INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
Arturo Gouveia
Caro Aluno,
A disciplina que você vai cursar comigo, a partir de agora, é Teoria da
Literatura. Trata-se de um conjunto de princípios fundamentais para você
conhecer a natureza, os meios e a Þnalidade da literatura. Convém esclarecer
que a literatura é muito mais antiga do que a teoria e, obviamente, só depois
da existência de um certo fenômeno é que o homem pode construir um
conhecimento e começar a teorizar. Em geral, no senso comum, existe muito
preconceito em relação à teoria, como se ela não tivesse nenhuma conexão com a
prática real. A literatura, como um tipo de arte, de Þcção, também comummente
é vista com preconceito, com certa reserva, na medida em que se cristaliza a idéia
de que não serve para nada. Mas será mesmo que uma arte não serve para nada?
Você aceita esse tipo de concepção? Será que a arte, por mais simbólica que seja,
não serve sequer para a gente reßetir um pouco sobre a condição humana, o diaa-dia, a situação tão brutal vivida pelo ser humano em seu contexto histórico?
É preciso, desde já, criar condições para evitar esse tipo de visão distorcida.
A literatura é uma arte e, como arte, como um tipo especial de conhecimento,
pode nos fazer reßetir sobre as coisas mais banais do cotidiano, assim como sobre
coisas que nós não percebemos numa vida mecanizada. Uma das principais
Þnalidades da teoria da literatura, portanto, é mostrar o quanto a arte literária
pode nos proporcionar um tipo diferente de percepção, seja em relação às
coisas mais concretas, seja em relação ao que parece mais abstrato e de difícil
compreensão.
Esta disciplina em que você está se iniciando, portanto, tem esse objetivo
primordial. Ela será exposta em três unidades, ao longo das quais se estabelecerá
um diálogo produtivo sobre os seus conceitos, o que resultará na avaliação.
Não pretendo, como professor, fazer uma avaliação tradicional, mas através da
produção de pequenas redações, porém apropriadas, para que se perceba o nível
de assimilação dos conteúdos disseminados ao longo do curso.
As três unidades do curso serão:
1.
Os fundamentos da literatura como construção artística;
2.
A teoria dos gêneros literários como forma de classiÞcação dos textos da
tradição literária;
3.
Um estudo sobre o gênero narrativo, especialmente o conto e suas
categorias, ou seja, seus elementos estruturais (enredo, personagem, tempo,
espaço, narrador etc.).
Essas três unidades, assim distribuídas, vão proporcionar um conhecimento
bastante interessante dos conceitos mais genéricos da teoria da literatura. Além
disso, constituirão três etapas interligadas pela temática e por um procedimento
que vai do geral ao especíÞco. Assim, a parte que diz respeito aos fundamentos da
literatura criará condições para que o aluno sinta a importância da arte literária,
17
de sua distinção de outras formas de arte e de discurso; também ajudará o aluno
a compreender que a teoria é uma prática humana fundamental à existência, pois
não existe nada bem planejado que não seja fruto de alguma reßexão teórica,
seja lá em que nível for. Nessa primeira unidade, o aluno será levado a ir se
familiarizando, aos poucos, com os conceitos que servem para explicar, descrever
e gerar um conhecimento especializado, enriquecendo o seu patrimônio
cultural. O objetivo mais importante nessa primeira etapa é uma reßexão sobre
a literatura, comparando-a com o que não é literatura e mostrando por que essa
distinção é tão importante para o aluno quanto para o professor ou qualquer
pessoa que queira compartilhar desse tipo de conhecimento. Assim, um soneto de
Augusto dos Anjos, “Vandalismo”, entre outros exemplos citados, levará o aluno
a ir diferenciando, do ponto de vista qualitativo, o que efetivamente é literatura
daquilo que não é, não tem nenhuma importância em termos de arte, mas pode
até se fazer passar por tal. Mostraremos esses exemplos no momento preciso.
Na segunda unidade, o estudo começa a ser mais especíÞco. Vamos abordar
a teoria dos gêneros literários, imprescindível à classiÞcação dos tipos mais
diferentes de texto que a tradição, ao longo dos milênios, oferece. Por exemplo, a
história de Sansão e Dalila, relatada no Livro dos Juízes, da Bíblia, é contada em
forma de narrativa. Mas ela poderia ser narrada em forma de poesia, com versos,
com estrofes. Da mesma forma, poderia ser vivida por personagens em um texto
voltado para a encenação teatral. Isso signiÞca que um determinado enredo pode
assumir várias formas. Os fatos aterradores do 11 de Setembro, em Nova York,
poderiam ser transformados em conto, romance, crônica, poema lírico, texto
dramático (teatral). Poderíamos ter os mesmos personagens, os mesmos fatos, o
mesmo tempo, o mesmo espaço, mas com formas diferenciadas que distinguem
cada gênero. Nesse sentido, percebe-se a relevância dessa teoria para levar
o aluno a não ver os textos literários pelo que eles têm apenas de semelhante,
mas principalmente pelas diferenças. A teoria dos gêneros explica em que
consistem tais diferenças e a necessidade de conhecer os devidos meios teóricos e
conceituais para identiÞcá-las.
Na terceira unidade, o aluno perceberá que o curso Þcará ainda mais
especíÞco. Depois de expostos os conceitos sobre gênero lírico, gênero dramático
e gênero narrativo (também chamado, tradicionalmente, de gênero épico), o
estudo vai se deter mais sobre este último. Várias categorias serão conceituadas, o
que constitui cada uma delas, sempre com exemplos bem representativos. Alguns
exemplos serão mostrados para que o aluno tenha uma percepção adequada
do gênero em questão. Depois, serão apresentados alguns contos de Machado
de Assis, considerado pela crítica um dos maiores escritores brasileiros. Serão
sugeridas leituras dos contos, mas, a título de didática, será feito um resumo de
alguns contos, assim como um comentário crítico da situação representada no
enredo e vivida pelos personagens. Acredito que esse trajeto aqui proposto, do
geral ao especíÞco, ajudará a facilitar a compreensão da natureza e dos objetivos
da disciplina em curso.
ATENÇÃO: A teoria da literatura é um conjunto de princípios que exigem de
você uma reßexão. Por exemplo: como distinguir a literatura e saber reconhecer
se um texto é literário ou não?
18
REFLITA: Sem a leitura dos textos literários, de jornais, de livros e outras
fontes, não adianta Þcar na teoria pela teoria. A teoria é importante, mas
depende do objeto de estudo, que são os próprios textos literários.
AGORA É SUA VEZ: Vá agora, imediatamente, ler o poema “Vandalismo”,
de Augusto dos Anjos. Ele pode ser encontrado em alguma edição do Eu, mas
pode também ser buscado pela Internet. Leia várias vezes esse soneto e procure
entender o que existe de diferente no sentido dos versos, em comparação com
a vida real.
19
UNIDADE I
OS FUNDAMENTOS DA LITERATURA COMO
CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA
Em primeiro lugar, vamos fazer uma breve reßexão sobre a teoria. Como
você já deve ter ouvido falar, a teoria é algo muito distinto da prática. Entretanto,
a situação real não é bem assim. O que se entende por teoria no senso comum
é algo muito preconceituoso. O senso comum é um tipo de comunicação muito
importante no dia-a-dia, mas um conhecimento mais qualiÞcado é aquele
que passa a duvidar das generalizações do senso comum. E a teoria tem um
papel muito relevante nessa direção. No cotidiano você já ouviu falar diversas
vezes coisas assim: “O brasileiro é preguiçoso”; ou então: “A fome sempre
existiu e não tem jeito”; ou então: “Os artistas não contribuem em nada para o
desenvolvimento nacional”. Essas três frases são tipicamente do senso comum.
Elas circulam em nossa sociedade com o objetivo de fazer com que você
também se apegue às generalizações que ela propagada. O que signiÞca uma
generalização desse tipo? Vamos analisar a primeira frase. Ora, preste ATENÇÃO:
ela aÞrma que todos os brasileiros são preguiçosos, pois o sentido singular dela
está se referindo, na verdade, ao plural. Ora, você acredita que a preguiça é tão
grande assim no Brasil? Se o brasileiro fosse preguiçoso mesmo, você acha que as
maiores empresas multinacionais do mundo estariam funcionando aqui? Se você
fosse dono de uma empresa como uma fábrica ou um banco, você a instalaria
num lugar onde o povo é totalmente preguiçoso? Observe que, com essa
brevíssima reßexão, a gente começa a discutir a frase e duvida do conteúdo dela.
Se formos para a prática, veremos que milhões de pessoas nesse país trabalham
em condições péssimas, mal pagas, mas trabalham intensamente, inclusive
crianças e mulheres grávidas. Assim, quanto mais reßetirmos criticamente, menos
aceitaremos as generalizações.
O que está exposto na segunda frase é algo muito semelhante: ela aÞrma
que a fome sempre existiu e, por isso, a gente não deve se indignar com ela. Nesse
sentido, o senso comum é levado a acreditar que a fome é algo até natural, normal,
o que não deve gerar preocupações. Mas será que os fatos são assim mesmo?
Encontrei um dia na Internet uma matéria curiosa que dizia o seguinte: Bill
Gates, o homem mais rico do mundo, ganha mil dólares por segundo, enquanto
populações inteiras na África têm uma renda per capita de um dólar por mês.
Você acha que isso é natural? Será que esse abismo imenso que separa pobreza de
riqueza é algo que não tem jeito? Uma reßexão mais apropriada sobre o assunto
mostrará que a pobreza é produzida pela riqueza e vice-versa. É o trabalho dos
pobres, explorados, miserabilizados, que gera a riqueza dos poderosos. Portanto,
não existe nada de natural nesse processo. Trata-se de uma questão social de
estratiÞcação e appartheid econômico. O mundo atual, com enormes tecnologias,
poderia produzir alimentos para toda a humanidade, o que acabaria de vez
com a fome. Portanto, o problema da fome não é de natureza técnica nem é uma
maldição do destino; o problema é essencialmente sócio-econômico. Os políticos
não têm interesse em acabar com a fome porque ela gera subordinação. A África
21
tem enormes populações famintas, mas Nova York também tem, conforme
última pesquisa feita pela ONU, trinta e cinco mil mendigos! Isso signiÞca que
a fome coexiste, em Nova York, com o maior volume de dinheiro do planeta. E
esse problema não provém de nenhuma destinação maldita, mas da falta de uma
política capaz de integrar as pessoas a terem uma vida digna na sociedade.
As reßexões acima também servem para desmontar a terceira frase. Ela
aÞrma que os artistas são vadios, inúteis, imprestáveis, como se não servissem
para nada na sociedade capitalista, tão caracterizada pelo imediatismo e pela
ambição de ter as coisas materiais em abundância. Ora, será que apenas os
bens materiais são importantes para a formação do ser humano? Será que o ser
humano não precisa de um bom Þlme, uma boa música, um bom livro, visitar
exposições de arte, para se enriquecer intelectualmente? Reßita bem sobre isso:
o preconceito que se tem em relação à arte está baseado na idéia de que a arte
não dá lucro, não tem importância para o seu crescimento, não leva a nada de
proveitoso. Os textos que vamos expor em seguida demonstrarão o contrário do
que está tão banalizado no senso comum.
AGORA É SUA VEZ: Leia de novo, com mais calma, o poema indicado
de Augusto dos Anjos. Ele mostrará a você um tipo de linguagem que é
impossível na lógica e no senso comum que utilizamos no dia-a-dia. Em
seguida, passe a ler com mais apego os conceitos que serão apresentados sobre
a natureza da literatura.
1.1 A Natureza da Literatura
Reßetir sobre a natureza da literatura é veriÞcar como a arte das palavras
se constrói. Literatura não é documento, não é jornal, não é texto cientíÞco.
Literatura é Þcção, criação imaginária, embora ligada à realidade concreta.
Acontece que ela não é uma cópia nem uma mera retratação da realidade que
vivemos. A literatura é uma transÞguração artística das experiências humanas,
mas nunca se reduz a estas. Para entendermos com mais vigor essa diferença,
trabalharemos aqui, inicialmente, com três fundamentos básicos da literatura: a)
A necessidade de ruptura com o senso comum; b) A ilogicidade conceitual; c) A
combinação das palavras.
1.1.1 A Necessidade de Ruptura com o Senso Comum
Um dos fundamentos mais constantes na literatura, como na arte em geral,
é a ruptura com o senso comum. Ora, se a literatura é um procedimento artístico,
ela tem que ser elaborada com toda uma criatividade capaz de se distinguir do
que já se conhece. Se o texto literário se limitar a reproduzir o que já existe e já
se conhece, qual o tipo de contribuição que ele estará dando ao conhecimento?
Além disso, como já evidenciamos no início, a arte tem que despertar as pessoas
para uma nova percepção das coisas, que não seja meramente o que já se sabe na
experiência vulgar. Veja você esse verso de Augusto dos Anjos:
22
A podridão me serve de Evangelho.
Em que é que esse verso pode contribuir para que você tenha uma
percepção diferente dos conteúdos que ele transmite? Em primeiro lugar,
vivemos numa civilização ocidental, judaico-cristã, que historicamente teve
muita inßuência do poder da Igreja católica. Por tal inßuência, aprendemos
que o Evangelho é uma palavra que signiÞca “boa nova”, “boa notícia”, que é
a notícia de salvação proporcionada por Cristo. A salvação foi pregada ao longo
dos séculos como a maior esperança em que a humanidade deveria acreditar.
Nossa formação religiosa, que implica outros valores éticos, até hoje dissemina
tais idéias: a salvação é o que garante a vida eterna, o descanso perpétuo com
Deus, longe de todos os tormentos da história. No verso de Augusto dos Anjos,
entretanto, toda essa pregação religiosa sofre uma transformação radical.
Ele inverte radicalmente o sentido original de Evangelho. Segundo o verso,
o Evangelho não contém nada de puro e magnânimo, mas de podridão. O
sentido de decomposição, inerente ao de podridão, é o extremo oposto de uma
eternidade feliz e guardada por Deus. Independentemente dos valores religiosos
do autor (pois essa questão biográÞca não interessa aqui), pode-se deduzir do
verso que ele se afasta do sentido milenar da Bíblia e, portanto, do sendo comum
que se formou no Ocidente desde a disseminação do cristianismo. Nesse sentido,
a podridão é sinônimo de boa nova, como se, ironicamente, a salvação fosse a
decomposição, que é rigorosamente sinônimo da morte. Esse verso, de fato, não
quer transmitir nenhuma esperança, nenhuma sensação de otimismo em relação
ao futuro. O futuro, para ele, já está preÞgurado na podridão. Observe como o
verso se apropria de outro sentido da Bíblia (a previsão, a projeção antecipada
do futuro, no caso a certeza de um futuro Þrme e garantido ao lado de Deus)
para desmanchar, desÞgurar, desconstruir. Esse procedimento de desconstrução
é próprio da literatura para que ela deliberadamente se afaste do senso comum e
gere novos signiÞcados, novos sentidos, mesmo que seja em torno do que é mais
conhecido e aceito convencionalmente. Assim, o destaque de Augusto dos Anjos à
arte e à reßexão, nesse verso, é acrescentar à tradição de valores religiosos e éticos
uma leitura que comumente não se faz dos chamados símbolos sagrados. Nessa
medida, Augusto dos Anjos procede à dessacralização do convencional. Vejamos
agora o verso em um contexto mais amplo:
A podridão me serve de Evangelho.
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques,
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Na continuidade da leitura, vamos percebendo que o grau de ruptura com
o senso comum aumenta. Por exemplo, a voz poética (eu-lírico) aÞrma que ama
o esterco. Ora, esterco é excremento, sentido que se estende às fezes e ao que
é rejeitado pela cultura como algo nojento, desprezível, horroroso, que causa
repugnância. Mas, ao contrário dessa sensação negativa, repugnante, o eu-lírico
aÞrma uma aproximação afetiva com os excrementos, “os resíduos ruins dos
quiosques”. Nesse verso também se nota que a lógica do senso comum é abalada
com muita veemência. Os dois últimos versos também reforçam isso. Eles já não
23
revelam nenhuma crença em valores religiosos do cristianismo, como, por exemplo,
a Criação divina do homem. Ao contrário: enfatiza-se que existe um parentesco
muito próximo entre o ser humano e “o animal inferior que urra nos bosques”,
colocados no poema como irmãos. Existe aí muito mais uma propensão a ver o
homem como um animal tosco, bruto, de natureza selvagem, do que uma criatura
de origem divina. É nesse sentido que o texto de Augusto dos Anjos merece o
estatuto de literatura, por conter esse fundamento de negação do que é mais
corrente na cultura e por utilizar determinados meios poéticos, como os versos
decassílabos e as rimas, para atingir o objetivo de estabelecer novos sentidos.
Lembremos agora de uma música de Roberto Carlos que tem um valor
religioso muito forte: “Jesus Cristo”. Essa canção, datada dos anos 70, abre-se com
a seguinte aÞrmação:
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.
Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.
Como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai.
Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai.
Essa canção também apresenta rima e musicalidade. Mas ela é muito pobre
do ponto de vista do signiÞcado. Ela não é capaz de criar um sentido novo para
nada. Limita-se ao que já se sabe ou se acredita. Ela não consegue ultrapassar o
senso comum. Vejamos bem: olhar para o céu e ver nuvem branca, isso é o óbvio!
A nuvem branca “vai passando”, está em movimento, o que também é o óbvio.
As demais linhas também não acrescentam nada que mereça o reconhecimento
de arte, pois não tem criatividade necessária para se distinguir do que já se
convencionou há séculos. Por exemplo, se formos consultar o Evangelho de João,
veremos que Jesus aÞrma ser o caminho, a vida e a verdade, sendo o único meio
para se chegar a Deus. Independentemente de quem acredite nisso ou não, o
importante aqui é veriÞcar que Roberto Carlos apenas reproduz um sentido já
muito utilizado em nossa cultura. Portanto, comparando Augusto dos Anjos
com Roberto Carlos, observamos uma grande diferença entre os dois no que diz
respeito à criatividade artística.
ATENÇÃO: A grandeza poética de Augusto dos Anjos não está no fato de ele
romper com uma crença religiosa. Não é isso, pense bem! O que importa para
a teoria da literatura é veriÞcar a existência de ruptura com o senso comum, o
que pode ser observado em relação a quaisquer valores culturais, não apenas
os religiosos.
REFLITA: Roberto Carlos é pobre não por estar apresentando uma crença
religiosa na salvação, mas por fazer isso de uma forma muito simplória, que
não atinge qualquer qualidade poética. É a linguagem dele que não satisfaz às
exigências da arte.
AGORA É SUA VEZ: Quando você escutar alguma música dessas bandas
de “forró” que estão na moda, procure veriÞcar a qualidade da linguagem
utilizada. Você vai observar se a combinação das palavras gera algum
signiÞcado novo ou se elas apenas reproduzem o senso comum.
24
Um dos objetivos dessa comparação sugerida acima é levar você a observar,
com maior consciência crítica, o que você ouve, lê e vê no dia-a-dia. Só assim
você será capaz de distinguir mais as coisas e não achar que tudo tem o mesmo
valor. A criatividade artística não está presente em tudo. A Þnalidade desse
curso é aprimorar a sua capacidade crítica diante dos fatos e das coisas mais
correntes da existência.
1.1.2 A Ilogicidade Conceitual
Ilogicidade signiÞca falta de lógica. Se eu digo que dois mais dois são
quatro, isso é perfeitamente conceitual. Mas, se eu digo que dois mais dois
são cinco ou zero, já estou me afastando do que é considerado lógico. A lógica
é fundamental para os conceitos, para a ÞlosoÞa, para a ciência, para a técnica,
não para a arte. A arte tem que desenvolver uma lógica própria, um sentido
que seja exclusivamente seu, sem se reduzir à forma de nenhum outro tipo de
conhecimento. Veja, por exemplo, a seguinte frase:
O Brasil é o maior país da América Latina e seus recursos naturais são dos
mais variados do planeta.
Essa frase é inteiramente lógica. Tudo o que ela diz pode ser comprovado
na prática. De fato, o Brasil possui o maior território da América Latina, a qual
se estende do México à Argentina. Os recursos naturais do Brasil também já
foram muito estudados pela ciência e são, de fato, dos mais privilegiados de
todo o mundo. Essa frase, portanto, tem um valor conceitual que merece crédito.
Vejamos agora o seguinte verso, do poeta paraibano André Ricardo:
O vôo é o alicerce do pássaro.
Esse verso é uma realização literária exatamente por não conter nenhuma
lógica e, com isso, se distanciar do senso comum. O vôo é um fenômeno que
só pode ocorrer numa certa altura, em sentido ascendente, o que é totalmente
incompatível com alicerce. Ainda mais, o pássaro é leve, consegue desaÞar a
força da gravidade, o que não aconteceria se ele carregasse em sua base (em
suas patas) um alicerce de verdade. O alicerce, tal como se conhece na cultura,
é uma base de concreto, pedra, ferro, areia, de material bruto e pesado. Nada
disso pode servir de alicerce para um pássaro voar. Além disso, o alicerce, por
seu peso e por servir de base a construções, é algo próprio do solo, do subsolo,
em sentido descendente, o que contraria o sentido do vôo do pássaro. Um leitor
menos preparado vai dizer, reproduzindo o senso comum, que esse verso de
André Ricardo não tem lógica e por isso não tem valor. Ora, o que a teoria
literária diz é exatamente o contrário: a pertinência dele está na impertinência,
na incoerência, na ausência de lógica. Se o eu-lírico aÞrmasse “O pássaro voa
no céu”, não teria nenhum valor literário exatamente por ser o óbvio. Observe
como a falta de lógica é essencial à criação de novos signiÞcados. É o que pode
ser observado nesse quarteto de Augusto dos Anjos a respeito da vida e da
inteligência:
25
A vida vem do éter que se condensa.
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa!
É impossível comprovar na prática que a vida é um fenômeno formado
do éter condensado. Isso é uma imagem poética que não condiz com a realidade
palpável. Também é impossível explicar, por conceitos lógicos, o que é uma
expressão como “esfera microscópica do plasma” e como ela gera o pensamento
humano. Do ponto de vista cientíÞco e conceitual, isso tudo aÞrmado no quarteto
acima carece de valor. Do ponto de vista da arte, o seu valor reside exatamente
na impossibilidade de ser detectado na prática. Essa mesma impertinência pode
ser veriÞcada nos versos seguintes, do poema “Noturno”, da autoria de Sérgio de
Castro Pinto:
Nas fronhas da infância
ensaquei meus sonhos.
Hoje, ensaco pesadelos.
E a cada noite, mais que a cabeça,
pesa-me o travesseiro.
Observe que a inversão de sentidos é tão grande, que o eu-lírico acaba
concluindo que o travesseiro pesa mais do que a cabeça. Tal conclusão só tem
coerência dentro do poema, que mostra a angústia de quem passa de uma infância
feliz para uma vida adulta de experiências negativas. Fora do texto, entretanto,
essa combinação de palavras não tem o menor sentido. Daí a tendência do senso
comum de reprovar esse tipo de procedimento, na medida em que a arte não
apenas se destaca por uma diferença proposital, como também exige esforço de
raciocínio para a compreensão dessa diferença.
Convém falar um pouco da diferença entre literatura e realidade em relação
ao valor das coisas e dos fatos. Na nossa realidade cotidiana, sabemos que existem
determinadas coisas que são bem mais importantes do que outras. O mesmo se dá
quando avaliamos os fatos do ponto de vista histórico. Por exemplo, aquele roubo
fabuloso que ocorreu na agência do Banco Central, em Fortaleza, por debaixo do
chão, é um fato muito mais importante para um historiador ou um jornalista do
que umas cigarras que estejam cantando numa tarde. Qual o jornalista que iria
se interessar por umas cigarras? O interesse pelo roubo é inÞnitamente maior.
Assim, há uma hierarquia muito rígida entre os fatos reais. Mas o aluno tem que
entender que nas artes essa hierarquia se desfaz. Eu poderia criar um poema
sobre o roubo ao Banco Central e o texto não ter qualidade literária. Da mesma
forma, eu poderia criar um poema sobre o canto das cigarras e, a depender da
combinação das palavras e das imagens, resultar em um texto apreciável. É o que
se observa nesse poema de Sérgio de Castro Pinto:
26
as cigarras
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
kipling recitam a plenos pulmões.
gargarejam
vidros
moídos.
o cristal dos verões.
ATENÇÃO: É importante você relacionar qualquer texto literário com outros e
também com fatos implicados em seu tema. É o que você deve fazer a partir de
agora, pois não existe nenhum texto que seja isolado da realidade ou de outros
textos.
PESQUISAR: No poema acima aparece o nome de um poeta britânico:
Kipling. Leia atentamente a informação a seguir, tirada da Internet, e procure
relacioná-la com o signiÞcado do texto:
Rudyard Kipling, autor britânico
Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, Índia, 30 de Dezembro
de 1865 - 18 de Janeiro de 1936) foi um autor e poeta britânico.
Em 1907 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.
Foi educado em Bideford, na Inglaterra. Em 1882 voltou à
Índia, onde trabalhou para jornais britânicos. Começou sua carreira
literária em 1886 e tornou-se conhecido como escritor de contos.
Foi o poeta do Império Britânico e seus soldados, que
retratou em vários contos, alguns deles reunidos no volume
Plain Tales from the Hills’, de 1888.
Em 1894 lançou O livro da selva, que se tornou internacionalmente um
clássico para crianças, também conhecido pelo seu personagem principal: o
pequeno Mowgli.
Muito conhecido também é um de seus poemas: “If” (Se), no qual um pai
dá conselhos a seu Þlho sobre como ser um homem de bem.
hĴp://pt.wikipedia.org/wiki/Rudyard_Kipling
REFLITA: Você compreenderá melhor o poema de Sérgio de Castro Pinto, “as
cigarras”, se ler o poema “Se”, de Kipling, que vem logo abaixo:
27
SE
Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.
Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.
Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.
De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.
Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu Þlho!
Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida
OBJETIVO: Um dos principais objetivos da literatura é levar você a conhecer
um mundo mais amplo. Assim, depois dos poemas de Sérgio de Castro Pinto e
de Kipling, você chegará a outros textos de tema aproximado, como o de José
Paulo Paes, que você verá a seguir.
28
Kipling revisitado
Se etc,
se etc,
se etc,
Serás um teorema, meu Þlho.
AGORA É SUA VEZ: Você deve fazer uma pesquisa de imediato: ir a algum
livro de poesia e destacar um verso (ou uma estrofe) que lhe pareça muito
estranha, fora de compreensão, deslocado do senso comum. Transcreva o
verso (ou a estrofe) para as linhas abaixo e procure argumentar com as pessoas
(amigos, alunos, familiares) o que é que o texto tem de diferente, que não se
encaixa na lógica comum.
1.1.3. A Combinação das palavras
Como você já deve ter percebido, a ruptura com o senso comum e a
ilogicidade conceitual só são alcançadas com uma combinação de palavras
muito singular. Esse terceiro fundamento do texto literário, portanto, já pode
ser detectado nos dois anteriores, na medida em que são inseparáveis. Mas é
preciso chamar a atenção para esse aspecto: a forma como as palavras são
dispostas e se relacionam no texto é o que determina a sua condição artística.
Aristóteles, um pensador grego da Antiguidade, já havia notado isso nos
seguintes termos:
a)
b)
c)
O historiador tem um limite: os fatos históricos;
O Þlósofo tem um limite: os conceitos;
O poeta não tem nenhum limite: é mais universal que o Þlósofo e o
historiador.
O que signiÞca, propriamente, essa distinção feita por Aristóteles? Para
ele, o historiador, em seu trabalho de registrar e interpretar a história, não
pode fugir do que os fatos históricos impõem; o Þlósofo também tem que
seguir toda uma linha de raciocínio lógico que o pensamento sistemático
da ÞlosoÞa impõe; já o poeta (nome generalizado, na época, para o que
hoje chamamos de escritor) é muito mais universal e livre por não ter que
se submeter a nada disso. Assim, cabe ao artista usufruir dessa liberdade
imaginativa e criar as combinações de palavras mais estranhas, que levem as
pessoas a pensar de uma forma diferente dos ensinamentos históricos e das
premissas conceituais. Vejamos nesses versos de Zé Ramalho como essa teoria
de Aristóteles até hoje se mantém:
Meu treponema não é pálido nem viscoso
Os meus gametas se agrupam no meu som.
29
No primeiro verso, Zé Ramalho cria uma voz que faz um jogo de
palavras com o termo “treponema”. Treponema é o micróbio que transmite
a síÞlis, chamado cientiÞcamente de treponema pallidum. O verso aproveita
o sentido cientíÞco de “pálido” para lhe atribuir um outro sentido, ao lado
do adjetivo “Viscoso”. Em seguida, o jogo de palavras, que gira em torno de
relações sexuais e doenças sexualmente transmissíveis, estabelece um outro
campo de reßexão, um outro universo de valores, na medida em que tudo
passa a ser desÞgurado por uma meditação em torno da própria música.
Assim, os “gametas”, que são espermatozóides responsáveis pela reprodução
humana, se agrupam não no óvulo, que é o seu receptáculo natural, mas
no “meu som”. Você percebe, portanto, que a combinação de um campo
semântico com outro cria um choque de sentidos que não é comum na
linguagem cotidiana. Observe o efeito semântico desse verso de Augusto dos
Anjos:
A Consciência Humana é este morcego!
Ora, qualquer dicionário (comum ou especíÞco, como os de psicologia)
deÞne a consciência como uma faculdade humana, uma parte especial
do cérebro, uma capacidade humana apropriada para a reßexão e o
entendimento. Jamais, porém, um dicionário ou um livro cientíÞco vai dizer
que a consciência é um morcego. O que você pode detectar nesse verso?
Como o eu-lírico de Augusto dos Anjos chegou a essa distorção notável de
sentido? Ora, estudando o verso com mais calma, você vai averiguar que a
consciência pertence a um campo semântico e o morcego pertence a outro
campo semântico. São dois campos semânticos totalmente diferentes,
díspares, incompatíveis, mas que se encontram com toda pertinência na
lógica interna do poema. Na verdade, o célebre soneto “O morcego” não trata
propriamente de morcego, mas das turbulências da consciência humana, da
culpa, do remorso, da sensação que se tem de estar sempre sendo vigiado por
si mesmo. Nessa medida, a comparação Þnal entre a perturbação do morcego,
que interfere no seu quarto e tira sua privacidade, e a imagem da consciência
revela-se estritamente lógica na arte poética, mas sem o menor sentido fora da
expressão artística.
É preciso acrescentar, a essa altura, a seguinte informação: não existe
nenhuma regra definida para a literatura ou para qualquer arte. O texto
literário pode atingir a condição de arte pelos meios mais imprevisíveis.
Por exemplo, há textos que exploram muito as repetições, os exageros, os
excessos de detalhes, as aproximações fonéticas entre palavras de sentidos
distantes, entre outros recursos. Tais recursos são reconhecidos como
artísticos na medida em que não são utilizados na comunicação comum. Eles
oferecem um destaque em termos de criatividade, refutando o uso comum
e previsível da linguagem. Observe, por exemplo, os grifos dessa canção de
Chico Buarque,:
30
Basta um dia
Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia
Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
Só um
Santo dia
Pois se beija, se maltrata
Se come e se mata
Se arremata, se acata e se trata
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só o que eu pedia, viu
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
É notória a presença da repetição nessa letra, o que constitui um elemento
relevante na composição. Além disso, a seqüência de verbos procura enfatizar
aquilo que se pode praticar em um único dia. Observe que maior parte da
seqüência é formada por verbos que denunciam a violência que impera na
sociedade. Em termos de condição poética, um dos destaques revelados pela
seqüência é que os verbos não seguem rigorosamente uma linha reta e lógica.
Ou seja: a seqüência poderia ser alterada, sem afetar a signiÞcação do texto.
31
Ao contrário do raciocínio lógico, que tem que ter uma seqüência rígida, a voz
poética criada por Chico Buarque tem a liberdade de dispor os verbos à sua
vontade. A posição das palavras poderia ser trocada, o que não acontece num
enunciado lógico que apresenta causa e efeito.
Esse mesmo procedimento poético aparece na seguinte canção “O índio”,
de Caetano Veloso. Veja esses trechos:
Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América,
Num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas
Das tecnologias
(...)
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em
som magníÞco (...)
A temática dessa letra é uma notável utopia: o retorno de um índio,
plenamente restaurado, depois de séculos de extermínio que o avanço do
capitalismo provocou. Detendo-se, por enquanto, nas partes grifadas, observe
que ninguém fala dessa forma nos diálogos diários. A seqüência de substantivos
também é incomum e sem ordem previa estabelecida, uma vez que suas posições
poderiam ser alternadas. É essa liberdade artística que o texto poético apresenta
como uma das rupturas necessárias com o que é convencional.
PESQUISAR: Essa letra de Caetano Veloso faz referência a quatro nomes
importantes: Mohamed Ali, Peri, Bruce Lee e Gandhi. Faça uma pesquisa na
Internet sobre eles, para você ampliar os seus conhecimentos em história e
literatura.
Observe agora, com muita calma, essa letra aparentemente irracional de Zé
Ramalho:
Oh eu não sei se eram os antigos que diziam
Em seus papiros Papillon já me dizia
Que nas torturas toda carne se trai
E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente
O nervo se contrai
Com precisão
Nos aviões que vomitavam pára-quedas
Nas casamatas, casas vivas, caso morras,
E nos delírios meus grilos temer
O casamento, rompimento, sacramento, documento, como um passatempo
32
Quero mais te ver
Com aßição
Meu treponema não é pálido nem viscoso
Os meus gametas se agrupam no meu som
E as querubinas meninas rever
O compromisso, submisso, reboliço, no cortiço, chama o Padre Ciço para
benzer
Com devoção
Todas as seqüências grifadas revelam excessos de palavras que poderiam
ser evitadas, uma vez que é impossível manter uma comunicação desse tipo, no
imediatismo do cotidiano. Mas é pela insistência no excesso que a letra atinge
o objetivo de uma linguagem estética. Note um recurso parecido, aproximando
palavras pela semelhança sonora, no seguinte soneto satírico de Gregório de
Matos:
Neste mundo é mais rico o que mais rapa.
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa.
Com sua língua ao nobre o vil decepa.
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa.
Quem tem mãos de agarrar, ligeiro trepa.
Quem menos falar pode, mais increpa.
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A ßor baixa se inculca por tulipa.
Bengala hoje na mão, ontem garlopa.
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Esse poema satírico faz uma crítica a Þguras do nosso período colonial,
estendendo-se daquele que fala da vida alheia à autoridade do Papa. No Þnal,
observe que o eu-lírico procede a um esvaziamento de sentido, pois a última
seqüência nem sequer é formada por palavras. Será que você iria se comunicar
com as pessoas através de seqüências sonoras sem sentido?
PESQUISAR: Esse poema de Gregório de Matos tem um vocabulário muito
complexo. Destaque todas as palavras que você não conhece e vá procurar o
sentido delas no dicionário. Assim, mais uma vez, você estará investindo em
seu patrimônio intelectual.
33
Como último exemplo dessas combinações tão diferentes de palavras,
gostaria de lhe apresentar um trecho do conto “A hora e vez de Augusto
Matraga”, de Guimarães Rosa. O conto retrata a vida de um homem que, por
várias maldades cometidas, é vítima de uma vingança: uma surra violentíssima
que ele sofre de vários homens. Depois de anos de recuperação física, Augusto
Matraga se muda para um lugar onde ele não quer ser mais reconhecido, o
vilarejo do Tombador. Um dia, o vilarejo é inesperadamente visitado por um
jagunço muito temido: Joãozinho Bem-Bem. Veja agora como o narrador descreve
o jagunço:
(...) o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fechatreta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: seu
Joãozinho Bem-Bem.
Obviamente, você sabe que não é necessário descrever o perÞl de uma
pessoa com nove qualiÞcações, ainda mais com palavras compostas, o que
seria muito difícil de pronunciar e seqüenciar na linguagem comum. O mais
interessante desse trecho de Guimarães Rosa é a possibilidade de atingir a
qualidade artístico utilizando palavras comuns, pois todos esses epítetos são
clichês da linguagem sertaneja, da gíria popular. A diferença está no excesso do
uso dessas expressões.
AGORA É SUA VEZ: Você está convidado a ler um texto muito especial: “A
hora e vez de Augusto Matraga”. Ele faz parte do livro Sagarana, de Guimarães
Rosa, e é um dos contos mais perfeitos que eu já li em toda a minha formação.
Quer tentar? Garanto que você não vai se arrepender.
Com esses exemplos riquíssimos das combinações poéticas, concluímos
essa primeira unidade.Resumindo: os três fundamentos da literatura que aqui
apresentamos são intrinsicamente ligados, não podendo ser separados. A ruptura
com o senso comum gera expressões ilógicas; as expressões ilógicas, fora dos
padrões da linguagem convencional, são reveladas por combinações de palavras
que causam estranheza nas pessoas. Aquele que tem gosto por arte e literatura
deve amadurecer no sentido de identiÞcar esses três fundamentos em determinado
texto, com o intuito de averiguar se ele pertence à arte literária ou não.
REFLITA: Transcreva para si mesmo a letra de alguma canção desses grupos de
“forró” que estão tanto na moda: Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Aviões do
Forró etc. Analise se pelo menos alguma frase tem um sentido diferente do senso
comum. Comente isso com seus amigos mais próximos, alunos e familiares.
34
ATENÇÃO: Leve essa tarefa a sério: procure ler qualquer livro de Paulo Coelho,
que é considerado um grande escritor da atualidade, e transcreva abaixo alguma
frase dele que tenha consistência artística. Ora... você acha que isso é possível?
PESQUISAR: Procure ler para alguns amigos um trecho de alguma obra de
Paulo Coelho e um soneto de Augusto dos Anjos. Em seguida, pergunte a eles
qual é o mais estranho e por quê.
AGORA É SUA VEZ: Vá direto ao Eu, de Augusto dos Anjos, e leia mais de
uma vez o poema “O morcego”. Em seguida, vá a um dicionário e procure
ver a deÞnição de “semântica”, para você entender o que é campo semântico e
combinação poética de palavras.
35
UNIDADE II
A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS
A teoria literária faz uma classiÞcação da literatura em três grandes gêneros:
a) o gênero épico (ou narrativo); b) o gênero lírico; c) e o gênero dramático. Cada
gênero tem sua própria conÞguração, suas características, suas particularidades.
Mas um determinado texto literário pode revelar características de mais de um
gênero, como veremos logo adiante. Vejamos, nesse momento, como se faz a
classiÞcação:
2.1 O Gênero Épico
O gênero épico (também chamado de narrativo) é caracterizado por
um conjunto de categorias, tais como: um narrador, um enredo, personagens,
tempo, espaço, entre outras. Segundo uma concepção tradicional, toda narrativa
é centrada em um enredo, ou seja, em alguma história Þctícia que é relatada ao
leitor. Aquele que conta a história é o narrador, responsável pela transmissão
dos conteúdos e pela escolha do ponto de vista. Os personagens são aqueles que
vivenciam a ação no tempo e no espaço. Observe o seguinte comentário sobre o
conto “Missa do galo”, de Machado de Assis:
Nogueira, jovem de dezessete anos, mora provisoriamente na casa de
Conceição, segunda mulher de Meneses. Este costuma dormir fora de casa
uma vez por semana, dizendo que vai ao teatro. Conceição Þca sabendo que
o marido tem outra mulher, mas se acostuma com a idéia. Ela, de trinta anos,
tem um temperamento moderado, sendo uma pessoa simpática. Numa noite
de Natal, o marido vai ao teatro e Nogueira Þca lendo em seu quarto Os três
mosqueteiros, enquanto aguarda a missa do galo. Às onze horas, Nogueira
encontra-se com Conceição na sala escura da casa. Conversam sobre sono e
paciência, romances lidos, assuntos simples. Achando que está aborrecendo
Conceição, Nogueira quer ir logo à missa, mas ela não deixa. Conceição levantase, anda pela sala e ele passa a ter uma impressão mais sensual dela. O que
passa a atrair Nogueira são os gestos sutis dela, despertando nele curiosidades
e desejos. Ela chama a atenção pelos detalhes do corpo, como as mãos, os olhos,
os dentes. Senta-se ao lado dele e ambos cochicham. A partir daí, não sente nela
apenas uma pessoa simpática, mas lindíssima. Ele quer se levantar, mas ela
não permite. Ela reclama dos quadros que tem em casa, que exibem mulheres;
preferiria ter quadros de santas. Ela fala a Nogueira de suas devoções de moça e
casos vividos na juventude. Depois Þcam calados por um tempo e, em seguida,
Nogueira é chamado lá fora por um amigo para a missa do galo. Na missa, ele
só pensa em Conceição. No outro dia a encontra natural, sem nada de especial
que lhe lembrasse as vésperas. Depois, não torna mais a vê-la.
Ora, quando você for fazer a leitura do conto, vai perceber que o principal
aspecto do texto é o clima de desejos mútuos que se cria entre os dois, sem que
nenhum dos dois parta para alguma ação concreta e comprometedora. Esta é
37
a grande tensão gerada pelo narrador e vivida pelos personagens. O fato de o
marido de Conceição ter uma mulher fora poderia servir de pretexto para ela ter
algum caso amoroso com o jovem estudante. E o que se espera durante toda a
leitura do conto é alguma forma de traição, pelo menos por alguns minutos. A
tensão aumenta na medida em que Conceição mais se aproxima de Nogueira e
estreita as relações de intimidade com ele. Mas nada de extraordinário acontece.
E a ida do jovem para a missa do galo é a conÞrmação das convenções, a vitória
da ordem moral e do comedimento, ao invés do proibido que se espera a todo
instante.
Machado de Assis, nesse conto, cria um enredo que gera uma expectativa
e a esvazia. A transgressão esperada não chega a ocorrer. Tudo acaba dentro
das atitudes mais aceitas pela moral social. O personagem Nogueira, por isso,
que é o narrador em primeira pessoa, transmite ao leitor uma certa sensação de
frustração.
Como se percebe, “Missa do galo” pertence ao gênero narrativo por
preencher as condições básicas dessa forma literária. Esse mesmo enredo,
entretanto, poderia ser passado ao leitor não através de um narrador, mas
em forma de teatro, onde os personagens iriam agir de forma autônoma, sem
necessidade de ninguém para relatar a história. A presença do narrador, portanto,
é uma diferença fundamental entre o gênero narrativo e os demais gêneros.
ATENÇÃO: Você precisa ler os principais contos de Machado de Assis
que estão indicados na bibliograÞa. Machado de Assis destaca-se como o
maior escritor brasileiro do século dezenove e um dos maiores de todos os
tempos. Portanto, a leitura dos textos dele é fundamental para a formação de
professores e alunos de Letras.
O OBJETIVO da literatura é criar novos sentidos pela arte, mas não levar as
pessoas a imitar aquilo que se lê.
REFLITA: O que você faria se estivesse na situação de Nogueira? Você
acha que a mulher traída tem o mesmo direito de trair o marido? Será que a
mensagem do conto é essa?
2.2 O Gênero Lírico
Um texto lírico é o que chamamos modernamente de poesia. Ele não
precisa ter nenhum narrador. Pode até ter um narrador e um enredo, mas não
necessariamente. Isso signiÞca que o gênero lírico apresenta outras características.
Ele se distingue por uma voz poética que é chamada de “eu-lírico”. Este não deve
ser confundido com o eu do autor, mas entendido como uma voz Þctícia que
emite sentimentos. A interioridade é o ponto distintivo do gênero lírico. Enquanto
38
o gênero épico (ou narrativo) tende a relatar acontecimentos, o gênero lírico tende
a manifestar o interior do ser humano. Trata-se da representação de sentimentos
como o amor, o medo, a morte, a paixão, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, entre
muitos. Assim, o eu-lírico pode até partir de algum fato histórico objetivo, mas o
que vai predominar na sua voz é o sentimento em torno desse fato. Por exemplo,
o Þnal da Segunda Guerra Mundial, em 1945, é marcado pelas explosões atômicas
sobre o Japão. Isso é um fato histórico concreto. Mas o poema abaixo, de Vinícius
de Moraes, não está bem interessado em relatar o fato histórico, tal como ocorreu
no Þnal do conßito. O principal objetivo dele é retratar a sensação de perdas
irremediáveis e os efeitos terríveis deixados pela irradiação nuclear. Leia com
bem calma o poema:
ROSA DE HIROXIMA
Pensem nas crianças
mudas telepáticas
pensem nas meninas
cegas inexatas
pensem nas mulheres
rotas alteradas
pensem nas feridas
como rosas cálidas
mas oh não se esqueçam
da rosa da rosa
da rosa de Hiroxima
a rosa hereditária
a rosa radioativa
estúpida e inválida
a rosa com cirrose
a anti-rosa atômica
sem cor sem perfume
sem rosa sem nada
Existem duas teorias básicas, com posições diferentes, a respeito da
condição do eu-lírico. Para a primeira teoria, o poema lírico é centrado em uma
voz individual que exprime toda uma visão de mundo muito particular. Para
a outra teoria, a voz do poema lírico não é jamais individual, mas produzida
socialmente. Portanto, conforme essa segunda teoria, o lirismo é a expressão de
sentimentos sociais, históricos, objetivos, por mais que eles assumam a aparência
de algo individual. Tomando como base esse texto de Vinícius de Moraes,
observamos que a preocupação do eu-lírico não é propriamente expressar o que
ele tem em si, de problema particular, mas um sofrimento humano que vai muito
além de qualquer indivíduo. Veja agora alguns fragmentos de Augusto dos Anjos,
para averiguar se essa teoria se conÞrma:
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava.
39
Mordia-me a obsessão má de que havia
Sob os meus pés, na terra em que pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia.
Como se pode perceber, as duas teorias podem ser aproveitadas no
seguinte sentido: a visão individual de mundo existe, prepondera no texto lírico,
mas os seus valores são objetivos, ou seja, não escapam às imposições da história
e das questões sociais. Essa contradição ocorre com qualquer texto lírico, pois a
expressão individual também tem toda uma conotação social que não pode ser
desprezada.
PESQUISAR: Você tem duas tarefas urgentes: a) Ler sobre o contexto da
Segunda Guerra Mundial, especialmente sobre Hiroxima, para entender
melhor as conseqüências da explosão atômica reveladas no poema de Vinícuis
de Moraes; b) IdentiÞcar no mesmo poema o signiÞcado da expressão “antirosa atômica”.
REFLITA: Por que Vinícius de Moraes não coloca nenhuma data no seu
poema? Em que aspecto isso corresponde à natureza do gênero lírico?
Leia (sempre com calma) esses quartetos de Mário Quintana:
DA REALIDADE
O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que ‘a saudade da amada criatura’
É bem melhor do que a presença dela...
DA AMIZADE ENTRE MULHERES
Dizem-se amigas... Beijam-se... Ms qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
For muito velha, ou muito feia...
DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA
Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...
40
DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Mário Quintana Þcou conhecido como “Poeta das coisas simples”. Essa
alcunha se deve à predominância de temas triviais e de uma linguagem poética
sem rebuscamento. Tal acessibilidade, conhecida como transparência semântica,
conÞrma-se em quase todos os seus textos líricos. Como você deve já ter
precebido, vários versos apresentam um tom de crítica e deboche à hipocrisia
humana; outros criticam a pretensão de originalidade intelectual; e todos
combinam elementos clássicos (rimas, decassílabos, ritmo) com a concisão da
poesia modernista, que prima muito por textos curtos. Mas, independentemente
de o poema ser longo ou conciso, o que o insere no gênero lírico é a representação
simbólica de sentimentos, sejam eles de origem pessoal ou social.
AGORA É SUA VEZ: Esses quartetos se encontram no livro Os melhores
poemas de Mário Quintana. É um livro com poemas curtos e vários deles são
irônicos e cômicos. Você precisa conhecer esse poeta desde já, como na leitura
atenta do soneto abaixo:
Menininho doente
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
Ouve também o carpinteiro em frente
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...
Mas nesta rua há um operário triste.
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...”
A leitura do poema autoriza a interpretação de que o tema subjetivo
da solidão infantil é a reßexão central do eu-lírico. A solidão não afeta
exclusivamente a criança, uma vez que os adultos trabalham e não dispõem de
tempo para a meditação sobre suas condições subjetivas e existenciais. O texto
pode provocar uma discussão a respeito de uma grande divisão de trabalho
41
no mundo capitalista: a desproporção entre a produção material e a produção
de bens simbólicos. O operário citado nos tercetos tem apenas uma conotação
simbólica, uma vez que se trata do próprio eu-lírico ou da representação de um
poeta, o que exclui o sentido denotativo do trabalhador inserido na produção
em série. Com isso, você está abrindo um novo campo de reßexões sobre a sua
própria vida, na condição de aluno ou de professor.
REFLITA: Um dos quartetos de Mário Quintana tem por título “Das utopias”.
Você já pensou para reßetir o signiÞcado de uma utopia? Se já, o que
signiÞcaria, no mundo atual, o conceito de utopia? O que seria, para você, um
pensamento utópico?
Os poemas de Mário Quintana revelam frases sarcásticas. momentos
de nostalgia, sem padrão rígido e modelar. A trivialidade temática não exclui
temas tão importantes no mundo moderno como a solidão pessoal e, sobretudo,
a solidão social nas cidades grandes, onde milhões de pessoas são renegadas,
têm uma vida muito expolorada e têm constantemente um sentimento de
insigniÞcância. Além disso, Mário Quintana tem um estilo heterogêneo que
contempla versos em branco e, como vimos, também decassílabos clássicos. Sua
poética, portanto, é fascinante por ser múltipla, abrangendo várias formas, como
a produção de sonetos e poemas curtos com versos de feição modernista. Ele
procura combinar o mais tradicional com o mais moderno, o que resulta em uma
mistura muito singular de traços românticos, como a nostalgia e a solidão, com
temas mais cruciais do século vinte, como a violência das metrópoles.
2.3 O Gênero Dramático
O gênero dramático é aquele feito para ser encenado no teatro. A palavra
“dramático” provém de “drama”, que signiÞca “ação”. Assim, o sentido desse
gênero é fundamentado na ação direta do personagem, que não requer nenhum
narrador para o relato. Outro fundamento do texto dramático são os diálogos
entre os personagens, como nessa passagem do Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna:
João Grilo – (...) Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava
me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que
ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem,
nem os anjos que estão no céu, sem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está
escrito lá assim mesmo?
Manuel – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo
trinta e dois.
João Grilo – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
Manuel – Sou não, João, sou católico.
João Grilo – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que
entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção,
42
minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao
mundo?
Manuel – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém
entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque
você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai.
Veja que o diálogo entre João Grilo e Jesus não precisa ser apresentado
por um narrador. É como se os dois estivessem no palco e falassem diretamente
um ao outro, sem ninguém para mediar as suas ações. Mas Ariano Suassuna
cria, além dos personagens propriamente do enredo, a Þgura do Palhaço, que
desempenha várias funções artísticas, entre elas a de intervir nas cenas para as
devidas mudanças de cenário e continuidade dos acontecimentos. Observe as
passagens que destacamos abaixo, todas pertencentes à fala do Palhaço:
I–
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.
II – A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da
misericórdia. Auto da Compadecida!
III – Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja,
o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais
do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de
solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo,
baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo
sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades.
Pode-se concluir que as duas primeiras passagens fazem anúncio antecipado
do enredo e a terceira é uma reßexão sobre o mundanismo da Igreja. Elas oscilam
entre a gravidade do pecado, a severidade da punição divina e a vitória Þnal da
misericórdia sobre o mal. Apenas a terceira diz respeito à autoria da peça, cuja
temática, de inßuência erudita, é baseada no espírito da cultura popular.
Veja agora um comentário sobre a peça O pagador de promessas, de Dias
Gomes, para você veriÞcar os traços do gênero dramático. O enredo que você
vai conhecer agora poderia lhe chegar através de um texto narrativo, ou seja, de
um texto que apresentasse uma voz contando a história. No entanto, todas as
informações que você vai ler chegam, originalmente, através das ações diretas
dos personagens. Preste atenção ao seguinte relato:
Zé do Burro, um homem simples de uma cidade pequena da grande Salvador,
faz uma promessa e quer pagá-la com uma cruz a ser depositada na Igreja de
Santa Bárbara, na capital da Bahia. Anda quarenta e dois quilômetros com a
esposa, Rosa, para essa tarefa. Rosa não agüenta passar a madrugada na porta
da Igreja e é atraída por Bonitão, um explorador de mulheres, para um “hotel”.
Quando a Igreja se abre pela manhã, o Padre Olavo se opõe a Zé do Burro e não
permite que ele entre carregando a cruz. A essa altura, Rosa já tem traído Zé
do Burro com Bonitão. Zé do Burro, ao saber da traição, entra em conßito com
a esposa, prometendo-lhe um ajuste em casa, mas não se desfaz da promessa.
Bonitão arranja motivos para chamar a polícia para o local. Várias pessoas,
43
de grupos sociais diferentes, vão chegando para o local. Num conßito que se
desencadeia, Zé do Burro é assassinado pela polícia, amarrado na cruz por uns
lutadores de capoeira e colocado no altar de Santa Bárbara, à semelhança de
Cristo.
Ora, o conjunto de fatos aí citados constitui o enredo da peça. Mas este
enredo é desenvolvido em ação concreta, sem narrador. Portanto, a diferença
entre o texto dramático e o narrativo não é o enredo, mas a predominância
quase absoluta dos diálogos. São os diálogos que encaminham a retratação
da intransigência da Igreja, representada pelo Padre Olavo, que não defende
o diálogo da Igreja com as tradições afroculturais. Zé do Burro representa a
mentalidade arcaica de religiosos cristãos à margem da Igreja, o que Þca
patente na ingenuidade dele. Há um conßito entre o ecletismo religioso e a
ortodoxia católica, o que não resulta em entendimento harmônico. Nesse
sentido, os diálogos são importantíssimos para acentuar o desentendimento
entre o Padre e Zé do Burro. Um jornalista também tenta se aproveitar da
situação para fazer matéria sensacionalista. Assim, a presença da imprensa,
que capitaliza o acontecimento como um “furo” jornalístico a serviço da
informação transparente da verdade, é pura mentira. A presença de tipos
populares da Bahia como prostitutas, poetas cordelistas, negras do acarajé,
lutadores de capoeira, oferece um panorama da situação social de Salvador.
Mas jamais teríamos esse quadro social, na peça, se não fossem os diálogos
entre os personagens mais variados. A intenção política de Dias Gomes não é
atacar apenas a Igreja católica, mas vários segmentos sociais que são ßagrados
em torno da questão de Zé do Burro. Essa estratégia artística corresponde à
ausência de maniqueísmo, superando a visão ingênua da relação entre o bem
e o mal. Podemos interpretar a ação de Zé do Burro como um ato simbólico
de sacrifício humano, uma vez que há perda de vida em função de ideais
religiosos. O percurso sacriÞcial dele é muito relevante na simbologia do texto,
uma vez que seu deslocamento com a cruz nas costas lembra uma passagem
fundamental dos ensinamentos evangélicos. Para o padre, entretanto, o que
Zé do Burro faz é heresia, pois a visão oÞcial da Igreja é a única que deve
valer. Dias Gomes consegue congregar na peça tendências as mais diversas,
como elementos trágicos misturados a elementos cômicos, elaboração erudita
e cultura popular, linguagem coloquial e linguagem formal, facilidade
de assimilação e simbologia complexa. Zé do Burro é vítima de falsas
interpretações ao longo do enredo, o que convém às necessidades de cada
acusador. Esse processo de criação de estereótipos Þca evidente na passagem
em que o jornalista o chama de “revolucionário”, homem que luta contra o
capitalismo, baseado nas idéias do socialismo. Dedé Cospe-Rima, o cordelista,
vê em Zé do Burro um representante ideal da cultura popular, um herói
adequado para o seu cordel, que se baseia em fontes recolhidas nas ruas. O
Padre, ao saber que Zé do Burro benzera sua cruz em um terreiro, considera
isso uma profanação inadmissível pela consciência católica centrada em Cristo
e nos santos canonizados pela Igreja, daí sua rejeição a Iansã. Os lutadores
de capoeira defendem Zé do Burro por causa de sua simpatia à fé popular
mais ingênua e eclética, Þcando a favor das práticas religiosas dos terreiros
de Salvador. Rosa vê em seu marido um intransigente, sendo este o principal
motivo de aceitar as ofertas de Bonitão, sem perceber que vai ser prostituída.
44
Mas... é bom reßetir mais uma vez... Por que essa peça de Dias Gomes
pertence ao gênero dramático e não narrativo? Isso se dá por causa da sua
estrutura dialogal. Todo o conßito entre o protagonista e o mundo externo
chega ao leitor pelos atos dos personagens. A intolerância entre Zé do Burro
e Padre Olavo é um recurso dramático que concorre para o efeito de aumento
das tensões do enredo, o que cresce na medida em que Zé do Burro não desiste
de sua promessa e o Padre Olavo também não abre mão de suas convicções
religiosas. Antes do desfecho, vão ocorrendo uns fatos que aumentam a tensão
da peça. Por exemplo, o “secreta”, um espião a serviço da polícia, intervém no
conßito em frente à Igreja para prejudicar Zé do Burro. Bonitão manipula o
“secreta” para causar tumultos e justiÞcar a prisão do camponês. O jornalista
caracteriza o pagador de promessas como a favor da reforma agrária. O Padre
Olavo não procede a nenhuma reßexão crítica de seus procedimentos. E alguns
tipos populares têm simpatia pela causa de Zé do Burro, Þcando contra o Padre
e contra a polícia. No Þnal, o desfecho da peça pode ser compreendido como
um martírio típico do cristianismo primitivo, mas não é reconhecido pelas
autoridades clericais. Fica clara a utilização da tirania – abuso de poder – pela
polícia, quando age contra as classes sociais mais simples. Há, no Þnal de tudo,
uma aliança sutil entre o Estado e a Igreja para aniquilarem inimigos comuns,
considerados perturbadores da ordem estabelecida.
PESQUISAR: Você deve consultar no dicionário o signiÞcado de todas as
palavras grifadas acima, para aperfeiçoar seu vocabulário.
Veja agora essa cena muito especial do Auto da Compadecida, para entender
melhor o gênero dramático. Após a procissão e a missa em latim para o enterro
do cachorro, o Palhaço faz a seguinte intervenção:
Palhaço – Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas
neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra ‘em latim’, imaginemos
o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba
de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está
inspecionando a sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em
primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, aÞnal de contas,
representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e
transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um
homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, o que
já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge.
De modo que lá vem o bispo. Peço todo silêncio e respeito do auditório, porque
a grande Þgura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador
e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja,
prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.
Esta longa fala pode ser interpretada de várias formas. Por exemplo, o
Palhaço exerce o papel de um narrador camußado, uma vez que o texto dramático
não tem propriamente narrador e é ele que preenche essa lacuna nos momentos de
45
apresentação, mudança e encaminhamento das cenas. As informações veiculadas
pelo Palhaço contribuem para um efeito fundamental da estrutura do gênero
dramático: a economia de meios. O Palhaço emite juízo, ainda que breve, sobre as
contradições da vida social do bispo, submetido a obrigações sacerdotais que visam à
autoconservação da Igreja e ao mesmo tempo agindo dentro de conveniências diante
do poder econômico da região. O Palhaço comporta-se de forma humilde diante
da passagem do bispo, o que não deixa de ter ressonâncias irônicas. O Palhaço tem
participação ativa no conteúdo do texto e na apreciação crítica da realidade.
Você deve se lembrar que no Auto da Compadecida ocorre um julgamento
para saber se as pessoas vão para o inferno, para o purgatório ou diretamente
para o céu. Na cena que precede o julgamento, ocorrem os assassinatos do
Bispo, do Padre, do Sacristão, do Padeiro e a Mulher, de Severino de Aracaju, do
Cangaceiro e de João Grilo. Sucede, então, nova intervenção do Palhaço:
Palhaço – Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa
pequena carniÞcina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora
a cena vai mudar um pouco. João, levante-se a ajude a mudar o cenário.
Chicó! Chame os outros.
Chicó – Os defuntos também?
Palhaço – Também.
Chicó – Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro! (Aparecem todos.)
Palhaço – É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês.
Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para
o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas
cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de
uma cena comum no sertão do Nordeste. (É claro que essas falas serão
cortadas ou adaptadas pelo encenador, de acordo com a montagem que se
Þzer.) Agora os mortos. Quem estava morto?
Bispo – Eu.
Palhaço – Deite-se ali.
Padre – Eu também.
Palhaço – Deite-se junto dele. Quem mais?
João Grilo – Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra.
Palhaço – Deitem-se todos e morram.
João Grilo – Um momento.
Palhaço – Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar!
João Grilo – Espere, quer mandar no meu morredor?
Palhaço – O que é que você quer?
João Grilo – Já que tenho de Þcar aqui morto, quero pelo menos Þcar longe
do sacristão.
Palhaço – Pois Þque. Deite-se ali. E você, Chicó?
Chicó – Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo.
46
Essas intervenções do Palhaço servem para evidenciar que toda a peça é um
artifício estético. O Þngimento artístico tem primazia sobre a realidade histórica, pois
esta é apenas um referencial que o teatro não consegue reproduzir integralmente,
mas apenas alguns aspectos recriados em forma Þccional. O Palhaço distribui os
papéis e as funções e promove a continuidade da peça, funcionando como uma
espécie de autor Þctício da obra. O enredo é constituído de um conjunto de cenas
que têm um desenvolvimento descontínuo, ou seja, sofre interrupções do Palhaço,
o que caracteriza uma reßexão sobre a própria montagem da peça. Vários planos
da peça se cruzam e se confundem, como o fato de Chicó estar vivo entre os mortos
que serão imediatamente julgados e aÞrmar que estava rezando pela alma do
amigo.
ATENÇÃO: No Auto da Compadecida, o Palhaço apenas faz papel de narrador,
mas não é um narrador propriamente dito, como aparece no texto narrativo. A
diferença é que o Palhaço fala diretamente ao público e vive ações diretas junto
com os outros personagens.
AGORA É SUA VEZ: Leia o primeiro texto do livro de Anatol Rosenfeld,
indicado na bibliograÞa, para você entender a diferença de tempo nos gêneros
literários.
REFLITA: Preste atenção às três proposições abaixo:
I.
Num texto dramático como o Auto da Compadecida, não existe
propriamente um narrador, mas rubricas (informações entre
parênteses) que situam o leitor entre os fatos e a evolução das
cenas
II. Nos textos poéticos de Mário Quintana, o eu-lírico é uma voz
Þctícia que simboliza a expressão de sentimentos como saudade,
nostalgia, tristeza, solidão, entre outros, mas essa voz não é o
pronunciamento real do autor sobre sua realidade particular
III. Num texto narrativo como os contos de Machado de Assis,
o narrador é de importância central, pois provêm dele as
informações a que o leitor tem acesso
O principal OBJETIVO deste estudo é levar você a diferenciar os gêneros
literários. Para demonstrar conhecimento já adquirido, tente identiÞcar o gênero
do texto abaixo.
47
Janelas abertas Nº2
(Caetano Veloso)
Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos dentro do apartamento
Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto, fêmea, língua gelada, língua gelada como nada
Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito
Mas eu preÞro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insetos
48
UNIDADE III
A ESPECIFIDADE DO GÊNERO NARRATIVO
Diferente do gênero lírico e do dramático, o texto narrativo necessariamente
tem um narrador: aquela voz responsável pela enunciação e pelo encaminhamento
dos fatos relatados. O narrador pode ser o próprio personagem central (primeira
pessoa) ou alguma voz de fora que não se envolve com o enredo (terceira pessoa).
A compreensão desse fenômeno é fundamental para situar as demais categorias
da narrativa, como tempo, espaço, ação, personagem, enredo, pois todos estão
subordinados à forma como o narrador os apresenta, descreve e relata. Para você
ter uma visão mais clara desse fundamento teórico, nada melhor que ler um texto
narrativo. Escolhemos para você o conto “A cartomante”, de Machado de Assis.
Em seguida são feitos uns comentários como forma de facilitar a compreensão.
Mas ATENÇÃO: você é que tem que desenvolver suas próprias habilidades para
ler, interpretar e saber comentar criticamente um texto literário. Os comentários
que vamos indicar são apenas pontos de partida para uma leitura mais original
que você mesmo deve fazer.
AGORA É SUA VEZ: Leia com bastante calma o conto “A cartomante” e
procure identiÞcar nele os principais elementos que constituem um texto
narrativo.
A cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a
nossa ÞlosoÞa. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo,
numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido
na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras
palavras.
- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui,
e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o
que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma
pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinouas, e no Þm declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que
não era verdade...
- Errou! interrompeu Camilo, rindo.
- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e Þxo. Jurou que lhe queria
muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse
49
algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois..
- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
- Onde é a casa?
- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
- Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova
é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram.
No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e Þcou só o tronco da
religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na
mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava
em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;
limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda aÞrmar, e ele não
formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os
ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;
Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às
cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava
uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção
de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de
passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu
a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do
pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada,
até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou
Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou
a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para
os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
- É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu
marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas
do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca Þna e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o
parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida
50
moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal,
que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência,
nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes
amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava
de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã,
mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele
aspirava nela, e em
volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a
teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites;
- ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora
a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os
dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes
insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi
então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingoulhe o veneno na boca. Ele Þcou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos,
desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus,
escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada
fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro.
A conÞança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral
e pérÞdo, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para
desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe
as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio,
uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a
aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconÞada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a conÞança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o
que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três
cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
51
Nem por isso Camilo Þcou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter
com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
possível.
- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas
que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconÞado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à
casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a conÞdência de
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses
era conÞrmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacriÞcandose por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso
de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao
escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse
realidade ou ilusão, aÞgurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas
com a notícia da véspera.
- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, -repetia ele com os olhos
no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de
que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo:
depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi
andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de
Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a
idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural
uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser
que Vitela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem
motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria conÞrmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, Þxas; ou então, - o que era ainda pior,
- eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já,
à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma
hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que
se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou
a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a
precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia,
picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi.
Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
- Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,
e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no Þm da rua da Guarda
Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que
52
caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No Þm de cinco
minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, Þcava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer
na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras
estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada
do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de
outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para Þtar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:
era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe,
com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no
cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns
giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
-Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em
outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da
carta: ‘’Vem,já,já...’’ E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava
para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um
longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz
da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do
príncipe de Dinamarca reboava-lhe
dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a ÞlosoÞa...” Que
perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido
enÞou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos
pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,
três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultála, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias,
um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre
a mesa, e disse-lhe:
- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto aÞrmativo.
- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
53
-A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez
das cartas e baralhou-as, com os longos dedos Þnos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
- As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declaroulhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela;
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e
fechou-as na gaveta.
- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se
fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas Þleiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,
ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
- Passas custam dinheiro, disse ele aÞnal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. .
- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada
que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu
estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos
e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que
eram urgentes, e que Þzera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio
grave e gravíssimo.
- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece
que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
54
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do
rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.
Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e aÞrmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no
Þm, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes
de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para
o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço
inÞnito, e teve assim
uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou aporta de ferro do
jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de
terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela
pegou-o pela gola,e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
REFLITA: Leia agora informações e comentários sobre Machado de Assis e sua
obra.
3.2 Machado de Assis(1839-1908)
Machado de Assis continua sendo considerado o maior escritor da literatura
brasileira. Apesar de pertencer, inicialmente, ao Romantismo, acabou optando
pelo Realismo, com os seus romances da maturidade: Memórias póstumas de Brás
Cubas, Quincas Barba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Tem ainda
uma larga produção que envolve teatro,crônicas, poesia e contos, deÞnindo-se,
assim, como um autor de vários gêneros.
Os contos de Machado de Assis são tão representativos quanto os seus
romances da fase madura. Abrangem inúmeros temas, o que não é tão comum
para a sua época. No século dezenove, a literatura brasileira não tinha uma
tradição de contos signiÞcativa. Machado é o primeiro grande contista brasileiro,
abrindo um caminho que será seguido depois por outros. Após um breve
comentário sobre “A cartomante”, apresentamos o resumo de outros contos e
algumas dicas que devem elucidar a compreensão dos textos.
55
Comentário
Machado de Assis, entre outros aspectos, enfoca a fragilidade da chamada
“racionalidade humana”. Ele desfaz o mito do homem comedido, seguro pela
razão, como se idealizava no século dezenove. Ora, Rita e Camilo, no momento de
consulta à velha, estão tão agitados, tão confusos, tão sensíveis, que não percebem
que a cartomante, suposta sábia e conhecedora das coisas, só lhes diz coisas
óbvias. Não há nada de extraordinário e de realmente importante nas palavras da
velha. Mas os dois amantes associam cada palavra dela a previsões excepcionais,
o que é uma grande ironia. Observe que Camilo não. crê em nada de mistério,
mas, sentindo-se ameaçado, é vítima de crendices da infância, lembradas
a contragosto. Trata-se do medo, do horror à morte, que leva a essas camadas
psicológicas profundas do ser humano, relativizando ao máximo a atuação da
consciência racional. E nada do que a velha diz para tranqüilizá-los se conÞrma.
Eles são tranqüilizados pela superstição, o que é outra grande ironia. E com isso
perdem até o medo, as suspeitas, o que poderia, instintivamente, levá-los a algum
gesto de defesa. É como se eles recuperassem a racionalidade e o equilíbrio pela
superstição, o que é inteiramente paradoxal e ridículo, em nada compatível com a
realidade. Essa confusão entre razão e loucura, tensão mortal e falso alívio, tudo
gerado por paixões proibidas. é um dos temas prediletos de Machado de Assis. É
o que ocorre em Quincas Borba, Dom Casmurro e outros contos, como “O relógio
de ouro”.
AGORA É SUA VEZ: Leia com atenção os resumos e comentários abaixo,
mas só depois de ler os próprios contos de Machado de Assis.
ATENÇÃO: Nunca se limite a ler resumos das obras literárias. O ideal é ir ao
texto diretamente! Os resumos e comentários servem apenas como explicações
e pontos de partida para alguma análise.
SUGESTÕES DE LEITURA: Resumos e comentários de alguns contos de
Machado de Assis
“A Igreja do Diabo”
O Diabo tem a idéia de fundar uma igreja. Cansado de desorganização e
obscuridade,quer uma igreja com cânone, hinos, novena, rituais, todo o aparelho
eclesiástico. E uma igreja que seja unida, sem divisões, para ser mais forte que
todas as existentes. Tem certeza de que seduzirá as pessoas e em breve esvaziará
o céu. Comunica suas intenções a Deus, que o chama de retórico e vulgar. Deus
quer saber por que o Diabo só agora está pensando em se organizar. O Diabo fala
de “negócios mais altos”, ou seja, promessas mais sedutoras que as de todas as
religiões, como, por exemplo, a inversão das virtudes. Eis as promessas do Diabo:
56
as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Ele confessa aos
homens, em suas pregações, que é o Diabo, para que ninguém tenha mais medo
ou faça imagem distorcida dele. Assim, multidões vão ao Diabo e seguem os seus
princípios:
a)
b)
é)
d)
e)
f)
g)
h)
i)
j)
I)
m)
n)
o)
substituição das virtudes aceitas;
reabilitação da soberba, da luxúria e da preguiça;
valorização da avareza, mãe da economia;
defesa da ira e da gula, virtudes superiores;
substituição da vinha do Senhor pela vinha do Diabo, fruto das mais belas
cepas do mundo;
prática da inveja, principal virtude, origem de inÞnitas prosperidades;
amor às coisas perversas;
valorização da fraude, braço esquerdo do homem;
legitimação da venalidade, direito superior a todos os direitos;
combate ao perdão, à brandura e à cordialidade;
prática da calúnia mediante retribuição;
condenação de todas as formas de respeito;
abolição de toda a solidariedade humana;
amor às damas alheias: única forma permitida de amor ao próximo.
Essa nova doutrina se propaga e logo o Diabo triunfa. Mas um dia ele
faz uma descoberta chocante: as pessoas, às escondidas, estavam praticando
as antigas virtudes. O Diabo vê que ainda precisa conhecer bem o mal. Sem
compreender de todo o fenômeno, recorre a Deus e lhe relata os fatos. E
Deus lhe explica que o que está acontecendo faz parte da eterna contradição
humana.
Comentário
“A igreja do Diabo” é um conto que não aceita o maniqueísmo cristão. Não
existem pessoas exclusivamente boas ou exclusivamente más. Virtudes e pecados
se cruzam, se confundem e fazem parte da ação das pessoas. que agem conforme
interesses, circunstâncias etc. Machado de Assis não tem intenção de criar uma
fábula moralista, até mesmo porque a conclusão do conto é contraditória. No
entanto, ao dar relevância à “eterna contradição humana”, ele mais uma vez é
cético e negativista, sem acreditar em mudanças qualitativas no homem. O conto
tem conteúdo ÞlosóÞco, é pessimista, querendo mostrar que a história do homem
não tem solução nenhuma. Ainda mais, o narrador tem intenção universalista:
ao invés de examinar os fatos em sua particularidade histórica, ou seja, em seu
contexto social, dando maior relevância à sociedade, ele só vê as contradições nas
“pessoas”, individualizando os casos, como se tudo fosse uma questão apenas
de opção pessoal Nesse sentido, ele reforça o velho livre arbítrio do cristianismo.
Mas essa aparente incoerência do escritor tem um sentido: não é ele propriamente
que está contando a saga do Diabo, mas um velho manuscrito beneditino, corno.é
dito logo na primeira página do conto. Com isso, consegue livrar-se de críticas e
atribuir a responsabilidade dos ensinamentos da fábula a elementos da própria
Igreja.
57
3.2.1 Características Gerais Dos Contos De Machado De Assis
I. Críticas Ao Romantismo
No conto ‘’Noite de almirante”, ocorre uma ridicularização do amor
idealizado e a mulher que age por interesse e com personalidade maligna. Há a
critica à inocência e à falta de senso crítico do protagonista. Há também a quebra
da imagem da mulher perfeita e do amor como puro valor espiritual, acima de
todas as questões materiais. É a paródia de um tema comum ao Romantismo: o
pacto da. eterna Þdelidade, como acontece em A moreninha, de Joaquim Manoel
de Macedo, na aliança Þrmada, desde a infãncia, entre Augusto e Carolina. Em
“O espelho”, Jacobina diz: “A melhor deÞnição de amor não vale um beijo de
moça namorada”. Ou seja: importante é praticar o amor, não apenas sentir ou
Þcar deÞnindo e especulando em sonhos. Isso contraria os românticos, sobretudo
os da fase byroniana, que acreditavam num amor platônico e fantasiado.
“A igreja do Diabo” é um conto de conteúdo anticristão. A defesa dos
males é acompanhada de princípios lógicos, como se as pessoas pudessem
agir de qualquer forma e com naturalidade. É a destruição dos personagens
delicados, gentis e comedidos do Romantismo. Aliás, a escola romântica tem
muita inßuência cristã, porque a fuga para o passado, imitando os europeus
que queriam voltar à Idade Média, quer reaver asrajzes brasileiras, misturando
indianismo com a formação católica do Brasil.
II. Passagem do Singular para O Universal
Isso se dá da seguinte forma: ocorre um certo caso particular, muito
deÞnido e num contexto bem especíÞco. No entanto, o escritor procura extrair
desse caso algumas características comuns ao ser humano em geral, como se
aquele caso particular pudesse ocorrer em qualquer lugar, em qualquer tempo.
Essa é uma das características centrais de Machado de Assis.
No conto “O enfermeiro”, Procópio, depois de matar o Coronel, cria
coragem para ver o velho e ouve “a eterna palavra dos séculos”: “Cairo, que
Þzeste de teu irmão?”. Ao comparar fatos de épocas bem diferentes, o autor
procura identiÞcar algo em comum entre os acontecimentos, mostrando que a
perseguição do sentimento de culpa independe de épocas históricas.
Em “Um apóIogo”, todo o diálogo entre a agulha e a linha é para ilustrar
a conclusão de que uns abrem caminho a vida inteira para outros passarem. É a
desigualdade que está em jogo, o que pode ser lido como metáfora de todas as
sociedades e relações exploradoras até hoje.
Em “O espelho”, Jacobina diz que os amigos estão curiosos para ouvirem
seu relato e vê nisso uma tendência universal do homem:”Santa curiosidade! tu
és não só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de
outro sabor que não aquele pomo da mitologia”.
Em “A cartomante”, Camilo recebe de Rita um cartão sem muita
importância. Camilo, entretanto, não tira os olhos dele. E o procedimento do
narrador é no sentido de generalizar a questão: “Palavras vulgares;mas há
vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça,
58
em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos,
vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.
Nos comentários sobre as cartas anônimas, aparecem frases que poderiam
ser destacadas do texto e lidas em qualquer circunstância, como as famosas
declarações das tragédias de Shakespeare. Aliás, o conto começa exatamente
com um dos pensamentos mais conhecidos de Hamlet: “Há mais coisas no céu
e na terra do que sonha a nossa ÞlosoÞa”. É preciso Þcar atento ao fato de que os
motivos centrais da tragédia, como dúvida, traição, mistério, ambigüidade, são
retrabalhados no conto de Machado de Assis, mantendo sua validade universal.
III. Tensão Psicológica dos Personagens
A tensão psicológica pode ter várias origens: a) o que se passa entre as
normas estabelecidas e a transgressão; b) o momento entre um objetivo e a
realização dele; c) confusões que geram sentimento de culpa e trazem ameaça à
situação normal dos personagens. Seja como for, a tensão é sempre o que ocorre
entre a ruptura com aquilo que é jugado certo e a reação que pode vir dessa
ruptura.
Maior parte da “Missa do galo” e de “A cartomante” é de tensões. No
primeiro, há o conßito entre a hora de ir à missa, o prazer gerado pela conversa
com a mulher e a possibilidade de ter alguma relação íntima com a dona da casa.
A mulher, casada, está dentro das normas sociais; a missa é uma convenção muito
séria, ainda mais a do galo, que só ocorre uma vez por ano; mas a conversa com a
mulher, que pode derivar para a intimidade sexual, poderia quebrar a norma do
casamento e a Þdelidade ao ritual da Igreja.
Já Camilo tem um comportamento muito tenso: ora está seguro, ora está
andando na sombra da morte. Isso cria um clima de permanente conßito, sendo
tudo reforçado por sentidos duplos e vagos, o que quebra todas as certezas dos
personagens.
IV. Ironia
A ironia é, basicamente, uma inversão proposital de sentidos. AÞrma-se
algo querendo se dizer o oposto. Visando a alguma forma de crítica ou sarcasmo,
a ironia machadiana, uma das maiores características de sua obra, aparece de
várias formas:
a) por pistas e antecipações falsas
Ao contar à esposa de Fortunato que ele cuidou, sem interesse, do ferido,
Garcia, em “A causa secreta”, dá a entender que Fortunato é muito Þlantrópico
e solidário. O leitor também Þca com essa impressão. Só depois, ao longo do
conto, é que Þcamos sabendo do sadismo e da perversão de Fortunato: sua frieza
cientiÞcista no ato de dissecação dos ratos. Desse choque de contrastes é que se
instaura a ironia.
Em “Pai contra mãe”, as amigas de Clara não negam a gentileza de Cândido
Neves, “nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes”. Ora, Cândido
59
não tem virtude alguma, não se adapta a nenhuma proÞssão e se revela, no Þnal,
um crudelíssimo perseguidor de escravos fugidios. Mas as opiniões das amigas
de Clara vêm antes da revelação Þnal de Cândido e o choque com o que ocorre
depois é que produz o efeito irônico.
Em “O enfermeiro”, o primeiro encontro entre Procópio e o Coronel é
resumido assim: “(...) a minha resposta deu uma melhor idéia do coronel. Ele
mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos
enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias”.
Nada disso, a partir daí, se conÞrma. O Coronel Felisberto é insuportável e
Procópio o mata.
“Noite de almirante” e “Umas férias” já têm ironia no próprio título.
A introdução dos contos é de um entusiasmo enorme para os personagens,
caindo violentamente depois. Deolindo, no primeiro, é traído e humilhado por
Genoveva; no segundo, as “férias” acabam sendo na escola: com horror do clima
sombrio de casa, que se instaura com a morte do pai, as crianças, liberadas das
aulas e felizes por isso, acabam tendo saudade da escola. As “férias”, portanto,
são os estudos.
b) através do humor negro
O primeiro parágrafo de “Pai contra mãe” é a descrição dos instrumentos
da escravidão. O narrador não se limitar a descrever, pontuar, constatar. Ele
investe em opiniões radicais, tentando naturalizar a.violência da escravidão e,
com isso, justiÞcar o que ele mesmo chama de “grotesco”. É como se a violência
dos senhores fosse um mal necessário e inevitável para se atingir a “ordem”.
Ordem que não precisa de deÞnição ou esclarecimento. Ordem que é ordem
e pronto. Isso não quer dizer que o narrador seja a favor da escravidão e das
torturas. Ao contrário: ele procura representar a mentalidade dos escravistas:
“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada”. Na cena de casamento de Cândido Neves
com Clara, o narrador comenta com humor negro o sofrimento e a pobreza da
casa da Tia Mônica: “A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de
tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não
davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Cândido
é cristão e perseguidor de escravos ao mesmo tempo: “- Deus não me abandona.
e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste. Muitos
entregam-se logo”. A proÞssão violenta de Cândido nega todos os atributos
de Deus: amor, paz, proteção, salvação etc. Na descrição que o narrador faz do
trabalho de Cândido Neves: “(...) perdera já o ofício de entalhador(...) abrira
mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxelhe um novo encanto. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia
força, olho vivo, paciência e um pedaço de corda”, ele nivela propositalmente
tudo, como se paciência e corda, por exemplo, fossem bens morais e tivessem
a mesma qualidade. Ora, a paciência é um bem espiritual do homem, algo que
se adquire com educação para tolerância e Þns elevados. Isso é incompatível
com a corda, instrumento de captura de escravos. A ironia, portanto, está nessa
contradição.
60
c) através dos nomes
Em Machado de Assis, é freqüente o seguinte: nomes dos personagens não
condizem com os atos deles; nomes de lugares são o oposto ou a negação do que
ocorre lá. Pelo descompasso entre uma coisa e outra, produz-se a ironia. É uma
ironia muito sutil, que exige às vezes atenção dobrada para ser identiÞcada. Por
exemplo, Cândido é sinônimo de brando, dócil, delicado; Neves e Clara remetem
para o branco, a pureza, e no entanto vivem de caçar pessoas. Mesmo que Neves
remeta para frieza, não combina com Cândido. Além disso, a escrava é capturada
na Rua da Ajuda; ela está grávida e Cândido, à procura dela, passa pela Rua do
Parto. Mas o resultado do arrastão é o aborto. .
Em “O enfermeiro”, o Coronel, extremamente depressivo, mal-humorado
e rejeitado por todos na cidade, chama-se Felisberto. Em “Noite de almirante”, o
nome Deolindo pode desdobrar-se, possivelmente, em dois: Deus e lindo. Nem por
isso deixa de ser traído por Genoveva, que é o nome de uma santa que, segundo a
tradição católica, casou-se com Deus e dedicou toda a sua vida a ele. O conto, no
entanto, é sobre uma mulher que não espera o noivo, que é marinheiro, voltar e
se casa com outro, apesar da promessa inicial de ser absolutamente Þel a ele.
Em “A cartomante”, o principal lugar é a Rua da Velha Guarda, onde Þca
a casa da cartomante. O nome da rua, sutilmente, remete para a velha Guarda
Imperial, ao mesmo tempo em que se refere à “velha” enigmática que lê o destino
alheio. Ora, guarda é sinônimo de proteção, defesa. É como se a cartomante fosse
a guardiã de Rita e Camilo. No entanto, as previsões dela resultam no oposto.
Tanto é que Camilo, um pouco antes de chegar à casa de Vilela e ser morto, passa
pela praia da Glória, que é outra ironia, e tem a seguinte sensação: “(...) Camilo
olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um
abraço inÞnito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável”.
A ironia é uma forma de exercer o pensamento critico e revogar toda e
qualquer inocência. Em Machado de Assis, ela está muito associada ao ceticismo
e a uma visão de mundo negativista por excelência. As últimas palavras de Brás
Cubas parecem conÞrmar tudo o que vimos em seus contos:
Somadas umas causas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará
mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno
saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive Þlhos,
não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Proposta de atividades
1. Leia atentamente os parágrafos abaixo, que versam sobre a teoria da
literatura, especialmente no que diz respeito à relação do texto literário com o
momento histórico:
61
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta
o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identiÞcar,
na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;
mas como fator da própria construção artística, estudado, no nível explicativo
e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia,
ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação
estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se
dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e
a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social
se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos
psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que
a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois
tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a
diversidade coesa do todo.
Está visto que, segundo esta ordem de idéias, o ângulo sociológico adquire
uma validade maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto
como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de cada fator
depende do caso a ser analisado. Uma crítica que se queira integral deixará
de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar
livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente.
Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde
que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós veriÞcamos
que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre
possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo
explicar por meio dos fatores sociais.
(Antonio Candido, Literatura e sociedade)
2. Procure identiÞcar no texto abaixo os traços essenciais do gênero narrativo
e tente encontrar uma forma de relacioná-los a algum conto de Machado de
Assis.
O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente
imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em
certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador.
Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de
outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos
e está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios
personagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá
a pa1avra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações
como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc.
No poema ou canto líricos um ser humano solitário - ou um grupo - parece
exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes ou
interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim
melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação
a outrem. Já no caso da narração é difícil imaginar que o narrador não esteja
narrando a estória a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si
62
mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa
a outros que, provavelmente, estão sentados em tomo dele e lhe pedem que
lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra
estórias que aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá
objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu
- a voz é do pretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” ( João, Maria)
e em geral não” eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo
narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma
estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado
dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude
distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.
A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador
maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo.
Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um
conteúdo de vasto assunto.” Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem
mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.
É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador)
e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos
personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais
vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o
do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existe só o horizonte
do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma
estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu
narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.
(Anatol Rosenfeld, O teatro épico)
ATENÇÃO: Terminamos por aqui esse material, mas isso é apenas o começo dos
seus estudos sobre teoria da literatura. Vamos apresentar um pequeno glossário
abaixo, para que você consulte e reforce seus conhecimentos.
OBJETIVOS: Um glossário tem a Þnalidade básica de apresentar alguns
conceitos fundamentais vistos ao longo do curso, para facilitar a compreensão
dos mesmos.
REFLITA: Um glossário é apenas um meio rápido de consulta, mas você jamais
deve se limitar a ele.
AGORA É SUA VEZ: Procure ter sempre disposição para consultar o glossário
na medida em que for lendo os conceitos na parte teórica e aplicando-os à sua
leitura dos textos literários.
63
GLOSSÁRIO
ANÁLISE LITERÁRIA – É o estudo de textos literários de uma forma
objetiva, com base em conceitos fornecidos pela teoria da literatura. O estudo de
um texto para classiÞcar a sua forma, por exemplo, exige leituras sistemáticas da
teoria dos gêneros literários.
CATEGORIA – É qualquer componente da estrutura da narrativa. Por
exemplo, o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço são categorias
que, em seu conjunto, constituem uma narrativa.
CONCEITO – É o instrumento básico de toda formulação teórica. O
conceito só se sustenta se for objetivo e demonstrar respaldo na realidade
estudada, seja esta material ou simbólica. Caso o conceito não corresponda a
essa exigência, sua formulação é falha e muitas vezes não passa de uma simples
opinião sobre as coisas. O estudo sistemático da teoria da literatura exige que os
conceitos tenham propriedade para serem aproveitados nas análises literárias.
ENREDO – Conjunto dos fatos que se sucedem em uma narrativa. Os fatos
que acontecem geram outros fatos, que se relacionam com outros, criando uma
determinada tensão na situação dos personagens. A tensão gera uma expectativa
que pode ser conÞrmada ou não no Þnal da narrativa.
GÊNERO LITERÁRIO – São as formas literárias mais amplas, abrangendo
várias subformas ou subgêneros. A teoria literária mais clássica apresenta a
divisão da literatura em três gêneros essenciais: o épico (ou narrativo), o lírico
(o que modernamente convencionou-se chamar “poesia”) e o dramático (texto
voltado para a encenação teatral).
IRONIA – É um recurso muito utilizado na literatura, a exemplo da
narrativa de Machado de Assis. A ironia é uma inversão de sentido das coisas. O
discurso irônico é aquele que aÞrma algo querendo dizer o oposto. A Þnalidade
da ironia é variada: pode ser o humor, o sarcasmo, a ridicularização de certas
situações, mas pode ser também a intenção de provocar uma reßexão sobre o que
parece natural e correto.
LITERATURA – É um tipo de arte que se caracteriza pelo uso e combinação
das palavras de uma forma muito especíÞca, capaz de ultrapassar o senso comum.
Assim como a pintura é uma combinação de cores e a música é uma combinação
de sons, o que distingue a literatura é a sua capacidade de criar sentidos novos,
ainda que utilizando as mesmas palavras fornecidas pela língua. A criatividade
literária também pode instaurar palavras novas, conhecidas como “neologismos”,
que tornam o texto literário mais imprevisível e mais distanciado da comunicação
cotidiana. A literatura, com essa preocupação voltada para o estabelecimento de
sentidos diferentes, singulares, desconhecidos, não se confunde com um mero
documento histórico ou com um texto jornalístico e de uso comum. A literatura
proporciona outro tipo de reßexão sobre as relações humanas, que não se
confunde com a ciência, com o misticismo, com a informação ou outras formas de
conhecimento.
NARRADOR – É uma das categorias centrais do texto narrativo. É o
responsável pela visão e pelos valores transmitidos ao longo do enredo. O
narrador pode ser em primeira pessoa (o próprio personagem principal) ou
64
em terceira pessoa (um narrador externo, que não faz parte do enredo nem se
envolve com os acontecimentos relatados). Existem outras formas de narrador,
como o narrador-testemunha (conta a história, mas não é o personagem central),
porém são formas mais raras.
PERSONAGEM – É todo aquele que desenvolve ou sofre a ação do enredo.
O personagem pode ser principal (protagonista) ou secundário, mas é necessário
buscar a importância de sua ação na estrutura do enredo.
SENSO COMUM – É aquilo que é comumente aceito em uma determinada
sociedade ou uma cultura. É a comunicação no nível mais simples e necessário,
pois sem ela não haveria compreensão básica entre as pessoas. A importância
do senso comum para a literatura e para as artes é que ele serve de referencial
negativo ou a ser negado. Sem essa ruptura com o senso comum, a literatura e as
artes tendem a se realizar em um nível muito pobre.
TEORIA – Um conjunto de princípios lógicos que norteiam a compreensão
de um determinado fenômeno, seja ele real ou imaginário. A teoria só tem valor
se for averiguada por uma demonstração. Caso a demonstração falhe, a teoria
tem que ser repensada e refeita. Na literatura, por exemplo, a teoria não pode ser
aplicada mecanicamente ao texto. Cabe ao exame minucioso do texto veriÞcar se
a teoria pode ser ou não aplicada. Isso depende de como o conceito corresponde
(ou não) à construção especíÞca de um determinado texto literário.
65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Os melhores contos. Seleção de Domício Proença Filho. 14. ed.
São Paulo: Global, 2002.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de Þcção. São Paulo: Perspectiva, 1988.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 6. ed. São Paulo: Nacional, 1980.
GOMES, Dias. Os heróis vencidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. (Coleção
Dias Gomes, volume 1)
GOTLIB, Nádia BaĴela. Teoria do conto. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)
GOUVEIA, Arturo e MELO, Anaína Clara de. Machado de Assis: Literatura, música
e barbárie. João Pessoa: Idéia, 2006.
GULLAR, Ferreira. Toda a poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)
MESQUITA, Samira Nahid. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. (Série
Princípios)
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
PINTO, Sérgio de. Zôo imaginário. São Paulo: Escrituras, 2005.
QUINTANA, Mário. Os melhores poemas. Porto Alegre: L & PM Pocket, 2004.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do
erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 23.ed. Rio de janeiro: Agir, 1988.
SANT’ ANNA, Aěonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1982.
(Série Princípios)
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.
(Série Princípios)
66
Download

17 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS