A clínica da anorexia no hospital, um caso.
Aline Martins1
Selma Correia da Silva2
Neste trabalho pretendemos discutir a articulação do discurso da Psicanálise com o
discurso da Medicina, destacando a necessidade da interseção entre psicanalistas e
psiquiatras em um caso que se fez necessária a intervenção desses profissionais. A
instituição hospitalar conta com a Medicina em seu eixo principal, enquanto outras
especialidades ocupam um campo periférico, e não é diferente no Hospital Universitário
Pedro Ernesto (HUPE), onde o caso da adolescente que discutiremos é atendido.
O discurso médico disseminado no espaço hospitalar foi construído a partir de
normas, de protocolos e saberes universais. A Psicanálise, por propiciar o resgate do
sujeito, não trabalha com um saber prévio, ou seja, interroga justamente o saber de
especialista, tão comum na prática hospitalar. O discurso analítico não é normativo, ele
visa o surgimento do desejo e do sujeito do inconsciente, e discutir as diferenças entre os
discursos médico e psicanalítico é importante para entendermos as dificuldades encontradas
pela Psicanálise para se fazer efetiva na instituição hospitalar. Enquanto a Medicina impõe
aos seus profissionais a necessidade de proteger-se do erro, para a confecção do diagnóstico
e da terapêutica quanto ao tratamento, Freud (1913) propõe a escuta sob atenção flutuante,
não valorizando a priori nenhum elemento do discurso do sujeito.
Tendo em vista essas diferenças entre o discurso da Psicanálise e o da Medicina,
iremos discutir o caso de Nathália3, no qual há a necessidade de articulação contínua entre
psicanalistas e psiquiatras. Nathália é uma adolescente de 17 anos que chega ao
1
Psicóloga, residente em Psicologia Clínica Institucional no Instituto de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
2
Psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA) e Coordenadora do Setor de Psicanálise
e Saúde Mental. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ.
3
Nome fictício utilizado para preservar a identidade da paciente.
ambulatório do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/HUPE) em julho de
2013 através de um pedido de encaminhamento feito pelo INCA (Instituto Nacional de
Câncer), onde é acompanhada anualmente devido a um osteossarcoma4 operado em 2007.
No encaminhamento consta que a paciente está com significativa perda de peso e de apetite
há mais ou menos seis meses e pede-se avaliação da equipe multidisciplinar do Programa
de Transtornos Alimentares do NESA, composta por psicólogos, assistentes sociais,
enfermeiros, médicos e nutricionistas. Neste Programa, o primeiro acolhimento é sempre
realizado pela Saúde Mental, então Nathália foi recebida pela coordenadora do Setor de
Psicanálise e Saúde Mental do NESA. Nesse atendimento a psicóloga identificou questões
psíquicas graves no discurso da adolescente, apontando para uma distorção na imagem
corporal, segundo os critérios psiquiátricos do DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders). No atendimento médico e nutricional verificou-se que a paciente
estava em grave desnutrição e com alterações na frequência cardíaca e respiratória, e foi
indicada a internação imediata na enfermaria do NESA.
Na chegada à enfermaria, a residente de Psicologia recebe Nathália e sua mãe bem
assustadas com a necessidade de internação, e pede que contem o motivo de terem sido
encaminhadas para o HUPE. A adolescente permanece com a cabeça baixa sobre a mesa
durante todo o atendimento, chorando e pedindo para ir embora, dizendo que não ficará
internada. A mãe de Nathália conta que desde dezembro de 2012 sua filha decidiu iniciar
uma dieta para emagrecer, porém agora estava muito magra e muito fraca, e há
aproximadamente um mês ela identificou que havia problemas nessa dieta.
A imagem de Nathália era impactante. Primeiro porque, devido à operação do
osteossarcoma, teve seu membro inferior esquerdo amputado e andava com a ajuda de
muletas. Segundo porque seus ossos estavam bem marcados por uma fina camada de pele,
de tão emagrecida que estava. Olheiras e olhos fundos expressavam cansaço e davam a
impressão de tristeza a qualquer um que a olhasse.
Ao ser questionada sobre a dieta da filha, Maria não sabia explicar muito bem os
pormenores da rotina alimentar de Nathália. Dizia que ela se recusava a comer e que havia
4
Tumor ósseo maligno primário mais comum em crianças e
http://www.hcancerbarretos.com.br/osteossarcoma - Acesso em agosto de 2014).
adolescentes
(Fonte:
descoberto há pouco tempo que a filha estava induzindo vômitos após as refeições. Nathália
estava muito irritada, dizendo que não poderiam obrigá-la a comer e afirmando ainda
desejar emagrecer mais. A residente pede para Maria deixá-la a sós com sua filha e ambas
concordam.
Nathália consegue contar sobre sua dieta restritiva. Sua meta era ingerir apenas 250
kcal por dia, e mesmo com esse valor mínimo ainda estimular o vômito após as refeições e
usar medicamentos laxantes e diuréticos como métodos purgativos. Conta sobre uma voz
que está em sua cabeça e que é quem a manda fazer tudo isso e que, se ficar internada e
comer, será punida, a voz irá brigar com ela e chamá-la de gorda. A residente diz que irá
atendê-la durante a internação e que ela também será acompanhada por uma equipe
multidisciplinar que poderá lhe dar suporte e tirar as suas dúvidas. Em consequência de sua
anorexia, a psiquiatria entrou no caso, o que também nos deixou mais tranquilos, tendo em
vista o relato da “voz em sua cabeça”. Sem sabermos ainda a que exatamente se referia
quando a designava, era necessário fazer um diagnóstico diferencial.
Por um mês e meio Nathália ficou internada na enfermaria do NESA sendo
acompanhada por uma equipe de enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais,
médicos e fisioterapeuta. Precisou se alimentar por sonda nasogástrica para sair da zona de
risco e de desnutrição, experiência esta que foi vivida pela adolescente como uma extrema
invasão de seu corpo, visto que ela havia dito que ninguém poderia obrigá-la a comer, o que
não pode ser respeitado.
O NESA não conta com um psiquiatra fixo na equipe, portanto quando é necessária a
avaliação psiquiátrica é feito um pedido de parecer ao Serviço de Psiquiatria do HUPE.
Assim que a adolescente foi admitida na enfermaria do NESA passou a ser acompanhada
por uma residente da psiquiatria. Por ser um profissional fora do cotidiano da equipe
multidisciplinar da enfermaria, o diálogo e a troca de informações sobre o
acompanhamento da paciente ficaram bastante comprometidos.
Esses impasses no diálogo entre a equipe do NESA e da Psiquiatria ficaram muito
claros durante a internação de Nathália. Como já mencionado anteriormente, o momento
em que ela necessitou ser sondada para se alimentar foi vivido de forma bastante invasiva
para a paciente, e eu, como a residente de Psicologia que acompanhava Nathália durante a
internação, fui convocada pela equipe para estar ao lado da paciente quando lhe dessem a
informação de que ela precisaria passar por esse procedimento. A partir desse momento,
Nathália transferiu para mim a responsabilidade por ter sido obrigada a comer, passando a
não querer mais me ver.
Freud (1912) afirma que, na transferência, é perfeitamente normal e inteligível que a
catexia libidinal de alguém que está parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha
pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do médico. Na situação da colocação
da sonda nasogástrica, Nathália demonstra sua insatisfação direcionada para a psicóloga.
O residente de psiquiatria escutou suas queixas sobre a psicóloga de uma forma bem
diferente e fez a seguinte pergunta: “Você quer que eu troque a sua psicóloga?”, pergunta
que Nathália prontamente respondeu com um “Não”. Não se tratava disso. Nathália apenas
queria falar de sua insatisfação e desagrado, e isso era com esta psicóloga que, então, se
dispôs a suportar os destinos da transferência, a partir do que a psicanálise permite articular
na clínica, diferentemente do que é a clínica psiquiátrica. “No caso da Psicanálise, trata-se
de um impossível de suportar para o sujeito; no caso da Psiquiatria, trata-se do impossível
de suportar para o corpo social” (Miller, 1987).
Após a alta clínica da enfermaria do NESA, Nathália passou a ser acompanhada pela
residente de psicologia no ambulatório, e cada vez mais levantava a possibilidade de
Nathália ser histérica com um quadro anoréxico, decorrente das dificuldades do sujeito de
significar o vivido em função do câncer e de seu tratamento. Na Psiquiatria, a paciente foi
atendida por outra profissional, não mais por quem a acompanhou durante a internação. Em
um dos atendimentos com a psicóloga, mais de seis meses após sua alta, a adolescente
chega de cadeira de rodas, acompanhada por sua mãe, por conta de uma paralisia aguda que
havia acometido repentinamente seus membros superiores, impedindo-a de andar, já que
necessitava da ajuda de muletas devido à amputação. Fala de pensamentos suicidas, tendo
já havido duas tentativas: em uma delas, Nathália se jogou de uma escada
consideravelmente alta e, em outro, mais recente, lançou-se na frente de um ônibus em
movimento, tendo sido necessário que o motorista a encaminhasse para casa.
Ao final do atendimento, a clínica médica foi imediatamente acionada para avaliá-la.
Era preciso verificar se a paralisia tinha uma razão orgânica ou era uma conversão histérica.
O exame clínico foi realizado, confirmando que não havia nenhum motivo orgânico para a
paralisia. A residente em psicologia entra em contato com a residente de psiquiatria que
acompanha Nathália e pede que a atenda imediatamente para poderem discutir a melhor
intervenção para o caso.
A residente em psicologia, em conjunto com suas supervisoras, sustentou a
necessidade de uma internação imediata na enfermaria do NESA, tendo em vista os relatos
de recentes tentativas de suicídio e agora uma possível conversão histérica, a paralisia,
como um apelo ao Outro, no caso, o NESA. Mas essa não é a opinião da residente em
psiquiatria, que acredita que, se a internássemos, iríamos “fazer o que ela quer” e isso iria
intensificar os seus sintomas. Decide medicá-la imediatamente com um ansiolítico,
orientando-a ir para casa e “conversar com seus braços, pedindo-lhes que melhorem logo”.
Passados poucos minutos da saída da adolescente do hospital, ela e sua mãe retornam
à enfermaria procurando a residente de psicologia, com a queixa de que agora todo o corpo
de Nathália estava paralisado. A equipe médica do NESA, familiarizada com o discurso da
Psicanálise, pode então escutar a residente em psicologia e foi solicitada a internação de
Nathália.
Comunicada dessa decisão, a residente de psiquiatria, um pouco contrariada, retorna à
enfermaria para ver a adolescente. Ao chegar, encontra Nathália aos prantos, gritando que
quer ir embora e ameaçando se cortar com uma tesoura. Diante desse estado da paciente, a
decisão da médica é a de contê-la, para evitar que machuque a si mesma, e então um braço
e sua perna são amarrados ao leito. A psicóloga se aproxima de Nathália e ela expressa
estar mais calma, porém não quer falar, pede que vá embora – demonstrando, mais uma
vez, a transferência já estabelecida.
No dia seguinte, Nathália já havia sido desamarrada e não apresentava mais nenhum
sinal de paralisia. A residente em psicologia apenas sentou a seu lado e ela prontamente
disse: “Obrigada, tá? Eu precisava disso”. Após a discussão do caso com toda a equipe da
enfermaria do NESA, em conjunto com a psiquiatra, decidiu-se dar a alta para Nathália, já
que durante o dia a adolescente permaneceu mais calma e não apresentou mais conversões.
A interlocução entre o discurso da Psicanálise e o discurso da Psiquiatria sofreu
impasses desde o início dos atendimentos de Nathália. Enquanto os psiquiatras inseridos no
caso se utilizaram de regras e saberes prévios sobre os fenômenos da histeria, a psicóloga
pautada no discurso psicanalista privilegiou a singularidade da adolescente e, ao invés de se
apresentar com um saber fechado, optou por nada saber sobre o sujeito, o que Lacan chama
de “douta ignorância”.
Segundo Lacan (1966), quando o doente é enviado ao médico ele não espera pura e
simplesmente a cura, ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, e isso
pode implicar que o sujeito está totalmente preso à ideia de conservar sua doença. Quando a
psiquiatra medica a adolescente e a orienta a pedir para seus braços que melhorem, Nathália
retorna demonstrando que não é a cura que estava desejando, apesar de demandá-la em seu
discurso. No momento em que o sujeito demanda alguma coisa, isto pode não ser idêntico
àquilo que ele deseja, ou seja, existe uma falha entre a demanda e o desejo. E é quando essa
falha vem à tona na intervenção média, que o psicanalista é convocado a trabalhar,
especialmente em um contexto hospitalar, onde o doente precisa ser tratado e ter alta o mais
breve possível.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_________. (1913). Sobre o início do tratamento. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1966). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana. Revista
Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 32, dezembro de 2001.
_______. (1956). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1995.
_______. (1969). O seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992.
MILLER, J. A. (1999). Psicanálise e psiquiatria. In: Lacan elucidado. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
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