Travessuras da Menina Má
Pepetela
LUEJI,
O NASCIMENTO DE UM IMPÉRIO
Romance
5.a edição
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Área de Serviço e Outras Histórias de Amor
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Quatro séculos atrás (pelo menos)...
Lueji voltou ao lago da sua infância. Era elíptico, grande, só os bons
nadadores o podiam atravessar no sentido do comprimento. As margens
estavam cobertas de fetos compridos e também dos mais pequenos, de
folhas em palma todas recortadas, os fetos da Lunda. Brincavam a se mascarar com estes, através dos quais tudo podiam ver. Além de muitas outras
variedades, o lago era rodeado de plantas com caniços compridos e de
folha grande, que davam estranhas flores cor de rosa na ponta de hastes
estreitas, as rosas de porcelana. O nome veio certamente da cor das flores
e da sua consistência carnuda e brilhante, lembrando o material mais
puro de que eram feitos moringues e sangas. Era uma planta da espécie
das Proteas, mas esse nome não existia por enquanto na Lunda. Diziam os
mais velhos, os bolbos tinham sido trazidos dum lago bem longe, lá onde
nasce o rio Cassai, para Ocidente, no berço fabuloso dos Tchokue. Se
reproduziram à beira da água, pintando de rosa o verde das margens.
Aos doze anos já Tchinguri atravessava o lago e Lueji pasmava, orgulhosa dos feitos do irmão mais velho. Chinyama, pelo contrário, mal sabia
nadar. Preguiçoso como só ele, esse seu irmão do meio. Corriam despreocupados pelo lago, com outros rapazes. As raparigas olhavam e riam,
não participavam das brincadeiras masculinas. Lueji sim. E Tchinguri lhe
ensinou a lançar a funda de caça e a fazer armadilhas para os bichos e a
pescar e a subir às altas árvores da beira-rio para apanhar os favos de mel.
Em tudo imitava o irmão mais velho. Chinyama só gostava fazer armadilhas e depois ficar escondido à espera. Gostava era da espera, para inventar estórias. Nunca subiu numa árvore e a funda não lhe dizia nada.
Tchinguri era o ídolo de Lueji. Nem mesmo Ndumba ua Tembo, um
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Pepetela
pouco mais velho que Tchinguri e por isso mais forte, se podia comparar
a ele. Chinyama também admirava o irmão mais velho, mas de maneira
diferente: tinha medo dele. Pois Tchinguri era violento. À menor contrariedade, batia os pés no chão e dava uma surra no caçula. Também tentou
duas vezes bater em Lueji mas esta se defendeu. Lhe mordeu um braço e
Tchinguri nunca mais usou de violência contra ela. À sua maneira de
irmão mais velho, respeitava-a também. Chinyama se encolhia todo quando Tchinguri gritava ou mesmo abria demasiado os olhos. Pior então
quando ele batia os pés no chão. E obedecia sempre.
Ela olhou o lago. Deserto. Ninguém nas pedras onde as raparigas se
banhavam e lavavam roupa. Nenhuma canoa de pescador no meio das
águas. Um silêncio só cortado pelos gritos angustiantes das aves e um restolhar ligeiro de peixes a comer. Sentou num rochedo, por baixo duma
grande árvore. As bimbas estavam quietas e as garças roçagavam nelas
com a ternura do cio. Caniços de papiro se agitavam levemente com a
viração. A superfície do lago, parada, reflectia o azul dum céu sem nuvens.
Céu de espera. No entanto, a tranquilidade do lago acalmou-a, nada
podia acontecer perante aquela paz.
Tinha fugido da casa materna e procurado refúgio no lago da sua
infância. Mais uma vez Tchinguri era responsável pela fuga. Numa discussão violenta com Ndumba ua Tembo, que era o único com coragem de lhe
fazer frente, saiu furioso do tchota e bateu na primeira mulher que encontrou. O marido da mulher viu a cena e, cego pela raiva, não reconheceu o
filho do chefe. Lhe deu logo uma bassula e Tchinguri ficou vermelho do
pó da terra. Se levantou, irado, e então o outro reconheceu nele o provável herdeiro da Lunda. Antes mesmo que Tchinguri puxasse do punhal, já
o outro tremia, paralisado pelo susto de ter atirado o filho de Kondi a
terra. Tchinguri apunhalou-o, mas desconseguiu de o matar porque
outros muatas o seguraram, implorando calma. Não satisfeito com a vingança, Tchinguri arrastou a mulher para a sua chipanga e violou-a. Aí as
opiniões divergiam, os amigos do príncipe dizendo a mulher não gritou,
por isso aceitou. O caso foi levado a Kondi para ser julgado. O encontro
entre os dois, filho e pai, foi uma cena penosa, pois o chefe andava furioso
com os desmandos constantes de Tchinguri, mas era velho demais para
impor a sua autoridade. Tchinguri gritava não vai haver julgamento
nenhum, ele me atacou primeiro, quem ousa levantar a mão para Tchinguri e fica impune? Lueji gostava muito do pai, fraco mas justo. E ainda
gostava mais do irmão. Fugiu para o lago, evitando o drama.
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Lueji, o Nascimento de Um Império
Agora ali estava, procurando a paz. Lembrou a vez que Tchinguri lutou
com Ndumba ua Tembo, tinha o irmão uns catorze anos e já era caçador.
Dos jovens, Ndumba era o melhor caçador e lutador, ia ser um grande
chefe, diziam os mais velhos. Apesar dos dois anos a mais, e nessa idade
isso conta, Ndumba desconseguiu de levar a melhor na luta. Durou mais
duma hora, de mãos nuas. Ficaram muito feridos, mas nenhum desistiu.
Podia? Só a prostração os venceu, ao mesmo tempo. Ninguém ousou
separá-los, muito menos Lueji. O irmão até que podia morrer, mas nunca
ia se dar por vencido. E nunca perdoaria quem interrompesse o combate.
A partir daí, Ndumba e Tchinguri eram rivais, mas não se defrontavam
senão por palavras e piadas venenosas, cada um respeitando a força do
outro. Numa coisa partilhavam a mesma opinião, era quando se tratava de
decidir sobre a lição a dar nalguma aldeia recalcitrante ou num grupo
estranho que penetrava o território de caça. Porrada! No mais estavam
sempre em desacordo. Só pelo prazer de contrariar o outro.
Escureceu e a Lua subiu, inteira Lua de prata se reflectindo no lago,
azul-escuro ao luar da Lunda. Lueji nela viu a silhueta do homem eterno,
elástico e firme. E foi sonho ou ilusão, foi pressentimento ou magia, mas
do outro lado da margem, banhado pelo luar, estava o homem que saiu da
Lua, alto e quase nu, um machadinho de chefe na mão esquerda e um
longo arco na direita. A princesa teve um assomo de consciência e levantou a cabeça para olhar a Lua. O disco de prata estava liso, vazio, só brilhava. E o homem caminhava pela margem, se afastando. Agora só havia o
silêncio e a figura difusa se recortando no luar. Quis gritar, chamar, travar
a despedida, mas a garganta estava seca, não emitiu senão um gemido.
Ficou parada, muda e angustiada, vendo-o desaparecer para lá da colina.
E do horizonte azul da sua vida. Um soluço subiu e ficou tremeluzindo ao
luar.
Regressou altas horas da noite, esquecendo as onças e leões se agitando nas chanas. Levantava pó vermelho no caminho entre capim alto, pelo
arrastar dos pés colados ainda à visão do lago. Mussumba dormia e passou
entre as cubatas sem ninguém encontrar. As brasas se consumiam nas
fogueiras e só os cães ladravam de vez em quando. Das cubatas vinham
lamentos, suspiros, ruídos de gente que dorme ou faz amor. Nada de
vozes ciciadas, discutindo a maldade de Tchinguri ou a justiça do chefe
dos Tubungo. Nada a indicar ter havido um drama. Passou à frente da casa
do homem esfaqueado, vigiado pelo kimbanda e pela irmã dele. A mulher
fora dormir para perto dos pais, escorraçada pelo marido ofendido. Mas
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Pepetela
não havia lamentos nem pragas. Só o silêncio das ruas entre as cubatas,
incontáveis na capital do reino. Passou pela onganda real, grande paliçada dentro da qual se situavam as cubatas onde dormia o pai e cada uma
das suas quatro mulheres. Não entrou na onganda dessa vez. Avançou
mais um pouco e passou ao lado da chipanga de Chinyama e mesmo da
rua se podia ouvir o ronco de homem gordo. Logo à frente se situava a chipanga de Tchinguri. Tinha um guarda dormindo na porta. Foi o chefe que
mandou o guarda ou era precaução de Tchinguri? Voltou para trás, penetrou na onganda real, fez um gesto ao soldado da entrada e foi para casa
da sua mãe, Nayole, a segunda mulher de Kondi. Se deitou na esteira
de caniços tenros sobre o catre de madeira, se enrolou em duas peles de
onça, tentou adormecer. Mas a visão do lago não a deixou.
Levantou de manhã bem cedo, sem ter dormido. A vida agitava Mussumba. Pescadores passavam com as nassas e mujias para o rio, mulheres
iam com enxadas para as lavras, os mais velhos se reuniam aos poucos no
tchota. As crianças aqueciam ao sol nascente, a ganhar energia para as
correrias. No cercado da cozinha encontrou apenas Musole, a quarta
mulher de Kondi, era a sua vez de preparar a comida para o chefe dos
Tubungo. Sentou ao lado dela e perguntou qual a decisão do pai.
Musole muxoxou, aquele teu irmão Tchinguri ué, contou o julgamento,
o relato das testemunhas, as falas dos familiares do homem apunhalado,
a defesa feita pelos amigos de Tchinguri, tinha muitos pois já viam nele o
futuro chefe. E falou também da soberba do príncipe, que não admitia a
falta. E Chinyama? Não falou, esse teu outro irmão também, tchá, e a decisão de Kondi foi dez cabritos de multa e uma grande reprimenda, não foi
muito duro pois o apunhalado não ia morrer e um muata deve defender a
honra conspurcada pela plebe, ainda mais se tratando do herdeiro, portanto o castigo era apenas o macoji da mulher violentada, por gosto ou
não, a família foi ofendida e merece macoji de dez cabritos. Assim Musole explicou os factos e ainda a atitude altiva de Tchinguri se levantando no
meio da assembleia sem para tal ter recebido autorização do pai, gritando
para um serviçal, Chimbica vai apanhar os dez cabritos, os piores que
encontrares, porque eu não os apanho, não me sujo, sou um guerreiro, o
que era de novo uma falta grave, manda a tradição o culpado deve apanhar
ele mesmo os cabritos e entregar aos ofendidos, em gesto de humilde
arrependimento, mas Tchinguri nunca aceitaria e Kondi deixou passar,
encolhendo os ombros, o filho não tinha cura, o que foi apreciado pelos
amigos do herdeiro, nisso viam um sinal de força, mas herdeiro nada,
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Lueji, o Nascimento de Um Império
disse Musole, na véspera falou com Kondi e este não sabia como evitar a
subida ao trono de Tchinguri, talvez o Conselho dos Tubungo não o vai
aceitar, o que era a sua esperança, pois era difícil ele não indicar o filho
para sucessor, só em caso de falta extremamente grave e ainda te digo
mais, Lueji, Kondi vai consultar Kandala, o grande adivinho da Lunda e já
partiu bem cedinho pois Kandala mora longe de Mussumba, num cercado isolado no cimo dum morro.
– Que quer o meu pai saber?
– Já te disse. Tem medo que Tchinguri seja um mau chefe, que o povo
sofra com ele. Quer saber o que deve fazer.
Lueji calou mas não gostou. Tchinguri ia se moderar quando subisse
ao poder, passaria a ouvir os conselhos dos Tubungo. Era o mais corajoso
de todos os lundas e um grande guerreiro, as tribos vencidas aí estavam
para o provar. Era capaz também de gestos justos, como quando defendeu
o seu amigo Nandonge, acusado injustamente de feitiçaria por dois adivinhos. Exigiu que se repetissem as adivinhações, mas com o cesto de Kandala, o maior dos adivinhos. E Kandala deu razão a Nandonge e provou o
feiticeiro era alguém da família da vítima. Tchinguri subiu na consideração dos muatas e de Lueji, se ainda era possível. Porque precisava muita
coragem para defrontar a opinião de dois adivinhos num caso de feitiçaria. Podia atrair as raivas deles para numa próxima oportunidade ser ele
próprio acusado. E mais. Só uma grande lucidez conseguia destrinçar o
falso e o verdadeiro, quando se trata com espíritos malignos. Tchinguri
o fizera, podia ser um mau chefe?
O mujimbo se espalhou, Kondi foi consultar Kandala, pois Musole era
incapaz de guardar segredo. À tarde toda Mussumba aguardava impaciente o regresso do chefe dos Tubungo. Mas ele não veio. Caso complicado, Kandala desconseguia de dar resposta imediata. Lueji aproveitou ir
visitar Tchinguri. Este não tinha saído de casa todo o dia, seria vergonha
do que passara, seria raiva do mujimbo que Chinyama correu a lhe contar?
Lueji encontrou lá Chinyama e também o inseparável Nandonge.
Tchinguri estava uma fera, dava os seus passinhos miúdos dum lado
para o outro, no terreiro em baixo da árvore. A barba afilada no queixo
parecia mais desafiadoramente espetada para a frente. Tchinguri era
baixo e em tudo contrastava com o irmão mais novo, pachorrentamente
sentado num banquinho ao lado de Nandonge, os pneus da barriga saindo generosamente da tanga. Tchinguri usava também só tanga, tecida
artisticamente de ráfia, o punhal eternamente colocado à cintura, com ele
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Pepetela
dormia. O único ornamento no peito era o colar de unhas de onça, bicho
que ele matara, ornamento e poderoso amuleto, pois no meio tinha um
tubinho de madeira com ervas e pós mágicos. Quando se voltava, tal era a
fúria que o colar chocalhava. Na cabeça usava as miluínas, ornamento que
só o pai e ele podiam possuir. Eram três objectos, em forma de chifre, mas
feitos de pêlos e fios, que desciam do alto da cabeça para as duas têmporas, presos ao cabelo. As pontas vibravam quando ele se irritava. No pé
esquerdo tinha a lucanga, pulseira que só os herdeiros podiam usar. Chinyama também tinha a lucanga, imposta depois da circuncisão, mas não
as miluínas.
Lueji cumprimentou, batendo as palmas rituais, respeito que se deve
ao irmão mais velho. Este falou logo:
– O pai já voltou?
– Não. Deve passar lá a noite.
Lueji sentou num banco, sem esperar convite. Apesar de mulher, tinha
certos direitos por ser filha de chefe.
– Então Kondi quer deserdar-me?
– Assim me disseram – respondeu ela.
– E o povo todo está contente com isso, não é?
– Não me disseram. E não acredito.
Tchinguri parou a olhar para ela. Pela primeira vez, os olhos ficaram
menos maus. Um breve fulgor de sorriso nos lábios?
– Felizmente os meus irmãos estão comigo. E os amigos. É um consolo
para quem tem um pai velho e caquético.
– Não fales assim do pai, Tchinguri.
– É a verdade, Lueji. Está a morrer de velho e já não tem as ideias claras. Só faz o que lhe aconselham certos Tubungo, como o Kakele e o
Kakolo, esses cretinos.
– Mas muata Kakolo é teu sogro... – disse Lueji.
– E depois? É outro caquético. Quem o diz é a filha dele. E anda a intrigar a favor de Ndumba ua Tembo. Ele, o Mbumba, o Moxico... Os caquéticos intriguistas que têm o poder na Lunda! Se eu não for o sucessor ou
o Chinyama...
– Nem quero ouvir falar – cortou Chinyama. – Já me viram chefe dos
Tubungo? Dá muita chatice, uma pessoa emagrece. E a propósito, Tchinguri, o ndoka acabou?
O chefe da casa bateu impacientemente as palmas. Não foi preciso
falar. Logo apareceu uma mulher com uma cabaça grande cheia de hidro-
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Lueji, o Nascimento de Um Império
mel e uma cabacinha pequena cortada ao meio. Chinyama pegou logo na
cabacinha, mergulhou-a na cabaça grande e retirou-a cheia de ndoka.
Assoprou a afastar os restos de abelhas e bebeu gulosamente. Depois, passou a cabacinha aos outros, estalando a língua. Só Nandonge aceitou
beber.
– Como eu dizia, se não formos nós os escolhidos, será Ndumba ua
Tembo. Ele tem apoio dos muatas.
– Não é Kondi quem decide, é o Conselho dos Tubungo – disse Nandonge.
– Vai dar no mesmo – disse Chinyama lentamente. – O Conselho sempre aprova a proposta do chefe. Kondi tem o lukano e com ele o poder
sobre a chuva. O Conselho vai desafiar o poder do lukano? Nunca.
– Só com o chefe morto – disse baixinho Tchinguri.
O silêncio que se seguiu foi aproveitado por Chinyama para encher de
novo a cabacinha. Lueji adiantou falar:
– Estão só aí a fazer suposições à toa! A verdade é que o nosso pai está
muito triste com o que fizeste, Tchinguri. Não tem razão? Precisas ter
mais calma, não te enfurecer por qualquer coisa...
– Estás contra mim, mana? Afinal?
– Sabes que não. Mas o julgamento foi justo e faltaste ao respeito ao
chefe. A culpa é tua... Mas a raiva do pai passa. Qualquer que seja o oráculo de Kandala. Sempre me ensinaste que é preciso interpretar as palavras dos adivinhos e que cada um entende à sua maneira. Não acredito
que o pai passe o poder para fora da sua família, é contra a tradição.
– A tradição se torce quando é preciso – disse Chinyama.
– A tradição depende da força – reforçou Nandonge.
– E quem tem a força? – perguntou Lueji.
– Kondi – disse Tchinguri. – Ele tem o lukano.
Lueji foi dormir. Os outros ficaram a beber. Na sua cubata, deitada,
muito tempo ela ouviu as vozes pastosas de ndoka se elevando da chipanga
de Tchinguri. Até que adormeceu, sonhando com um lago e um homem a
sair da Lua, com uma machadinha e um longo arco. Ela ia com ele, uma
rosa de porcelana na mão.
Kondi só regressou na tarde do dia seguinte. Vinha cansado, de passos
trôpegos, acompanhado de três homens do seu séquito. As pessoas saíam
das casas para o cumprimentar, batendo as palmas, bem-vindo, Kondi,
filho de Yala Muako, e ele só respondia com um breve aceno de cabeça.
Lueji estava em casa dele e viu, Kondi tinha envelhecido. Chinyama tinha
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Pepetela
razão, o poder dá cabo da saúde. O chefe se embrulhava no manto tecido
de casca de árvore e pintado de vermelho, sem coragem de tomar banho.
No entanto, o fim da tarde não estava frio.
Logo chegaram os Tubungo mais próximos, muata Kakele à frente. Se
vinham na esperança de um mujimbo, ficaram defraudados, pois Kondi
despediu-os logo, estava cansado. À noite ia passar o mujimbo a Musole,
a sua actual confidente.
Lueji foi também se despedir. Ajoelhou, poisou a cabeça nos joelhos
do pai, como fazia em pequena. Ele apoiou a mão sobre a cabeça dela.
– Pai, perdoa o meu irmão Tchinguri.
Kondi não respondeu. Acariciou a cabeça da filha. Ela repetiu a súplica.
– Ele é que devia pedir.
– É orgulhoso. Sabes bem, pai.
– Faltou ao respeito ao soba dos Tubungo, em pleno julgamento. Um
futuro soba não pode faltar ao respeito ao soba actual. Como depois se faz
respeitar, se deu aos outros o mau exemplo?
– Conheço-o melhor que ninguém. E juro, pai, ele vai mudar.
– Sim, tu conheces Tchinguri melhor que ninguém. Conheces com o
coração. E teu coração é grande, Lueji.
– Se ele for soba, a responsabilidade obriga-o a pensar antes. E a
moderar o seu orgulho.
– É essa a minha esperança.
Assim falou Kondi e Lueji entendeu, o pai não tinha ainda decidido
deserdar Tchinguri. Se foi deitar, tranquila, a crise ia ser ultrapassada.
Conselho de Kandala, o que sabe tudo, o depositário do saber do povo
lunda?
Lembrou, de certeza pela evocação do nome de Kandala, a cena de
uma mulher do povo ser tomada por um espírito e se arrojava no chão e
se encolhia, se revolvia no pó vermelho e depois começou falar palavras à
toa que ninguém entendia, as pessoas se aproximando para ouvir a voz do
espírito que nela cavalgava, mas não dava para entender, pois só disse uma
frase construída, incompreensível aos ouvidos de Lueji mas que enfureceu um nobre presente, muata Kalucinga de seu nome, bêbado inveterado,
o qual, tomado pelo vinho de palma, bateu na pobre mulher inconsciente, talvez que ela o acusou de não tratar bem os espíritos dos antepassados, e a mulher gritava e esperneava no seu delírio e o muata batia, batia,
sem ninguém que lhe travasse e ela, Lueji, não pôde mais, era uma garota
mas se agarrou ao braço do muata e obrigou-o a parar, apesar dos safanões
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Lueji, o Nascimento de Um Império
e dos gritos e dos insultos, quem era a mulher que ousava levantar a mão
para um Tubungo, nem mesmo sendo filha do soba, era ofensa que se lava
com sangue, até que outros vieram apartar e Kalucinga exigiu reparação
da ofensa, o que só Kondi podia decidir e decidiu pela filha, não por ser
filha mas porque tinha sido justa e corajosa, heresia era violentar uma
mulher cavalgada por um espírito e que se duvidavam perguntassem a
Kandala, que tudo sabia, o que foi confirmado pelo adivinho, Lueji não só
agira bem como conquistou o coração do povo simples, não dos muatas
que sempre se podem defender mas dos outros, os que só têm a palavra
quando um espírito os elege para serem cavalgados.
Estava pois Lueji deitada quando ouviu as vozes de Tchinguri e Chinyama se dirigindo para a casa de Kondi. Preocupou-a o tom das vozes, de
quem passara o dia a beber ndoka. Não ouviu mais, mas ficou atenta, perscrutando o silêncio de Mussumba. Soube depois...
Os filhos encontraram Kondi ainda sentado no banco, os pés numa
bacia de água morna e com uma cabacinha na mão.
– É marufo, pai?
– É água.
– Que pai é este que nem nos dá de beber? – disse Tchinguri. – Até
marufo nos negas?
– Já disse é água. E agora vou dormir.
– Velho mentiroso – disse Tchinguri. – Bebes às escondidas dos teus
filhos. Fazes tudo às escondidas dos teus filhos. Não tens coragem de
fazer de frente?
– Rua da minha casa, seus bêbados. Rua!
O grito fez Tchinguri perder a cabeça, ainda a tinha antes? Avançou
para Kondi, lhe deu duas chapadas na cara.
– Isso, Tchinguri, dá mais nesse velho maluco – apoiou Chinyama.
Kondi caiu do banco e a cabeça rachou ao chocar contra uma trave. Os
gritos de Musole e dos serviçais despertaram a vizinhança. Lueji saltou
da esteira e foi, nua, ver o que passava. Já Tchinguri e Chinyama saíam da
onganda aos berros, é para aprenderes a não mentir aos teus filhos, velho
caquético. O soba jazia prostrado no chão, o sangue escorrendo da cabeça.
Lueji foi a primeira a pegar nele, depois Musole. Estenderam-no na esteira e tentaram estancar o sangue. Mensageiros foram enviados à pressa
buscar os melhores kimbandas. Os ngomas e chingufos não pararam mais
o seu batuque, invocando os espíritos protectores da linhagem do soba.
Toda a noite Kondi passou inconsciente, apesar de estar nos braços de
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Pepetela
Lueji que lhe aplicava emplastros de ervas para parar o sangue e apesar de
todas as medicinas dos kimbandas. A cubata estava cheia do fumo das ervas
e das penas de galinha, cheirava a sangue de homem e também das galinhas e capotas sacrificadas para o salvar. As invocações dos kimbandas se
misturavam aos ruídos vindos de fora, do batuque interminável e das preces das mulheres.
Já o Sol estava alto quando Kondi abriu os olhos. Muito tempo ficou
sem entender o que passara. Depois a inteligência foi aparecendo nos
olhos desbotados, olhou a cara de Lueji inclinada sobre ele, sentiu o colo
nu dela onde a cabeça apoiava, sorriu. Não foi preciso explicar, lembrava
agora tudo. Se via. Ninguém falou e ele adormeceu.
Kondi acordou de novo à tarde e voltou a ver a cara da filha. Ouviu o
rítimo monótono do batuque. Viu depois Kandala que mexia à sua frente
o ngombo de adivinhações. Pegava numa mahamba, depois noutra, misturava e olhava, olhava para dentro do cesto e mexia e remexia os ossos
carcomidos, os pedaços de madeira, as figurinhas de madeira e pano, os
búzios de todas as formas apanhados nos rios, os restos de peles e pêlos,
o pedaço branco de caulino, a pemba, misturava tudo e olhava, olhava e
meditava. Todos estavam suspensos das suas palavras. Mesmo os kimbandas tinham parado as suas fumigações para observar a figura veneranda do
mais velho entre os velhos, chamado para ditar o destino do soba grande
dos Tubungo. Kondi sabia, a sua vida estava ser jogada às sortes, mas não
estremecia.
Kandala levantou os olhos para ele e ficou calado, o ar triste de muito
velho.
– Então, Kandala? – disse Kondi numa voz fraca.
O adivinho abanou a cabeça e suspirou.
– Deves preparar-te, filho de Yala Muako.
Musole saiu a correr aos gritos. No terreiro à frente se pôs a lamentar
e a xinguilar, mataram o meu homem, mataram o chefe dos Tubungo.
Veio também a primeira mulher de Kondi, mãe de Tchinguri, e a segunda, e a terceira, se puseram a xinguilar, que vai ser de nós, que vai ser do
povo da Lunda, sem chefe a quem falam os espíritos, sem chefe para fazer
vir a chuva e o bom tempo, sem chefe para chamar a caça e as sementes do
massango e da massambala, aquele que dos espíritos ganha ventos propícios vai morrer, o pai das gentes vai morrer, que seremos nós, seus órfãos,
crianças abandonadas em plena chana infestada de feras, que seremos
nós, povo da Lunda?
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Lueji, o Nascimento de Um Império
Kandala saiu da cubata e gritou para as mulheres que já atraíam gente
correndo de todas as partes:
– Calem-se, mulheres. Ele ainda não morreu.
O respeito era demais e as mulheres calaram. As pessoas estacaram, não
entraram na onganda. Kandala voltou para dentro, dizendo deixem-nos sós.
Ninguém nunca soube o que falaram os dois sozinhos, mas dá para
supor. Lueji aproveitou para ir pôr o pano, desde a véspera estava nua e
nada tinha comido. A mãe dela, a segunda mulher de Kondi, levou-a para
a sua cubata, mesmo atrás da do soba e lhe deu xima de massango e um
pedaço de carne, come, estás com mau aspecto. Ela obedeceu, olhando a
mãe. Também estava velha. Novas eram a terceira mulher, mas estéril, e
Musole, que ainda não tinha concebido. Diziam as más línguas a esterilidade não era delas, apesar de se saber que um soba é sempre fértil até à
hora da morte. Mas o povo lunda ainda obedecia pouco ao saber dos mais
velhos que lhe queriam impor a tradição, achava um rei era apenas um
muata quase como os outros que tinha o dom de fazer chover e aplacar as
forças da natureza. Só. Também podia ser estéril na velhice. E as más línguas grassavam na Lunda, apesar dos ditos dos muatas e dos adivinhos.
Kandala, sim, esse sabia tudo e disse o soba vai morrer.
Saíram as duas da cubata de Nayole e encontraram a primeira mulher
sentada à frente da sua. Estava abatida pelo crime cometido pelos dois
filhos. Nada disse e elas passaram, como se a mãe de Tchinguri não existisse. Pelo crime dos filhos, perdia a primazia de Muari, a primeira
mulher, talvez até fosse condenada por feitiçaria, quem sabe. A palavra
estaria com os adivinhos.
Depois Kandala saiu. Se espreguiçou, falou para Lueji:
– Podes entrar, filha de Kondi.
O pai estava com pior aspecto. Lueji ajoelhou ao lado da esteira, compôs a pele de onça que o tapava. O velho sorriu para ela.
– Ainda me pedes para perdoar os teus irmãos?
Ela baixou a cabeça e soluçou.
– Um chefe não pode ouvir o seu coração, sobretudo se é um coração
grande. Tchinguri não presta. E Chinyama não é melhor.
– São teus filhos, pai.
– São. E vê o que fizeram ao pai. Talvez a culpa seja minha, defeito
meu, não soube fazer filhos bons. Só uma filha.
– Que vais fazer a eles?
– O castigo está decidido. Nenhum será chefe dos Tubungo. Mas não
quero que sofram outro castigo. São filhos de chefe e devem ser respeitados.
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