LOURENCHINHO
Nas velhas de caixas de madeira, onde se guardam os documentos da AHBV
do Peso da Régua encontramos, por mero acaso, uma carta com a alusão de
particular, datada de 18 de Agosto de 1959, endereçada ao Lourenchinho,
como era conhecido pelos amigos, o Comandante Lourenço Pinto de
Almeida Medeiros que, desde 1949, estava a comandar os Bombeiros da
Régua.
Se a carta fosse correspondência particular, como sugere o seu cabeçalho,
ou revelasse segredos privados e de foro íntimo da privacidade dos
destinatários, não teria interesse em dar conta da sua existência nem sequer
em divulgar o seu assunto.
Nada disso está em causa nesta invulgar carta que o tempo não esqueceu. O
que se escreve nela é um tema ainda actual. A direcção, como órgão social
da administração da Associação, tem a obrigação de escolher o
comandante entre as pessoas mais qualificadas, assim como o pode substituir
e exonerar, dentro de critérios aceitáveis e justos.
Ora, o assunto abordado, com a máxima cordialidade, diz respeito as relações
entre a direcção e o quadro de comando dos bombeiros. Como matéria da
gestão da Associação não deixa de ter um interesse público e, sobretudo, um
valor histórico. Documento de rigor e maior precisão dos factos, esta carta
pode ajudar a entender as vicissitudes de uma determinada época, a
mentalidade e capacidade dos dirigentes e dos seus bombeiros, as soluções
encontradas para resolverem um dos problema mais complicados, como é o
processo de nomeação de pessoas no cargo de comandante. O assunto
desta carta estava relacionado com uma difícil e atribulada sucessão de um
comandante, que apesar dos seus 80 anos de idade, não queria abdicar das
suas funções.
Quem escreveu esta missiva, num registo penoso e sofrido, pensada nas
palavras e nas ideias, não assinou a cópia que zelosamente um funcionário
administrativo arquivou. Lendo-a com atenção, a correcção e urbanidade do
seu estilo, a cordialidade, pensada para não melindrar vontades, denuncia ser
o Dr. Júlio Vilela, distinto advogado, o seu autor, que era o presidente da
direcção. As suas palavras são o retrato de um dirigente inteligente que, com
diplomacia procurava uma saída que não magoasse o comandante
Lourenchinho, que não queria não ver que o seu tempo tinha acabado. Ela
testemunha um caso, onde prevaleceu o bom senso, pelo que vale a pena
fazer a sua completa transcrição:
“ PARTICULAR
18 Agosto 59
Meu Caro Lourencinho:
Há já mais de três anos que o Inspector de Incêndios da Zona Norte insiste com a Direcção da
Associação no sentido de o meu Ex.mo Amigo passar ao quadro honorário.
Como sabe, nunca diligenciei junto de si dar execução a esse desejo, pois sempre procurei poupar-lhe
qualquer incómodo.
Como o Inspector tivesse dado conta de que não me propunha tomar uma iniciativa dessa natureza,
acabou por nos negar, no ano presente, a concessão de qualquer subsídio, invocando para tanto a circunstância de
nos termos recusado a realizar a sua substituição.
É claro que, ante uma medida tão altamente prejudicial para os interesses da Associação, procurei
avistar-me pessoalmente com ele e, após demorada entrevista propôs-se ele convidar o meu Ex.mo Amigo a
ingressar no quadro honorário, no que, segundo, afirmou, cumpria as directrizes dimanadas do Conselho
Nacional do Serviço de Incêndios.
E assim, no dia 8 do mês corrente recebi um ofício do Inspector que acompanhava a cópia de um outro
dirigido ao Lourenchinho e tendente à sua passagem voluntária ao quadro honorário.
Durante alguns dias aguardei o recebimento da petição respeitante a essa passagem, mas, até ao presente,
nenhuma comunicação me foi sequer dirigida.
A presa com que aguardava esse recebimento filia-se na esperança de que o Inspector, efectuado o seu
ingresso no quadro honorário, desse satisfação ao subsidio por nós solicitado.
Como o tempo passou e me cabe a responsabilidade de velar pelos interesses da Associação, decidi convocar
reunião extraordinária da Direcção, afim de o caso ser, apreciado e ter uma solução adequada.
No decorrer desta reunião, alvitrei que ela se suspensa, pois pretendia dirigir-me ao meu amigo e
contudo o que aqui deixo relatado, no propósito de me auxiliar a resolver um assunto tão delicado.
Duas atitudes poderia tomar a Direcção substitui-lo ou demitir-se.
Mais facilmente ela optaria pela segunda, não certo é que a nenhum de nós anima o propósito de
praticar qualquer acto que por si possa ser como traduzindo menor estima e respeito.
Quais as consequências, porém, a que conduziriam a nossa decisão sabendo que teríamos de expor as
razões que a ditavam?
Por outro lado, onde iríamos desencantar as pessoas, cientes de antemão que lhes seria negado qualquer
subsídio enquanto o Comando permanecesse o mesmo, estariam prontas a gerir os destinos da Associação?
O Lourencinho - o que dos dois é bem sabido – vota à Associação um carinho e uma dedicação que os seus
63 anos de serviço ilustram escancaradamente.
Não deseja, certamente, que ele venha a ser prejudicado pela forma que os factos claramente
patenteiam.
Por isso mesmo, e com os olhos sempre postos defesa dos seus interesses e no seu engrandecimento, peçolhe embora recalcando a amargura que o deve tomar, que satisfaça o convite que pelo Inspector lhe foi dirigido,
isto é, me enviar seu pedido de passagem ao quadro honorário, poupando-me assim a um desgosto sem par na
minha vida.
Agradeço-lhe que me faça tal envio até ao próximo sábado, dia 22.
Entretanto, aceite os protestos de muita estima e consideração do….”
Não sabemos se esta carta chegou às mãos do Lourenchinho. O mais seguro
foi que a tenha recebido amarguradamente, e mais por estima e
consideração, aceitava o conselho amigo para apresentar o seu pedido de
passagem ao quadro honorário. Informava o jornal “Noticias do Douro”, de 30
de Agosto 1959, que a Direcção o tinha louvado e “que assim lhe quis prestar
as suas sinceras homenagens, manifestando o seu desgosto por tal
afastamento, só devidos a motivos de saúde”. A comandar os bombeiros
ficava interinamente o Chefe Claudino Clemente, depois do 2º Comandante
António Guedes ter recusado o convite de substituir o seu amigo Lourenchinho.
A verdade, como agora se sabe, não era a que saía em forma de noticia para
o público. O que era verdade, é que terminava ciclo e outro ia começar no
comando dos bombeiros da Régua. O velho comandante não tinha
preparado um sucessor para o seu lugar. A direcção procurava nomear um
comandante que fosse “Comandante”, e não uma figura histórica. Em 3 de
Outubro de 1959, com o visto do Inspector de Incêndios, o jovem Comdante
Carlos Cardoso, com 35 anos de idade, tomava posse como comandante e, a
pare daí, tudo ou quase tudo mudava, com novos métodos na formação e
mais equipamentos de combate a fogos e de transporte de doentes.
O Lourenchinho não teve tempo para ver as mudanças do seu sucessor.
Morria triste e magoado, em 12 de Dezembro de 1959. Mas morria com a sua
paixão pelos bombeiros. Se o tivessem deixado, o fim da sua vida seria numa
camarata do quartel, ao lado dos bombeiros, que foram a sua grande família,
a quem devotamente se dedicou ao longo de 63 anos.
O Lourenchinho tinha alma de bombeiro, alistado em 1896, ainda no tempo
da monarquia, tinha sido voluntário com alguns
dos fundadores da
corporação. A sua dedicação e carinho aos bombeiros fizeram acreditar que
podia a ser um comandante para a vida inteira.
O velho comandante foi vítima de um sistema perverso. Se a intenção do
Inspector de Incêndios de quer um novo comandante na corporação da
Régua não se podia censurar, já o mesmo não se pode dizer do seu método
para atingir esse fim, esse sem dúvida muito reprovável. A Associação merecia
ser tratada como mais respeito. Dificilmente se entendia – mesmo ainda hoje –
que Inspector de Incêndios tenha decidido, inexplicavelmente, não atribuir os
devidos subsídios enquanto o comandante se recusasse a ser substituído.
Como também, não devia ter ignorado os 63 anos de voluntariado do
Lourenchinho, a sua folha notável de serviços, onde sobressaía uma das mais
altas condecoração do Estado, Cavaleiro da Ordem da Benemerência.
Foi isso que disse, por outras palavras, o escritor João de Araújo Correia ao
evocá-lo num dos seus escritos do livro “Pátria Pequena”: “O Lourenchinho,
reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante
de paixões locais, Bombeiros e Festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à
sua ingénita delicadeza”.
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Muito interessante e, ao mesmo tempo, lamentável no que respeita