O fratricida (ficção baseada em fato real) O bairro do Fonseca, em Niterói, amanheceu chocado naquele domingo ante o brutal assassinato de uma jovem. Fora esfaqueada pelo namorado. O assassino perfurara o corpo da moça centenas de vezes, deixando-o retalhado por completo. Assim foi encontrado pelo padrasto quando chegou a sua casa, de manhã, vindo do trabalho de vigia noturno. Logo, logo, a rua estava apinhada de gente e de policiais consternados com o desespero daquele pai ao ver a filha morta daquela maneira animalesca. Chamava-se Ismélia e vivia com o pai numa casa modesta, próximo à sede do Fonseca Atlético Clube, local que freqüentava desde a tenra infância. Ismélia contava 17 anos. Os primeiros comentários indicavam algum ato de infidelidade cobrado de forma crudelíssima por seu namorado. Muita gente se ajuntara em frente da casa; a polícia isolou o local aguardando a perícia. Não havia dúvida, em princípio, sobre a autoria do assassinato. Ismélia e o namorado foram vistos antes no clube Fonseca, conversando numa mesa, até que saíram tarde da noite. Tudo parecia normal, disseram as testemunhas. “Por que teria havido o assassinato?”, especulavam os curiosos de tragédias alheias. “Sim, por que Mário, namorado de Ismélia, a matara?”, também assim cogitavam os policiais, até que o padrasto de Ismélia os surpreendeu com a notícia de que Ismélia e Mário eram irmãos. Foi então que a triste história do casal foi aos poucos desvelada pelo delegado encarregado do inquérito. Através do depoimento do padrasto de Ismélia, que se chamava Raul Santos Silva, Dr. Memor José Ariev começou a alinhavar o passado que culminaria no trágico desfecho... Dezoito anos antes vivia em Itaboraí um casal de nordestinos. Para cá viera, como muitos outros, tentar vida melhor na cidade grande. Não encontrando trabalho no Rio, José Francisco decidiu ir com a mulher, Raimunda, buscar emprego de caseiro no interior. Veio para Itaboraí, onde encontrou trabalho numa indústria de tijolos, indo então morar em bairro pobre na periferia da cidade. Tudo transcorria tranqüilo na vida do casal, que no ano seguinte viu nascer o primeiro filho. Batizaram-no com o nome de Mário. O nascimento do garoto foi objeto de enorme alegria. José Francisco estava firme no trabalho e possuía vida organizada, embora pobre. Porém o menino, mal ganhara os primeiros quilos, Raimunda engravidou. Tudo bem. Outro filho seria bem-vindo. Os meses escorreram com Raimunda carregando o rebento no colo e outro no bucho, cuidando de seus afazeres domésticos com disposição. Sempre encontrava tempo de aguardar José Francisco para jantar, após um árduo dia de trabalho, até que, finalmente, veio o parto. Raimunda e José Francisco haviam decidido que dois filhos bastavam. A cesariana foi feita, as trompas uterinas de Raimunda ligadas para que ela não mais engravidasse. Mas ocorreu o desastre, o choque anafilático, que levou Raimunda à morte. Ficou José Francisco viúvo, com o filho Mário, de um ano, e a filha Ismélia, que acabara de nascer. Foi triste, muito triste, o enterro de Raimunda no cemitério de Itaboraí. Toda a gente do bairro compareceu, chocada com a tragédia que se abatera sobre José Francisco. As crianças ficaram na casa de Antônio, padrinho de Mário e vizinho de José Francisco, enquanto transcorria o sepultamento que atingiria o ápice do assombro em razão de outra tragédia: na hora em que o caixão de Raimunda baixava à sepultura José Francisco, urrando de dor, foi ao chão, atingido por fulminante infarto do miocárdio. Coisas do Destino. O desfecho não poderia ter sido pior. Duas mortes, dois enterros, duas crianças perdidas no mundo. O padrinho de Mário reuniu-se com os amigos do infortunado casal para deliberar sobre as crianças. Decidiram que elas deveriam ser oferecidas aos casais dali mesmo, do bairro, dando-se preferência àqueles que não tivessem filhos. www.emirlarangeira.com.br 2 Antônio, padrinho de Mário, adotou-o como filho. Ismélia o foi por Raul Santos Silva e sua mulher, Maria das Graças, que tempos depois morreria. Raul foi então residir em Niterói levando consigo a filha Ismélia com três anos de idade. Assim se separaram os irmãos Mário e Ismélia, até que, adolescentes, se reencontraram no clube Fonseca, para onde Mário fora levado por colegas da cerâmica na qual igualmente trabalhava. Ele nunca saíra de Itaboraí. Continuara vivendo com o padrinho Antônio, que o tratava como filho legítimo evitando comentários sobre o passado. O mesmo ocorria com Ismélia: o pai adotivo ocultava-lhe a verdade. Mas o inflexível Destino uniu os irmãos em amor incontrolável. Quando depararam um com o outro, no clube, foi como se um raio descesse e os atingisse em cheio nos corações. Explodiu a paixão sem qualquer outra explicação; e com ela o sexo e a gravidez, num tempo que voava em favor do incestuoso relacionamento. Ismélia não pôde ocultar do padrasto que esperava um filho de Mário. E ele, Mário, com total responsabilidade e apaixonado, foi até Raul assumir o compromisso de se casar com Ismélia. Tudo acertado, Raul pediu a Mário que lhe trouxesse os documentos para dar entrada em cartório. Ele entregou a Raul sua certidão de nascimento, emergindo a inesperada revelação: ele era irmão de Ismélia! Destino implacável, que, desta maneira, marcava duas gerações. Ali estavam, Ismélia e Mário, atônitos e conhecendo, através de Raul, a história de um passado não muito distante. Romperam em pranto sem saber que fazer. Mário, porém, sugeriu que a relação prosseguisse, mas Ismélia não aceitou. Afinal, sabia que ele era seu irmão e não poderia consolidar aquele relacionamento que gerara no seu ventre um novo ser, sua única preocupação. Nasceria defeituoso?... – Oh, Mário! Que faremos? Não podemos ficar juntos! Oh, meu Deus!... – Calma Ismélia! Não vamos decidir nada apressado, não. Você está esperando um filho meu. O problema está criado, e nós nos amamos. Não temos culpa... – Sei disso, Mário. Mas não podemos esquecer que somos irmãos. Estou com receio de nascer uma criança defeituosa. Amanhã vou ao médico. Não sei que farei se nascer um bebê com problemas... – Está certo. Concordo. A maior preocupação deve ser a criança. Vamos resolver tudo com calma! – aquiesceu Mário. Depois de muito conversarem Mário cedeu aos argumentos de Ismélia. Deveriam aguardar um tempo até que ambos buscassem uma saída para a dramática situação. Pensavam na travessura do Destino, que produzira a gravidez de um bebê que nasceria filho e sobrinho de ambos... Mário voltou para Itaboraí. Sua cabeça girava em turbilhão. Ele nem mesmo podia comentar com o padrasto o seu drama. Antônio estava esclerosado, alternando momentos de lucidez com deslembranças. “Que situação!”, ia pensando, sem saber que faria ante aquele problema. Porém, não se conseguia desvencilhar de sua paixão por Ismélia. Não a via como irmã, recusava-se a perdê-la para outro, passando da condição de futuro marido à de cunhado. “Não, não aceitaria isso!”, pensava, atordoado, enquanto o ônibus rodava em direção a sua casa. Em chegando à cidade, Mário resolveu se assentar num bar e beber. Bebeu até perder a noção de tudo em redor. Tomou um porre homérico, sozinho e sentado na mesa daquele bar amigo. Falasse a mesa, ela diria que nunca acolhera pessoa tão triste. E ali ele ficou, até que o bar desceu as portas, já na madrugada, e ele se foi tentando encontrar o caminho de casa. Não o achou, caiu debaixo de uma marquise e apagou. O dia amanheceu com ele deitado na fila do ônibus, as pessoas olhando-o, curiosas, pois suas roupas não o indicavam ser mendigo. Não fora roubado, nada sumira de seus bolsos. Lá estavam os documentos, entre eles a certidão de nascimento, prova incontestável do seu drama: era irmão de sua amada, e Antônio tudo confirmou. www.emirlarangeira.com.br 3 – Ah, filho, nunca pensei contar nada porque não queria magoar você. Até hoje me lembro do meu compadre caindo morto diante do caixão de sua mãe. Vocês tinham ficado com a vizinha. Na volta, reuni os mais chegados. Decidimos que você seria meu filho e sua irmã seria filha do Raul. Como pensar que vocês um dia se encontrassem? – Ninguém, mas aconteceu. Agora ela não me quer como marido. Não estou aceitando isso, não. Não a vejo como irmã. Vou casar com ela mesmo assim... – Calma, meu filho! Você deve dar tempo ao tempo. Não seja precipitado. Você é estouvado, mas desta vez tem de se comportar como adulto. Não faça bobagem, ouviu? – Ora, pai! Não sou criança! Não penso fazer nada errado. Mas não posso deixar de lado o problema. Não posso viver sem Ismélia... A semana correu tormentosa para as duas famílias que a fatalidade uniu, até que chegou o sábado. Mário partiu para Niterói, indo direto à casa de Ismélia, encontrando-a, chorosa, num canto da sala. Raul partira ao labor de vigia. Ismélia estava sozinha, perdida em pensamentos enlouquecidos: esperava um filho do irmão. “Não sei que fazer”, pensava, quando Mário chegou. Agarrou Ismélia e a beijou. Recebeu um empurrão e a desaprovação. Ela decidira não viver com o irmão como esposa... – Mário, Mário! Você é meu irmão! Fui ao médico e ele não me garantiu que o bebê venha perfeito. Você é meu irmão! – Não fale assim, Ismélia! Esse filho é fruto do nosso amor, não de amor entre irmãos. Não aceito que você me descarte. Sou o pai da criança, e quero ser seu marido... Disse-o assim, e dela recebeu imediata discordância, com ambos discutindo asperamente. Depois de um tempo, porém, procuraram se acalmar. Mário optou por ir até o clube Fonseca tomar cerveja. Ismélia incentivou-o e o acompanhou, sugerindolhe que poderiam conversar com mais calma quando voltassem. – Mário, você está bebendo demais. Vê se bebe menos!... – atalhou Ismélia, preocupada. – Ah, Ismélia! Tô maluco com tudo isso. Deixa eu beber pra me acalmar! – retrucou Mário em irritação. Mário passou da conta na bebida sem que Ismélia o conseguisse evitar. No clube, ele não aceitou conversar com ninguém além dela. Seus amigos receberam um fora quando se acercaram. Todos estranharam o hostil comportamento de Mário. Depois de três horas bebendo, Mário sugeriu a Ismélia tornar a casa. Desvairado, decidira que a teria na cama. Pensava quebrar o gelo entre eles. Quando chegaram, nem conversou: avançou sobre ela para fazer sexo, abusando da força bruta. – Vem, amor! Quero você! Você nem vai lembrar que é minha irmã... – Não, Mário, não! Não faça isto! Não quero nem adianta insistir!... Estava ele totalmente embriagado e possesso. Ismélia tentava dele se desvencilhar e não conseguia. Ele, desesperado, começou a agredi-la sem parar. Ela passou a arranhá-lo no rosto, deixando-o mais alucinado. Foi quando ele partiu à cozinha e se armou da faca, com a qual a golpeou até a morte. Tudo numa sucessão de gestos tresloucados e animalescos. No final, Ismélia jazia ensangüentada, com Mário fitando-a, atônito, a faca assassina na mão que ele não controlara. Ele a jogou ao chão e saiu em disparada. Era tarde da noite, a rua vazia de gente, mas entre as frestas de algumas janelas vizinhas havia muitos olhos testemunhando o que todos estavam a ouvir: a discussão, os gritos, o silêncio, a fuga do assassino. Foram essas pessoas que denunciaram à polícia o matador de Ismélia: o próprio irmão. Com as informações devidamente registradas, o delegado Memor José Ariev partiu para Itaboraí na manhã seguinte. No cartório, localizou o registro de nascimento dos irmãos Mário e Ismélia, mas nenhuma referência havia que lhe pudesse facilitar a www.emirlarangeira.com.br 4 localização do fugitivo. O experiente delegado, então, teve a brilhante idéia de pesquisar, na paróquia local, os registros de batizado. Estava com razão, trouxe à luz o nome dos padrinhos, especialmente de Antônio, que sabia ser o pai adotivo de Mário. E lá estava o endereço, na Reta Velha de Itaboraí. O delegado partiu ao local e deparou com o homem velho e atacado por deslembrança. – Olá, seu Antônio! Como vai? – insinuou-se o delegado a tirar proveito do miolo mole do interlocutor. – Quem é o senhor? – indagou Antônio sem saber com quem estava falando. – Que isso, seu Antônio? Fui criado aqui... – Ah, você é filho de Marreco? Como é que ele está? – confundiu-se o velho. – Sou! Não está me reconhecendo porque estou velho – mentiu o delegado. – É verdade, filho. Minha cabeça está falhando muito... – E Mário? Há tempos eu não o vejo... – Está bem. Vem sempre dormir aqui... Pronto, só bastou ao delegado esperar a noite e prender Mário sem contratempo. Ele não reagiu. Foi julgado e condenado. Está preso até hoje, pondo fim a mais uma tragédia dentre muitas que diariamente passam pelos espíritos calejados dos policiais civis. www.emirlarangeira.com.br 5