do pensamento anarquista.
— De onde vem a prática do Centro de Cultura?
— O Centro de Cultura vem da necessidade de formar um espaço onde a informação política e a informação técnica, estejam disponíveis. Em segundo lugar que
essa informação seja submetida continuamente ao debate, porque a partir desse debate, realmente, não só
você aprende, como você começa a perceber o limite
dessa informação, você começa a criar os fatos novos.
Eu vejo o Centro de Cultura como um herdeiro dessa
tradição. É claro, que o momento no qual ele é criado, é
um momento de crise. Nos anos trinta o anarco-sindi218
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
calismo no Brasil está sendo acossado. Na I Internacional a idéia dos ateneus estava ligada à idéia de sindicato; então, sindicato, bolsa de trabalho, escola racionalista e ateneu libertário, seriam os quatros vértices, o
quadrilátero de ação política dos anarquistas. Nos anos
trinta isso não é mais assim, eu acho que a organização sindical dos anarquistas está sendo acossada, de
um lado pela repressão policial, de outro lado, pela burocratização, pela legislação... pela formação dos sindicatos atrelados ao governo. Os comunistas entram direto
nisso aí, e esta é uma história que precisa ser contada.
Nenhum historiador se debruçou, ou teve a curiosidade
de se debruçar sobre os fatos para saber qual foi a compactuação dos marxistas com o modelo vertical de sindicato, qual foi a compactuação dos marxistas com o controle do trabalhador. Eu conheci, na loja do Jaime e do
Chico, um cidadão chamado J. Antônio. Acho que nos
anos setenta ele já tinha noventa anos. O J. Antônio se
recusou até noventa e tantos anos a ter carteira de trabalho assinada. Ele morreu vendendo creolina no Largo
da Concórdia [no bairro do Brás-SP], naqueles hoteizinhos ali embaixo, no Largo da Concórdia. A sua profissão até noventa e tantos anos, era a de vendedor de creolina. Não tinha aposentadoria, não tinha carteira de
trabalho assinada. Porque ele se recusava a prestar satisfações ao Estado. Então, era esse tipo de gente, não
só os famosos, que formava o Centro de Cultura. Era
esse tipo de gente que formava a “Nossa Chácara”; que
formava o sindicato anarco-sindicalista em São Paulo e
no Rio de Janeiro, até 1935, 1937. Nesse momento de
crise, em 1933, o Centro de Cultura é fundado porque
há uma percepção da parte do Edgar e dos outros militantes, que a atuação sindical precisava ser modificada. Era preciso mudar um pouco a tática. Mas eu acho
que basicamente o projeto que o Centro de Cultura tem
ainda nos anos trinta, é um projeto que você pode ver
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na I Internacional. Em 1945, a conjuntura mudou bastante. A ênfase principal do trabalho dos anarquistas
passa a ser a atuação dentro do Centro de Cultura; o
Centro de Cultura passa a adquirir um caráter, então,
não só, digamos, de universidade popular, mas passa a
adquirir um caráter também de instrumento político dos
anarquistas. E aí, o que há de notar nessa fase, de quarenta e cinco a sessenta e oito, coisas realmente que
são, no meu modo de entender, revolucionárias. Em
1946, o Centro de Cultura promove, além das atividades
de teatro, um curso de educação sexual. Imagine o que
não deve ter sido isso para uma São Paulo provinciana
de setecentos mil habitantes. E as pessoas iam, vinha
a família a esse curso, e vinham psicanalistas, etc. O
Centro tenta organizar até com algum sucesso, durante um ano, um ano e meio, a Universidade Popular Presidente Roosevelt. Promove três versões de um curso de
doutrinas políticas. Já nos anos sessenta tem a grande
experiência do Laboratório de Ensaio, que é naquele tempo uma experiência de teatro político revolucionária. Eu
tenho aqui ao lado o Chico, que é um cara que participou das grandes revoluções do teatro paulista, desde
quarenta e sete até os anos oitenta. O Centro de Cultura Social passa a ter, nessa segunda fase de quarenta e
cinco a sessenta e oito, um cunho de resistência cultural, mas não se engane, tem gente que fala: anarquismo culturalista, anarquismo isto, anarquismo aquilo...
Anarquismo é anarquismo. O Jaime gostava de falar: “o
anarquismo é um conjunto de postulados convergentes”.
Isso para mim é o anarquismo, é a base, é o método.
Não é porque o sujeito faz um trabalho assim, ou assado, que ele é menos ou mais anarquista, do que o cara
que faz um trabalho assado ou cozido. O cara tem de ter
o mínimo de modéstia, tem de sentar o rabo numa cadeira e estudar, e se debruçar sobre a história do socialismo, sobre a história do anarquismo. Verá então que
220
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
os caminhos são múltiplos. Verá que a gente tem de se
preocupar em trilhar bem o nosso caminho, que a gente
deve se preocupar com a meta que se quer atingir. É
claro que a ação é a contrapartida do estudo: ninguém
se esforça em aprender por nada. É preciso uma meta!
Se você considerar as coisas corretamente, do ponto de
vista da história e das lutas políticas e sociais dos anarquistas, verá que a teoria sem a ação é manca e que a
ação sem a teoria é cega! É pensar globalmente, e agir
localmente. Eu acho que nesse sentido o Centro de Cultura, na república de quarenta e cinco até sessenta e
oito, tem um papel que não é mais o papel do anarcosindicalismo clássico, mas é um papel importante no
sentido de ressoar o anarquismo junto à sociedade global.
— Os anarquistas não aceitam qualquer tipo de ditadura.
— Acho que qualquer ditadura faz um estrago inominável. Não só pelo que ela reprime, mas pelos mitos que
ela cria. Nem todo mundo que é perseguido por uma ditadura é um sujeito de esquerda. Tem muito cara que
foi perseguido pela ditadura e é um filho de uma puta. A
ditadura, de certa maneira, apaga fronteiras e põe todos
os gatos dentro do mesmo saco. E isso é uma coisa terrível, porque interrompe, quebra movimentos e desenvolvimentos, mistura coisas que estavam começando a se
clarificar, a se separar. Veja, quando a gente retoma a
idéia de Centro de Cultura em 1984, a gente retoma em
qual contexto? Já não dá para falar como se falava no
final dos anos sessenta, e no começo dos anos setenta,
que o anarquismo é uma invenção de pequeno burguês,
que o anarquismo é de uma mentalidade artesanal. Porque o próprio socialismo real, está fazendo água. Eu conheço muito marxista que foi parar no psiquiatra quando o Vietnã entrou em guerra com o Camboja. A briga da
linha chinesa com a linha soviética... Então, em mea-
221
7
2005
dos dos anos setenta não dá mais para tapar o sol com a
peneira, o socialismo real que veio da concepção marxista, mostrou a que veio. É uma sociedade totalitária,
absolutamente indiferente para com as necessidades
individuais, uma sociedade militarizada e autocrática
que se formou com o pretexto da libertação do proletariado e funciona como máquina de opressão e de exploração. O eixo desta sociedade, tanto na China quanto na
Rússia estava na produção militar-industrial. Nos anos
oitenta não dá mais para o anarquismo ser taxado de
uma série de coisas. Ele passa a dar até um certo prestígio. Os estudiosos do arquivo Edgar Leuenroth, como
me referi anteriormente, ao produzirem os seus estudos começaram a mostrar que o anarquismo não era
aquilo que a vulgata marxista dizia que era. Começa a
aparecer, então, uma geração mais jovem, interessada
em fazer, em atuar com o anarquismo. Eu acho que o
Centro de Cultura, em São Paulo, se organiza em 1984,
mais ou menos em cima disso, com um grupo que trabalhava há alguns anos junto ao Inimigo do Rei. Houve
também aquele curso que nós organizamos na PUC-SP,
em 1979. Foi uma coisa... A mim me surpreendeu muito. Porque foram seis sábados discutindo anarquismo, e
você não conseguia lugar no maior auditório da PUC-SP
[sala 333, para 350 pessoas sentadas] mesmo chegando
duas horas antes. No nosso caso, em particular, aí eu
falo do grupo de militância mais anarco-sindicalista
dentro do Centro de Cultura, do qual eu fazia parte, a
gente estava muito envolvido com a Oposição Sindical
Metalúrgica de São Paulo, com uma série de outras atividades. Resolvemos fundar o Centro de Cultura nesse
sentido: ter um instrumento, ter um local nosso, que a
gente pudesse levar as nossas discussões, fazer as nossas propostas, e não ficar dependendo de acordos. Em
janeiro de 1984, o Jaime falou: “olha a mesma sala está
para alugar, aqui na Rua Rubino de Oliveira, a mesma
222
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista
sala igualzinha, nós vamos ter de fazer apenas a reabertura em cartório... não precisa nem jogar fora os impressos.” Então estava marcada uma reunião do sindicato dos geólogos para discutir o Centro de Cultura. E
começou-se a discutir como é que ia ser, como é que
não ia ser, a gente chegou e falou, o Jaime tomou a
palavra e falou: “Olha eu queria informar que o Centro
de Cultura já foi reaberto, está situado em tal e tal lugar, e a gente está tomando as adesões para sócios efetivos até tal dia”. Isso foi uma bomba no lugar. A gente
conseguiu minimamente se renovar, não estou dizendo que isto aqui é um mar de rosas: não é! Tem problemas sim, mas eu acho que estamos conseguindo uma
renovação do quadro social, conseguindo atingir pessoas novas, sensibilizá-las para nossa idéia. Isso é o que
importa. Tem de haver continuidade, porque você não
vai conseguir implantar o anarquismo depois de amanhã. Há muita briga pela frente, e as nossas organizações têm de crescer, têm de estar antenadas no que
está acontecendo agora e no futuro. Eu acho que nesse
sentido o Centro de Cultura Social foi sempre muito presente. O importante é saber aliar a tradição anarquista
com os desafios políticos do momento. Se você for acompanhar a movimentação do Centro de Cultura isso é claro, acho que desde o comecinho isso é uma tradição, é
uma contribuição que a gente gostaria de passar para
as novas gerações.
223
Over the old wooden bridge
No traveller
Crossed
Henry D. Thoreau
Além da velha ponte de madeira
Viajante algum
Cruzou
Tradução de Thiago Rodrigues
7
2005
anarquismo na vida e na obra
de eugene o’neill
pietro ferrua*
Um estudo sistemático das atividades anarquistas do
grande dramaturgo, que eu saiba1, ainda não foi empreendido, porém há muitos ensaios sobre ele e os dados colhidos permitem estabelecer uma trajetória, senão completa, pelo menos suficiente.
A mais pormenorizada das biografias interessantes para
o nosso assunto é sem dúvida a do casal Gelb2, que chega
quase a mil páginas, mais duas obras de Sheaffer3, também oferecem uma grande quantidade de informação.
Descobre-se assim que um dos primeiros contatos que
O’Neill teve com anarquistas data de 1907, quando conheceu Benjamin Tucker e começou a freqüentar a sua livraria, em Nova Iorque, a The Unique Bookshop situada na
Sexta Avenida. Eugene não tinha ainda vinte anos, enquanto o pensador e escritor anarquista alcançara já os
cinqüenta, com mais de trinta anos de experiências como
*Professor emérito do Lewis Clark College, Portland, fundador do CIRA (Centre International de Recherche sur l’Anarchisme), viveu no Brasil entre 1963 e
1969.
verve, 7: 226-243, 2005
226
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
propagandista, redator de periódicos, autor de ensaios. Foi
através de Tucker que O’Neill travou conhecimento com
a obra de Bakunin e Kropotkin, Proudhon e Tolstoi, Stirner e Nietzsche. Definiu-se, então, “anarquista filosófico”, uma etiqueta pouco usada em outros países, mas que
se tornou comum nos Estados Unidos e que equivale ainda hoje — a “anarquista não-violento”. Distinção necessária, pois a opinião pública tende a misturar anarquismo e
terrorismo. Cabe reconhecer que naquela época era comum a associação com Leon Czolgosz (que tinha matado
um Presidente) e Alexandre Berkman (que atirara contra
um capitalista inflexível e cruel contra operários grevistas). Quem apresentou O’Neill ao Tucker foi Paul Holliday,
outro anarquista, irmão de Polly Holliday, gerente de um
café boêmio no Greenwich Village, companheira de vida
de outro militante ativo muito conhecido, Hippolyte Havel.
O Paul foi um grande amigo de O’Neill até sua trágica morte
poucos anos depois. Outro grande amigo anarquista (e futuro personagem de sua obra) foi Terry Carlin (verdadeiro
nome Terence O’Carolan) que tinha a qualidade adicional
de ser de origem irlandesa, como O’Neill. Companheiro de
bebedeira, o escritor nunca o renegou quando ficou famoso, e passou a mandar-lhe cheques mensais para que
nunca lhe faltasse a bebida. Os Gelb escrevem: “o Carlin
teve uma influência maior na filosofia de O’Neill do que
qualquer outra pessoa”.4 Não devemos estranhar, pois Carlin foi admirado por escritores importantes como Jack
London e Theodore Dreiser. Mais uma amizade importante — e que durou até o fim da vida — foi com Saxe Commins (verdadeiro nome Isidore Cominsky), dentista que
se tornou autor teatral, e sobrinho de Emma Goldman. A
ele O’Neill se dirigiu para que lhe procurasse documentação sobre algumas personagens anarquistas em suas peças. Em gratidão pela hospitalidade dele recebida, e de toda
a família, e por lhe ter cuidado dos dentes de graça, O’Neill
forçou sua contratação à Random House, onde se tornou
227
7
2005
seu editor pessoal. Saxe foi também quem manteve contatos indiretos entre O’Neill e as duas primeiras esposas
e os filhos que com elas teve. Quando fugiu para a França,
onde vivia incógnito com Carlotta, que se tornou sua terceira mulher, um dos poucos que sempre sabia onde ele
se encontrava era justamente Commins. Aliás, O’Neill não
era o único que o estimava, pois tornou-se também amigo
de Albert Einstein, que conheceu quando ambos ensinavam em Princeton.
Hippolyte Havel, anarquista europeu que veio aos Estados Unidos junto com Emma Goldman, e que o conheceu
em Londres, foi também admirado por Dreiser, inspirou
John Cage e deu vida a um dos personagens da peça The
Iceman Cometh. O’Neill conservou algumas fotografias dele,
uma das quais os reúne nos ensaios de uma peça para o
Provincetown Theater.
A galeria de personagens anarquistas ao redor de O’Neill
é muito rica e compreende ainda outro escritor da época:
Hutchins Hapggod. Autor de An Anarchist Woman ele tinha
se aposentado no Cape Cod e colaborara estreitamente
com John Reed, Louise Bryant e outros nas encenações
do Provincetown Theater.
Entre as mulheres pelas quais O’Neill talvez se apaixonou, emerge a figura de Dorothy Day, que mais tarde se
converteu ao catolicismo sem abandonar o anarquismo, e
tornou-se co-fundadora do movimento Catholic Worker (uma
derivação comunitária da filosofia personalista de Emmanuel Mounier), que ainda hoje existe e tantas páginas gloriosas acrescenta aos anais da luta contra a segregação
racial, as guerras, o serviço miltar, o pagamento dos impostos ao Estado, etc…
Christine Ell, amante passageira do O’Neill, foi outra
anarquista inspirada por Emma Goldman, e também
tornar-se-ia personagem teatral do autor. Não há mui-
228
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
tos vestígios de encontros entre Emma Goldman e Eugene O’Neill, mas sabe-se que ele lia Mother Earth (revista em que publicou um dos primeiros poemas antimilitaristas), freqüentava as palestras do Ferrer Center, e foi grande amigo de Lena Cominsky (irmã da
Emma) e de Stella Ballantine (sobrinha de Emma), e de
Mary Eleanor Fitzgerald (secretária do Provincetown
Theater, depois de ter trabalhado na redação de Mother
Earth). De Emma Goldman se sabe que conhecia as primeiras peças de O’Neill e fez palestras sobre elas. Apesar dos poucos contatos pessoais Emma foi uma grande
fonte de inspiração, como veremos logo, em duas das
peças que comentaremos.
Outro anarquista muito conhecido que ele pouco frequentou, mas cuja personalidade, pensamento e ação
inspiraram o O’Neill, que, anos depois, ele o declara
numa carta, é Alexandre Berkman. Em 29 de janeiro de
1927, numa carta de Hamilton Bermuda, O’Neill escreve a Berkman: “Passou muito tempo desde aquela noite
em Romany Marie mas estou certo que você não se lembra de mim melhor do que eu de você. Tenho uma imagem muito clara de você na minha mente desde então.
Eu já tinha uma profunda admiração por você há vários
anos e aquele encontro foi um acontecimento inesperado. Quanto à minha fama…e sua infâmia, gostaria de
trocar muita da minha por um pouco da sua. Não é tão
difícil escrever o que se considera ser a verdade. Mas é
muito difícil vivê-la.”5
Essa admiração desenfreada por um homem então
muito mais conhecido como homem de ação do que como
teórico do anarquismo nos leva a notar que O’Neill não
teve como amigos só intelectuais e artistas, anarquistas “filosóficos”, mas freqüentou, também, militantes
sindicais. Um destes foi James Joseph Martin (dito Slim
Martin), marinheiro e operário especializado, que era
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7
2005
militante da IWW (Industrial Workers of the World) e a
quem O’Neill pediu que o levasse a reuniões sindicalistas. O resultado foi pelo menos duas peças (The Personal
Equation e The Hairy Ape) acabadas, publicadas e produzidas, e algumas outras só começadas e abandonadas por
várias razões. Também tornou-se propagandista ativo
quando passou anos navegando na marinha comercial.
Estar rodeado de amigos anarquistas, ter lido livros de
autores anarquistas, assinar obras de conteúdo anarquista talvez não seja suficiente para traçar um retrato completo de uma pessoa. Foi o comportamento dele na vida
pública e particular condizente com a ética anarquista?
As lembranças dos que o conheceram durante a juventude sugerem a imagem de um bêbado inveterado. Como
tal é representado pelo menos em dois filmes: Reds, de
Warren Beatty e Entertaining Angels, de Michael Ray Rhodes. No primeiro ele é o amante de Louise Bryant e no
segundo um amigo de Dorothy Day. Esta última, companheira de bebedeira antes de se tornar apóstola social e
religiosa explica assim o vício do O’Neill: “eu tinha a
impressão que ele considerava beber como um ensaio
para a morte. Bebia o uísque puro, de um só gole, não
para ficar bêbado mas para ver se agüentava”. Muitos
anarquistas do século XIX consideravam o alcoolismo
como uma das piores pragas sociais, como as drogas no
século XX. A doutrina, a esse respeito, não é fixa e varia
de um país a outro, e de uma geração a outra. Pode-se
deplorar a dependência de Eugene do álcool, mas não usála como um argumento contra ele (ele mesmo se deu
conta que a bebida o destruía e acabou se tornando sóbrio) tomando em consideração que o pai e o irmão mais
velho eram alcoólicos, enquanto a mãe tinha se tornado
morfinômana, desde o seu nascimento.
Mais repreensível, talvez, tenha sido seu comportamento de marido e de pai. Casou com a primeira mu-
230
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
lher e sumiu, logo depois, deixando-a grávida. Kathleen
pediu e obteve o divórcio três anos mais tarde. Foi só
aos doze anos que o filho conheceu o pai. Sua atitude
para com a família não melhorou com o segundo casamento (núpcias de amor com bastante anos de convivência) do qual ele fugiu de repente, sem nenhuma explicação, ignorando os filhos durante anos. Foi assim
que Oona casou com Charlie Chaplin, que tinha três
vezes a idade dela, mas representava, justamente, uma
figura paterna que substituía o pai que ela nunca tinha
tido.
Como conclusão provisória digamos que O’Neill praticou a solidariedade do anarquismo social fora de casa,
mas na família praticou mais o comportamento individualista à maneira de Nietzsche, seu autor de cabeceira. Nestas alturas cabe formular a pergunta: como é que
O’Neill via a si mesmo?
Numa carta de 1939 a Bernard Cerf o dramaturgo
escreve: “Diga ao Saxe que estou me reconvertendo a
um anarquismo de aço”. Isto foi às vésperas da Segunda Guerra Mundial, durante a qual ele compõe The Iceman Cometh que parecia ser um adeus ao anarquismo,
e que não foi o caso, como veremos. Disse, também: “Antigamente fui um ativo socialista, e posteriormente um
anarquista filosófico”.6 Na última conferência de imprensa que deu, em 1946 (isto é no fim de sua carreira quando já era famoso no mundo inteiro devido às suas peças
e ao Prêmio Nobel), poucos anos antes de morrer, declara “sempre ter sido um anarquista filosófico”.7 A obra
confirmará tudo isso.
O anarquismo na obra do autor
Traços do pensamento e da conduta anarquistas se
encontram em vários personagens de muitas peças de
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O’Neill. Em algumas os anarquistas são personagens
centrais (que às vezes se identificam com o autor e outras são baseadas em pessoas existentes) ou assunto
da obra. É de estranhar — como aconteceu com a sua
vida — que o seu teatro de cunho anarquista não tenha
interessado aos historiadores do anarquismo americano. Quem mais o cita — como era de se esperar — é
Paul Avrich que, pelo menos em duas de suas obras8, o
apresenta como freqüentador do Centro Ferrer de Nova
Iorque, colaborador ocasional de Mother Earth, amigo de
vários companheiros, confirmando o que foi dito pelos
Gelb e Sheaffer, e acrescentando alguns pormenores. É
bem provável que o Avrich volte a falar do assunto no
próximo livro dele, dedicado a Alexandre Berkman, que
foi um dos “ídolos” e também o tradutor russo de O’Neill.
Na maior parte das peças O’Neill se fantasia de personagem expressando idéias anti-militaristas, anti-capitalistas, pró-sindicalistas ou abertamente anarquistas. Junto a ele uma galeria numerosa de companheiros conhecidos, admirados de longe ou de convivência
direta.
Limitar-me-ei a examinar quatro das peças de maior importância para as idéias anarquistas.
A primeira com forte conteúdo anarquista é The Personal Equation9, de 1915, contendo, como sempre, no
teatro de O’Neill, elementos autobiográficos combinados a elementos imaginários.
Entre os primeiros está Tom, que pode ser o autor
como fôra na realidade (devemos lembrar que ele navegou profissionalmente e ocupou empregos humildes nas
estivas), ou como ele teria desejado ser. Na peça há também conflitos entre pai e filho bastante parecidos com
os que ele vivia com o próprio genitor, conhecido autor
teatral. A crítica discorda se o Hartman da peça corres-
232
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
ponde a Sadakichi Hartman (que realmente existiu) ou
se é um pseudônimo para Hippolyte Havel, o anarquista
tcheco que aparecerá como Hugo Kalman, na peça posterior, The Iceman Cometh. Olga Tarnoff, o papel feminino mais importante, foi inspirado em Emma Goldman.10
Esta peça é inteiramente dedicada ao anarquismo e
contém toda a problemática contemporânea: os desentendimentos entre as várias facções da esquerda (os
socialistas confiando no processo eleitoral e os anarquistas na ação direta), a denúncia da exploração capitalista, o direito de greve, a oposição dos revolucionários à Primeira Guerra Mundial que já tinha estourado
na Europa e na qual a América está a ponto de participar, a dramática alternativa entre meios violentos e nãoviolentos de libertação social, a união livre ou o casamento, e assim por diante. Apesar disso não se trata de
teatro de pura propaganda, mas de uma peça em quatro
atos em que são criadas situações dramáticas de alta
tensão e credibilidade.
A primeira cena tem como fundo a sede de um sindicato da IWW onde as conversas se desenrolam no nível
público (planos de greve) e no nível individual (Olga que
ama Tom mas rejeita a idéia do casamento e da maternidade). Tom, bastante parecido com O’Neill, acabou de
perder o emprego por ter feito propaganda “subversiva”
no lugar de trabalho. O segundo ato situa-se na casa de
Thomas Perkins, mecânico de navios, viúvo e pai de
Tom. A empregada de Perkins informa das más freqüências políticas e sentimentais do filho. Na discussão que
sobrevêm entre pai e filho, este admite viver maritalmente com Olga, porém sem estar casados. Perkins
desaprova. Eles discordam também sobre o uso da força
nas reivindicações sociais e políticas. A posição do pai é
que Tom deveria não só abandonar Olga com a qual ele
vive no pecado, mas também pedir desculpas aos donos
233
7
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da companhia por estar assistindo a reuniões anarcosindicalistas.
O terceiro ato acontece em Liverpool, em parte a bordo do navio S. Francisco — onde se encontram Thomas
Perkins de serviço nas máquinas, o filho (escondido sob
o nome de Tom Donovan), que se encarregaria de dinamitar os motores do navio se a reunião sindical que está
tendo lugar não decretar a greve), e Olga, fantasiada de
homem, como se fizesse parte da tripulação. Os sindicalistas burocráticos, corrompidos pelos patrões, se declaram contra a greve e os anarquistas resolvem então
passar à sabotagem. O companheiro que devia fornecer
a dinamite, porém, foi preso e os grevistas terão que
encontrar outra solução para impedir o navio de zarpar.
Tom decide imobilizar os motores mas, para isto, tem
que enfrentar o próprio pai. Nesse encontro terrível, cada
um procura proteger o outro, mas, ao mesmo tempo,
desempenhar tarefas contrárias. O pai, sem querer,
atira contra o filho.
O ato seguinte se passa num hospital. O pai, bem
como a namorada, querem tomar conta de Tom, reduzido a uma existência vegetativa. Ele não pode se expressar, parece não reconhecer ninguém, e só repete frases como um papagaio. Olga e Perkins, depois de brigarem, chegam a um compromisso: ambos se amam e
tomarão conta de Tom e da criança que Olga traz na
barriga.
A peça conclui com Tom, que mentalmente voltou à
infância, repetindo o slogan: “Viva a Revolução!”
A moral resumida por Olga (Emma Goldman) é a seguinte: “…lutamos e caímos frente ao poder da Sociedade, mas a revolução continua sobre nossos cadáveres.
Vai adiante mesmo se talvez não o vejamos. Nós somos
a ponte. O nosso sacrifício não é inútil. É-nos suficiente
234
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
saber que estamos fazendo a nossa pequena parte e que
as nossas pequenas vidas e pequenas mortes, apesar
de tudo, valem algo”.
A segunda peça que examinarei é de 1922 e intitulase The Hairy Ape.11 Está ambientada, novamente, em
meios anarco-sindicalistas mas, desta vez, em tons de
comédia. Os dois protagonistas principais são membros
da classe proletária que se queixam de sua condição
social. Fazem parte da tripulação de um navio e falam a
gíria dos marinheiros. Apesar da falta de cultura que
revelam no decorrer dos acontecimentos, não lhes falta
o sentido da dignidade humana. Além de serem explorados pelos donos do navio e apesar de sujos devido ao
trabalho que exercem na barriga do navio, ao redor das
máquinas e no meio do carvão, eles gostariam de ser
considerados seres humanos e não animais, “macacos
peludos” (nome da peça mas também insulto de visitantes ocasionais, como a filha do patrão). Feridos em sua
honra, Yank, o mais primitivo, o mais violento mas, talvez, também, o mais sensível deles, reclama vingança.
Isto poderia se efetivar numa visita aos bairros elegantes e numa provocação na saída da missa do domingo,
contra a mesma Mildred Douglas, filha do armador, que
tão severa se mostrou com ele durante a visita ao navio. No bairro nobre da cidade, cheio de lojas de luxo
onde se vendem jóias e casacos de pele cujo preço é
assombroso, Long e Yank observam que uma família de
trabalhadores ou de gente pobre e desempregada poderia viver um ano com o que os ricaços gastam comprando um desses objetos. A irritação de Yank cresce e o
leva à inevitável agressão de classe. Acaba sendo preso,
pois seu lugar não é na frente das casas dos poderosos
mas num calabouço. Durante sua prisão alguém lhe lê
um artigo de jornal sobre os Wobblies, os assim chamados membros do sindicato Industrial Workers of the
235
7
2005
World. O recorte reproduz o discurso de um senador antirevolucionário que denuncia o anarco-sindicalismo
como a maior chaga da nação. O Yank se sente atraído
por esse movimento e decide aderir a ele. Na próxima
folga ele visita a sede dos portuários da IWW. Bate na
porta e os companheiros estranham este comportamento, pois a particularidade deles é de deixar a porta sempre aberta: é só empurrar e entrar. Pede admissão que
é aceita logo sem nenhuma formalidade e pagando só
um centavo. O secretário sugere que ele leve um pacote de folhetos revolucionários, mas o adverte a ser prudente, pois essa propaganda é considerada ilegal pelas
autoridades. Mas não é propaganda que ele quer fazer,
senão ação direta, que ele associa a violência contra a
propriedade. Os Wobblies começam a desconfiar desse
desconhecido que aparece de repente e propõe dinamitar os estaleiros ou os navios de Mr. Douglas. Isso cheira a provocação. Assim o imobilizam e o põem para fora.
Rejeitado por todos ele acaba se refugiando no jardim
zoológico onde, depois de ter um diálogo incomunicável
com um gorila, acaba entrando na sua gaiola, deixando
livre o animal perplexo. Agora, sim, ele pode ser considerado um verdadeiro “macaco peludo”.
A linguagem é dura, a alegoria é pesada, mas a moral da comédia é em favor de uma visão individualista.
A mais importante das peças porém, é The Iceman
Cometh12, que ele começa a escrever em 8 de junho de
1939 e finaliza em 26 de novembro do mesmo ano. Relê
o texto, faz algumas mudanças e assina a versão final,
em 3 de janeiro de 1940. O assunto da peça é a validade
ou não das teorias anarquistas. Para ilustrar o assunto
ele se pauta em documentos e pede ao amigo de juventude, Saxe Commins13, que trabalha na editora Random
House, para lhe mandar a velha literatura anarquista.
Recebe, assim, cópia de velhos periódicos dirigidos por
236
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
Hippolyte Havel (anarquista tcheco escolhido como personagem da peça com o nome de Hugo Kalmar) e obras
de Bakunin e de Kropotkin. Outro personagem anarquista é Larry Slade, inspirado em Terry Carlin (Terence
O’Carolan), outro amigo de juventude que o autor ajudou até o fim da vida. O terceiro, mas não último anarquista, seria Don Parritt, que se apresenta como tal. Na
realidade é um traidor que veio da Califórnia para Nova
Iorque, sob o pretexto de estar envolvido num atentado,
mas que trabalha para a polícia, procurando provas para
ajudar a prender os culpados do atentado contra o Los
Angeles Times, fato que, historicamente, aconteceu.
O enredo leva Don ao encontro de Larry, por ter sido o
único, quando era criança, que sempre o tratou com
carinho e o escutou como se fosse um adulto. Larry, para
Don, é uma figura paterna e, talvez, seu verdadeiro pai
(foi amante de sua mãe). Mas Don é torturado, mente e
acaba admitindo que traiu, para salvar a mãe, diz ele no
começo. A mãe, Rosa (inspirada em Gertire Vose e em
Emma Goldman) está presa. O filho acaba confessando
que a denunciou por ciúme, pois ela o traía com as próprias idéias que colocava acima de seus deveres de mãe.
No fim, revela a Larry ter traído por dinheiro. Angustiado ele medita sobre o suicídio, ao qual Larry, sem compaixão, o empurra.
Devemos lembrar que na vida real, na época em que
O’Neill freqüentava a boemia do Greenwich Village, ele
tentara o suicídio num local muito parecido com o Hell
Hole.14 Na peça, as discussões sobre anarquismo são estéreis e negativas, mas deve-se considerar que os tempos em que este drama foi concebido assiste a uma dupla derrota: a do sonho anarquista na Espanha de 1939
e o início da Segunda Guerra Mundial. Contudo o anarquismo não é o único assunto da peça. Em primeiro lugar, numa polêmica com o comunista Mike Gold (que
237
7
2005
lhe foi apresentado por Dorothy Day), que queria que ele
escrevesse obras mais engajadas, O’Neill declarou:
“quando um autor escreve propaganda ele cessa de ser
artista e torna-se um político”. Além disso, O’Neill sempre insistiu sobre os diversos níveis de escritura. Há
quem considere que o elemento religioso, representado
por Hickey, é fundamental na peça. De fato, existe um
breve estudo de Robert C. Lee que toma em consideração os dois aspectos: “Evangelism and Anarchism in The
Iceman Cometh”.15
O’Neill foi criado católico e apesar de ter renunciado
à fé (deixou no testamento que não queria padres no
enterro), escreveu muitas peças sobre personagens e
assuntos religiosos. Há outra interpretação do The Iceman Cometh como se fosse uma “Última Ceia” tendo doze
personagens na mesa incluindo um Judas. Discordo
desta interpretação, pois os personagens, se incluirmos
as três prostitutas e os dois policiais superam o número
de doze, mas, sobretudo, por outra razão: a presença de
duas personagens excepcionais e positivas, que não fazem justamente parte do elenco da distribuição e que
ninguém — que eu saiba — percebeu como sendo centrais no enredo. Uma seria Evelyn, mártir de tipo cristão, a mulher que Hickey mata, por ser tão boa, tão compreensiva, tão paciente, tão generosa, tão amorosa, que
entende tudo e aceita tudo, e que o marido sente a necessidade de matar, para preservá-la, não decepcionála, não machucá-la moralmente. Outra é uma mártir
laica, Rosa Parritt a mãe traída de Don. Ela encontra-se
presa ao idealismo, paga pelos erros dos outros, mantém viva a chama do ideal. É uma figura empolgante, a
ser reverenciada e imitada.
O verdadeiro anarquismo, em suma, não está nos
três bêbados, um parasita, um preguiçoso e um traidor,
mas nessa bela figura de mulher. O Iceman Cometh soa
238
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
pessimista só depois de uma leitura superficial. Pense
nos “pipe dreams”, isto é, nos “castelos no ar” (as utopias, os sonhos irrealizáveis) aos quais se alude amiúde.
O próprio autor, numa entrevista declarou: “Bem, o que
eu posso dizer é que se trata de uma peça sobre castelos
no ar. A filosofia subjacente é que sempre resta ainda
um sonho, um sonho final, qualquer seja o nível baixo
ao qual se cai, o fim da garrafa, e eu sei, pois eu mesmo
vi…”. O’Neill estava satisfeito com esta peça e disse: “é
uma das melhores coisas que jamais fiz. De alguma
maneira talvez a melhor”.
Outros devem ter concordado com ele pois existem
duas versões cinematográficas, uma de Sydney Lumet
e outra de John Frankenheimer. Aliás temos duas provas contundentes de que o pessimismo aparente de
O’Neill não marcou o fim do seu anarquismo. A primeira é a entrevista já mencionada, que terá lugar anos
depois de ter escrito a peça, e poucos anos antes de sua
morte, em que reitera suas convicções anarquistas. A
segunda está no fato que logo depois de ter concluído
The Iceman Cometh, ele dá início a outra obra de tema
anarquista, e desta vez uma comédia, mostrando que
não abandonou as convicções ideológicas da juventude
e não aderiu ao pessimismo dos personagens da peça
anterior.
A última obra que mencionarei nunca foi concluída,
mudou de título, mas é a que revela o profundo conhecimento que O’Neill tinha do anarquismo internacional,
de seus pensadores, bem como de seus militantes. É
dedicada a Errico Malatesta, agitador anarquista italiano mundialmente conhecido. Teria sido uma comédia
mas com um fundo ético e político. Não só cronológica,
mas também filosoficamente, é uma continuação do Iceman Cometh . Não foi nunca encenada nem terminada,
mas o trabalho de pesquisa, as anotações do autor e as
239
7
2005
cenas já compostas foram publicados postumamente. Ele
dedicou mais de um ano a esta comédia e revisou constantemente o texto. O título inicial era The Visit of Malatesta16, mas passou a ser Malatesta seeks Surcease. O
nome escolhido para o personagem principal era “Cesare”, depois mudado para “Enrico”, se bem que na Itália,
onde ele nasceu, a forma preferida é a de “Errico”. A
colocação temporal inicial era 1912, mas a data foi adiantada para 1923, para poder justificar a fuga de Malatesta da ditadura fascista, iniciada em 1922. Malatesta,
na realidade, não pôde visitar seus amigos americanos
até a morte (em 1935) por se encontrar sob vigilância
policial especial em Roma, por ordem expressa de Mussolini. Entretanto, Malatesta esteve nos Estados Unidos, em 1899. Há quem diga que O’Neill poderia tê-lo
escutado naquela época, mas não há provas disso ter
acontecido. Aliás O’Neill teria, na época, 11 anos.
A função de Malatesta e da peça é de representar a
ESPERANÇA que talvez tivesse sido sacudida pelo pessimismo aparente de Iceman Cometh. Outro intuito era
o de lutar contra o alcoolismo que freia as energias revolucionárias dos militantes, mas que também alimenta a cobiça daqueles companheiros ítalo-americanos da
comédia, que negligenciam o ideal para ganhar dinheiro imitando os capitalistas. O alcoolismo é um problema
que afligiu não só o movimento, mas o próprio O’Neill,
vítima desse fenômeno, como o foram o irmão maior e o
pai, bem como muitos dos boêmios, anarquistas ou não,
que ele conheceu na vida. Aliás não há peça dele na
qual não apareça algum bêbado.
Na Visita de Malatesta, a mulher de Daniello chamase Rosa, como já se chamava Rosa a mãe presa do Don
Parritt, na peça anterior. Pouco importa saber se o nome
“Rosa” se refere a Emma Goldman ou não. Um dito da
época nos ambientes anarco-sindicalistas é uma das
240
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
reivindicações que vai além das melhorias econômicas:
“Queremos pão, mas rosas também”. A “Rosa” torna-se
metáfora do amor, da solidariedade, do engajamento, da
chama da revolução. No rascunho se prevê que Malatesta acabará casando com uma das filhas de Daniello,
Francina, que se gaba por ter se tornado “a rosa da paixão pela revolução”.
Não me atrevo a atribuir a O’Neill uma conclusão da
peça, mas tudo leva a crer que seria uma confirmação
do “sonho anarquista”.
Por razões de saúde O’Neill abandona este projeto e
vários outros previstos em suas anotações pessoais. Uma
tremedeira constante, mal diagnosticada pelos médicos
e nunca curada o acompanhará até o fim. Nos últimos
dez anos ele viverá uma existência solitária, separando-se temporariamente até da própria mulher (a terceira, a que mais amou) nunca renegando, porém, seus
ideais anarquistas.
Notas
1
Cheguei a esta conclusão depois de consultar a bibliografia de “First Search”que
contém informação sobre todos os livros existentes nas bibliotecas e também
as teses de doutoramento.
Arthur and Barbara Gelb, ed. O’Neill. New York, Harper and Row, 1974, 990
pp.
2
3
Louis Sheaffer: O’Neill. Son and Artist. Boston e Toronto, Little-Brown & Co.,
1973, 750 p., e O’Neill. Son and Playright. Boston e Toronto, Little-Brown &
Co., 1968, 543 p.
4
Gelb, 1974, op. cit., p. 286.
Carta reproduzida no livro Select letters of Eugene O’Neill, ed. by Travis Bogart
and Jackson R. Bryer, New Have & London, Yale University Press, p. 233.
5
6
Idem, p. 387.
7
Interview ao Sunday Times, de 1946.
241
7
2005
Paul Avrich. Anarchist Voices (An Oral History of Anarchism in America).
Princeton, University Press, 1995, e posteriormente em The Modern School
Movement (Anarchism and Education in the United States), Princeton, University
Press, 1980.
8
Ver Eugene O’Neill, Complete Plays., ed. by Travis Bogard, New York, The
Library of America, Vol.I: 1913-1920, 1104 p. Trata-se de uma peça em quatro
atos, pp. 309-387.
9
E. G. and E. G. O., Emma Goldman and the Iceman Cometh, Grainesville, The
University Press of Florida, 1974.
10
11
de Eugene O’Neill, Early Plays, edited with an introduction by Jeffrey H.
Richards. New York, Penguin Books, 2001, pp. 355-395.
12
The Iceman Cometh. New York, Vintage Books, 1957, 4 acts.
Isidore Cominsky, talvez o mais íntimo de seus amigos. A correspondência
entre eles foi tão copiosa que foi publicada em livro. Ver: Love and Admiration
and Respect. The O’Neill-Commins Correspondence. Dorothy Commins (ed) Durham. Duke University Press, 1986, 248 pp.
13
O Hell Hole da peça é uma combinação de três locais realmente existentes no
Greenwich Village, que O’Neill e outros boêmios freqüentavam durante os
dois primeiros decênios do século XX.
14
15
Ver Eugene O’Neill, The Iceman Cometh, Harold Bloom (ed). New York,
Chelsea House, 1987, pp 35-48.
“Notes for The Visit of Malatesta” In Eugene O’Neill. The Unfinished Plays,
edited and annotated by Virginia Floyd. New York, Continuum, 1988, XXVIII,
213pp.); a autora também escreveu o precioso ensaio Eugene O’Neill at Work:
Newly Released Ideas for Plays. New York, Ungar, 1981, XXXIX,407pp.
16
242
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill
RESUMO
O anarquismo na obra do escritor norte-americano Eugene O’Neill,
estudado em três peças concluídas e uma inacabada sobre Errico
Malatesta, anarquista italiano.
Palavras-chave: Anarquismo, teatro norte-americano, biografia.
ABSTRACT
The anarchism in the work of the American writer Eugene O’Neill
studied in three dramas and one unfinished drama about Errico
Malatesta, Italian anarchist.
Keywords: anarchism, American theater, biography.
Recebido para publicação em 31 de março de 2005.
243
7
2005
lygia clark e nietzsche-zaratustra:
trajetórias
beatriz scigliano carneiro*
Lygia Clark, artista plástica brasileira (1920-1988),
fez da atividade artística um elemento capaz de empreender a transformação de si; transformação que se abria
para o mundo e para a afirmação de novos valores. Analisando as suas obras, alguns de seus manuscritos e
parte de sua produção teórica acerca da arte e das técnicas terapêuticas, é possível estabelecer correspondências com o percurso do personagem trágico de Nietzsche apresentado na obra Assim falou Zaratustra.
Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra confluem no trajeto de quem se transforma, de quem “se torna quem se
é”, de quem tem como destino “querer o que sabe”. Zaratustra anuncia o além do homem e, ao mesmo tempo,
transfigura-se e transcria o percurso da vida-pensamento do próprio Nietzsche. Lygia é uma artista que pensa
por meio da arte, e também uma pesquisadora que experimenta por meio da arte e atitudes cotidianas, vi*Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.
verve, 7: 244-263, 2005
244
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
sando antes de tudo, inventar a sua vida. Este artigo
apresenta uma conversa possível entre estas trajetórias.1
Lygia Clark nasceu em Belo Horizonte em 1920, cursou a escola normal, casou-se e se mudou para o Rio de
Janeiro, onde nasceram seus três filhos. Até perto dos
trinta anos de idade, vivia como dona de casa comum de
uma família abastada. Em 1947, teve uma crise nervosa da qual saiu ao retomar com afinco a pintura e os
desenhos, habilidade notória de sua infância. No entanto, a arte consistiu em algo mais do que terapia ocupacional de dona de casa deprimida, ou passatempo como
havia sido nos tempos de escola. Arte não foi “repouso
para o empobrecimento da vida”, nas mãos de Lygia a
arte se tornou ferramenta de transformação de si.
Em seus cinco anos de aprendizagem, de 1947 até
1954, exercitou diversos caminhos até se decidir pela
composição ordenada da geometria, um estilo que prescindia a figuração, imagens e representação do espaço.
Junto ao grupo de artistas Concretos e Neo-Concretos,
Lygia realizou importantes trabalhos bidimensionais,
hoje considerados referências na arte mundial. Em
1960, em uma mostra de grande impacto, apresentou
seus Bichos, esculturas montadas por planos de alumínio ligados por dobradiças, resultantes de suas pesquisas no espaço pictórico. Considerado a obra máxima de
sua trajetória artística e o apogeu do Grupo Neo-Concreto, os Bichos têm sido o conjunto mais conhecido de
sua produção artística. As possibilidades de cada exemplar destas esculturas dependem totalmente do desdobramento dos seus planos a ser realizado pelos visitantes dos espaços expositivos. Sem esta manipulação da
obra, as esculturas permanecem formas estáticas e silenciosas, sem mostrar suas possibilidades formais, rigorosamente construídas.
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7
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Zaratustra se dirigiu à praça do mercado para anunciar a superação do humano e criação de novos valores.
Fracassou. “E como falasse a todos não falei a ninguém”.2
As forças reativas predominavam, o próprio NietzscheZaratustra concluiu, já no Prólogo do livro, a estultice
de tentar se comunicar com todos. Não caberia uma busca de discípulos, mas de companheiros capazes de ouvir. “Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um
rebanho. Atrair muitos para fora do rebanho — foi para
isso que vim”.3
Lygia soltou seus Bichos em diversos espaços, inclusive em cidades européias, e por meio deles, foi-se selecionando quem tinha mãos para desvendar suas propostas. Muitos brincavam, outros se constrangiam,
muitas vezes o público, apressado por uma curiosidade
ligeira pela chamada ‘arte participativa’ que despontava na época, não percebia o alcance da experiência, considerando-a lazer para momentos de ócio. Certa ocasião
um comprador da escultura cogitou soldar as dobradiças, congelando apenas uma possibilidade do Bicho, para
evitar que os criados mexessem na obra.4
Naquele mesmo ano de 1960, Lygia fôra nomeada professora de arte no Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro. Primeira atitude ao entrar na sala de aula foi despertar interesse “naquelas almas trancadas à comunicação”. Nem
palavras nem gestos expressivos circulavam por aquela
sala de crianças apáticas. Levou material com reproduções dos grandes mestres da pintura moderna e deixou
que os alunos folheassem à vontade. A proposta das aulas era recriar o modelo escolhido a partir da observação,
no caso, obras dos grandes mestres da arte. Desse modo,
quando selecionava seus modelos, cada criança começava a se individualizar e a descobrir afinidades expressivas e emocionais com o mundo externo.
246
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
Lygia inventou um meio de lidar com crianças qualificadas como anormais por não conseguirem se expressar pela voz e viverem no silêncio. Crianças que apreendiam o mundo exterior pelo olho e pelo tato e pelo
sentir a vibração das coisas em seu corpo e se comunicavam por gestos, grunhidos e expressões corporais. No
entanto, manteve uma postura de procurar “ir com eles”,
de apenas acompanhá-los em suas descobertas, deixando-se surpreender. Em carta para Mário Pedrosa, de 15
de abril de 1961, dois momentos de suas aulas são ali
descritos: “outro dia fiz umas experiências para eles com
arames e pensei, diante do interesse despertado no
momento, que sairiam coisas geniais da parte deles. E
qual não foi minha surpresa quando todos eles fizeram
óculos e atualmente eles o usam como pessoa adulta.
Anteontem dei-lhes massa para modelar e todos fizeram pênis gigantescos. Começou uma pornografia desregrada... era um tal de engolir ou bater com eles na
cabeça uns dos outros...culminando com a coisa mais
surrealista jamais vista por mim: entrou na sala uma
menininha de um ano e meio, linda, cachinhos na cabeça. Deram um pênis para ela segurar e ela saiu, inocência e feminilidade personificada, segurando com uma
delicadeza como se fosse uma flor, saindo do meio dos
meninos que, numa algazarra infernal aos gritos (porque eles gritam e como...), faziam gestos incríveis, parecendo selvagens de outros planetas...”5
O trabalho como professora ligada a rede oficial de
ensino durou apenas um ano, mas lhe deu experiências que se consolidaram mais adiante em seu trajeto.
Em 1962, casada com o marchand Jean Boghici, viajou
pela Europa, acompanhando-o em visitas “de galeria em
galeria”, conhecendo artistas e críticos. Os Bichos, o famoso conjunto de esculturas manipuláveis, ganharam
um reconhecimento imenso. Michel Seuphor, artista e
crítico, ao manusear o Caranguejo, disse: “jamais espe247
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rei ver uma obra destas” e continuou: “Isto é importantíssimo. Como o Pevsner gostaria e se divertiria vendo
isto! É uma coisa que Gabo tentou fazer antigamente,
mas a Sra quem fez agora!”6
Alguns dias depois, se encontrou com Jean Arp que
“ficou maravilhado e afirmou: tenho visto muita coisa
de arte abstrata, mas jamais vi coisa tão bela”.7
Por esta época, Lygia achou que a criação dos Bichos
fôra suficiente para manifestar seu pensamento. Apesar do inegável sucesso e reconhecimento público dos
seus trabalhos, a inquietude permanecia. “Porque eu,
que já fiz os meus Bichos continuo pensando?…Estou
cansada”.8
Apesar do confortável sucesso destes trabalhos, a
experiência crucial para uma transformação irreversível da vida e produção de Lygia foi a proposição Caminhando: o simples corte com uma tesoura na fita de
Moebius, uma figura topológica conhecida pelos artistas, registrado em fotos de 1963. Cortar a fita, usando
uma tesoura em um pedaço de papel, proporcionou a
vivência de um fluxo incessante, um contato real, físico, com o ritmo contínuo do tempo em um gesto trivial.
O corte da fita pode ser repetido por qualquer um; cada
ato de cortar vale por si e consiste em uma experiência
única e sempre inaugural. Caminhando de Lygia Clark
é uma proposição: dobrar uma tira de papel torcendo-a
uma vez ao colar as extremidades e, com uma tesoura,
cortá-la a partir de qualquer ponto da fita, mantendo o
gesto de corte em linha reta.
Com esta descoberta, Lygia retornou entusiasmada
à “praça do mercado”, queria que o “homem moderno”,
todos enfim, tivessem a vivência. Percebeu, porém, que
agora se faziam necessários concentração, interesse e
vontade por parte do espectador: “uma vontade ingênua
248
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
de apreender o absoluto pelo ato de fazer o Caminhando,
conservando a gratuidade do gesto”. Ela como artista,
apenas propôs ao outro que, ao se situar no momento
presente, atingisse o “estado da arte sem arte”.
“Arte não é mistificação burguesa. O que se transformou é a maneira de comunicar a proposição. Agora
são vocês que dão expressão ao meu pensamento, tirando daí a experiência vital que desejam. Esta experiência se vive no instante. Tudo se passa como se hoje o
homem pudesse captar um fragmento de tempo suspenso, como se toda uma eternidade habitasse no ato da
participação. Este sentimento de totalidade camuflado
no ato precisa ser recebido com alegria para ensinar a viver sobre a base do precário. É preciso absorver este sentido do precário para descobrir na imanência do ato o
sentido da existência”.9
Caminhando permitiu-lhe esta vivência intensa, fulminante como um raio: a percepção do instante. A intensidade desta vivência foi tão forte que Lygia precisou repousar devido a problemas cardíacos. “Dentro do
meu peito mora um leão”, escreveu neste período. Passada a crise cardíaca, ainda se sentia exausta, “me sentia morta, e este sentimento já havia durado quase dois
anos”, a saber, de 1963 a 1965. Ao admitir “grandes transformações passando em seu interior”, recuperou momentaneamente, o “mesmo ‘élan’ e encanto que sentia
antes de fazer a proposição Caminhando”.10
Zaratustra tinha quarenta anos quando seu coração
mudou e ele desceu de sua montanha. “A taça quer transbordar... Vê!’ Assim começou o ocaso de Zaratustra”.11
Seu ponto de partida é a superabundância. O excesso
produz um impulso não de preencher um vazio, ou uma
ausência dentro de si, mas de esvaziar, de transbordar,
de se estender ao abismo e à noite. O ocaso.
249
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Aos 43 anos, começou o ocaso de Lygia Clark. Na época, gozava as prerrogativas de “primeira dama do concretismo”, “melhor escultora brasileira”, “la jolie madame du Brèsil”, realizadora de obras elaboradas e espalhadas no circuito das artes mundiais: Bienal de Veneza,
galerias da Europa. Quando desabafava, em seus textos
e cartas, que precisaria abandonar tudo para viver de
arte, referia-se ao percurso que a obra e as atividades
envolvidas em fazê-la, as quais significavam pensar e
saber, exigiam. Só lhe restou o caminho de “tornar-se o
que se é”, ou então se cristalizar em uma identidade
pacificada e deixar a máscara da “jolie madame” se tornar sua carne. Sempre se pode escolher, mas a possibilidade da liberdade não garante a melhor opção para a
vida. A força da escolha não vem da liberdade, mas de
uma coragem ética de “querer o que já sabe”.12 Liberdade é prática de exercer a vontade, e a vontade ultrapassa impulsos irrefletidos.
Ao deixar de fazer obras bem acabadas, pois com Caminhando vivenciara o precário e se deixara invadir pela
experiência, Lygia foi ficando afastada de parte de seu
público. Aos poucos, abandonou os metais, material ainda
presente em trabalhos como Trepantes de 1965, Bichos
sem dobradiças de 1963, nos Abrigos Poéticos de 1964, e
passou a empregar materiais precários e efêmeros em
trabalhos plásticos que privilegiavam sensações corporais, não apenas a visão, mas tato, olfato, e que exigiam
a participação ativa do público para sua realização. Usou
borrachas nas Obras Moles, de 1964, sacos plásticos, elásticos, pedras, luvas, na sua série Objetos Sensoriais. Inventou trabalhos vestíveis, como Máscaras Sensoriais,
Cesariana, Eu e o Tu (1967) e um labirinto penetrável,
apresentado na Bienal de Veneza, a Casa é o Corpo (1968).
Não deixou de participar e ser convidada para importantes exposições, ela era um nome consagrado e seus tra-
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Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
balhos, mesmo contando com uma resistência mais
contundente de alguns críticos, sempre atraíam interesse. Lygia, porém, tinha momentos de grande desânimo, pois enfrentava incompreensão até de amigos, apesar de não ter dúvidas quanto ao valor de seu trabalho.
Lygia assim escreveu neste período: “Urge ter coragem de renunciar a artificiosas compensações,… urge
olhar para dentro, com medo, com pavor”.13 Zaratustra
enfrentou vários tipos de niilismo, a negação da vida
em nome de valores universais, como fazem os sacerdotes e o Estado; o tipo que recrimina os outros e a própria vida por seu sofrimento, numa auto-acusação dos
erros; o niilismo passivo que nega qualquer ação, devido à impossibilidade de suportar que “não há futuro para
corrigir o instante”.14 E, também, foi-lhe exigido coragem em querer.
Mas até que ponto as descobertas de Lygia modificavam sua própria vida? “…no fundo há auto-compaixão
por mim mesma. Estou chorando o fixo que já não tem
mais sentido em vez de aceitar na maior alegria o precário como conceito de existência”.15 Como esperar de
um espectador anônimo o que, talvez, nem ela conseguisse enfrentar? Como ordenar sem a voz do leão? Zaratustra enfrentou sua hora mais silenciosa, enfrentar
o que sabia, mas não queria dizê-lo, pois era algo acima
de suas forças. “Que importa a tua pessoa Zaratustra!
Fala a tua palavra e despeça-te!”16
Em meados de 1968, Lygia deixou filhos, amigos, conforto e foi residir em Paris. Realizou assim o que temera anos antes: “viver para sua arte”, mergulhar em suas
experiências com uma liberdade que ela não poderia
encontrar no Brasil, não só devido aos militares no governo, mas principalmente porque aqui ela era conhecida e observada. “Ainda precisa tornar-te criança e não
sentires vergonha”.17 No percurso da transformação de
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Lygia e Zaratustra, a obra de ambos estava pronta, mas
eles não estavam ‘maduros para seus frutos’, assim voltaram à solidão.18
Lygia, andarilha, a partir de seu ateliê em Paris, viajou
pela Europa levando seu trabalho. Apresentava-o em galerias, na rua, onde a chamassem. Continuava a formulação de proposições sensoriais, “que agora me parecem bem
mais terrificantes que tudo que já fiz”.19 No entanto, ela
tinha dificuldade em se comunicar, não apenas nestes
eventos, mas até com amigos mais próximos. Isso a deixava em paralisantes crises, durante as quais nada lhe
parecia mais valer a pena, nem viver, numa atitude característica do niilismo passivo. Suas propostas sensoriais foram-na levando a regressões a um passado que era
presentificado no corpo, nos sonhos, nas alucinações. A
palavra emudeceu, perdendo seu espaço na expressão.
O mundo noturno se abria, o abismo falava a Zaratustra. “Tu sabes e não queres!” Na obra estética de Lygia, o
Abismo ganhou uma máscara, tornou-se portátil, acessível, a Máscara-Abismo (1969), que proporcionava a quem a
vestisse uma sensação de queda em um espaço oco. Lygia
escreveu sobre o abismo: “O vazio que se apodera de mim
só pode ser entendido sentindo e assim creio que sentindo posso entendê-lo, mas não resolvê-lo”.20 Na vida, noites
alucinatórias se sucediam, presentificando sensações
arcaicas. “Acordei duas vezes durante à noite ... de horror... Acho que coisas começam a se remoer dentro de
mim e devo passar ainda por grandes transformações! É
duro, mas o que se há de fazer?”21 As transformações se
tornam destino quando se adquire coragem para deixálas acontecer.
Zaratustra em sua hora mais silenciosa ouviu: “quem
quer tornar-se criança deve, também, superar sua juventude!”.22 Em 1972, Lygia foi convidada para dar aulas
252
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
na Universidade de Sorbonne, que, marcada pela abertura exigida pelos estudantes, promovia cursos experimentais e atraía docentes capazes de um trabalho instigante
e transformador. Por seu lado, Lygia tinha grande interesse nos jovens, que no mundo inteiro, praticamente, atuavam nas transformações sociais.
Uma das metas da filosofia de Nietzsche seria liberar o pensamento do ressentimento, da má consciência.23 O trabalho estético de Lygia, ao longo de sua vida,
também manifestou essa luta contra o ressentimento.
Zaratustra descobriu em um determinado momento de
seu caminho que o passado impedia a redenção pela
chegada futura do além do homem. A vontade humana
poderia querer para trás? “Que o tempo não retroceda, é
o que a enraivece; “Aquilo que foi” é o nome da pedra
que a vontade não pode rolar”.24 Presente e passado estavam no futuro, para Lygia, a vivência do Caminhando
fôra clara como um raio. No entanto, como em Zaratustra, ainda lhe faltava a força de querer isso que sabia.
“Queira esse passado!” Esse foi o impacto do eterno retorno na vida de Nietzsche.
Havia algo a vencer: o ressentimento, a reação raivosa da vontade por não conseguir “querer para trás”. A
moral do “tu deves” reativa cobrava atitudes morais e
distribuía seus castigos. Para Nietzsche-Zaratustra a
aranha seria a figura desta moral, criando invisível teia
da culpa para capturar a vida e devorá-la.
Baba Antropofágica (1973) era uma proposição grupal, inventada no curso da Sorbonne, na qual um dos
alunos do grupo ficava deitado, enquanto vários outros o
cobriam com linhas de cor que tiravam da boca. A baba
escorrendo da boca era a imagem de um sonho recorrente de Lygia, e segunda ela, foi este o único sonho do
qual ela expressou a imagem em uma ‘quase’ representação.
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Sobre esta experiência, Lygia relatou: “um aluno vendo a experiência da Baba disse que estava vendo como as
aranhas estavam ligando seus machos na sua teia de aranha. Olhei e pela primeira vez tive a impressão de que
era exato. Eu, a aranha, que envolvo tudo e todos na minha teia. Tive um grande choque. Já sabia, mas a percepção às vezes é tão intensa que é como se fosse a primeira
vez”.25 O veneno estava dentro dela, a má consciência se
insinuando, culpando-se da voracidade da teia. Realizar a
Baba Antropofágica fez com que Lygia tivesse um último
sonho da série recorrente: neste, a baba se transformou
em um objeto de borracha e foi engolido.
Nos anos da docência na Sorbonne, ela estava em um
processo analítico com o psicanalista Fedida, o que a fazia
regredir ao que ela denominava arcaico. “Vivências terríveis na Sorbonne, ligadas à análise que eu fazia, parecia
que eu ia enlouquecer, Eu virava bichos... uma águia voraz; comia frango como uma águia... depois serpente, via
todo mundo como se eu fosse serpente”.26 Coincidência
ou não, águia e serpente também eram os animais de
Zaratustra. Entretanto, o que importa aqui, seria que ela
os incorporou, estes animais deixaram de ser símbolos de
forças naturais e arcaicas para se tornarem canais de
presentificação destas forças no cotidiano.
Zaratustra estava sentado em sua pedra quando ouviu
o grito de socorro dos homens superiores, assustados com
a morte de Deus e pelas exigências de criar valores humanos.27
Assim, os levou para sua morada, para sua caverna.
Entre cantos e ceias, eles se tornaram convalescentes.
Aos poucos, Lygia percebeu que os seus alunos na Sorbonne “traziam suas coisas ... depois eles nem me olhavam mais, conversavam entre eles, [...] eu ficava um elemento jogado fora do grupo”.28 A caverna de Zaratustra
encheu-se de risadas. Zaratustra, porém, afastou-se com
254
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
seus animais. “Divertem-se”, [...] e mesmo se foi de mim
que aprenderam a rir, não foi meu riso que aprenderam”.29
Percebeu enfim que aqueles não eram os companheiros
certos.
O entusiasmo pelas aulas da Universidade foi arrefecendo, os alunos já não lhe instigavam o pensamento.
“Ando péssima. Desanimada, achando que o meu curso
na Sorbonne perdeu o interesse para mim”.30 Zaratustra
olhou para a grande cidade e deixou esse ensinamento:
“Daquilo que não se pode mais amar, deve-se passar
além!”.31
Lygia retornou, definitivamente, ao Brasil em 1976, e
se dedicou à terapia individual, transpondo suas descobertas na arte para o processo terapêutico, inventando um
método de atingir silêncios e trazer sensações arcaicas e
mudas para serem compartilhadas. Na Estruturação do Self,
nome de sua terapia, misturava técnicas de relaxamento
com seus objetos relacionais, utilizados na Sorbonne. Mas
agora não fazia mais grupos, o trabalho individual possibilitava maior dedicação a cada caso. Não procurou mais
falar a todos. “Só amo trabalhar com borderlines”.32 Fizera
uma escolha e dentro da escolha, selecionava. “Recusei
pessoas que passaram pelo meu método por achá-las rasas, são neuróticos e nunca entenderiam a linguagem de
um borderline ou de um psicótico. Somente quem passou
por grandes catástrofes pode entendê-las”.33
Seus Objetos Relacionais faziam emergir uma memória afetiva que a verbal não conseguia abarcar. “Não se
trata de um viver virtual, mas de um sentir concreto: as
sensações são trazidas, revividas e transformadas no
local do corpo, através do objeto relacional ou do toque
direto de minhas mãos”.34
A técnica de Lygia permitia fazer a experiência corporal, no aqui e no agora, do que estava congelado na
255
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memória do corpo de um ser adulto e capaz de se comunicar com outros, permitia um retorno a uma situação
primordial, sem tempo, nem contorno: “É no aqui e agora
que o acontecimento se dá como se fosse pela primeira
vez, embora num passado remoto este acontecimento já
se deu através de sensações corpóreas”.35 Durante a sessão inteira, o paciente deveria segurar uma pedra, Lygia
a chamou de ‘prova do real’36, seria “o aquilo que foi?”
Entretanto, esta atividade a consumia emocionalmente e foi interrompida em diversos períodos, numa
oscilação constante até sua morte em 1988. “Me sinto
como uma esponja que chupa toda psicose do cliente
não tendo a palavra para metabolizar”.37 Tais crises tornavam-se uma abertura total ao outro a ponto dela se
sentir dissolver. O dentro se tornava o fora dissolvendo
contornos. “Perdi minha identidade e estou dissolvida
no coletivo. Vejo-me através de todas as pessoas independente de sexo e de idade. Eu sou o outro”.38 Perceber
seu contorno no mundo era um enorme esforço para
Lygia, e requeria uma constante reconquista da palavra.
A serpente insidiosa e fluída na garganta sufocava,
impedindo a voz. Lygia enfrentou o bloqueio do impulso
para a comunicação, a mudez que mantinha a sensação encapsulada em si mesma sem ser compartilhada. Mesmo optando pela fluência da vida, pelo “exercício experimental da liberdade”,39 o que fazer com essa
baba que escorria sem cessar, nos sonhos e em sessões terapêuticas, ocupando espaço da palavra, emudecendo o pensamento?
Naquele último sonho da série recorrente, Lygia engoliu a baba materializada em um tubo de borracha num
ato de voracidade. Não mordeu e cuspiu a serpente ressentida como na cena do enigma descrita por Zaratustra, na qual ele tenta arrancar uma cobra da garganta
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Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
de um pastor sufocado e como ela resistisse, gritou para
que o pastor a mordesse e a cuspisse fora.40 Lygia, ao
contrário, metabolizou o ressentimento em seu corpo.
Atitude masculina de cortar fora e inventar novos valores? Atitude feminina de engolir e metabolizar, para daí
inventar novos valores? Ou estratégias diferentes para
se buscar o ponto persistente desse ressentimento para
assim o destruir, seja pela visão — ver a cobra na boca
de outro — seja pelo sentir cinestésico que buscaria o
fio da baba inscrito no próprio corpo.
Um de seus últimos trabalhos artísticos apresentados em público em um evento de arte — IX Salão Nacional de Artes Plásticas, em 1986 — foi Corpo Coletivo, uma
série de leotards41 de cores diferentes costurados entre
si em alguns pontos e que deveriam ser vestidas pelos
espectadores interessados em participar da obra. Surgiu de uma estilização das experiências grupais de Lygia desenvolvidas em Paris, nas quais todos se uniam
fisicamente pelo toque, por elásticos ou plásticos. No
Corpo Coletivo as malhas costuradas entre si possibilitavam experimentar a sinergia do grupo a partir de uma
experiência corporal individual. O movimento de um
era alterado pelo movimento do outro e ao mesmo tempo alterava o dos demais, numa corrente cinética. As
tentativas de mobilidade acarretavam interações variadas e exigiam atenção às forças desencadeadas. Em alguns momentos, cada um se sentia compungido a seguir
o conjunto, em outros, uma resistência se fazia possível e
uma força individual modificava o caminho da movimentação. A atenção ao próprio corpo não desviava da atenção
aos movimentos e forças desencadeadas pelos outros.
O pensamento, vida e obra de Lygia apontam para a
invenção de uma sociabilidade desenhada pela convivência, na qual interessam o momento, a situação vivida, a
posição dos corpos em tensão e prazer simultâneos, sem
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7
2005
idealizar a mediação de Deus, Estado e seu Contrato. Seu
coletivo era baseado na convivência vivida — relações que
se dão em espaços concretos. Sensações arcaicas exigiam palavras para serem comunicadas e compartilhadas.
Lygia nunca perdeu a dimensão de que “a comunicação
com o corpo abre para o coletivo”. Todavia, passava longe
de Lygia propor um mergulho em si ou uma auto-descoberta do ego.
Zaratustra encerra sua trajetória de anúncio do além
do homem na chegada do leão. “Chegou o sinal!” No entanto, apenas a criança afirma, cria novos valores para
superar o espírito humano, o leão é incapaz disso, pois
sua vontade ainda diz não ao “tu deves”. “Os meus filhos
estão próximos”.42 Transformar-se em criança seria realizar a superação anunciada por ele, seria se tornar o super-homem, seria dizer sim. O futuro anunciado por Zaratustra se encontra na criança. “O princípio do eterno retorno, nos remete às crianças e ao ser criança como formas
ininterruptas do ato de guerrear e de instabilizar idealizações. [...] A criança deixa fazer dançar, perde os sentidos
pelos sucessivos giros, tonteia, busca eixo, refaz uma suposta normalização estática dada pelo conceito, portanto
experimenta”.43 A criança não se deixa definir por estratégias conceituais de pedagogias que visam moldá-la para
suportar os fardos da moral. Defini-la a partir do adulto
que se quer construir moralmente transformaria o superhomem no burro de carga de hoje.
O Leão rugiu e os homens superiores desapareceram. Zaratustra, sozinho agora, compreendeu qual foi
sua “última tentação”: “Compaixão! Compaixão pelo
homem superior!”. Nessa cena final do livro anuncia-se
um outro tempo — o grande meio dia.
Lygia preocupava-se com a noção de humanidade, no
entanto, em contraposição à imagem ideal de ser humano, investiu no contato estreito com pessoas menores,
258
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
dependentes de tutela, sem a autonomia do maior, mas
resistindo a ele. Lygia aproximou suas experiências das
crianças surdas-mudas, dos autistas; enfrentou com paciência transferências e contra-transferências de alguns
de seus alunos da Sorbonne. Na atividade terapêutica dedicou-se aos casos mais problemáticos: borderlines e psicóticos. Nestas pessoas encontrava o esforço para se comunicar ou para entrar em contato com o sofrimento. “Somente quem passou por grandes catástrofes pode
entendê-las” — afirmava Lygia..
Nietzsche teve seu embate com os homens superiores: reis, sacerdotes, feiticeiro, e os levou para sua caverna, pois os considerava indivíduos únicos, afastados do
rebanho e junto a eles esperou encontrar a ponte para o
além do homem. Lygia, por sua vez, convidou para sua
caverna os menores — seres tutelados ou sujeitados. Foram estes os companheiros que ela desprendeu do rebanho. A luta para se comunicar com um coletivo, para se
transformar, deu-se com eles, enfrentando inclusive o
perigo da compaixão. Todavia, em vez de tentar aperfeiçoá-los em direção a uma maioridade ou condicioná-los
por processos pedagógicos, o que, também, resultaria em
compaixão, Lygia reconheceu a grandiosidade das experiências deles e de saberes decorrentes. Por meio da arte e
da transposição da arte para uma atividade terapêutica,
Lygia acabou desprendendo de uma rede normalizadora
saberes sujeitados, e muitas vezes desqualificados por um
discurso científico maior.
A correspondência entre o caminhar de Lygia e o de
Zaratustra mostrou seu sentido mais instigante quando
Lygia, ao descolar os saberes sujeitados e vivências dos
modelos de interpretação uniformizadora, possibilitou introduzir elementos cruciais para a superação do homem.
Zaratustra duvidava que os homens superiores recolhidos em sua caverna fossem seus reais companheiros. “Ain-
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da dormem esses homens superiores, quando eu já estou
acordado: não são esses os companheiros próprios para
mim”.44 Lygia, por sua vez, tinha periódicas dúvidas se
conseguiria dar continuidade ao seu trabalho como terapeuta, exatamente pela dificuldade em lidar consigo própria frente a estes parceiros. Como não ceder às tentações da compaixão e conseguir deixar os perdidos entregues a si mesmos?
No entanto, ao incorporar, na invenção de um coletivo,
aqueles que passaram por extremo sofrimento ou incompreensão — nomeados como bordelines —, e não as crianças saudáveis, nem os rasos neuróticos, Lygia faz emergir uma pergunta nos interstícios das certezas. A invenção de valores e o exercício de uma ética arrasam
efetivamente a sujeição destes saberes ínfimos e silenciosos e o mascaramento de seus protagonistas em personagens pacificados?
Questão queimada pelo anunciado sol do grande meio
dia ou sombra insidiosa deslizando pelo avesso das pedras?
Ou ambos?
Notas
Parte deste artigo foi apresentada no XV Encontro Nietzsche: Colóquio,
realizado de 13 a 17 de outubro de 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
1
Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, p. 333.
2
3
Idem, p. 47.
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, fita cassete, gravado em 14 de
setembro de 1979.
4
5
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 15 de abril de 1961, CEMAP/CEDEM/
UNESP.
6
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 14 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/
UNESP. Michel Seuphor (1901-1999), artista, escritor e crítico de arte belga,
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verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
participou do Surrealismo e da Arte Abstrata. Os irmãos, Antoine Pevsner
(1886-1962) e Naum Gabo (1890-1977) foram expoentes do construtivismo
russo.
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 18 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/
UNESP. Jean Arp (1886-1966), importante artista francês das vanguardas do
começo do século XX: Cavaleiro Azul, Dadaísmo, Surrealismo, entre outros
movimentos.
7
Lygia Clark. “Considerações a alguém” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, Rio
de Janeiro, Paço Imperial, 1997-1998, p. 145.
8
Lygia Clark. “Arte, Religiosidade, Espaço-Tempo” in Lygia Clark. Rio de
Janeiro, Funarte, 1980, p. 29, grifo meu.
9
10
Lygia Clark. Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 178.
11
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., pp. 33-34.
Roberto Machado. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1997, p. 112.
12
13
Lygia Clark. “28 de outubro de 1963” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, p.
167.
14
Roberto Machado, 1997, op.cit., p. 131.
Lygia Clark. op.cit. p. 168.
Friedrich Nietzsche, 1998, op. cit. p. 179.
17
Idem, p. 180.
18
Ibidem, p.180.
19
Lygia Clark. Carta de 26/10/1968 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 19641974. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996, p. 57.
15
16
20
Manuscrito, Pasta 32-produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOCMAMRJ.
Lygia Clark. Carta de 11/08/1970 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 19641974, op.cit, pp.170-171.
21
22
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 180.
Gilles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. António M. Magalhães. Porto, RésEditora, s/d, p. 54.
23
24
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., p. 172.
25
Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 298.
26
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro de 1979.
27
Gilles Deleuze, s/d, op.cit., p. 34.
261
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2005
28
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro 1979.
29
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 362.
30
Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 298.
31
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 215.
Lygia Clark. Carta a Guy Brett, 14/10/1983, Lygia Clark, Fundação Tàpies,
p. 338. Os nomeados Bordelines referem-se a autistas, surdos-mudos, psicóticos.
32
Manuscritos Pasta 33 – produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOCMAMRJ.
33
34
Lygia Clark. “Estruturação do self ” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 326.
35
Idem, p. 326.
Memória do Corpo, vídeo de 1985, dirigido por Mário Carneiro, mostra uma
sessão terapêutica completa com Lygia Clark..
36
37
Manuscritos diversos, Pasta 46, Arquivo Lygia Clark, CPDOC-MAMRJ.
Lygia Clark. “Da supressão do objeto” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p.
266.
38
Expressão de Mário Pedrosa referente à trajetória de Hélio Oiticica, um dos
poucos amigos artistas de Lygia que sempre a compreendeu e apoiou.
39
40
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, pp. 194-195.
Designa, literalmente, “malha de balé”, segundo o Dicionário da Moda. A
malha foi intitulada assim devido ao seu inventor Leotard, um trapezista francês. (N. A.).
41
42
Idem, p. 380.
Edson Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo,
Imaginário, 2003, p. 150, grifo meu.
43
44
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 379.
262
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias
RESUMO
Este artigo propõe colocar em diálogo dois caminhos de construção de si e de exercício de uma ética. De um lado, a trajetória
realizada por Zaratustra, personagem filosófico inventado por Nietzsche para anunciar a chegada do super homem. De outro, a de
Lygia Clark que moldou sua vida como obra de arte por meio da
própria arte. Algumas correspondências são encontradas, ao mesmo
tempo em que algumas questões instigantes surgem dos interstícios desta conversação.
Palavras-chave: Lygia Clark, estética da existência, arte contemporânea.
ABSTRACT
This article proposes to put in conversation two ways of selffashioning and exercise of an ethics. By one side, the trajectory
made by Zaratustra, philosophical character invented by Nietzsche in order to announce the arrival of superman. By the other, the
one of Lygia Clark who shaped her life as a work of art by means
of the art. Some correspondences are found at the same time that
some provoking questions emerge from the interstices of this conversation.
Keywords: Lygia Clark, aesthetic of existence, contemporary art
Recebido para publicação em 13 de fevereiro de 2004.
263
7
2005
jean vigo, a revolta e o devir
pablo martins*
“Pensamento é o pensamento de pensamento.
Claridade tranquila. A alma é de certo modo tudo o que
é: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade súbita,
vasta, candescente: forma das formas.”
James Joyce
Há cem anos, em 26 de abril, nascia Jean Vigo, cineasta errante, autor de A Propos de Nice, Zero de Conduite
e L´Atalante. Poucos foram tão intensos. Nas menos de
duas horas e meia que somam todos os seus filmes juntos, nos fugazes vinte e nove anos que viveu, ele instalou-se de um modo ímpar na história do cinema. História, sim, embora extra-oficial, à margem, veemente pelo
teor híbrido que instilou.
Vigo tencionou as classificações tradicionais. Um
cineasta de fricção, que transgrediu categorias como
* Sociólogo, mestrando do departamento de Multimeios da Unicamp.
verve, 7: 264-278, 2005
264
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
documentário e ficção. Um cineasta de vanguarda, que
passeava com rara leveza entre os pilares narrativos e
poéticos. Certos historiadores insistem em compreendê-lo como um artista que não alcançou um estilo estético definido. Sorte do cineasta. Azar do analista. Independente do rótulo, e por meio do choque das classificações, brota algo, mesmo informe, que enche os olhos do
espectador.
Cineasta limite, ele limitou as tentativas de abarcar
seu universo, seu cineverso. Um limite imposto pelo próprio vigor de sua juventude interrompida. Um limite
histórico, herança do conturbado momento em que viveu. Um limite — nossa vã compreensão estética oriunda de um modelo estanque de abordagem das obras da
época.
Talvez seja contraditório, mas é no encarar desses
limites que se pode deslindar uma interpretação. Não
para compreendê-lo, tampouco para classificá-lo. Talvez
com uma imersão estética balizada por outro mergulho
histórico possamos vislumbrar a obra desse cineasta.
Falta transe, e olhos bem humorados, para enxergar Vigo.
A vida e a obra de Jean Vigo se complementam. A
figura do pai, Miguel de Almereyda, o contexto político e
artístico dos anos vinte, o surgimento do cinema como
forma de expressão e os inúmeros dispositivos vigilantes e normativos que o aparelho estatal desenvolvia ofereceram limites e novos horizontes para o cineasta.
Dos filmes à vida, do contexto ao texto. O primeiro
elemento que chama a atenção em Zéro de Conduite
(1933) é a urdidura de uma certa poética da revolta. Trata-se do segundo longa-metragem de Vigo. Nele percebe-se uma consistente visão de mundo e uma defesa
pela ética da experimentação. Pode-se afirmar que Zéro
de Conduite narra tentativas de libertação em choque,
265
7
2005
ou atrito, com técnicas de dominação. Tudo a partir da
lógica e do mundo infantil.
Percebe-se uma rara delicadeza ao retratar esse
momento da vida. As crianças não são mostradas apenas como pueris ou sujeitos ingênuos. São indivíduos.
Prontos e, simultaneamente, em constante metamorfose.
É o regime disciplinar que tolhe, ou ao menos insiste em tolher, a riqueza da fonte infantil. Há uma dicotomia, espalhada e atenuada pela cosmologia de Vigo,
entre o mundo dos adultos e o das crianças. O mundo da
regra versus o do caos. O da formatação — que diverge
em gênero, número e grau com a formação — entra em
contraste com o da experimentação.
O internato, aos olhos sarcásticos de Vigo, não passaria de uma forma de internalizar as regras disciplinares. Por isso, todos os adultos são conotados de um
modo ridículo. São caricaturas de um mundo corrompido.
As crianças, por outro lado, caracterizam o universo
da pureza — embora tal marca não conote um romantismo. As crianças de Zéro de Conduite são heróicas por
refutarem a dominação que lhes é imposta. São sujeitos que dizem o não necessário para a manutenção da
dignidade, da autenticidade. Numa palavra: a exaltação
da individualidade a qualquer custo.
O realçar da revolta difere do entusiasmo da revolução. Dois momentos distintos e, muitas vezes, antitéticos. A revolta consiste numa abrupta negação da realidade externa e uma intensa afirmação da individualidade. Ela é momentânea, imediata. A revolução não
prescinde de um prognóstico, um plano de ação, uma
organização coletiva e um planejamento a longo prazo
— ela possui um inevitável teor teleológico.
266
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
Até onde se tem notícia, Zéro de Conduite é o único
filme do início da história do cinema que eleva a revolta
a uma dimensão simbólica. À revolução, ao contrário,
não faltam filmes que a enalteçam. Boa parte da obra do
cineasta russo Serguei Eisenstein, por exemplo, é um
elogio à revolução russa. A Greve (1924) é uma crítica à
falta de organização da classe operária. Outubro (1928)
narra a trajetória da tomada de poder da revolução de
1917. Embora com inúmeras inovações na linguagem
cinematográfica, trata-se de um filme oficial. O Encouraçado Pontemkim (1925), dentro dessas classificações,
é um filme ambíguo: oscila entre a revolta, a revolução
e a repressão do status quo. Mesmo assim exalta a necessidade da organização para o alcance da revolução.
Todavia é no filme O Triunfo da Vontade (1934), de
Leni Riefensthal, que vemos o ápice da relação entre
cinema, Estado e ideologia revolucionária. O partido
Nacional Socialista na sua euforia pré-Auschwitz é captado por enquadramentos sóbrios e geométricos. Há um
peculiar casamento entre tecnologia social e auge da
técnica cinematográfica. Hitler idolatrado e Gobbels inovando ao inserir o cinema e a propaganda como uma
política oficial de Estado.
A relação entre cinema e ideologia é ardilosa. E uma
simples distinção entre revolta e revolução pode reorientar toda uma classificação cinematográfica. Voltemos
a Vigo. Indaguemos sobre suas heranças, sobre o modo
como essa revolta adentrou sua biografia. Talvez seja
necessária uma breve caracterização de seu pai, o anarquista Miguel Almereyda.
Estamos entre as três primeiras décadas do último
século. Em meio às ruas de Nice e Paris — ruas escuras, fétidas, prenhes de lirismo para alguns, transbordante de nojo para outros —, entre prisões de colegas e
parentes, perpassando barricadas e uma enxurrada de
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7
2005
ideologias afobadas. À militância política, vidas dedicadas. À militância por outros modos de percepção da vida,
outras formas na arte emergiam. Estamos no auge das
vanguardas. Contra a métrica clássica, a pintura representativa, o teatro ilusionista e a música tonal experimentavam-se versos livres, traços desgeométricos,
a estética da crueldade e seqüências de notas cromáticas, seriais, atonais. Havia uma ânsia por uma liberdade estética, e ninguém — sobretudo os vanguardistas
— hesitava em jogar expurgos ao ventilador. O novo era
uma imposição. Tudo que soasse clássico sofria de um
ferino despeito.
Estamos, também, no ápice da empolgação liberal.
Zilhões de monumentos erguidos à redenção tecnológica. Ruas varridas por um urbanismo sanitarista onde o
limpo e o sujo tornam-se categóricos, distintivos. Consolidado o regime disciplinar e normativo, arquitetado
um novo modo de atuação estatal e implementada a forma industrial de organização da vida, a França fervia.
Do meio do caldeirão pulula a figura de Miguel Almereyda, um anarquista polêmico, influente, um perfil
eminente no ambiente político da época, com ideais diversos e talento de sobra para formar e manipular a opinião pública.
Freqüentador assíduo da prisão Petite Rouquette, Almereyda foi perseguido durante toda sua vida. Quando
livre, ganha um rápido destaque. Escreve para jornais
tão diversos como o Liberátion, o Guerre Sociale ou o satírico Bonnet Rouge. Organiza um congresso internacional centrado no tema do antimilitarismo, uma forte ideologia da época que primava por reverter a lógica estatal a partir do exército. Ameaça aplicar alguns desses
princípios perante o contexto da Primeira Guerra Mundial. A mídia debatia a entrada, a atuação e a saída das
tropas francesas. O exército, contudo, era basicamente
268
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
formado por operários, socialistas e anarquistas — justamente o público, os leitores de Almereyda. Com a
ameaça de manipulação ganha poder e degusta-o.
Confusa e intermitente, a vida desse anarquista condensa um pouco do pano de fundo da época. A agitação
política, a explosão de inúmeros estilos de vida, a circulação urbana e moderna permeada por novos símbolos.
Destaquemos seu início de carreira: como fotógrafo.
Ressaltemos sua principal atuação política: como jornalista. Lembremos de seu maior empecilho de expressão: a prisão.
A vida de Almereyda, enfim, resume a atuação de
novas tecnologias sociais oriundas do fim do século XIX.
A fotografia e os jornais panfletários — juntamente com
os folhetins, o melodrama e o cinema — sintetizam o
lado periférico da emergência da cultura de massa. Qualquer cidadão ganha um rosto, todo indivíduo tem, teoricamente, o direito de expressar e reivindicar sua opinião.
Por outro lado, essa mesma cultura de massa é sabiamente utilizada pela nova elite como uma forma de
repressão revestida de discurso democrático. E são justamente os formadores de opinião, como Almereyda, os
intermediários, os barganhadores, que exercem um jogo
duplo. Eles oscilavam entre a chantagem com a elite e o
acirramento dos ideais com a massa.
Mais refinada, a lógica carcerária ganha relevância
histórica e institui novos modos de normalização, padronização e dominação do indivíduo. A urbes torna-se
múltipla: espaço do exercício da liberdade e locus privilegiado da vigilância policial. Almereyda foi uma vítima
nervosa e irrequieta dessa lógica. Numa de suas maiores temporadas carcerárias foi obrigado a acatar a lei do
silêncio perpétuo. Nenhuma palavra, nenhum ruído,
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2005
soluço, sequer um bocejo poderia ser escutado pelos
guardas. Calaram-no. Depois de um ano, quase um terço do seu vocabulário havia desaparecido.
A revolta que guiou sua vida, segundo alguns intérpretes, foi resultado dessas prisões. E foi lá, entre as
grades, que reverberavam seus primeiros ideais anarquistas.
Mesmo com sua inquestionável autonomia, Vigo carregou certas angústias e inquietações do pai, Miguel
Almereyda. E foi na incessante simbiose entre estética e política que ele ensaiou resolver tais questões.
Há algumas semelhanças, outras continuidades e
rupturas sutis entre esses dois personagens. O ambiente de perseguição da vigilância normalizante, mais
uma vez, atrita-se com a busca por caminhos alternativos. Há uma mudança de indumentária. O que
Almereyda resolvia entre manifestações e negociações políticas, Vigo sublimava com uma complexa rede
simbólica. Vigo escolheu o cinema, outro meio de comunicação com as massas. Vigo foi vítima da lógica
do internato, outra faceta do regime disciplinar. Vigo
foi tolhido pela censura, seu reconhecimento foi póstumo.
Contudo, é a índole da revolta que, teimosamente
e plena de brios, permanece no menino Vigo. Sua combustão artística era apenas uma questão de tempo.
Lembremos que foi nos bairros de periferia, os famigerados vaudevilles, que o cinema obteve seu primeiro público. Sim, o cinema nasceu underground.
Antes, muito antes, de alguns movimentos requisitarem tal epíteto. Somente nos meados da década de 1920
houve o profícuo encontro entre o cinema e a miríade
de vanguardas da época. E nessa encruzilhada, deveras saborosa, Vigo encontrou-se consigo mesmo.
270
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
Junto ao brilho das vanguardas e dos cinemas de
vaudevilles; junto à ânsia pela experimentação e pela
realização cinematográfica, Vigo aglutinou um espírito
e uma ética libertária. Desconsiderá-la não passa de
um menoscabo ao forte teor simbólico que tal contexto
obteve na sua obra. Underground — por que não? — também fôra o ambiente em que cresceu o menino Jean
Vigo.
Em Zéro de Conduite (1933) e L´Atalante (1934), assim
como em boa parte dos filmes da época, emergem personagens típicos do ambiente das vaudevilles. São os desajustados, como os garotos castigados ou Huget, o novo
bedel, que não se intimida com as restrições normalizantes das regras do internato. São os desviados, aqueles classificados para permanecerem à margem. É o caso
do père Jules do L´Atalante que vive eivado por valores
não partilhados pela ascensão burguesa. Ou ainda, o
mágico-palhaço-vendedor ambulante desse filme, motivo da briga do casal, que parece ter vindo direto da idade
média para a Paris do século XX. Esses personagens
estão fora do contexto.
Chaplin, René Clair, Fritz Lang e Eric von Stroheim
também permearam suas narrativas com protagonistas desviados. Trata-se de um sintoma da época: o desemprego, a índole ambígua do vagabundo (entre o herói
e o anti-herói), uma miríade de hábitos e costumes não
contemplados pela moral burguesa. Todos esses personagens fogem, zombam e perturbam a normalidade da
ordem recém instalada. Há uma mistura de ironia desses diretores com a melancolia dos seus personagens.
Outra guinada de valores: o cinema na sua peleja
para obter o status de arte. Não fora um processo retilíneo, e, para tanto, o papel das vanguardas foi fundamental. Ela atuou de dois modos: reconheceu no cinema uma
nova forma de expressão que merecia uma atenção es271
7
2005
pecífica. Entretanto, a vanguarda manteve e aguçou o
espírito vulgar que caracterizou o início do cinema (e a
obra de Vigo foi uma das maiores sínteses dessa relação). As gags, por exemplo, eram atrativos indispensáveis para todos os vanguardistas e não possuíam nenhuma intenção em elevar o status do cinema.
A vanguarda, o documentário e o cinema social podem resumir as três maiores influências de Jean Vigo.
Se fôssemos escolher cineastas da época que deglutiram tais tendências e a legaram a Vigo, citaríamos Dziga Vertov e Luís Buñuel. De um lado a câmera-olho, que
capta e registra mais do que o olho alcança. A câmera
objetiva que desorganiza o olhar viciado dos homens
sobre o mundo. “O mundo visível assim com o mundo
invisível — a olho nu”, era o lema de Dziga Vertov. De
Buñuel, a explosão do universo onírico. Um quê de surrealismo, como o espaço da liberdade reivindicado pelos
artistas da época. Um pouco da poesia que nos falta, ou
nos recalca, o dia a dia.
Nos três filmes de Vigo essas heranças ganham uma
incrível fluência, principalmente, pelo modo como ele
as insere à narrativa. A frieza da objetiva cinematográfica é sempre a mesma. A câmera não cria ou distorce o
fenômeno — como fizeram os vanguardistas em suas
aventuras cinematográficas — ela prima pelo registro
quase científico da mis-en-scène. O olhar do instante, o
olhar do flagrante: não é outra a base estética de Jean
Vigo. A poesia, quase surrealista, emerge dessa projeção do sujeito-espectador aos objetos matematicamente captados por Vigo. O surrealismo de Vigo, portanto,
surge calcado numa profunda iluminação profana.
A propos de Nice (1929), seu primeiro filme, tem influências diretas dos documentários da época que almejavam captar a alma de uma cidade. Berlim, Sinfonia
de uma Metrópole (1927) de Walter Ruttmann e Rien que
272
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
les Heures (1926) do brasileiro Alberto Cavalcanti são
algumas dessas realizações. Nesses filmes, a câmera
ainda esboça um ethos documental, como se pudesse
registrar o real.
Vigo tenta, sim, imprimir o espírito de Nice, a cidade
de sua adolescência, nesse seu primeiro filme. Todavia, ele desconfia do real e, diferentemente de suas influências, sua câmera está eticamente orientada para
captar fenômenos, eventos e acontecimentos. Nada
mais. Não há uma realidade pré-concebida. Para o cineasta francês, mesmo o jogo social, mesmo a documentação de encontros sociais oriundos de um real imediato aparecem como um modo de ficção. “Nenhum rosto é
tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade” observa Walter Benjamim. Vigo certamente concordaria.
A representação social como um jogo: por isso sua
fixação por bonecos, máscaras e encenações do gênero.
Este elemento, o boneco, é recorrente nos três filmes
de Vigo. E o que há de real nos bonecos, além de sua
imanência física, não é justamente o encarnar realidade àquilo descaradamente imaginário? É desta fricção
— do irreal a olho nu com o real que nos é invisível —
que emerge a singularidade da poética do cinema de
Jean Vigo.
Zéro de Conduite (1933) condensa de outra forma as
relações entre documentário e ficção. Trata-se, primeiramente, de uma resolução autobiográfica. Num segundo
ângulo, percebe-se uma enorme primazia pela descrição: o trem, o pátio, o dormitório, a cidade, a festa de
comemoração de aniversário do colégio (que é diretamente contraposta ao êxtase espontâneo — a revolução
infantil). Os flagrantes na rua, em Zéro de Conduite, lançam, mais do que um estilo documental. Trata-se de
um olhar sobre a cidade, de uma tentativa infantil, pre273
7
2005
coce e semi-reprimida de exercer a flânerie e dar asas
aos desvarios inerentes aos passeios urbanos.
O ápice desse filme, contudo, está em suspender o
instante e o momento da revolta dos internos. Por isso a
câmera lenta, as plumas dos travesseiros, o pulo dos
meninos mostrado ao reverso remetem à recusa da
autoridade, o breve e intenso momento em que exala o
halo da liberdade.
A descrição do barco e da chegada à Paris são os elementos que dinamizam os devaneios poéticos de
L´Atalante (1934), último filme de Vigo. O rádio, o personagem circense, as danças, os gatos, as caminhadas
pelas lojas e, sobretudo, o registro do devir urbano captado, congelado, no momento do choque. A narrativa de
L´Atalante é quase um documentário de um jovem casal
que chega à capital. A câmera de Vigo soube passar o
estranhamento que a metrópole causa a qualquer ser
que não nasceu nela.
Com essa dinâmica de friccionar ficção com documentário, de tratar personagens como objetos e objetos
como personagens, a partir dessa mescla, começamos
a enxergar Vigo. Afora nosso olhar viciado a uma narrativa previamente anunciada, além de classificações
impostas, elucida-se o poder da câmera de cinema. Com
Vigo vamos ao cerne dos anos 1920 e 1930 na França.
Porque, simplesmente, essa distinção entre poética e
realidade não fôra respeitada.
***
Um elogio à merda — um ato necessário. Alguns fatos (aparentemente) desconexos:
14 de julho de 1912, o jornal La Guerre Sociale endereça uma mensagem ao governo francês. Com letras
274
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
garrafais, em negrito, sua manchete estampa: EU VOS
MANDO À MERDA!
Almereyda, nome político do pai de Vigo, é o anagrama de Il y a merde. Podemos traduzi-lo para algo como
‘Tem merda’. (!)
Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o estudante está num devaneio solitário, escreve algo sobre a
carteira. O professor chama sua atenção. Ele, com muita naturalidade, o manda à merda.
Faltam cinco minutos para os atores entrarem no
palco. A coxia treme, alguns pulam, outros, calados, se
concentram. Uma tácita evocação de um deus grego,
remoto no tempo e vívido como símbolo. Faltariam vinhos, danças e orgias, mas celebra-se a encenação da
vida. A coxia estremece com o hálito de figurinistas,
maquiadores, iluminadores, atores e diretores. É um
uníssono: MERDA — todos gritam, e agora sim,
(re)inaugura-se o júbilo de estar em ato.
Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o diretor
do internato, alguns professores e os bedéis pedem, educadamente, para que o aluno retire a agressão feita ao
professor. Com altivez, o aluno se levanta e repete: eu o
mando à merda.
***
Se em Zéro de Conduite vislumbramos uma poética
da revolta, em L´Atalante percebe-se um mergulho à
estética do devir. O último filme de Vigo não passa de
um fluxo incessante com um rumo indefinido. Toda a
magia dos road-movies da década de 1970 já está explorada nesse singelo filme de 1934. Não seriam poucos,
aliás, os estilos preconizados por Vigo. Sua relação entre surrealismo e cinema social, por exemplo, muito se
assemelha à transgressão do neo-realismo italiano impulsionada por Fellini e Pasolini.
275
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2005
É com sutileza que a narrativa de L´Atalante não respeita a convenção do casamento. Por isso não é adequada sua classificação como um filme lírico ou romântico.
Vigo insere a dúvida e a experimentação num ritual
social eivado pela certeza e pela rigidez. Os noivos são
dois estranhos e a noite de núpcias, à beira do L´Atalante,
causa tanta insegurança como um jogo de loteria. O filme possui quatro momentos narrativos para o casal: a
cerimônia, a convivência no barco, os desencontros na
cidade e o reencontro. E cada um desses momentos tem
um suspense prenhe de reticências. Leia-se: um devir.
Todo devir dispensa uma resposta. Na dúvida do casal, a câmera vagueia pelo universo do père Jules, pelas
ruas de Paris ou pelos lugares mágicos e novos trazidos
pelo fluxo do barco. Em L´Atalante o devir é feminino. É
Juliette, a noiva, que ensaia entrar no quarto de père
Jules e apreender esse universo. Esta é uma das cenas
mais belas do filme. Pére Jules, o beberrão, sujo, rodeado por gatos, cheio de tatuagens, freqüentador de casas
de jogos e de prostíbulos: é este ser quase anormal que
mostra um mundo novo para Juliette. Seu marido, tomado pela fúria da ordem, a interrompe: Juliette deve
se comportar de acordo com o fluxo previsível que lhe é
imposto.
Análoga, outra guinada de percurso ocorre com o encanto de Juliette pelo vendedor ambulante (que é insuportável para o dono e os clientes do bar). Mais uma vez
o que a encanta é a possibilidade de conhecimento de
um mundo novo. Este teor de ingenuidade, e de vontade
de experiência, lembra o anseio dos ‘jovens diabos’ de
Zéro de Conduite.
Jean, mais uma vez, faz cara e pose de marido ciumento. Em termos narrativos ele exagera esse sentimento, ele porta a hybris dramática. Nesse episódio temos uma fantástica utilização da narrativa sonora. Ju276
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir
liette, numa espécie de monólogo interior, ouve a voz do
convite do vendedor ambulante subitamente contrastada com a voz castradora de seu marido. A sedução dos
novos experimentos em choque com a adequação à regra. Aqui o devir fala mais alto e Juliette se permite
uma aventura pela cidade.
Seu olhar de encanto se contrapõe ao de vingança e
desespero de Jean. Seu devir é incessante: da flânerie
ela passa ao desemprego e perambula pelo submundo
de Paris. A experiência de isolamento dos recém-casados também faz parte desse devir conjunto e instila vontade onde outrora havia dúvida.
Depois do reencontro, outro devir: a câmera em plongée sai do L´Atalante e acompanha o fluxo incessante, a
imagem de água e luz, um rio — sem destino.
Talvez haja um elo entre a noção de revolta e a de
devir. Talvez esse elo defina uma forma latente à curta
obra de Jean Vigo. Mais forte do que isso está o fato desse jovem cineasta ter captado e expressado a alma desses dois fenômenos complexos. A alma não na sua acepção metafísica. A alma na sua faceta suja, mundana,
com holofotes no seu viés profano. A alma como a forma
que engendra formas, como o lance do pensamento que
remete a outros fatos, outras idéias — ao infinito. Se
existe algo entre a revolta e o devir é melhor deixá-lo
inominável. Ou ver e rever Vigo — este cineasta centenário.
277
7
2005
RESUMO
Na Paris do início do século XX, um pai anarquista e um filho cineasta. O contexto político e estético, as forças repressivas e expressivas
são sintetizadas pelas figuras de Miguel Almereyda e Jean Vigo. O
legado libertário de Almreyda, um breve retrato do ambiente anarcosindicalista da passagem do século XIX para o XX. As primeiras
décadas da história do cinema, a busca por linguagens de vanguarda e o diálogo com as vaudevilles são vistas a partir dos três principais filmes de Jean Vigo: A Propos de Nice, Zéro de Conduite e
L´Atalante. As relações entre documentário, cinema social, ficção e
cinema independente ou experimental no contexto das décadas de
1920 e 1930. Também vislumbra-se as influências de Vigo à história
do cinema e os estilos que antecipou.
Palavras-chave: história do cinema, vanguardas, anarquismo.
ABSTRACT
Paris, beginning of the 20th century, an anarchist father and his
movie maker son. The political and aesthetic contexts, the oppressive
and expressive forces are concentrated in the characters of Miguel
Almereyda e Jean Vigo. The libertarian legacy of Almereyda, a brief
view of the anarco-sindicalism environment in the transition from the
19th to the 20th century. The first decades of the history of cinema,
the search of avant-gardes languages and its dialogue with the vaudevilles are analyzed through the tree Vigo’s main pictures: A Propos de Nice, Zéro de Conduite and L’Atalante. The relationship
between documentary, social cinema, fiction, and independent or
experimental cinema in the context of the 1920’s and 1930’s. The
article glimpses the Vigo’s influence in the history of cinema and the
stiles he announced.
Keywords: history of cinema, vanguards, anarchism.
Recebido para publicação em 15 de março de 2005.
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verve
Anarquismo e crítica pós-moderna
Resenhas
anarquismo
e crítica pós-moderna| nildo avelino*
Salvo Vaccaro. Anarchismo e modernità. Pisa, BFS, 2004,
133 pp.
Salvo Vaccaro, professor de Filosofia Política e Ciências Políticas na Universidade de Palermo, Itália, conhecido no Brasil pelo seu artigo “Foucault e o anarquismo”
que integra o Dossiê Foucault organizado por Edson Passetti (Margem, n. 5, 1996, pp.157-170), publicou recentemente um outro ensaio no qual propõe confirmar o nexo
existente entre anarquismo e modernidade por “um
percurso de confronto com âmbitos conceituais, categorias de pensamento, constelações intelectuais que por
convenção e comodidade são atribuídos a autores pósmodernos” (p. 7). Para isso o autor re-visitou algumas
das posições críticas do anarquismo buscando traçar
continuidades, afinidades e prolongamentos, mas sempre num campo de tensão e independente tanto do corpo teórico da ideologia política propriamente dita, quanto das matrizes de pensamento ligadas aos nomes mencionados em seu ensaio. O autor estabeleceu, com isso,
* Mestre em Ciências Sociais, doutorando pelo Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sócias da PUC/SP, pesquisador no Nu-Sol e integrante do Centro de Cultura Social, bolsista Capes.
verve, 7: 279-285, 2005
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2005
alguns pontos-limites nos quais realiza uma reflexão pontual onde ele faz confrontar anarquismo, modernidade
e crítica pós-moderna.
Segundo Vaccaro, o pensamento anarquista ao buscar a abolição do poder afirma uma procura interminável, e sempre em sentido móvel, de “vida que retraça
livremente ligações sociais expressas experimentalmente, renováveis ou revogáveis à vontade, constitutivamente fluídas, não cristalizadas em corpos institucionais e que, em última análise, caracteriza a relação
singularidade/comunidade” (p. 8).
É desta forma, diz Vaccaro, que a distância que separa a concepção anárquica do poder, decisivamente negativa porque afirmativa da liberdade como prática prioritária, daquela de Foucault, por exemplo, é menor do
que se apresenta à primeira vista. Foucault vai distinguir o “poder que circula nas relações sociais da sua
condensação em aparatos de domínios que interrompem
sua fluidez, bloqueando a contínua chance de reversibilidade” (p. 9).
A saída da menoridade na qual a humanidade se encontra em situação de escravidão tornou-se, de um certo modo, o ponto alto da reflexão de Kant, uma vez que
ela implica a clássica idéia kantiana de liberdade, grávida de pressupostos essencialistas, universalistas e
opressivos, como obediência aos imperativos morais.
Segundo Vaccaro, o anarquismo também é portador desta
marca emancipadora da filosofia das Luzes e de uma
certa confiança na bondade e na virtude dos homens
que lhe é inerente, fazendo reviver o encanto naturalista.
De modo contrário se colocam as teses pós-modernas. Elas “rejeitam tanto a pretensa carga inata de bondade dos indivíduos, como se a ética pudesse ser abstra-
280
verve
Anarquismo e crítica pós-moderna
ída das condições históricas nas quais homens e mulheres vivem, quanto o elemento qualitativo do sujeito
que resplandece despertado pela transformação da existência, quando é justamente pelo nascimento do sujeito — ao mesmo tempo “soberano submisso, espectador
vigiado” (Foucault) — que na era moderna se articulou
uma imensa estratégia de dominação através dos corpos e das mentes, dispostos não somente ao acaso, mas
também com implicações cruciais aos exercícios de poder. Sem sujeito não existiria uma prática de assujeitamento (mas de mera e brutal servidão), e a soberania
não se reconfiguraria em novas relações autoritárias
que colocaram a subjetividade como sua representação
histórica” (p. 10). O sujeito, portanto, não é “isento de
responsabilidade no exercício das relações de poder que
o constitui que o investe de papéis solidamente fundamentados, que o condiciona até mesmo na sua tensão
liberalizante”. A partir dessa analítica o anarquismo não
apenas deveria “livrar-se do mito da Subjetividade (operária, por exemplo), como deverá individuar uma intensidade libertária que não cristalize os fluxos parciais de
liberações em estados molares e gregários” (idem).
Se anarquismo e crítica pós-moderna separam-se no
que concerne ao Sujeito, aproximam-se na crítica a dialética. No pensamento dialético o novo não pode mais
que emergir do velho; contra isso anarquismo e pós-estruturalismo opõem o arbitrário e o excedente, a regra
e o acaso, sublinhando “a margem de manobra da vontade rebelde” e a “aposta no ato subversivo de liberação”
(p. 12). Mas, aquilo que mais aproximará o pensamento
anárquico do pós-estruturalismo, sobretudo de matriz
nietzschiana, é o fato dele ser um pensamento “programaticamente instável, que não busca repouso, mas devir incessante” (Idem).
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Por meio dessas ligações perigosas o autor procurou
desfazer o nó entre anarquismo e pós-estruturalismo,
sem incorrer na “representação fiel de dois gêmeos siameses”, mas fazendo pontuar confluências que provocam efeitos “de deslocamento que muda-lhe a configuração acrescentando uma potência dissonante” (p. 14).
Segundo Vaccaro, a estreita relação que se estabelece entre anarquismo e modernidade não ocorre apenas
por paralelismo histórico ou por genealogia do modelo
teórico, mas sobretudo porque as vicissitudes de ambos
pensamentos estão indissoluvelmente intrincadas. O
anarquismo ganhou visibilidade pública “quando se conjugou uma série de processos sociais, políticos, econômicos, tecnológicos, culturais, demográficos, cuja condensação toma o nome de modernidade”. Isso permite
que o seu fundo teórico esteja intimamente ligado “às
principais conotações que o identificam ao moderno, ainda que com diferentes ênfases” (p. 15). Contudo, no âmbito da modernidade, “o anarquismo é uma variante
menor, situado nos limites do estranhamento, o parente repudiado porque pobre (ou incômodo), quase um elemento espúrio” (idem). É o que ocorre com a noção de
crítica tipicamente normativa relegada pela modernidade, enquanto o pensamento anárquico lança mão de
uma faculdade crítica não normativa, re-elaborando “retoricamente as categorias do iluminismo moderno excedendo-o” (p. 17).
Se modernidade e Iluminismo se confundem, os conceitos de fundo do anarquismo são apenas compreensíveis no âmbito da modernidade com a condição de imprimir nela fortes acentuações especificas. A acentuação que o anarquismo deu à emergência do conceito de
indivíduo, por exemplo, o confirma. Vaccaro aponta o
anarquismo como constituindo a única força “que pensou uma formação do indivíduo não constituída por prá-
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verve
Anarquismo e crítica pós-moderna
ticas de poder, não apenas em relação ao mundo exterior — as coações na socialização da ordem constituída —
mas também e muito mais em relação ao próprio eu” (p.
25).
Dois movimentos caracterizam o moderno: de um
lado, a ocidentalização homogeneizante e despersonificadora; e de outro, “a força da continência que incita
cada um a recortar um espaço de unicidade inefetual,
estetizante” (p. 28). Neste jogo de forças, o desafio anárquico seria o de transformar essa tensão em laços sociais abertos aos diversos estilos de vida.
Vaccaro aponta na crítica radical ao Direito uma forte característica do pensamento anárquico. Mas ao
arruiná-lo, o anarquismo abstrai dos processos jurídicos a “dimensão institucional que hoje fornece um vínculo normativo sempre mais difuso e capilar”, esquecendo que a normatização dos comportamentos não visa
apenas dirimir conflitos, mas, sobretudo, introduzir os
valores da norma em “cada espaço físico e mental da
existência, induzindo a uma interiorização, no limite,
fisiológica, da norma” (p. 43).
Vaccaro faz notar que as pesquisas genealógicas de
Foucault demonstram que a ideologia do laissez-faire
apenas “surge quando a sociedade é colocada forçosamente em condições de se “auto-governar”, tendo assimilado e reproduzido as instâncias de controle e domínio impressas pelas estratégias de poder”, culminando
nos “corpos estatutariamente apropriados” (p. 75).
A fragmentação dos sujeitos provocada pelo moderno
causou uma sensação de angústia que fez surgir todo
um filão no qual se poderia alocar desde o romantismo
político ao utopismo científico e não-científico. Foi o que
Vaccaro chamou de reconciliação, um “potente motor que
liga ideologias diversas” e “que ainda hoje caracteriza
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todo imaginário ligado às hipóteses de emancipação” (p.
94). Foucault tinha mencionado a insistência dessas
velhas funções tradicionais da profecia na cultura ocidental, reativadas pelo ardor de conjurar o presente e
aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa
contribuir. Ou o passado nostálgico da comunidade ou o
futuro da revolução, em todo caso é preciso “reconciliarmo-nos com este outro nós-mesmos. É uma imagem tipicamente teológica: ela separa o indivíduo em uma parte
física, aquilo que somos, e uma parte metafísica, que
existe, mas que devemos alcançar” (p. 96).
Nessa busca entram em funcionamento as identidades. Elas designam o nosso si reconhecendo-o “apenas
quando colocado no compartimento justo”; Vaccaro atribui às identidades uma função operativa que nos poupa
da “fatigosa liberdade e da pesada responsabilidade [...]
que constitui o fato de que cada um é potencialmente
livre de orientar a existência” (p. 101).
Sublinhando o duplo significado da palavra arché, que
em grego significa tanto origem e princípio, quanto comando e autoridade, Vaccaro pensa a anarché como livre disseminação da existência, como origem subtraída
a toda lógica de origem, como surgir singular. Implica
pensar liberdade sem limite, sem verdades consolidadas, sem legitimação, sem valores superiores a vida,
sem origem. O início é vazio. O estilo livre seria capaz de
resistir às alturas vertiginosas e ao horror vacui, é bússola necessária para não deixar o “viandante” perder-se
na imensidão do deserto ou do mar aberto, mundos de
liberdade e criatividade nos quais se pode imaginar “uma
sociedade libertária em devir-anárquico, que estenderá sempre mais, sem saturar-se, as chances de liberdade que gerações de homens e mulheres saberão historicamente inventar e criar” (p. 123).
284
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Anarquismo e crítica pós-moderna
Anarquia in-finita. Vaccaro conclui contra a idéia de
sociedade anárquica, sempre global, exaustiva, completa, perfeita. Segundo ele não é possível falar de sociedade anárquica sem pretensão de totalidade auto-referente, fechada em si mesma. Vínculos sociais livres implicam também ruptura “social, isto é, de uma única
sociedade, na qual o elemento de pluralidade e indeterminação infinita seria contido e possível apenas no interior de um contexto unitário que legitima alguns vínculos sociais e não outros” (p. 127). Daí a necessidade
de pensar o anarquismo como reserva de tensão coletiva e individual, como tensão fundamentalmente ética.
Devir, diz Vaccaro, implica também e, sobretudo,
transformação social, e devir é precisamente hoje o desafio destrutivo-construtivo ao mesmo tempo; não tanto
um “levante das massas”, mas um devir-revolucionário
que seja índice de “práticas estilizadas de vínculos sociais que dissolvam o terreno sobre o qual se funda a estatismo para dinamizar a pluralidade, a revogabilidade,
a estreiteza dos laços sociais, subtraindo-se as formas
do controle social que nos imobilizam no conformismo
consumista” (p. 135).
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notícias de um pensador:
a coragem da verdade e o pensamento
libertário de michel foucault| tony hara*
Frédéric Gros (org.). Foucault: a coragem da verdade.
Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola Editorial,
2004, 268 pp.
Margareth Rago. Foucault, História & Anarquismo. Rio de
Janeiro, Achiamé, 2004, 87 pp.
O jornalismo radical empreendido por Michel Foucault
não cessa de surpreender e de se desdobrar de múltiplas maneiras na atualidade. O trabalho de diagnosticar as forças que sublevam e de tornar visível o que não
se vê, justamente, por estar tão próximo e colado a nós
mesmos, parece ser cada vez mais urgente. É necessário, nessa época confusa na qual se implementa o controle social à distância, fazer aparecer as novas estratégias de monitoramento e controle das formas de conduta. Mais ainda, o legado intelectual de Michel Foucault
é fundamental para compreender as recentes configurações do espaço político gangrenado por palavras de ordem politicamente corretas e completamente vazias,
como rezam os manuais de marketing.
Fazer a história do presente, atuar na atualidade, com
coragem. As últimas aulas de Foucault no Collège de
France (1983-1984) foram consagradas ao estudo da parrésia e levaram o título de “A coragem da verdade”. Quem
dá notícias desses últimos cursos de Foucault, ainda não
publicados, é o professor Frédéric Gros da Universidade
*Jornalista e Doutor em História pela Unicamp. Publicou Caçadores de notícias:
história e crônicas policiais de Londrina (Editora Aos Quatro Ventos) e a biografia
do poeta Paulo Leminski para a coleção Rebeldes Brasileiros (Editora Casa
Amarela).
verve, 7: 286-291, 2005
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Notícias de um pensador: a coragem da verdade...
de Paris-XII. Em novembro do ano passado, ele esteve
no Brasil a fim de participar do Colóquio Internacional
Foucault: 20 anos depois, organizado por Margareth Rago.
Nesta ocasião, Frédéric Gros abriu os trabalhos do Colóquio com uma conferência centrada no problema do “Cuidado de Si”, enfatizando as repercussões e as virtuais
transformações que esse antigo exercício ético grego
pode provocar na moral e no jogo político dominante da
modernidade.
A Coragem da Verdade. Além da conferência de
abertura do Colóquio — que contou com a participação de
mais de 30 intelectuais especializados na obra de Foucault
—, o professor Frédéric Gros trouxe também na bagagem
um livro organizado por ele, intitulado Foucault: a coragem
da verdade. Os seis ensaios que compõem o livro destacam,
sob diferentes perspectivas, um antigo problema que
assombra a atividade intelectual. A saber, o problema do
cruzamento, da aliança entre a teoria e a prática, entre o
que se diz e o que se faz, entre a verdade e a vida. É por
isso que Frédéric Gros reconhece nos estudos de Foucault
sobre a parrésia na cultura grega, algo mais do que uma
nova invenção conceitual. Trata-se, segundo seus termos,
de uma “grade de leitura da obra e da vida enquanto indissociáveis, aquilo que, simultaneamente, fundamenta a
escrita de livros e a ação política” (p. 12). Em outros termos,
seria a retomada de um ponto de articulação entre os
discursos e as ações e, o reconhecimento de critérios éticos,
e não lógicos, para a avaliação da legitimidade e da validade
de uma opinião. O critério de verdade, em última análise,
encontra-se na absoluta e visível correspondência entre o
dizer e o fazer, daí a questão da coragem, da conexão entre
coragem e verdade.
Como explica Michel Foucault a parrésia é um tipo de
atividade verbal na qual o falante arrisca a vida ao manifestar sua relação pessoal com a verdade, por meio do fa-
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2005
lar francamente. “Na parrhesia — afirma Foucault —, o
falante faz uso de sua liberdade e opta por falar francamente em vez de persuadir, pela verdade em vez da mentira ou do silêncio, pelo risco de morte, em vez da vida e
da segurança, pela crítica, em vez da bajulação, pelo
dever moral, em vez de seus interesses e da apatia
moral”. O dizer verdadeiro é, na parrésia, um dever, uma
obrigação que visa tanto a transformação da subjetividade daquele que pronuncia o ato de verdade, quanto a
transformação dos outros, que também devem ter, pelo
menos entre os estóicos, coragem para ouvir e participar francamente do confronto. Neste jogo a relação corre um sério risco de se romper, pois é aceito entre os
participantes o desafio e as possíveis hostilidades que
emergem do conflito.
É interessante destacar que nos dois primeiros artigos do livro, assinados por Phillippe Artières e Francesco Paolo Adorno, a noção da parrésia é utilizada para
a construção e o entendimento da própria figura de
Michel Foucault, enquanto intelectual que procurou
incessantemente articular as intervenções na cena
política com o trabalho filosófico. Ressalta-se nessas
abordagens a coragem do diagnosticador do presente,
do ativista político engajado em lutas específicas, do
corpo a corpo com os aparelhos de controle e, finalmente, a coragem de romper com a função e com as
representações já desgastadas e pouco efetivas de intelectual universal. Segundo os autores, Foucault rejeita, não sem provocar polêmica, a figura do intelectual enquanto consciência universal da sociedade. O
papel do intelectual não é dizer aos outros o que eles
devem fazer ou modelar suas vontades políticas, afirma Foucault, mas, a partir de uma análise de um campo específico “reinterrogar as evidências e os postulados, abalar os costumes, os modos de fazer e de pen-
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Notícias de um pensador: a coragem da verdade...
sar, dissipar as familiaridades admitidas e, a partir
dessa reproblematização, participar da formação de uma
vontade política.”
O organizador do livro, Frédéric Gros, encerra a coletânea com um artigo repleto de surpresas e de inquietantes
relatos e análises sobre as últimas aulas de Foucault, dedicadas ao problema da parrésia no contexto da filosofia
cínica. O filósofo se interessou pela trama elaborada pelos
cínicos gregos entre um estilo de vida despojado, portanto
descolado das convenções, e um certo uso da fala, que se
caracterizava por ser rude, áspera e provocadora. Em um
jogo insinuante de comparações, Gros sugere um deslocamento vivido por Foucault em suas últimas pesquisas.
Em síntese, trata-se do trânsito entre o tema do cuidado
de si para o da coragem da verdade. Talvez, mais do que
uma passagem de um problema para o outro há, efetivamente, um movimento de tensionamento entre duas formas, radicalmente, diferentes de relacionar a vida e a
verdade. De um lado a ética estóica, junto com as técnicas de cuidado de si, que estabelecem uma harmonia ideal entre a vida e a verdade. A ética estóica, segundo Gros,
era uma ética da correspondência regrada, disciplinada,
ordenada entre a ação e o discurso. Já entre os cínicos,
“trata-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo(...). Tornar diretamente legível no corpo a presença
explosiva e selvagem da verdade nua, de fazer da própria
existência o teatro provocador do escândalo da verdade” (p.
163).
Como se percebe, dois sentidos diferentes de verdade que determinam duas formas singulares de estilização da vida. Uma mais persistente, paciente, na qual a
vida é regulada por princípios verdadeiros apesar do caos,
dos acasos e golpes do destino. No estilo de vida cínico, a
verdade é vivida como escândalo, o corpo se torna o espaço de manifestação da verdade, daquelas verdades que,
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como afirma Gros, todos conhecem e ninguém se dá o
trabalho de viver.
Foucault, História & Anarquismo. Foucault encontra as atualizações da atitude cínica de viver e de dizer
a verdade de forma provocadora, em certas manifestações, como por exemplo, em algumas correntes do ascetismo cristão, entre os artistas modernos que rejeitavam, a-gressivamente, as normas e convenções sociais e, em certos movimentos revolucionários do século
XIX, como o anarquismo.
O que há em comum entre essas manifestações é a
atitude provocadora, ousada, que gera um certo incômodo e desconforto àqueles que se afundaram na pasmaceira e no sossego das idéias prontas. Essa energia
expansiva, atrevida, profundamente libertária, atravessa
os textos da historiadora Margareth Rago que buscam
tecer as possíveis relações entre o pensamento foucaultiano, o anarquismo e a História. Ao justificar um dos
ensaios que compõem o livro, o recado é direto e fulminante: “ainda muito indignada com a falta de abertura
dos historiadores diante de um pensamento tão energizado, radical, libertário e aberto à diferença, tive declarada intenção de apresentar o filósofo para os jovens estudantes insatisfeitos com concepções históricas autoritárias, excludentes, ensimesmadas e, portanto,
insuficientes para enxergar e problematizar nosso presente” (p. 11)
Há, nestes artigos, um irrefreável instinto de libertar a História das concepções tradicionais, do modelo
antropológico da memória e das lentes inadequadas que
embaçam a visão que se tem da atualidade. O método
genealógico, criado pelo filósofo francês, torna-se no texto
de Margareth Rago um instrumento muito sensível, que
flagra os mais sorrateiros sonhos dos historiadores tra-
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Notícias de um pensador: a coragem da verdade...
dicionais. Isto é, o desejo de uma síntese totalizadora,
de uma identidade estável portadora da consciência histórica, a ilusão de alcançar a realidade objetiva e a essência das coisas, os procedimentos de exclusão dos
acontecimentos que não se encaixam na linha de continuidade preconcebida e as promessas de um futuro
redentor.
A desconstrução, a crítica a esses mitos que por tanto tempo habitaram o mundo dos historiadores, tem como
objetivo o reconhecimento das linhas de fuga na atualidade. Como alerta a autora em diversos momentos, não
se pretende com as críticas provocadoras estimular um
sentimento de desprezo em relação ao passado. Mas, ao
contrário, pretende-se criar condições para que se efetue um reencontro com a tradição libertária do pensamento soterrada por essas visões autoritárias e metafísicas da História.
Para além desse reencontro com a tradição libertária, Margareth Rago sugere um outro movimento: a reinvenção dos antigos libertários como estratégia para fugir da alienação da atualidade e da obediência ao totalitarismo. É por causa disso, talvez, que as suas reflexões
sobre a experiência anarquista e sobre a constituição
de subjetividades anárquicas soem tão estranhamente
belas. Belas porque fogem ao campo restrito da produção intelectual e afetam o plano da vida. Há livros que
inevitavelmente nos levam para além dos livros.
291
7
2005
heterotopia e vitalismo:
por uma arte vitalista | jorge vasconcellos*
Beatriz Scigliano Carneiro. Relâmpagos com claror:
Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo,
Editora Imaginário/FAPESP, 2004, 296 pp.
O livro de Beatriz Scigliano Carneiro, Relâmpagos com
claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte, toca em
um tema urgente de nosso tempo. No que diz respeito à
problemática estética, este poderia ser assim formulado: há na arte contemporânea, especialmente naquela
que se propõe a ser renovadora, uma relação intrínseca
entre arte e vida. Essa parece ser a hipótese geral do
ensaio, construída sob o prisma de uma idéia-força creditada ao filósofo francês Michel Foucault — a noção de
“heterotopia”. O intuito da autora é, resumidamente
falando, investigar a vida como obra de arte nos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica. No entanto, uma
idéia cara ao chamado “primeiro Foucault”, proveniente justamente de suas leituras de Georges Bataille, fazse também importante. Trata-se de pensar a transgressão neste fazer a obra, neste “obrar”. Essa vinculação à
transgressão e ao transgredir surge no ensaio por intermédio de uma discussão-problema: qual a relação
entre transgressão e autoria da obra? E mais, essa relação que faz do transgredir o que é posto pelos cânones
estabelecidos, no tocante à constituição das obras, não
só implodiria a noção clássica de autoria, como também, estabeleceria, justamente, uma ligação entre obra
e vida? Essa ligação entre vida e obra, na verdade, não
*Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama
Filho/RJ.
verve, 7: 292-296, 2005
292
verve
Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista
nos colocaria diante da junção indissociável entre a
estética e a ética?
Essas questões aparecem problematizadas, nem sempre de modo explícito, ao longo da leitura do livro de Scigliano, e gostaria de, antes de apresentar o ensaio propriamente dito, introduzir um certo movimento no texto em questão. Talvez fazê-lo ranger, isto é, produzir
ruído nos interstícios do que o texto não diz, fazendo-o,
assim, falar para além de suas palavras, provocando, de
fato, o que seja uma resenha: estabelecer diálogo com a
escritura a ser resenhada.
Sigo, de modo sucinto, o seguinte procedimento: em
primeiro lugar, traço o ponto que liga as duas idéias foucaultianas presentes no ensaio: a noção de heterotopia
e o tema da “estética da existência”. Em segundo lugar,
procuro mostrar em que medida estas idéias foucaultianas, apropriadas pela autora, diga-se de passagem de
modo extremamente rigoroso, claro e muito bem escrito, associam-se em sua interpretação à obra de Hélio
Oiticica e de Lygia Clark. E, por fim, como estas idéias,
em sua apropriação e interpretação das obras dos artistas retrocitados, implicam uma visada estética, a saber: a arte é mais do que um elemento de transgressão
das normas estabelecidas em uma dada sociedade; a
arte, ela mesma, é transformação da própria vida, já que
transformação nesses termos, pensando-a nietzschianamente, é transmutação de valores, adesão absolutamente radical à vida, produção de um pensamento estético vitalista.
A noção de heterotopia talvez possa ser considerada,
em certa medida, como um termo bastante periférico
na obra do filósofo francês. Apesar desta aparecer em As
palavras e as coisas, obra nodal da démarche foucaultiana, somente em uma conferência ao Círculo de Estudos
293
7
2005
Arquiteturais em Paris, proferida em março de 1967 (publicada posteriormente em Dits et Écrits, vol. IV, pp. 752762), que ela ganharia estofo teórico para ser entendida
como um operador conceitual. Não obstante, Foucault
em seguida a esse período, de certo modo, parece abandoná-la. Heterotopia, naquela ocasião, passava a designar a coexistência em uma espécie de espaço impossível ou improvável, o que nas próprias palavras foucaultianas seria estabelecida “com um grande número de
mundos possíveis fragmentários”. Referindo-se primordialmente à literatura e a literatos, mais especialmente a alguns textos de Jorge Luis Borges, a idéia comporta uma justaposição ou superposição de espaços incomensuráveis uns aos outros. Assim, as personagens já
não contemplam como desvelar ou desmascarar um
mistério central de uma dada trama, concebida em um
certo espaço, em um certo tempo. Elas, em vez disso,
eram forçadas a perguntar “Que mundo é este? Qual dos
meus eus deve fazê-lo?”, provocando uma cisão no espaço constituído e o abandono do tempo constituinte,
passando, então, à construção de novos espaços em um
tempo absolutamente contraído. Foucault desloca completamente as preocupações, então em voga, em relação ao sentido do tempo, como, por exemplo, o tempo
narrativo, para pensar a constituição dos espaços, do
que ele chamou de “espaços outros”. Contraposta à idéia
de utopia, as heterotopias pretendem descrever, de modo
sistemático, a construção desses novos espaços que comportem o impossível, que instaurem o novo; justapondo,
em uma mesma espacialidade, vários posicionamentos
que seriam, a rigor, incompatíveis. Pensemos no Aleph
de Borges.
Por sua vez, o tema da “estética da existência”, núcleo central da problemática inaugurado pelo que os comentadores foucaultianos costumam chamar de “ter-
294
verve
Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista
ceiro Foucault”, determina, a partir de uma análise da
modernidade e da figura proposta por Charles Baudelaire — em que este designou de “dândi” (O pintor da vida
moderna) —, que a arte, o ‘fazer’ arte, está para além do
objeto artístico. Trata-se de fazer da própria vida, obra de
arte.
Trabalhando, simultaneamente, com as duas idéias
foucaultianas, Beatriz Scigliano Carneiro estabelece uma
formidável interpretação da obra de Lygia e Hélio. Os espaços que estes artistas construíram em seus processos
criativos forma espaços outros, para utilizarmos a noção
proposta por Michel Foucault, tão cara à autora. O livro
inicia-se apresentando a noção em questão, vinculando-a
ao tema da estética da existência, isso porque, pensar a
arte em termos de construções de novas espacialidades
para a produção da arte seria, antes de mais nada, instituir que estaríamos falando de arte que toca o corpo, que
fala ao corpo, que é corpo; uma arte que se faz com o corpo.
A apresentação da arte de Oiticica e de Clarck, sob esta
perspectiva, enseja à autora a fazer delas mundo. Mundo
que é Casa e Abrigo, acolhimento e desafio. Na apresentação da obra de Lygia, Scigliano introduz a noção de que o
“Corpo é a casa”. Cuidadosa analisa as experiências que a
artista desenvolveu, especialmente as denominadas de
“A estruturação do Self” e a chamada de “Caminhando”.
Momentos extremamente marcantes na obra da criadora
dos bichos. Da arte terapia ao trabalho de dobra contido no
anel de Moebius presente em Caminhando, tratava-se de
reinventar a arte sob uma novo prisma. A experiência
estética não se faria apenas por intermédio do “sopro” criativo de um “gênio criador”, mas por meio da participação
efetiva do público, que deixaria, assim, de ser público para
ser usuário, ou ainda efetivo autor da obra. Estamos diante de uma arte propositiva que acolhe e cria mundos.
295
6
2004
Oiticica, por sua vez, é apresentado como construtor de
um “Mundo Abrigo”. Morada de penetráveis e casulos, casas e espaços que pudessem conter uma obra “dançável“
por aquele que a “vestisse”: o corpo fazendo parte ou mais
que isso, sendo constituinte à própria obra. Dos “Quase
Cinema” ao “Metaesquemas”, Oiticica vislumbrava a possibilidade de novas construções estéticas que passassem,
também, como em Lygia Clarck, pela participação do outro. Pensemos na obra em que “atuaram” juntos: O diálogo, em que as mãos dos artistas achavam-se unidas por
um tecido que as juntavam como “algemas de afinidades”.
Eles uniram vida e arte.
Como se estabelece então o elemento transgressivo da
obra? Como esse elemento transgressivo instaura um duro
questionamento à idéia de autoria? Essas questões estão
de certo modo na linha argumentativa proposta pela autora. Ao recusarem, cada um deles a seu modo, a autoria,
pelos menos individual, da obra, Hélio Oiticica e Lygia Clarck tornaram-se não só artistas transgressores dos valores
estabelecidos à época, tanto no plano estético quanto ético, como também criaram novos mundos, espaços outros
de convivência e plenitude. Os artistas fizeram desses espaços outros um manifesto de adesão incondicional à vida.
Produziram, ao fim e ao cabo, uma arte vitalista.
Um dos muitos méritos do ensaio de Beatriz Scigliano
Carneiro foi o de, partindo das idéias foucaultianas ter
sabidamente as utilizado para além daquilo que se propunham; ter transformado em operador conceitual uma noção que, mesmo estando à margem da obra, serve para
produzir novas margens à interpretação. Além disso, utilizando o itinerário da construção da obra dos autores, associando-o à sua vida e ao diálogo da constituição da obra
em ambos, ter feito bem mais que alinhavar biografia e
produção artística. O que foi realizado plenamente neste
ensaio foi produzir uma imanente crítica às relações.
296
verve
Afirmação da vida e decretação da morte
afirmação da vida
e decretação da morte |acácio augusto*
Lúcia Parra. Combates Pela Liberdade: o movimento anarquista
sob a vigilância do DEOPS/SP (1924-1945). São Paulo, Arquivo
do Estado/Imprensa Oficial, 2003, 203 pp.
O DEOPS é a polícia política criada na década de 1920
para caçar os perturbadores da ordem pública. Mas qual
polícia não é política? O que é perturbar a ordem? Quem
quer conservar, que ordem? A que temos hoje seria uma
polícia “neutra”, exclusivamente a serviço da lei universal e para todos? Quem faz a lei hoje? Quem fazia
naquela época? Para quê, e a quem serve a polícia?
Estas são algumas questões que podem ser levantadas a partir da leitura do livro Combates Pela Liberdade:
o movimento anarquista sob vigilância do DEOPS (19241945), resultado do trabalho de iniciação científica realizado pela estudante de História da USP, Lúcia Parra,
que se dedica a sistematizar os prontuários de pessoas
e associações anarquistas perseguidas pelo DEOPS.
Parra percorre duas décadas de prontuários, marcadas pelo estado de sítio do governo Artur Bernardes e
pelo governo conhecido como Era Vargas para nos mostrar de que maneira a polícia caracterizava os anarquistas. Estes que, em meio à efervescência política no país
e à perseguição policial, construíram resistências que
abalaram as fábricas, a família, a igreja, a escola e todo
um conjunto de costumes autoritários difundidos pela
sociedade.
* Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol e bolsista
CNPq.
verve, 7: 297-301, 2005
297
6
2004
Contudo, os anarquistas estudados por Parra não podem ser vistos como vítimas de uma poderosa polícia
que foi capaz de destruí-los. No segundo capítulo de seu
trabalho, a autora mostra que eles eram vistos como
perigosos, pois suas práticas efetuavam-se como nocivas para o Estado, e este sabendo disso, buscava de qualquer forma interditar o discurso libertário, praticado
pelos anarquistas, por meio da ação policial. O que foi
em certos momentos tarefa difícil para os policiais que
não sabiam nem ao menos distinguir um anarquista de
um comunista.
Pelas categorias criadas por Parra a partir da leitura
dos prontuários, fica claro as diferentes maneiras pelas
quais os anarquistas praticavam essas resistências: entre os operários, eram os que tinham maior nível de instrução, obtidas quer pelo autodidatismo quer nas escolas
modernas, criadas no começo do século XX pelas associações anarquistas. Praticavam as profissões que mais
permitiam liberdade para sua ação, como sapateiro ou
comerciante; não se constituíam, como os comunistas
em torno do PC, uma unidade homogênea. Entre os anarquistas havia uma multiplicidade de práticas que se articulavam e que muitas vezes confundiam a ação policial. Por fim, mostra a autora, as mulheres tiveram uma
ação singular dentro do movimento anarquista, o que
muitas vezes passou desapercebido pelo próprio DEOPS.
Foram os libertários também — e isto está documentado no livro — os primeiros a levantarem a questão da
mulher e das crianças. Explicitavam as péssimas condições em que estas trabalhavam nas fábricas e difundiam práticas cotidianas que dissolviam a relação de mando e obediência estabelecida entre homem e mulher,
adulto e criança. Atitude muito diferente do que está expresso na lei e é difundido como prática comum, na qual
o que se têm é uma relação de tutela, na qual o homem
298
verve
Afirmação da vida e decretação da morte
adulto dispõem do corpo da mulher e da criança para o que
bem entender.
Um outro dado encontrado no livro, importante de se
destacar, é o forte envolvimento dos anarquistas com as
lutas antifascistas. A ação libertária foi muito expressiva
na criação da Liga Antifascista, que contava também com
membros da ALN (Aliança de Libertação Nacional) e de
alguns grupos comunistas de orientação trotskista. Os libertários estavam atentos ao eco que causava o fascismo
italiano no Brasil — que se confirmou com a ditadura de
Vargas — e estavam interessados em barrar os desejos
fascistas e garantir liberdades democráticas para viabilizar sua ação cotidiana. Luta que chegou ao enfrentamento direto entre anarquistas e integralistas na Praça da Sé,
no centro de São Paulo.
A prática libertária está voltada para uma transformação dos costumes. Em uma sociedade como a brasileira,
baseada em costumes autoritários, e de uma tradição política oligárquica, a existência dos anarquistas era insuportável. A interdição das práticas anarquistas se dava
associando-os à categoria de indivíduo perigoso e violento,
ou desqualificando seu discurso como atrasado e desordeiro. Parra mostra esta tática de desqualificação do discurso anarquista por intermédio dos relatórios de policiais do DEOPS, mas esta, também, cristalizou-se no Código
Penal Brasileiro, como na lei de extradição de estrangeiros, conhecida como Lei Adolfo Gordo, de 1907. Vale lembrar que a desqualificação do discurso libertário não foi, e
não é até hoje, monopólio do Estado e muito menos da
direita. Mesmo parceiros pontuais na luta antifascista —
liberais progressistas e comunistas — viam, tanto quanto
o governo, os anarquistas como perigosos e portadores de
idéias atrasadas. O anarquista é e foi “tratado como se
fosse um ‘vírus’, capaz de contagiar indivíduos sãos” (p.
64).
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7
2005
Frente a uma repulsa advinda de diversos setores da
sociedade às práticas anarquistas, a ação policial não
deve ser vista como fenômeno isolado. Ela é expressão
de uma sociedade de costumes baseados no exercício
centralizado da autoridade, que não suporta a experimentação de liberdades difundida pelas práticas anarquistas. Com efeito, a maior dificuldade desses libertários estudados por Parra, foi difundir a experiência de
uma vida livre nas relações sociais, tarefa que talvez
seja muito mais difícil do que enfrentar a ação dos policiais do DEOPS.
Neste sentido, o que muitas vezes é visto — até mesmo por alguns anarquistas como malogro da ação libertária nos sindicatos, pode ser analisado como uma estratégia de faafirmação destas experiências retirandose de um lugar onde isso não era mais possível, o
sindicato. Os anarquismos, longe de se pretenderem hegemônicos, interessam-se em criar resistências pelas
práticas de liberdade, e “esta resistência tornou-se possível pela continuidade da cultura libertária que abarcava não somente práticas sindicais, como também a
imprensa libertária, atividades culturais e educacionais”
(p. 92). Fica evidente na leitura deste livro que os anarquismos criaram, no choque com os poderes, uma maneira singular de atuar no jogo das forças sociais.
Além de se constituir como um importante material
de consulta para estudantes, pesquisadores e interessados em anarquismos ou na ação do DEOPS, a força do
trabalho de Parra está em dar visibilidade à existência
de homens e mulheres como Natalino Rodrigues, Rodolfo Felipe, Abílio José das Neves e Francisco Augusto das
Neves, Isabel Cerrutti, Angelina Soares, entre tantos
outros. Existências que não se reduzem aos prontuários policiais, impossíveis de serem capturadas.
300
verve
Conectando anarquias
Enquanto os anarquistas praticavam uma afirmação
da vida como experiência de liberdade, os agentes da
ordem buscavam interditá-los com o decreto de morte,
este sim malogrado, pois ainda hoje, os anarquistas continuam abalando hierarquias, revirando costumes e
experimentando liberdades.
conectando anarquias|thiago s. santos*
Nelson Méndez e Alfredo Vallota. Bitácora de la utopia
- anarquismo para el siglo XXI. Caracas, Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca Central,
2001. 133 pp.
Um livro que trata de anarquia é para ser saboreado,
digerido, utilizado como uma ferramenta. Ele não se esgota em si mesmo. Procura suscitar curiosidades, mover interesses, promover inquietações, rebeldias e desobediências. Este é o objetivo de Nelson Méndez e Alfredo Vallota, autores de Bitácora de la Utopia: anarquismo
para el siglo XXI, “um breviário sobre o ideal anarquista,
de uma perspectiva latino americana em geral e venezuelana em particular” (p.7.).
Nelson Méndez e Alfredo Vallota são professores da Universidad Central de Venezuela e integram o CRA (Comisión
de Relaciones Anarquistas). Editam o periódico anarquista
bimensal El Libertário, que em dezembro de 2004 completou nove anos de existência, e 40 números publicados.
Produção autogestionária que tem o intuito de divulgar o
*Sociólogo e mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol.
verve, 7: 301-305, 2005
301
7
2005
movimento ácrata latino-americano. Pode-se encontrar
este periódico, também, em versão web (http://
www.nodo50.org/ellibertario, para adquirir o jornal basta
escrever para: [email protected]). Escreveram, também, diversos artigos sobre libertarismo em uma publicação chamada Correo A, que surgiu no fim da década de
1980 e foi interrompida na metade da década de 1990 (ainda
hoje é possível encontrar alguns textos selecionados do
Correo A em: http://www.geocities.com/samizdata.geo/
CorreoA.html). Estas duas publicações tiveram, e continuam tendo, grande importância no círculo ácrata latinoamericano.
Um dos elementos que fomentou a criação desta bitácula foi uma publicação britânica do Anarchist Media Group,
que em 1988 lançou um texto intitulado “Tudo o que sempre quis saber sobre anarquismo e nunca se atreveu a
perguntar” (texto mais amplamente divulgado a partir de
1995, via internet). Os autores realizaram um livro introdutório às idéias libertárias, colocando em pauta os principais temas levantados pelos anarquistas, e os argumentos que respondem a algumas das questões mais freqüentes apresentadas a qualquer anarquista: a crítica à
caridade estatal; a questão do crime; educação; método
anarquista de comunicar suas idéias; e o rechaço por parte de muitos das idéias anarquistas, por terem sempre a
imagem do anarquista como o indivíduo com uma bomba
na mão, pronto para agredir os demais. Assim, contrapõem
as pré-concepções existentes em torno da anarquia e finalizam com uma sugestão de outras fontes, nas quais é
possível pesquisar a respeito do tema tratado.
Méndez e Vallota mostram que a anarquia, diferente
do que é vulgarmente pensado e exposto em dicionários,
não é uma instigação do caos, da morte, da destruição, e
nem tampouco o anarquista é a imagem de um homem
com bombas que agride aos demais em nome de um res-
302
verve
Conectando anarquias
sentimento social ou individual. O anarquista não obedece a um líder messiânico. Não agita uma bandeira de uma
ideologia superior. A sua luta é menos iluminada que a
luz proporcionada pela pólvora, mas, às vezes, ela é a única forma de abalar os concretos civilizatórios que nos impõem uma cultura fundada na obediência ao superior.
A obediência é o alvo dos anarquistas que investem na
educação para a liberdade. “A verdadeira educação é o contrário da escolarização obrigatória, onde se aprende, principalmente, a temer e curvar-se ante a hierarquia imposta” (p.52). Isto faz parte de um costume anarquista que
privilegia a livre curiosidade das crianças e não circunscreve a educação à escola. Escola, trabalho cotidiano, vida
social, tudo isto compõe a educação que procura chamar
cada indivíduo para se autogovernar.
A prática da educação, assim como os anarquistas a
concebem, depende da criação de uma sociedade anarquista. No entanto, o fato de ainda não vivermos em uma sociedade assim constituída, não impede experiências de práticas educacionais mais livres, como ocorreram com as
Escolas Modernas e com os Ateneus Libertários. São práticas que atravessam a regulação da educação praticada
pelo Estado, e no caso específico da Venezuela, cuja administração castrense no governo impôs uma educação pré-militar para crianças e jovens. Assim é, também, uma assistência médica que só submete os seus
usuários à exploração e à humilhação, fazendo-os dependentes da caridade estatal. Escolarizar domestica os indivíduos e o seguro social “gera uma disponibilidade de dinheiro das mais importantes no capitalismo moderno, que
se utiliza para explorar os trabalhadores” (p.18). A assistência do Estado desarma as iniciativas próprias, é uma
ferramenta de submissão dos indivíduos que, como retribuição aos benefícios do Estado, têm de agradecer o generoso presente da assistência com a sua obediência.
303
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2005
A educação permanece sendo o ponto fundamental aos
anarquistas. É pautada na invenção de novos costumes
que pretende forjar uma outra sociabilidade, que se inicia, agora, no presente.
Os autores tratam ainda de um dos temas mais caros
aos anarquistas e um pouco esquecido na atualidade: a
punição. Constatam que a grande maioria dos distúrbios
sociais provém de acontecimentos incontíveis, surpreendentes; acontecimentos estes que não poderiam ser impedidos pelo temor da punição (prevenção geral) e que polícia alguma, por mais equipada que fosse, poderia conter:
a prisão é um fracasso, afirmam. A maioria dos chamados
crimes continua sendo contra o patrimônio, contra a propriedade privada. A resposta dada pelos autores, a respeito
da questão do crime, funda-se na expectativa de uma mudança mais ampla da sociedade, em uma sociedade na
qual a propriedade privada não seja um valor. Projeta-se
como resposta, um modelo de proteção social, que pode ser
a organização comunal de ajuda mútua ou a expulsão do
indivíduo da comunidade, “não por vingança ou castigo,
senão como reconhecimento de uma relação sem possibilidade” (p. 26), o que reafirma a atualidade do “Justiça Política” de William Godwin, de 1973 (vide verve 5).
O livro apresenta ainda seis artigos (quatro de Vallota
e dois de Méndez) nos quais são tratados: os princípios da
anarquia (liberdade e igualdade), autogestão, além de uma
pequena biografia de Durruti e um artigo sobre Ángel
Cappelletti, importantíssimo pesquisador anarquista latino-americano.
Méndez e Vallota realizaram um livro que mantém
um elo com fragmentos de textos, escritos esparsos, que
esperam apenas ser revolvidos por curiosos ensandecidos; conectam anarquias. O livro intensifica interesses
literários de quem o lê; remete o leitor imediatamente a
outras fontes; lança-o a uma busca minuciosa, a uma
304
verve
Conectando anarquias
pesquisa, uma investigação a respeito da anarquia. Ao
final do livro, depara-se com uma listagem de outros livros, sites, referências de vídeos, rádios e TVs que fazem
da anarquia um acontecimento único e perturbador da
ordem estabelecida. São referências que aludem tanto a
sites de associações anarquistas como a bibliotecas virtuais, nas quais é possível encontrar livros completos —
de autores como Proudhon, Bakunin, Malatesta, entre
outros — para downloads.
Há, ainda, uma atenção especial para a internet, visando grupos de debates, correios informativos e e-mails,
que facilitam a troca de informações e experiências. Mas,
se de um lado a internet possibilita esses ganhos, de outro,
os autores apontam o que seriam os cyber-libertarian que
vêem na internet o máximo de liberdade. Advertem que
as novas tecnologias como a internet, alimentam também institutos de controle social, além de ser ainda um
meio de informação muito restrito em países da América Latina. A internet é, assim, para os anarquistas, apenas mais um instrumento do qual se utilizam de forma
interessada, e de maneira alguma um espaço para a democratização da informação, um democratismo que sufoca rebeldias e sustenta covardes.
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2005
que a fonte nunca seque
Sergio Cohn
306
verve
NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2005
vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
Foucault, último, 2004
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004
1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,
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2005
Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,
Schuster, Kyrou, Legrand
16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,
Berkman
17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti
18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo
Colombo
19. o essencial proudhon Francisco Trindade
20. escritos contra marx Mikhail Bakunin
21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud
22. a instrução integral Mikhail Bakunin
23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,
Enckell
24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag
25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón
26. a revolução mexicana Flores Magón
27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo
28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval
29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta
Livros
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.
Imaginário/Nu-sol, 2001.
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verve
Recomendações para colaborar com verve
Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação:
Extensão, fonte e espaçamento:
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espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo.
Identificação:
O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas,
para identificá-lo em nota de rodapé.
Resumo:
Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas, em português e inglês.
Notas explicativas:
As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota
de fim de texto.
Citações:
As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto
observando o padrão a seguir:
I) Para livros:
Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.
Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,
Imaginário, 2001, p. 74.
II) Para artigos ou capítulos de livros:
Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,
página.
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2005
Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.
III) Para citações posteriores:
a) primeira repetição: Idem, p. número da página.
b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.
c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,
ano, op. cit., p. número da página.
IV) Para resenhas
As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o
título, da seguinte maneira:
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número
de páginas.
Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.
V) Para obras traduzidas
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número
de páginas. Tradução de [nome do tradutor].
Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.
As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico
para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete seja encaminhada pelo correio para:
Revista Verve
Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos
Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.
Informações e programação das atividades
do Nu-sol no endereço:
www.nu-sol.org
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