Maria João Avillez Francisco Sá Carneiro: Solidão e Poder www.oficinadolivro.pt © 2010, Maria João Avillez e Oficina do Livro — Sociedade Editorial, Lda. uma empresa do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, 2 2610-038 Alfragide Tel. 210 417 410, Fax. 214 717 737 E-mail: info@oficinadolivro.leya.com Título original: Francisco Sá Carneiro: Solidão e Poder Autora: Maria João Avillez Revisão: Lídia Freitas Editora: Sara Gomes Capa: Rui Garrido Fotografia da capa: Rui Ochôa Fotografia da autora: Carlos Ramos ISBN 9789895556052 Ao Francisco, sem a presença de quem não me tinha sido possível escrever estas páginas. À minha irmã Maria José, confidente dos bons e maus momentos desta aventura. NOTA PRÉVIA Três décadas após a sua publicação, lembrou-se a Leya de reeditar este livro. Foi uma boa surpresa, espero que tenha sido sobretudo uma boa ideia. Fala-se tanto de Francisco Sá Carneiro e conhece-se tão pouco o homem, o seu caminho, o que quis fazer e o que deixou feito... Por mim, aplaudi esta reedição, onde cabe em corpo inteiro um retrato feito de palavras: as que na altura – não cortei uma só palavra, não acrescentei uma linha, nada alterei nesta reedição – me pareceram as mais adequadas para apanhar o voo de uma anima, as contradições de um homem, o galope de uma vontade, o sonho de uma vida. Não o teria porventura voltado a escrever assim, o tempo e a passagem do tempo sobre as coisas deixam marca e conferem peso. Julgo porém que o que distingue o retrato por mim feito ontem se mantém intacto hoje: para os que conheceram Francisco Sá Carneiro e para os que vão agora passar a conhecê-lo. 9 PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO 1 Foi sempre preciso fazer caso de Francisco Sá Carneiro. Entre o final dos anos 60 e o início da década seguinte, espevitou os espíritos, desinstalou as mentes, arejou o ar político e com isso incomodou o regime. Ao tempo, não era pouco. Elegera como palco a Assembleia Nacional, tinha como ambição começar a mudar os dias «por dentro» e como instrumento a Ala Liberal, recém-criada sob o olhar ainda benévolo de Marcelo Caetano. Sá Carneiro, com menos ilusões e mais pressa, queria trocar a baça agonia desses dias pela aurora de uma era civilizada, europeia e com regras políticas decentes. Acreditou que era capaz, perdeu o desafio dois anos depois quando, com uma amargura humilhada se viu constrangido a abandonar a morada parlamentar. Por pouco tempo: a partir de Abril de 74 foi outra vez preciso fazer caso dele. Esperara a sua hora. Não sabia quando ou como ela se anunciaria, sabia que chegaria. Mesmo se o país, entretido com a revolução, demorou a aperceber-se e, porventura ainda mais, a saber lidar com ele. Não que este advogado portuense, de 39 anos, ajudasse: só dizia o que queria e não queria o que os outros queriam, nunca se impedindo de manifestar, com tanto de veemência quanto de convicção, tal «dissintonia». Ele e o PPD, aliás, partido que entretanto idealizara e fundara e paremos agora, mesmo que brevemente, neste gesto fundador, datado do dia 6 de Maio de 1974. Foi ao final da tarde e ocorreu na Rua Duque de Palmela, em Lisboa. 11 2 O PPD? Nos idos do ano da graça de 1974 o PPD começou por ser uma resposta. Uma resposta dos «homens bons da terra». Em Portugal existia por essa altura um corpo intermédio da sociedade que começara a ganhar consciência cívica e política com a Ala Liberal, a Sedes, a portuense Cooperativa Confronto, a JUC, o Expresso, encontrando assim alguns espaços de intervenção. Não se revia numa solução marxista nem em qualquer projecto que tivesse como fim o comunismo ou o socialismo. Eram profissionais liberais, médicos, advogados, mas também pequenos proprietários, pequenos comerciantes, uma malha forte de gente que tinha já uma independência material ou profissional, em suma. O PPD começou por se implantar assim nacionalmente, primeiro no norte, depois, país fora. E quando procedeu à sua própria exteriorização, ela ocorreu ao contrário dos outros partidos que brotavam de dentro para fora, e não de fora para dentro como aqui, e sem uma ideologia pré-existente. Do ponto de vista doutrinário nasceu assim uma impressão digital originada pelo cruzamento do que fora o pensamento da Sedes, do que era a doutrina social da Igreja, do que significara a Ala Liberal. Foi esta mescla de humanismo, de afirmação do primado da pessoa humana, que traduziu o pensamento político dos primeiros homens do PPD. Um vasto mar de gente que se identificava com este «espírito», muito mais do que com os cânones da ideologia. Que aliás quase não tinha e até talvez dispensasse. Mas tinham Francisco Sá Carneiro. Ou melhor, havia sobretudo Sá Carneiro. Senhor de um inequívoco espírito social-cristão, temperado pelo seu liberalismo político (mais do que económico, sublinhe-se) grande cultor das liberdades públicas e praticante de um personalismo cosmopolita e aberto, teve a mestria de ir tecendo e levantando aquilo que genuinamente acreditava ser adequado tecer e levantar na sua pátria, a social democracia. Na altura, porém, prometer, defender e acarinhar a social-democracia era como insultar alguém e a esquerda confundia-a com um inferno a que chamava «fascismo». Mas foi esse o modelo eleito. Sobre a social-democracia discorreu — e convenceu — Sá Carneiro; e da sua prática permaneceu convicto. 12 Parece assim descabido — sejamos sérios! — insistir em ver neste homem o prisioneiro de uma lógica política que se esgotaria no liberalismo, ou emprestar-lhe falsos arroubos na matéria… Não. Tratava-se de uma social-democracia que resultava da síntese entre o projecto nacional de Sá Carneiro e a (sua) a preocupação social, a que é imprescindível acrescentar a componente europeia sem a qual o quadro ficaria ingratamente incompleto. A Europa, sim. Um desígnio prioritário, uma preocupação, uma vontade. Cedo manifestada no Portugal de Abril de 74 mas com a segurança e o conhecimento que advinham de escolha antiga e reflectida. E com o país a emitir inquietantes e insensatos sinais de desvios terceiro-mundistas e com tantos arautos — militares, mas também civis… — a reclamarem-se das bondades de tal «projecto», ainda mais Sá Carneiro acelerou a sua vontade de que Portugal tivesse participação efectiva no cenário europeu. E mesmo que a sua lucidez quanto a essa imprescindibilidade fosse inversamente proporcional ao quadro e ao ambiente políticos vigente... que importância? Tudo menos desistir ou claudicar. Não foi senão isto que acima tentei resumir — a eleição da social-democracia como «inspiração» interna e a Europa como grande objectivo externo — que ele nos foi dizendo ao longo dos anos. E com isso interpretando o que de melhor havia no país, amalgamando, Portugal fora, energias e vontades. Seduzindo, surpreendendo, dividindo. E ousando, sobretudo: foi o primeiro a denunciar a revolução e o primeiro a desviar-se dela, o primeiro a oferecer amanhãs que não cantavam no coro da festa vigente. Que o mesmo é dizer o primeiro a preocupar-se com o país e o seu descaminho. Mas doente, ausente de Portugal (entre o final de 74 e o Outono de 75) e sem meios de acção ou influência foi Mário Soares quem inteira, justa e exclusivamente ocupou o devant de la scène com a correspondente, e aliás muito feliz, chefia das tropas contra revolucionárias. Que à época, recorde-se, mediam — e pesavam — quase o mesmo que o próprio país. 13 3 Antes e depois disso, porém, e com a irresponsabilidade aspergida pelo ar do tempo, costumava dizer-se de Francisco Sá Carneiro que era «caprichoso», «instável», quem sabe mesmo se «insuportável». Eu própria o disse também. Era verdade que dava trabalho: incomodava na exacta proporção em que abominava a ideologia dominante e ainda mais o compromisso com ela, e quem é que queria lidar com um desmancha-prazeres capaz de subverter assim os prazeres da festa? Alguém que, não raro com excesso e quase sempre com crispação, ia sempre contra as coisas? Quando voltou a Portugal após longa convalescença, primeiro em Londres, depois no Sul de Espanha, repegou o mote onde o deixara: a urgente construção de uma democracia reformista, civilista, europeia. Sem compromisso com o que estava ou com o que fora, a anos-luz das meias-tintas ou meias-medidas que o horrorizavam e a que nunca deu trégua. Sempre esteve inteiro nas coisas e agora tinha ainda mais pressa. Trazia com ele sobretudo o que de mais importante o PPD, depois PSD, ciosamente guardou até tarde no tempo: a diferença. Uma marca que nem os que estavam dentro, nem os que estavam fora sabiam muito bem definir mas que era directamente proporcional á diferença da personalidade de Sá Carneiro: um homem que podia ser ele próprio antes de ser o que quer que fosse. Dizia o que (ainda) não se queria ouvir e muito cedo entendeu o alcance do que era preciso fazer e como; usava um verbo forte, possuía um discurso tenso e antes de outros, detectou o que (lhe) pedia coragem, (lhe) exigia determinação, (lhe) reclamava energia. Já o escrevi muitas vezes: vi Francisco Sá Carneiro entrar e sair, partir e voltar, bater, esgrimir, incomodar, dividir. Vi-o abandonar por mais de uma vez a liderança da sua barca, namorar o PS, conspirar com o Dr. Soares, enfrentar congressos tempestuosos. Ficar de mármore face à dissidência de primeiras figuras e de gelo com o humilhante abandono de uma centena de deputados «seus» que de um segundo para o outro, no dia 4 de Abril de 1979, cortaram as amarras do grupo parlamentar do PSD e começaram, hostilmente, uma nova vida política no mesmo hemiciclo. Vi-o remar sempre na mesma 14 direcção — a da ruptura com o que estava — para depois atingir o porto das reformas que tinha por indispensáveis para a transição democrática e o enjeu europeu que sempre advogou. Também por isso o vi ter razão antes do tempo e pagar por vezes um preço exorbitante pela ousadia de destoar ou não caber na ortodoxia do tempo. Não era um outsider mas até se chegar a uma célebre Primavera, no final dos anos 70, quando metade de Portugal se rendeu a ele, era quase como se o fosse. Um belo dia, tal como no antigo regime inventara a Ala Liberal e anos depois produzira o PPD, criou uma nova força política. Mais forte, mais sólida, mais ampla, mais credível, era uma aliança política liderada pelo PPD que entretanto já se intitulava PSD e se escorava no CDS de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, no PPM de Ribeiro Telles e em meia-dúzia, se tanto, de independentes, arregimentados e liderados por Medeiros Ferreira e António Barreto. Chamou-se Aliança Democrática, nasceu em 79 e com ela, ele, Sá Carneiro, quase virou o país do avesso da revolução e eu também o vi fazer isso. Ou seja, vi-o começar outra história política batendo-se como um general que fosse ao mesmo tempo um soldado. É que era preciso que o país, todo o país, percebesse a dimensão, a profundidade, o significado daquilo que com os seus amigos e pares ele arquitectara, essa tal «Aliança Democrática». Com ela esquadrinhou o país de lés-a-lés, explicou, insistiu, convenceu. E quatro anos depois da revolução oferecia ao Centro e à Direita a sua primeira vitória política. Estava-se em Dezembro de 79 e tratava-se agora de arredar de vez a dimensão pretoriana da era pós-revolucionária. Tonificando a qualidade democrática do regime constitucional e com isso iniciando um novo ciclo. Onde, para além dessa «desmilitarização» do regime coubessem — por exemplo — objectivos como a legitimidade da empresa privada ou a autonomia da sociedade civil. Num país estatizado, era a «liberalização» possível e em qualquer caso era obra! Sustentada num pensamento, num critério, numa determinação férrea. Mesmo que ainda balbuciantemente, Portugal começava o seu processo de normalização cuidando ao mesmo tempo da meta europeia. Mudavam-se os tempos, mudavam-se os combates. 15 Todo o percurso do PSD passou assim a ser o de inscrever a plena democracia na rota dos nossos ventos, afirmando-a no país. Um percurso de construção de um sistema político que o fosse de facto, do ponto de vista constitucional, jurídico, organizacional. Mas era preciso ser capaz de pensar, produzir e accionar tudo isto e Francisco Sá Carneiro foi. 4 Agindo como um homem de pensamento e pensando como um homem de acção, foi muitas vezes inspirado pela premonição com que previu ou captou os eventos para neles depois intervir por antecipação. Levou para a política um carisma indefinível e o gozo do risco. Porque desconcertava, seduziu, incomodou e dividiu. Ia semeando adeptos, fazendo incondicionais, desesperando detractores.Tinha a vontade e a convicção dessa vontade, foi popular porque foi capaz de ser impopular, seguido porque dividia, amado porque repudiava. E foi contra que venceu. Insisto: uma atitude portadora da matriz de uma «diferença» traduzida no valor da iniciativa, na liberdade individual, no primado da pessoa, na noção de valorização do cidadão, que até hoje se mantém impressa na idiossincrasia do partido. Um dia disse-me que fosse a sua casa pelas sete da tarde. Era então primeiro-ministro e eu espantei-me: «Às sete?» «Procuro estar sempre em casa a essa hora, não dispenso o meu chá ao fim da tarde.» Praticava a civilização e as boas maneiras, possuía um humor fino, sabia o que era um bom vinho, escolher um charuto, comprar um quadro. Gostava da vida e gostava de falar dela, mesmo que à beira de todas as guerras, no auge de todas as batalhas, ou mesmo quando as tarefas se tornavam «impossíveis». Voltaram — ele e a sua Aliança Democrática — a ganhar com maioria absoluta em Outubro de 80 mas Francisco Sá Carneiro sabia que não chegava. Era preciso ainda vencer Eanes, ou melhor, era sobretudo preciso derrotar o então presidente da República, que ele abominava. Também acompanhei isso a par e passo, na corrida das eleições presidenciais do ano de 80: no Norte e no Sul, em 16 Lisboa e fora dela, nos Açores, na Madeira, nos ecrãs da televisão. Francisco Sá Carneiro tinha o olhar febril e a ansiedade da corrida contra o tempo, contra os interesses instalados, contra os militares, contra o que estava. Era urgente, era o último combate. Se o seu candidato (o general Soares Carneiro) perdesse, ele, ia-se embora. Ouvi-lhe dizer isso mais que uma vez nas últimas semanas da campanha eleitoral, quando o ar quase se tornara irrespirável e a tensão política atingira o seu clímax. Como quando o encontrei, uma noite, no Buçaco, onde jantava antes de um comício em Coimbra: «Eu vou-me embora...» No dia 1 de Dezembro vi-o intervir num comício em Évora, antes disso estivera com ele em Viseu, no dia 3 encontrei-o em S. Bento, no gabinete onde oficiava como primeiro-ministro de Portugal. Disse-lhe que ele tinha um «mau candidato», respondeu-me que seria «um excelente presidente» e eu escrevi isso mesmo, no Expresso dessa semana. Mas no final da conversa, subitamente, ouvi-o ainda anunciar-me, sem pré-aviso, que afinal «amanhã vou ao Porto... sim, é preciso ir ao Porto...» No dia seguinte, trocou Setúbal pelo Porto e a vida pela morte. Não terá havido porventura encontro mais verosímil. A última porta e derradeira saída de cena para este homem a quem a morte transformara, antes do tempo. Mas morre-se sempre antes de tempo, a vida em destino. A-dos-Negros, 14 de Agosto de 2010 17 AGRADECIMENTO Este livro não poderia ter sido escrito sem a inestimável contribuição dos testemunhos daqueles que durante toda uma vida conviveram com Francisco Sá Carneiro: Maria Francisco Lumbrales Sá Carneiro; Ricardo, Ana Maria e Maria Joana Sá Carneiro; Isabel Nunes de Matos Sá Carneiro; Francisco, Isabel, Teresa, José e Pedro Sá Carneiro. Que todos eles encontrem aqui a expressão da minha mais sentida gratidão. Foram igualmente muito importantes os diálogos travados com personalidades que seguiram de perto Sá Carneiro e que acompanharam o seu percurso humano e político: D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto; Adelino de Palma Carlos; António de Spínola; André Gonçalves Pereira; António Barreto; Almeida Bruno; Antero Leite Pereira de Seabra; António Alçada Baptista; António Capucho; António Leite de Castro; Amândio de Azevedo; António e Maria João Sande Lemos; Álvaro Barreto; Augusto de Carvalho; Barbosa de Melo; Conceição Monteiro; Carlos Macedo; Carlos Azeredo; Carlos Castro Fernandes; Eurico de Melo; frei Mateus; frei Bento Domingues; Francisco Pinto Balsemão; Francisco Sousa Tavares; Fernando Lopes (Restaurante Tavares); Glória de Matos; Helena Roseta; Helena Vaz da Silva; Joaquim Pinto Machado; Joaquim Magalhães Mota; José Miguel Júdice; José Luís Nunes; João Morais Leitão; José Blanc; João David Nunes; José Manuel dos Santos; Jorge Sá Borges; Lucienne Abecassis; Luís Beiroco; Mário Soares; Mário Pinto; Miguel Veiga; Manuel Brito; Marcelo Rebelo de Sousa; Maria das Dores Cardoso; Manuela Calheiros; Montalvão Machado; Margarida Patrício Gouveia; Natália Correia; 19 Publicações D. Quixote; Rui e Maria Fernanda Machete; Rui de Carvalho; Rui Vilar; Rui Brito e Cunha; Salles Lane; Vasco Abecassis; Vasco Vieira de Almeida; Vital Moreira; Vítor Constâncio. Sua Excelência o presidente da República, general Ramalho Eanes, aceitou enviar um texto, respondendo à minha solicitação nesse sentido. Agradeço ainda a colaboração de Luísa de Castro, directora dos Serviços de Documentação do Partido Social-Democrata; de José Mário Costa que pacientemente reviu estas 240 páginas e de Madalena Paiva Raposo, que dedicadamente me ajudou a dactilografá-las. Enfim, agradeço aos meus amigos, Eduardo Prado Coelho, José Miguel Júdice, Jaime Nogueira Pinto e Marcelo Rebelo de Sousa o enorme favor que me fizeram ao aceitar serem os primeiros críticos e leitores deste livro. A todos, o meu sincero obrigado. Maria João Avillez Lisboa, Setembro-Dezembro de 1981 20 INTRODUÇÃO Este livro não é de modo nenhum, uma biografia exaustiva de Francisco Sá Carneiro. Escrito ainda sobre o fogo e as cinzas de um desaparecimento próximo, a própria força das coisas impõe a ausência do grande juiz de sentimentos e valores que é o tempo, ou, por outras palavras, de perspectiva histórica. É antes, com limitações e virtudes, tão só um primeiro retrato. Retrato do homem lentamente esboçado através da memória das memórias, dos que amaram, acompanharam, conheceram ou hostilizaram o personagem; primeiro retrato susceptível de ângulos mais baços ou vivos, de tons mais agressivos ou esmorecidos, de linhas mais firmes ou ténues, um primeiro retrato-fresco, intimista, polícromo, mas creio apesar de tudo vivo, sentido, humano. Feito a partir do que subsiste quando se desaparece, é o retrato de um homem, misto de pensamento e de acção, fraqueza e força, dúvida e vontade, matéria e espírito. Mas também do político que foi, agressivo, frontal, inflexível muitas vezes por imperativo de vitória e sobrevivência. Quando iniciei este trabalho tive a consciência dos problemas que se me colocavam, dos riscos da obra, das insatisfações que iria provocar – a começar pela minha –, da busca desesperada do personagem, através das palavras alheias, ora comovidas ora mistificadoras, todas de certa forma iludidas porque condicionais de sentimentos fortes e emoções recentes, da angústia, em suma, que sempre provoca essa viagem ao fundo das coisas. 21 Por isso este retrato não podia ter mistificação, favor ou devoção no seu traçar, do mesmo modo que o biógrafo deve arrancar da perspectiva do personagem quaisquer sentimentos que obscureçam, dominem ou alterem a narrativa. Por isso também é esta a história de um homem comum, que as circunstâncias aqui e ali engrandecem, para tudo acabar num epílogo a que o desfecho dá a dimensão do trágico. «La mort transforme la vie en destin», dizia André Malraux. Mas há que recusar a tentação de reinventar um homem vivo e que viveu, redescobrindo-lhe os estigmas da predestinação no quotidiano da infância, da juventude ou da maturidade, e aceitar o desafio de, atento e humilde, voltado para o fio dos dias e caminho do personagem, tomar conta dele nessa perspectiva quase sagrada que é a humanidade de cada homem. Maria João Avillez Lisboa, Setembro-Dezembro de 1981 22